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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.5 no.9 Barbacena Nov. 2007

 

ARTIGOS

 

Melancolia e narcisismo: a face narcísica da melancolia nas relações do eu com o outro

 

Melancholy and narcissism: the melancholy and its narcissistic face in the relations of self with the other

 

 

Carlos José da Silva Santa Clara*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho define-se como uma análise da melancolia em sua estreita relação com o narcisismo e o campo da alteridade. Acreditamos que a questão paradigmática do objeto/outro e sua relação com o eu circula de maneira implícita por todo o texto freudiano "Luto e melancolia" e culmina na definição de identificação e "escolha objetal narcísica". O narcisismo representa, na melancolia, o fechamento ao encontro com a alteridade do outro, visto que isso significa para o melancólico o aniquilamento de seu eu ideal. Visamos, portanto, uma pequena reflexão acerca do lugar do outro na melancolia. Ao final, procuramos discutir a dimensão da dor da perda e a identificação com o outro como forma de se evitar um sofrimento maior ao eu.

Palavras-chave: Melancolia, Eu ideal, Narcisismo, Investimento, Alteridade.


ABSTRACT

The present work is defined as an analysis of the melancholy in its narrow relation with the narcissism and the field of the alterity. We believe that the paradigm of the question of the object/other and its relation with the self circulates implicit in the Freud's text: "Mourning and melancholy", culminating in the definition of identification and "choice of the object founded in narcissism". The narcissism represents in the melancholy the closing to the meeting with the alterity of the other, since this means for the melancholic destruction of its ideal self. We aim at, therefore, a small reflection concerning the place of the other in the melancholy. Finishing, we look for to argue the dimension of the pain of the loss and the identification to the other as form to prevent a bigger suffering for the self.

Keywords: Melancholy, Ideal self, Narcissism, Investment, Alterity.


 

 

Melancolia e narcisismo: a face narcísica da melancolia nas relações do eu com o outro

O artigo intitulado "Luto e melancolia", uma das produções mais importantes de Freud acerca da melancolia, foi escrito em 1915, mas somente veio a ser publicado dois anos mais tarde. Nesse escrito, Freud procurou explicitar a natureza da afecção melancólica com base em uma aproximação com o luto, situando o paradigma dessa afecção em torno de uma perda e da não realização do trabalho de luto. Partir do luto para dizer da melancolia é seu passo inicial na construção de uma justificativa metapsicológica que fosse capaz de clarear o escuro caminho pelo qual percorre um sofrimento marcado pela paralisação do desejo e da vontade de vida. Situar a perda como elemento característico da melancolia e sobre ela trabalhar o conflito ambivalente nas relações com o objeto, a identificação, a escolha objetal narcísica e os sentimentos de culpa e auto-agressão a que se submete o eu. Ao analisar tais elementos, Freud define um campo próprio para essa forma de sofrimento psíquico na teoria psicanalítica, mas não elimina outras possibilidades de leitura e entendimento sobre ele. O que Freud fez foi abrir o caminho para a tentativa de compreensão de um adoecer ainda repleto de pontos obscuros e não uma imposição de verdade teórica.

De inegável importância para as reflexões teóricas psicanalíticas futuras, esse trabalho de Freud inaugura novo pensar acerca da afecção melancólica em que o narcisismo e a identificação do eu com o objeto surgem como elementos essenciais para a explicação e a análise desse fenômeno.

O conceito de narcisismo tenta explicar o investimento libidinal objetal que retorna para o eu e a identificação e pontua uma forma de recusa psíquica da realidade da perda do objeto. Essa recusa que se encontra enraizada no próprio amor narcísico e é sustentada por ele traz em seu complexo o desdobramento da negação do eu quanto ao reconhecimento da alteridade. Isso não quer dizer que para o melancólico o outro não exista, mas sim que esse outro é reduzido a uma projeção imagética do eu e, portanto, elevado a um eu ideal1 narcísico.

Ousamos adentrar nesse mundo da melancolia e discuti-la a partir de uma lógica psicanalítica que abrange tanto as noções de narcisismo e eu ideal quanto a noção de alteridade, de um outro "cuidador", sem o qual a existência estaria fadada ao fracasso. O lugar do outro no adoecer melancólico é sempre questionado por ser ele o reduto de uma imagem do eu idealizada e buscada. Se, como pontua Pinheiro (1998), a unidade corporal do melancólico é mal constituída, falha, sua identificação com o outro (no singular) pode se tornar a única possibilidade de encontro com uma imagem que possa dele dizer e unificá-lo nos contornos de um corpo. Talvez aqui também resida a dificuldade do eu em aceitar deixar o objeto.

Dessa forma, se esse outro encarna a imagem do próprio eu, o eu ideal, ele representa o absoluto de um ser amado, portanto, ser perdido, causador de um colapso e de sofrimento intolerável ao eu. A questão que aqui se insere, e que será discutida no desenrolar deste artigo, é que perder o objeto absoluto é perder a si mesmo nesse objeto, uma vez que, a partir da identificação (do retorno do investimento do objeto para o eu), ele passa a ser parte do próprio eu. É nessa peripécia da relação do eu com o outro, no que tange à identificação, à redução do outro ao mesmo e ao evitamento da dor que buscaremos situar a melancolia e toda sua problemática narcísica. Uma melancolia que se consagra como modo particular de escolha subjetiva e que fez parte das primeiras análises de Freud acerca dos sofrimentos que assolavam a vida do corpo e do psíquico humano.

