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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.6 n.11 Barbacena dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Psicoses ordinárias

 

Ordinary pshycoses

 

 

Sérgio de CamposI, * ; Sara GonçalvesII, **; Tammy AmaralII, ***

I EBP-AMP
II Hospital Governador Israel Pinheiro – IPSEMG

 

 


RESUMO

Alguns casos de psicose que têm sido observados na clínica não se enqua¬dram no diagnóstico estrutural do tipo esquizofrenia, paranóia ou psicoses afetivas. Essa psicose tem sido denominada pela clínica lacaniana de psicose ordinária, em contraponto às psicoses clássicas, que apresentam uma fenome¬nologia clínica exuberante e extraordinária. Essas psicoses denotam uma nova modalidade de apresentação clínica na qual os sintomas clássicos de delírios e alucinações estão ausentes. Outros sintomas, sobretudo aqueles denominados de novas formas de sintomas, podem estar presentes e equiva¬ler ao delírio. Alguns casos de transtornos alimentares graves ou toxicomanias refratárias ao tratamento têm sido descritos como índices de psicose ordinária. Este artigo propõe discutir o tema da psicose ordinária à luz de um caso clínico de anorexia em um homem jovem. Os autores salientam a importância do conhecimento deste tema, a partir da psicanálise, para fins de identificação diagnóstica e manejo adequado do tratamento da psicose.

Palavras-chave: Psicose ordinária, Anorexia, Novos desencadeamentos, Nomes-do-pai, Suplência.


ABSTRACT

Some cases of psychosis that have been observed in the clinic do not fit the structural diagnosis of the schizophrenia, paranoia or affective psychoses types. This psychosis has been denominated by the Lacanian clinic as ordinary psychosis in opposition to classic psychoses, which present an exuberant and extraordinary clinical phenomenology. Such psychoses reveal a new modality of clinical presentation in which the classic symptoms of delusions and hallucinations are absent. Other symptoms, especially those classified as new forms of symptoms, can be present and be equivalent to delusions. Some cases of serious eating disorders or refractory drug addictions to treatment have been described as ordinary psychosis. The current article addresses ordinary psychosis in the light of a clinical case of anorexia in a young man. The authors point out the importance o understanding this subject, from the psychoanalysis point-of-view for purposes of diagnostic identification and adequate handling of the psychosis treatment.

Keywords: Ordinary psychosis, Psychoanalysis, Anorexia, New triggers, Father’s names, Psychosis treatment.


 

 

1. INTRODUÇÃO

A psicanálise, desde Freud, empreendeu esforços de elaborações teóricas a partir da clínica e tem feito avançar o conhecimento sobre a psicose. O ensino de Lacan, a partir do seminário As psicoses, do texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose e particularmente do semi¬nário O sinthoma, contribuiu para forjar diagnósticos e um manejo terapêutico próprio com o psicótico que até então nunca havia sido experimentado.

É no sentido alusivo de Freud de que a psiquiatria está para a anatomia assim como a psicanálise está para a histologia, que propomos neste texto uma discussão sobre o tema das psicoses ordinárias. A psiquiatria fundamenta o estudo das psicoses se referendando à fenomenologia, particularmente à psicopatologia. Na psiquiatria, a clínica do olhar se impõe, muitas vezes excluindo a clínica da escuta, apanágio da psicanálise. Portanto, a psicanálise pode servir de auxílio para desvendar as novas formações clínicas que ficam ausentes dos manuais diagnósticos como o DSM e o CID 10.

Nos últimos tempos, tem sido observada na clínica a presença de sujeitos que apresentam um funcionamento psíquico e comportamental psicótico, apesar de não manifestarem sintomas característicos de psicose, como aluci¬nações ou delírios. A psicanálise lacaniana tem diagnosticado esses sujeitos como portadores de uma psicose denominada de ordinária. Entretanto, cabe ressaltar que não se trata de um novo nome para o que a psiquiatria já denominou de esquizofrenia simples.