 

Luto e melancolia em Freud: o eu e o objeto/outro

Freud procura explicar a afecção melancólica no mesmo campo do luto, separando o que têm em comum. Sua posição é tomada devido ao fato de as causas externas que influenciam tanto um quanto o outro parecerem ser as mesmas: a perda do objeto. Ambos seriam, em geral, "a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade, ou o ideal de alguém, e assim por diante" (FREUD, 1917, p. 249). Mas o que intriga a Freud é que em algumas pessoas tal perda produz o luto, que não é considerado patológico, e em outras, melancolia. É isso que o move em busca de alguns esclarecimentos, mesmo que sejam introdutórios.

Ao delimitar os traços mentais característicos da melancolia - "um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima" (FREUD, 1917, p. 250) -, Freud chega a conclusão de que esses mesmos traços são encontrados no luto, com uma única exceção: a diminuição da auto-estima. E será ela que expressará, em termos energéticos, o empobrecimento do eu, tão particular à melancolia.

No luto, a realidade da ausência prova ao eu que o objeto não existe mais, obrigando-o a retirar seus investimentos2 desse objeto e a deslocá-los para outro. Uma oposição por parte do eu a essa exigência de se retirar todo o investimento do objeto será levantada, caso esse objeto for o representante para o eu de uma fonte antiga de satisfação. E, além disso,

Esta oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo. Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto perdido (FREUD, 1917, p. 250).

A retirada é um processo penoso, porquanto abandonar o objeto é o mesmo que abandonar uma posição de satisfação há muito tempo construída. Desse modo, o trabalho de luto requer tempo, um tempo necessário para o desinvestimento do objeto, que não está mais onde costumava ser encontrado, e necessário também para o reinvestimento em outro objeto. Do ponto de vista econômico, a energia que retornara para o eu após a perda do objeto será utilizada para investir as lembranças desse objeto que permaneceram no sujeito. Esse movimento de investir as lembranças, conseqüentemente irá produzir desprazer e colocar em ação o processo de descarga.3 É esse processo que vai possibilitar o escoamento energético do investimento das lembranças e, posteriormente, no desenrolar do trabalho de luto, um gradativo desinvestimento, permitindo, assim, ao eu eleger e investir um outro objeto na realidade. Assim, quando novo objeto surge no horizonte e o eu decide investi-lo, fica claro que as lembranças do objeto perdido, causadoras do longo sofrimento do luto, já se encontram em fase de desinvestimento e esvaziamento, possibilitando novo ligar pulsional.

Tal movimento ou processo de elaboração, no luto, não irá excluir a lembrança do objeto do psiquismo. O que acontecerá é que essa lembrança deixará de ser investida e perderá o lugar que antes ocupava. Ela permanecerá no sujeito como "mais um" desses outros que o constitui e não mais como o objetivo único da pulsão ou libido objetal.

Há ainda outra questão, quanto ao objeto, a ser assinalada no luto. Se no luto o objeto é abandonado e, mais tarde, substituído por outro, isso prova que o objeto é reconhecido como "não todo", portador de falhas, contrariamente ao objeto na melancolia, que se apresenta como completo e absoluto. Daí o investimento do eu em outro objeto e a elaboração simbólica das perdas serem possíveis e evidenciadas no trabalho de luto e não na melancolia.

Ao elaborar os conceitos de luto e melancolia, Freud infere que no processo do trabalho de luto é mais fácil definir e identificar o motivo do sofrimento, pois o objeto que se perdeu e que está absorvendo o ego é visivelmente percebido. Ele morreu, foi perdido, e a realidade dá provas disso, evidenciando sua ausência. Já no caso da melancolia a situação é outra, pois não se tem idéia do que realmente foi perdido e está a esvaziar o ego. Nela "uma perda objetal foi retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a respeito da perda" (FREUD, 1917, p. 251). Freud supõe, então, que na melancolia a perda seja de natureza mais ideal, ou perda do amor do objeto, já que não se sabe o que realmente foi perdido, e assinala: o sujeito pode até saber que objeto foi perdido, mas não pode saber o que se perdeu nesse objeto.

Diferentemente do enlutado, o melancólico apresenta grande empobrecimento do eu, reconhecido a partir de sua baixa auto-estima. Pensamentos de "menos valia" lhe abismam e a recusa em se alimentar muita vezes se instaura, superando o "instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida" (FREUD, 1917, p. 252). A desgraça é tamanha que tudo se torna inútil, sem vida, até mesmo o próprio eu que, em conseqüência, esvazia-se. Auto-acusações, autopunições e autocríticas são realizadas de maneira exagerada e agressiva. O paciente descreve-se da pior maneira possível e, como assinala Freud, sem sentimentos de vergonha.

Esses atos de flagelo que o paciente direciona a si permite a Freud pensar que uma parte do eu colocou-se contra outra parte do eu, tomando-a como objeto. Ele afirma, então, que "no quadro clínico da melancolia, a insatisfação com o ego constitui, por motivos de ordem moral, a característica mais marcante" (FREUD, 1917, p. 253). Mas, à medida que novas reflexões são elaboradas, Freud acaba por inserir o outro (outrem) no quadro geral da melancolia. E é com essa entrada do outro que se faz possível inferir a problemática da alteridade no texto freudiano "Luto e melancolia".

Nas detalhadas descrições do material que o melancólico traz para a análise, Freud consegue enxergar que as autotorturas que o paciente se dirige, na verdade, parecem se ajustar a outrem que esse mesmo paciente amou, ama ou está amando, ou seja, "entre linhas", é a outro que o melancólico agride e não a ele mesmo; um outro que no eu habita, por intermédio da identificação e da incorporação, sem que sua existência seja reconhecida por ele. O eu é seu próprio torturador, mas tais torturas (recriminações, degradações, críticas) só são possíveis porque não se dirigem contra ele, e sim contra um outro/objeto que não se sabe estar presente nele.

Freud aparenta ter idéia da presença de um outro internalizado na melancolia; tanto que, ao fazer referência à "vergonha", dada como ausente nesse sentimento, cita: os melancólicos "não se envergonham nem se ocultam, já que tudo de desairoso que dizem sobre eles próprios refere-se, no fundo, à outra pessoa" (FREUD, 1917, p. 254). Assim, o outro se torna inevitavelmente inscrito na teoria freudiana, mesmo que não explicitamente, em forma de texto ou trabalho sobre o tema da alteridade. A partir da inserção do outro no campo de análise da melancolia, é possível perceber a problemática que circula na relação do eu com um outro identificado e internalizado.

Estabelecido esse lugar do outro na melancolia, Freud procura delimitar explicações teóricas (uma construção metapsicológica) para a relação entre o eu e o objeto a partir da idéia de retorno da libido (que antes era do objeto) para o eu e do processo de identificação que tanto aproxima o eu e o objeto, a ponto de esse eu ser tratado como o próprio objeto. Na tentativa de se obter mais esclarecimentos e construções embasadas na psicanálise, aposta uma explicação para a identificação do objeto no eu, existente na melancolia, a partir de um ponto de vista de investimento e desinvestimento. Freud pontua que, após a relação com o objeto ser rompida, destroçada (o objeto da "realidade" ser perdido), a libido que era investida sobre ele e que deveria ser deslocada para um novo objeto, por algum motivo desconhecido, retorna para o próprio eu do sujeito, formando uma identificação entre esse eu e o objeto. É essa energia libidinal retornada ao eu que, em termos psíquicos, mantém o objeto presente. Com essas especulações sobre a relação entre o eu e o objeto, Freud consegue apontar o porquê do eu, na melancolia, tanto se degradar e se humilhar.

Ao afirmar que o investimento antes dirigido para o objeto se volta para o eu e que esse retorno serve para estabelecer uma identificação do eu com o objeto, Freud esclarece que o objeto já incorporado passa a atrair para si os investimentos de energias provenientes de todas as direções, deixando o eu (ou uma outra parte desse eu) totalmente empobrecido. O objeto incorporado se torna tão excessivo e tão investido que o próprio eu não se reconhece mais e se perde, tornando-se, pois, o próprio objeto.

O trauma da perda do objeto deixa sua marca em forma de ferida aberta a esvair sangue sem parar; em outras palavras, em forma de um excesso que o psiquismo não consegue barrar. A luta pelo objeto abre a ferida dolorosa que clama por cuidados; um excessivo dispêndio de energia é colocado em cena na tentativa de manter o objeto e de combater a ferida por ele aberta.

Diante de toda dor, ao eu resta apenas a busca desesperada, numa atitude defensiva de preservação, por manter o objeto perdido presente, mesmo que, para isso, tenha que negar a realidade de sua ausência, ou seja, a "consciência" de que o objeto foi perdido. E é por meio da identificação com o objeto perdido que se encontra a possibilidade de burlar a dura verdade do acontecido.

A presença do objeto pela incorporação, mesmo que ele já tenha morrido ou tenha sido perdido na realidade, é uma verdade falseada e não poderá corresponder com a "plena" satisfação que, antes, o eu obtinha com o objeto "real". E, para afirmar ainda mais essa questão, existe o teste de realidade. Em outras palavras, ao criar a ilusão de poder manter o objeto presente por meio de sua incorporação, o eu acredita evitar a dor maior que poderia ser ocasionada por sua ausência, mas a realidade é intransigente e continua a dar sinal da verdade de que o objeto não mais existe, o que, obviamente, gera e alimenta um impasse, um conflito. A realidade diz que o objeto não está, o eu se nega a acreditar e diz que ele está. Mesmo com a tentativa de evitamento da dor na recusa em aceitar a perda, ela acaba por incidir sobre o eu, de maneira avassaladora, passando, ainda, a ser considerada como advinda de seu próprio interior.