 

PSICOSES ORDINÁRIAS

As psicoses ordinárias se caracterizam por serem distintas das psicoses extraordinárias e podem ser denominadas de psicoses brancas ou descoradas, psicoses frias, psicoses não delirantes, fechadas ou compensadas. Elas se apresentam sem grandes fenômenos produtivos, malgrado se observe algum deterioro no campo do afeto. Embora categorizadas de ordinárias ou de comuns e serem até mais frequentes que as demais, podem passar despercebi¬das ao senso comum e até mesmo para alguns psiquiatras. As psicoses ordinárias, distintas do padrão usual de psicose, se expressam sob novas formas de desencadeamentos, novas formas de conversões e novas formas de transferências.

 

CASO CLÍNICO

Aqui introduzo um caso que poderá nos servir de fonte para extrair a teoria da psicose ordinária. Caol é a denominação de um jovem universitário. Na realidade, trata-se de um jovem que foi trazido para internação pelos pais, devido a um quadro de recusa alimentar e hídrica. É raro a anorexia se manifestar em homem, além de ser incomum a recusa hídrica. Observa-se como inusitado o rigor com que seguia a dieta prescrita pela nutricionista. Chama-nos a atenção o fato de ele ter consultado um neurologista para saber se sua inteligência continuava a mesma depois de ter passado no vestibular em primeiro lugar. Julgamos também estranho que o sujeito esteja preocupado em saber se sua alimentação seria adequada e se “a queima de fósforo” estaria de acordo com o seu esforço mental para com os estudos no seu curso de filosofia. Ademais, Caol passou a dedicar-se inteiramente aos estudos e entrou num isolamento social progressivo, abandonando suas ativi¬dades físicas e sociais. Assim, a ideia de que havia algo errado com seu corpo e o desligamento progressivo do Outro configuram uma nova modalidade de conversão e um novo modo de desencadeamento psicótico. Então, veja¬mos o que seria as novas formas de desencadeamento, as novas conversões e as novas modalidades de apresentação da transferência.

 

NEODESENCADEAMENTOS

As novas formas de desencadeamentos se expressam como desligamentos, desengates gradativos do Outro. Esses desligamentos e esgarçamentos dos vínculos passam pelo campo do interesse, do envolvimento e do afeto para com o Outro. Geralmente, diferenciam-se dos desencadeamentos clássicos, que apresentam uma clínica rica de fenômenos elementares e sintomas produtivos, que estão em jogo no surto psicótico. Nas psicoses ordinárias, o sujeito alcança gradativamente o empobrecimento em suas relações, a dimi¬nuição dos laços afetivos e sociais e, consequentemente, a perda de vinculo; há uma crescente marginalização escandida (MILLER, 2003, p. 74). Ademais, evoluem em rupturas progressivas e repetidas numa intensidade crescente. Observa-se o desligamento sucessivo dos laços familiares e sociais, que pode chegar até a uma vida errante.

Nas psicoses clássicas, o desencadeamento - resultado da queda das bengalas imaginárias1 que sustentavam anteriormente a vida psíquica do sujeito - leva ao surto psicótico e revela um quadro clínico típico que exclui qualquer dúvida quanto ao diagnóstico. Nas psicoses ordinárias, com frequência, não é possível localizar o seu ponto de desencadeamento, tampou¬co perceber delírios ou alucinações. Pode-se, contudo, verificar um funciona¬mento psicótico prévio do sujeito, mesmo sem a identificação de fenômenos elementares. Em alguns casos, o funcionamento psicótico prévio pode apare¬cer com uma vida conflituosa, pouco adaptada ao meio social, dificuldades em se manter no emprego, adesão ao uso de drogas, inexistência de relações amorosas ou distúrbios de linguagem.

Se o desencadeamento é o resultado de um efeito de abrir, de desenca¬dear, a psicose ordinária prescinde do desencadeamento e dos fenômenos produtivos que se colocam em marcha como a alucinação e o delírio. Em particular, expressam novas organizações de gozo, como a anorexia, a bulimia, a melancolia, a toxicomania, os fenômenos psicossomáticos, a depressão psicótica e a melancolia, que se constituem como modalidades subjetivas, compensando e estabilizando o real2 da psicose.