O eu acreditava poder evitar essa dor, mas toda a questão da relação ambivalente de amor e ódio tida com o objeto, antes mesmo de ele ser perdido, é reavivada e novamente posta em funcionamento dentro do eu. Amor e ódio em relação ao objeto entram em cena aumentando o sofrimento: o ódio quer retirar o objeto, destruí-lo, e o amor, conservá-lo. Essa ambivalência consagrada como determinante na criação dos conflitos na melancolia e que se encontra ausente no luto, como assinala Freud (1917), é que será responsável por irromper a luta entre o eu e o objeto.

Se o amor pelo objeto - um amor que não pode ser renunciado, embora o próprio objeto o seja - se refugiar na identificação narcisista, então o ódio entra em ação nesse objeto substitutivo, dele abusando, degradando-o, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento (FREUD, 1917, p. 256-257).

O outro é amado, mas é também odiado por ter abandonado o sujeito. Esse ódio é revertido em forma de ataques e abusos sádicos que o melancólico se autodirige e retira satisfações. É importante lembrar que o eu, na verdade, agride-se sadicamente na tentativa de agredir o objeto identificado a outrem e não a ele mesmo. Frente a isso surge um impasse, pois torturar o objeto na melancolia significa também torturar o próprio eu, uma vez que o objeto se encontra no interior desse eu. No ato de agressão (ativo, pois é o eu quem se auto-agride) sádica ao objeto, o eu se encontra satisfazendo a seu ódio contra ele, mas também sofre, pois recebe parte desse ataque. Num exemplo mais concreto, é o mesmo que ocorre quando alguém tenta atacar ou destruir com as próprias mãos sua imagem no espelho. Inevitavelmente, a dor dos cortes ou do impacto sobre o espelho incidiria no próprio dono das mãos. Em relação a esses ataques, há também outro elemento, a satisfação tanto do ato de atacar o objeto quanto do ato de ser ferido pelo ataque. Nesse caso, satisfações sádicas e masoquistas se encontram presentes e alimentadas pelos pares de opostos: o ódio e o amor. Quando o ódio se converte em ataques ao objeto, o próprio retorno ao eu desse ataque se inscreve como possibilidade de amenizar a hostilidade para com o objeto. Sofrer e se punir pelos ataques é o mesmo que colocar em evidência o amor que o eu ainda nutre pelo objeto. Amar é vivenciar uma dor pelo outro que o eu mesmo se põe a sentir.

Diante das dores, da satisfação em infligi-la e em recebê-las, masoquismo e sadismo entram em cena na melancolia. Ao analisar a autotortura que o melancólico se dirige, Freud vai reconhecer que ela é também endereçada ao outro com o objetivo de vingança pelo abandono sofrido. É dessa agressão ao objeto e, como no caso analisado acima, ao próprio eu, ou seja, é de um retorno do sadismo que o eu retirará sua cota de prazer. Em relação ao sofrimento alcançado após esses ataques, resta-nos apenas demarcar a posição masoquista de satisfação libidinal no receber dor. Como fala Moreira, "no sofrimento do melancólico, parece-nos que estão presentes tanto uma dor masoquista quanto um prazer sádico, dor e prazer alcançados através da auto-recriminação e da exposição perante os outros" (MOREIRA, 2002, p. 219). Não há como dispensar um componente sádico e, ao mesmo tempo, masoquista na posição do eu em relação ao objeto identificado, sendo a própria ambivalência amor e ódio relativa ao objeto a sustentação do lugar desses atos.

Enfim, são infrutíferas as tentativas de evitação da dor, por parte do eu, na recusa em aceitar a perda do objeto, pois ambivalência e teste de realidade sempre sustentarão o lugar de conflito.

 

O adoecer melancólico e o amor de si mesmo

"A exigência de ser amado é a maior das pretensões."
Friedrich Nietzsche

Freud demarca na melancolia, juntamente com as ambivalências ódio e amor, sadismo e masoquismo, a presença de um caráter narcisista de escolha objetal, lembrando-nos, com base nessa demarcação, que o objeto só é conservado no psiquismo devido ao amor narcísico que o eu nutre por ele. Aqui, talvez, caberia uma pergunta: por que o objeto perdido teria o poder de levar o eu a realizar um movimento de conservação de sua presença? Freud, ao inserir a identificação com o objeto no contexto geral da melancolia, fala da predominância de um tipo de escolha objetal nessa afecção que se realiza sobre uma base narcísica, sendo a finalidade e a satisfação nessa escolha apenas o "ser amado". Para a teoria psicanalítica, no narcisismo o sujeito toma a si mesmo como objeto de amor, como o eu ideal, e na escolha narcísica de objeto, o sujeito elege um outro segundo imagem reflexa do próprio eu, um outro à sua imagem e semelhança. O narcisista crê que é outro que está à sua frente quando, na verdade, é ele mesmo.

Como já explicitado, na melancolia a perda do objeto provoca o retorno de todo o investimento direcionado a esse objeto para o eu. Essa energia que retorna não é utilizada para investir as lembranças do objeto, como ocorre no trabalho do luto, mas sim para realizar uma identificação do eu com o objeto, ou seja, uma fusão. Toda base desse processo é revisitada pelo fantasma do narcisismo; isso devido ao fato de ser encontrada, na melancolia, uma escolha de objeto sobre um molde narcísico. Assim, o modelo do eu ideal é tomado como constituinte da realidade psíquica do melancólico. Mas por quê?

Para Hassoun (2002), a eleição de um objeto para investimento feito pelo melancólico tem por objetivo a tentativa de sustentação de uma imagem de si mesmo não bem elaborada nas primeiras identificações com o outro materno e o outro paterno que foram ausentes. Em outras palavras, o melancólico busca em um outro algo que diga dele mesmo, que possa representar aquilo que lhe falta: a consistência de um traço psíquico que o identifique, não lhe possibilitado pelas figuras de identificação primária. Como também traz Pinheiro (1998), a noção de eu como representação de uma unidade corporal no melancólico parece fracassar. Esse eu não haveria se constituído como um precipitado de identificações, de traços de objetos, mas sim de um único objeto (no singular), sendo talvez este considerado como o único capaz de dar suporte à ausência dessa unidade corporal. Dessa forma, a identificação na melancolia se daria com a totalidade do objeto e não com alguns de seus traços; ele se manteria em sua completude, sem buracos e ocuparia uma enorme porção do eu (PINHEIRO, 1998). O outro será o eu ideal onde o eu não foi capaz de erigir-se como unidade. Essa pontuação nos remeterá, ainda, à idéia de que na escolha de objeto na melancolia é visada a cura de um narcisismo ferido, de uma imagem de si mesmo não bem constituída. Mas é também a busca de uma cura, de um eu ideal, que vai esconder na melancolia o não reconhecimento do outro como alteridade, uma vez que nela essa alteridade será "visada para a devoração, para a redução do outro ao mesmo do eu" (MOREIRA, 2002, p. 219).

Aqui nos cabe, também, a posição de Juranville (2005) que, ao tratar do eu ideal na melancolia, vem sublinhar que toda perda objetal é acompanhada de ferida narcísica e, em torno dela, uma ameaça de morte psíquica para o sujeito. Isso torna possível concluir que a fusão do eu com a imagem (investimento pulsional) do objeto é uma tentativa de ainda manter a ilusão de uma possível completude narcísica, de uma não ruptura ou destruição do eu com a perda do objeto amado. O eu seria ameaçado de "morte psíquica" com a perda do objeto, já que "é uma parte de si que é perdida, ou mesmo, o eu na sua totalidade" (JURANVILLE, 2005, p. 51), devido à identificação narcísica. O objeto amado ("real", da "realidade" ou "fantasia") foi perdido, mas sua energia continua no eu sustentando sua presença. É essa sustentação da energia libidinal do objeto no eu que vai funcionar como negação psíquica ou recusa da realidade da perda. Sendo assim,

[...] a perda do objeto (separação, abandono...) só implica em (sic) ameaça se provocar a destruição do eu. A identificação narcísica primitiva é tal que a angústia da perda do objeto de amor deixa-se interpretar como a angústia do eu de não conseguir sobreviver para além do desaparecimento do objeto (FEDIDA, 1999, p. 66-67).

O eu não se desliga do objeto, portanto este não morre, não desaparece, não vai embora, permanecendo "vivo" e alimentando a quimera de sua presença. Fedida (1999) insere em seu discurso acerca da melancolia a introjeção do objeto por meio de seu devoramento canibal. Ao sinal de possível perda do objeto de amor, uma agressividade se moveria em direção a ele, com o objetivo de aniquilá-lo no ato de devorar, de colocar para dentro, evitando, pois, a angústia e o sofrimento que a perda ocasionaria. Essa posição é pertinente, pois nos fala de algo que é incorporado, pela via do devoramento, com o objetivo de proteção contra um dano maior: a dor do abandono.

Situamos, então, o lugar do narcisismo na melancolia e ainda frisamos: uma vez fundido eu e objeto, perder o objeto significa também perder a si mesmo nesse objeto. Isso justifica o apego do eu pelo objeto, um eu que ama o outro da mesma forma que narciso ama a imagem que se reflete no espelho das águas. Na passagem de Freud, "[...] uma perda objetal se transformou numa perda do eu" (1917, p. 255), reside o fato de que na melancolia o eu resiste em aceitar a perda, pois ele mesmo se tornou o objeto pela força da identificação. Seria baseado nisso que a "perda do objeto retorna sobre a forma de uma perda do eu, e o conflito entre o eu e o amado, sobre a forma de uma discórdia no interior do eu cindido pela identificação" (JURANVILLE, 2005, p. 51). Na realidade, o modo mais seguro do eu se preservar da ameaça de que o objeto "seja para sempre perdido" e de que o próprio eu seja também "para sempre perdido nesse objeto", devido à identificação, é manter a ilusão da "para sempre presença" do objeto. A partir dessa afirmação, fica claro o porquê do eu se colocar numa luta incessante de manter o objeto (sua energia que retorna e serve à identificação) preso a si mesmo. Assim, em relação à nossa pergunta colocada acima, firmamos: é o objeto conservado "presente" no eu, devido ao caráter narcísico desse eu, que não quer se perder ou se destruir na perda desse objeto. É esse objeto parte do eu o único capaz de lhe dar sustentação de unidade, sendo, portanto, a própria questão da sobrevivência que se encontraria em jogo na afecção melancólica.