Pode-se verificar a existência de dois grandes tipos de psicose ordinária: a psicose não desencadeada por causa de uma identificação imaginária e a psicose devido a uma suplência psíquica. A diferença entre uma identificação imaginária e uma suplência é que, no primeiro caso, a identificação se apoia no tipo narcísico, elaborando uma prótese para o eu a partir de um mimetismo ou espelhamento, ao passo que na suplência é colocada em marcha uma autêntica operação significante do gozo excessivo. Assim, a suplência é uma forma subjetiva de estabilização mais articulada do que a compensação imaginária. Na suplência, o sujeito encontrará um elemento capaz de ordenar o real, o simbólico e o imaginário através de um nó do tipo borromeano.

A amarração entre os três registros psíquicos, propiciada por um quarto elemento que fará as vezes do nome-do-pai3, tem a função de estabilizar a realidade psíquica para o sujeito. Esse quarto elemento, que do ponto de vista contingente pode ser qualquer um, é denominado na clínica lacaniana de nomes-do-pai, no plural. A função de amarrar os três registros na neurose é sempre do significante nome-do-pai, porém em virtude de sua ausência na psicose o sujeito pode lançar mão de outro expediente que não seja esse significante para realizar a função paterna. Na realidade, diante da precariedade ou da forclusão do nome-do-pai, o sujeito pode alçar outros elementos a essa condição para promover o enodamento dos três registros: real, simbólico e imaginário.

O tempo do desencadeamento também pode servir para diferenciar as psicoses ordinárias e as psicoses clássicas. Há pelo menos duas maneiras de a psicose se relacionar com o tempo. Na psicose ordinária, o desencadea¬mento respeita as variações temporais de um paradigma que concerne à diacronia e à psicose clássica, o desencadeamento obedece a uma variação temporal do tipo sincrônica (MILLER, 2003, p. 19).

Nas psicoses clássicas, temos um modelo clínico sincrônico com o tempo, em que o desencadeamento é um momento de concluir um processo. Como se houvesse um período de incubação representado pela estrutura pré-psicótica; um período de pródomo correspondente ao funcionamento psíqui¬co e comportamental do tipo psicótico e, por fim, um período de estado, o que equivaleria ao surto. No surto, há a conclusão de uma história, o término de um ciclo que nem sempre se pode descrever como pacífico, mesmo porque existiram estruturas pré-psicóticas e fenômenos de borda ou de franja que antecederam ao desencadeamento.

Já nas psicoses ordinárias, os estados clínicos servem como muro de proteção que impedem o desencadeamento. Nas psicoses ordinárias, implicam como pressuposto a disjunção entre a temporalidade da psicose e o seu desencadeamento. Nesse tipo de psicose, identificamos uma diacronia com o tempo, mas um contínuo na clínica que demonstra um esgarçamento gradativo dos mecanismos de defesa do eu que serviam de tecido de proteção. O tempo se manifesta de maneira diacrônica, o que dificulta uma leitura clínica do quadro, visto que nem sempre se percebe o processo com início, meio e fim, como nos casos das psicoses clássicas.

Estados clínicos que se superpõem dificultam o diagnóstico de psicose e servem como muro de proteção, impedindo o desencadeamento. Portanto, os estados de transtornos alimentares, por exemplo, podem encobrir toda uma sintomatologia psicótica, impedindo a revelação ou a aparição de fenô¬menos elementares. Aliás, esse encobrimento pelos transtornos alimentares ou até mesmo o seu tratamento dificultam o diagnóstico e impedem o desen¬cadeamento típico. Esses sujeitos podem permanecer sem sintomas psicóticos durante anos, em que se mantêm sintomáticos apenas do ponto de vista da anorexia ou da bulimia. Ademais, os efeitos dos ansiolíticos e dos neurolépticos provocam um efeito-tampão. Os transtornos alimentares podem funcionar como uma prótese psíquica ou como uma solução do tipo identificatória que autoriza o sujeito a circular no campo social com um significante de anoréxico, bulímico imposto pela sociedade.