Se a escolha do objeto no melancólico é realizada sobre um molde narcisista, então é possível a inferência de que o eu se esforça em conservar o objeto, incorporando-o não por medo de perdê-lo, mas por não querer perder a si mesmo nesse objeto. Por fim, "a volta da libido objetal para o ego e sua transformação no narcisismo representa, por assim dizer, um novo amor feliz" (FREUD, 1914, p. 106) para o melancólico, do qual ele não quer se desligar. Portanto, na melancolia, encontramos a marca do narcisismo na não aceitação do eu em deixar o objeto perdido, já que esse objeto se encontra misturado a ele.

 

O outro/alteridade na constituição do eu

"O homem é mais sensível ao desprezo que vem dos
outros do que ao que vem de si mesmo."
Friedrich Nietzsche

Para Aulagnier (1999), as relações entre o eu e o outro são relações marcadas pela tragicidade, pelo conflito, uma vez que todo encontro com o outro é traumatizante e dado, pois, por um excesso, uma violência. A primeira referência de um eu que a criança recebe é aquele constituído, esperado e informado pela mãe. É o chamado "eu-atencipado" que, segundo Aulagnier (1999), forma-se a partir de um discurso maternal que acaba por inserir a criança num circuito pulsional e de desejo da mãe. Ela é a porta-voz da criança. Então, o primeiro eu que habita o corpo da criança, até mesmo antes dela nascer, é exatamente esse eu, fabricado segundo os desejos e as expectativas de um outro. É sempre um outro que tenta responder às demandas do pequeno ser, nomeando seus sentimentos, suas reações, suas dores, seu choro, seus gritos e silêncio, suas sensações, forçando-o, assim, a uma interpretação, a dar uma representação para a pulsão.4 Isso é o que marca a violência e o excesso desse outro sobre o ser.

Aquilo que o outro vai dar à criança, ou seja, o "eu-antecipado", é o que irá inseri-la num universo, e assim, numa organização psíquica que, ao se constituir, permitirá sua entrada no mundo simbólico. É a forma com que esse outro vai tratar as manifestações somáticas advindas da criança e a forma com que ela receberá tais tratamentos que delimitará as futuras relações do sujeito com seu próprio corpo e com os outros.

A idéia de "eu-antecipado" que a mãe fabrica para a criança pode ser correlata à idéia de um outro fabricado anteriormente ao nascimento do sujeito. O "eu-antecipado" se refere "[...] à imagem do corpo da criança que a mãe antecipa, permitindo que a criança seja inserida num sistema de parentesco" (AULAGNIER, 1999, p. 10). Dessa forma, aquilo que a mãe espera e imagina do corpo que ainda está para nascer pode ser compreendido como um "outro-antecipado", criado para habitá-lo. Nas palavras de Elias, "[...] é preciso supor um outro prévio ao sujeito", pois "muito antes do bebê nascer [...] o campo em que ele aparecerá já se encontra estruturado, constituído, ordenado" (ELIAS, 2004, p. 42-43). O outro desse novo ser já existe antes mesmo dele nascer ou mesmo de se reconhecer como eu. Ele já é um outro para o outro que o constituiu e o estruturou em moldes do imaginário. Assim, teríamos o "eu-antecipado", que se trata das demarcações que a mãe faz para a criança da existência de um corpo, e um "outro-antecipado", o imaginário que a mãe cria sobre o corpo que vai nascer.

Trouxemos essa pequena explanação acerca da idéia apresentada por Aulagnier (1999) por a considerarmos norteadora de um pensamento que valoriza, primeiramente, a entrada de um outro na constituição do eu e também o reconhecimento de uma alteridade que marca e perpassa toda a vida do futuro sujeito, evidenciando a sua história em relação a outras. Para se engendrar a constituição de um eu, tem-se que colocá-lo em relação a um outro "cuidador", responsável por sua nomeação. Não há um eu sem um outro e não há um outro sem um eu.

É a partir de considerações como essa que são tecidas as possibilidades de se explicar a existência da alteridade e sua importância na constituição do sujeito. Sem o encontro com a alteridade, o ser humano não se constitui como sujeito, já que é a alteridade que obriga o corpo que nasce a dar respostas, a se lançar nas relações com o mundo, ou seja, a se fazer também sujeito. São de encontros e desencontros, de desejos e de faltas que o ser se constitui. É somente na relação "eu" e "outro" que cada indivíduo pode existir.

Passemos à análise da relação entre o eu e o objeto na melancolia, com o objetivo de compreender o "lugar" que o outro ocupa no espaço psíquico do melancólico.

 

A melancolia e o campo do outro

Como já citado, a melancolia se desenvolve numa base narcísica, e o que estaria em jogo nas relações entre o eu e o outro seria exatamente a perda de si mesmo que o eu experimentaria na perda do outro. O melancólico, uma vez identificado com o outro, não mais se reconhece como ser separado; assim, o reconhecimento ou o encontro com a alteridade do outro é, para ele, visto como a própria destituição/destruição do seu eu ideal narcisista. Desse modo, é por amor próprio que, na melancolia, o eu se protegeria da perda do outro incorporando-o, pois se é ele quem cura, completa e pode representar a unidade do eu, mantê-lo "vivo" no psiquismo é a única possibilidade de se evitar mais danos de sua perda na "realidade", de se evitar mais sofrimento e a própria desintegração do eu.

Na melancolia existe o outro, mas apenas como objeto, chamado para curar a ferida narcísica do eu, para amparar a ilusão de sua completude e servir de suporte à constituição de sua imagem de unidade corporal. "Existe o outro na melancolia, entretanto este outro é especular, ou seja, situa-se na dimensão da mesmidade" (MOREIRA, 2002, p. 219), sendo reconhecido apenas como parte do próprio eu, um eu ideal e, portanto, reduzido em seu campo de alteridade.

Para Moreira (2002, p. 215-216), "a vivência do sofrimento pode modificar nossas vidas, desvelando uma imagem de nós mesmos que não conhecíamos". O sofrimento e a dor da perda evitados pelo melancólico exclui a possibilidade de reconhecimento de uma identidade, de um eu como alteridade em si mesmo. O medo de não mais existir sem o outro (enquanto eu ideal) o leva a se apropriar desse outro, tornando-o mesmo. E é nessa mesmice do outro que a ilusão de nunca perdê-lo se tornaria possível. Ao mesmo tempo em que o melancólico evita a dor e o sofrimento da perda do outro, reduzindo, com isso, sua dimensão de alteridade, evita também vivenciar sua própria alteridade, ou seja, o encontro consigo mesmo como outro. Num movimento narcísico de evitamento da dor, de recusa da castração e de tentativa de sustentação de sua unidade, ele se fecha ao campo do outro não o reconhecendo e se fecha para a possibilidade futura de também se tornar outro. Ele se fecha ao ideal do eu.

O sofrimento que faz vacilar nossas referências, no melancólico, torna-o prisioneiro de sua própria dor. O melancólico se aliena e se perde na identificação, na incorporação do objeto pelo eu. Não teremos, pois, a vivência de uma dimensão maior de alteridade pois, na melancolia, o outro é especular, o duplo de si mesmo [...] (MOREIRA, 2002, p. 218).

Poderíamos dizer, ainda, que o eu não quer perder a imagem dele mesmo nesse outro para não ter que se encontrar com sua própria castração e finitude, tornando-se altamente dependente desse outro internalizado que permanece lhe sustentando um eu ideal. Nesse movimento, ele se nega a reconhecer a alteridade, excluindo-se também a possibilidade de vir-a-ser alteridade.

Mas, perdido no processo de incorporação, o eu paga seu preço. Ele passa a vivenciar a inscrição desse outro como algo estranho a si, ou seja, um outro invasor como imagem de si mesmo que não corresponde ao verdadeiro si mesmo. Como pontua Lambotte (1997, p. 165), "não mais reconhecer sua própria história como lhe pertencendo e descrevê-la atribuindo-a a um outro [...]" é sempre um elemento que traz o melancólico em seu discurso. Um outro que o eu habita e que demarca a presença do desconhecido e do irreconhecível em seu próprio interior.

A sensação de estranheza que daí surge é fruto da incorporação do outro e da confusão que se faz numa não separação do duplo de si mesmo. A própria incorporação do outro no eu acaba por torná-lo o estranho, o duplo irreconhecível: o que o faz sofrer a não ser este "eu mesmo" perdido no outro que o assola?

Esse outro pode estar aqui, também, relacionado à idéia ou ao conceito de relíquia em Fedida: "nem talismã, nem fetiche, a relíquia atesta entretanto - apoiando-se na prova da realidade - que apesar de um saber sobre a separação, é preciso acreditar que alguma coisa subsiste" (1999, p. 53). Essa relíquia mantém viva na memória uma parte do outro, ou seja, conserva na lembrança um alguém que, durante muito tempo, serviu como fonte de satisfação e marcou, de forma indelével, a vida do sujeito. Assim pensando, o outro em nossas construções pode ser tomado como objeto relíquia. Objeto que vem funcionar como forma de sempre anunciar que algo desse outro ainda vive, como forma de se prolongar na realidade psíquica a permanência do objeto perdido, permitindo a própria sobrevivência do eu. É o prenúncio do abandono do outro o responsável por irromper uma dor que o eu acredita não suportar, e é essa dor que o lança à procura de alguma forma de amenizá-la ou de afastá-la de si. Essa possibilidade é encontrada na identificação com o outro, sustentado, a partir disso, em um lugar de relíquia.

Se esse outro internalizado, que fez do eu sua morada, for perdido, agora também o será o próprio eu. A partir daí, o sofrimento na melancolia sempre será concernente à experiência de dor provocada pelo perder a si mesmo no outro. Assim, o sofrimento causado pela perda do eu mostra-se maior que o sentido pela perda do outro. Sublinhamos, então, que o sofrimento no melancólico é provocado por seu próprio eu e seus componentes sádico e masoquista e não pela perda "real" do outro, anteriormente sinalizadora de uma dor maior, insuportável à sobrevivência. O lugar que esse outro ocupa na realidade psíquica do eu é de pura repetição de si mesmo, de imagem espelhada do eu ideal e, portanto, de redução e de não reconhecimento de sua alteridade. O melancólico não sai de si, não se reconhece e, assim, não reconhece a alteridade do outro. Vive como escravo da busca do eu ideal.

 

Conclusão

Da busca pelo evitamento da dor, que se pensava maior ao reconhecer a perda do outro; da identificação com o outro de forma narcisista; do ataque do eu ao outro incorporado e, conseqüentemente, ao próprio eu; de um receio da perda do outro/objeto e da perda de si mesmo; da transformação do outro numa projeção imagética do eu e, assim, do distanciamento do reconhecimento da própria alteridade; do estranhamento do eu, que de tanto se misturar com o outro não sabe mais quem é, a face narcísica da melancolia e seu paradigma - o outro - caminha instigando novas produções que sejam capazes de lhe tornar mais inteligível aos olhos e aos ouvidos daqueles que com ela se depara.

À medida que casos de distúrbios depressivos começam a lotar os consultórios de analistas e psiquiatras do mundo contemporâneo e discussões que pontuam o aumento exagerado do individualismo numa sociedade considerada narcisista, como, por exemplo, a produção de Lasch (1983), o modelo da melancolia passa a ser utilizado como fonte de inúmeras produções teóricas e de pesquisas que tentam trabalhar as questões pertinentes a uma clínica que lida com o narcisismo e as relações com o outro.

A proximidade da melancolia com a depressão, principalmente no que se refere ao campo da psiquiatria, e o crescente número de casos de depressão diagnosticados na atualidade têm trazido a melancolia para o centro da discussão entre muitos psicanalistas, funcionando, algumas vezes, como modelo metapsicológico de leitura para outras formas de adoecimento.5

Pinheiro, em particular, propõe a utilização do modelo freudiano da melancolia como forma de análise dos novos sofrimentos psíquicos que surgem na pós-modernidade devido, também, ao aspecto narcísico que ela alça. Segundo a autora, o modelo da histeria não sustentaria hoje, como sustentou a Freud, um campo sólido de descrição e explicação teórica acerca de algumas patologias consideradas narcísicas, de casos drogadictos e somatizadores que compõem e ampliam o quadro do mal-estar da contemporaneidade.

Nesse sentido, acreditamos que o modelo da melancolia deva ser constantemente revisitado e diferentes interpretações construídas, sejam elas para a ampliação de seu conceito e compreensão de seu funcionamento ou para a criação de novas formas de abordagem metapsicológica para os sofrimentos psíquicos do mundo contemporâneo.

 

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Artigo recebido em: 15/12/6
Aprovado para publicação em: 21/8/7

 

 

*Graduado em Psicologia pela Universidade Vale do Rio Doce - UNIVALE e mestrando em Psicologia pela PUC-MINAS.
1O que o eu "projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido na infância na qual ele era o seu próprio ideal" (FREUD, 1914, p. 101). Esse modelo reflete uma imagem passada, que existiu na plenitude e no absoluto. Um momento em que não havia ainda limitações, faltas e castrações e, portanto, considerado perfeito. O melancólico vai buscar no outro não uma diferença, uma alteridade, e sim uma imagem do espelho, uma imagem que lhe sustente a completude perdida e talvez "jamais" constituída se tomarmos a idéia de Lambotte (1997), que nos diz que ao melancólico foi negado o reconhecimento da própria imagem no espelho devido ao olhar vazio e atravessado de sua mãe. Um olhar incapaz de situá-lo no mundo.
2Preferimos empregar o termo investimento, desinvestimento e superinvestimento, no lugar de catexias, fundamentados na tradução sugerida pelo dicionário de termos "técnicos" da psicanálise, de Luiz Hanns. Para mais esclarecimentos, conferir: HANNS, L. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
3Essa idéia está de acordo com o Princípio de constância do qual fala Freud por todo o percurso de construção da teoria psicanalítica. De acordo com esse princípio, o funcionamento do aparelho psíquico tenderia a reduzir ao mais baixo possível o nível de tensão ou evitar o acúmulo de energia, uma vez que esta, quando elevada, seria sentida como desprazer.
4Um exemplo comum por meio do qual se pode observar tal acontecimento é quando do choro da criança a mãe diz (especula): "É dor de dente" ou "Ele é assim mesmo: chora sempre". É essa mãe na função de outro que diz à criança o que ela sente e o que ela é.
5Não queremos dizer que a melancolia é considerada, na psicanálise, o mesmo que a conhecida depressão psiquiátrica, mas sim que elas podem possuir um campo de interlocução possível, conquanto limitado, por apresentarem certa aproximação teórica em relação à justificativa narcísica e à produção sintomática como, por exemplo, a reação a algum tipo de perda, de inibição e de empobrecimento do eu.

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