Fenômenos inerentes à psicose ordinária, como perdas identificatórias e vivências impossíveis de serem significantizadas, acarretam enigmas, perplexi¬dade e angústia diante do gozo do Outro. Essas experiências assinaladas podem, equivocadamente, ser atribuídas a quadros orgânicos da anorexia ou da bulimia e também a efeitos químicos de drogas, como nos casos de drogadicção. Ademais, a abolição das fronteiras entre o eu e a realidade, além da sensação de fragmentação da imagem corporal na psicose ordinária, pode acarretar confusões diagnósticas na clínica e ser atribuída, erroneamente, à desnutrição e à cetose4 oriunda do jejum prolongado na anorexia ou aos efeitos nocivos de alucinógenos.

A psicose é uma experiência vivida pelo sujeito fora de qualquer possibilidade de comunicá-la dentro do laço discursivo. Existem algumas vivências existenciais – a perda de um emprego, uma separação conjugal ou a morte de um parente próximo, entre outros – que o sujeito, na psicose ordinária, experimenta como trauma psíquico, de modo que ele pode apresentar, em consequência desses eventos traumáticos, uma nova forma de desencadeamento psicótico. Essa experiência pode ser vivida como um encontro com o real, impossível de ser acomodado pelo simbólico. Os efeitos desse acontecimento podem promover a insuficiência no laço que se estabelecia do ponto de vista imaginário com o Outro simbólico. Destarte, a impossibilidade de produzir uma significação fálica para dar conta da situação vivenciada como desamparo confronta o sujeito com o real.

 

NEOCONVERSÕES

As neoconversões são bem diferentes das conversões encontradas nos quadros histéricos. Se por um lado, as conversões clássicas, apanágio da histeria desde a época de Charcot, são fenômenos do corpo que cedem à interpretação significante; por outro, as neoconversões estão no campo da psicose e não são interpretáveis pela palavra, tampouco cedem às interven¬ções significantes ou à argumentação lógica. Entre as neoconversões, temos como uma das principais a dismorfofobia corporal encontrada nos casos de anorexias graves. A temática fálica5 da linguagem não é sustentada pela função paterna, o que acarreta um caráter não dialético entre significante e significado, portanto se revelam comprometidas as relações de metáfora e de metonímia. Não há associação livre, lapsos, nem sequer sonhos, como é o relato de Caol. Contudo, não há transtornos delirantes e a linguagem, embora pareça pobre, não porta cursos desconexos do pensamento.

Nas psicoses ordinárias, além das ideias de somatizações e delírios somá¬ticos envolvendo uma perda da noção do corpo próprio, pode existir um duplo imaginário de caráter mimético no qual o eu se torna preso ao Outro, não constituindo uma imagem corporal própria e um sujeito da linguagem. Como o corpo do sujeito encontra-se espelhado no Outro, o sujeito permane¬ce à mercê do gozo do Outro, submisso à invasão dos fenômenos corporais tidos como duráveis (MILLER, 2003, p. 147).

 

NEOTRANSFERÊNCIAS

A transferência é concebida como uma tomada de poder do analista sobre o neurótico, como o vínculo afetivo que faz o sujeito depender dele, e do qual é legítimo nos servirmos para que uma interpretação seja aceita (LACAN, 1958, p. 440). Durante muito tempo, pensou-se que os psicóticos não estabeleciam vínculos de transferências. Posteriormente, Lacan observou que os fenômenos de transferências nos psicóticos se expressavam de maneira maciça tanto sob a vertente persecutória quanto sob a erotômana.

No que tange às psicoses ordinárias, observamos as neotransferências, que são novas modalidades de o psicótico estabelecer o vínculo transferencial. Nas psicoses ordinárias, o vínculo transferencial não se firma mais de maneira consistente como na modalidade erotômana ou persecutória encontrada nas psicoses clássicas. O vínculo que se estabelece é frouxo, parcial e promove uma transferência fragmentada. A transferência no caso de Caol é expressa sempre de maneira indiferente a quem lhe assiste. De acordo com a mãe, o filho “virou outra pessoa, virou um robô, que não sente mais fome, nem sede, nem frio e nem calor. Não sente saudade, nem raiva, nem alegria, nem dor ou qualquer outro sentimento”. Quando questionado sobre o que o deixa feliz, diz apenas que “sente-se bem ao praticar suas atividades usuais”.

 

NOMES-DO-PAI

O nome-do-pai foi pensado por Lacan como um meio para lidar com o desejo absoluto da mãe. Nos casos de neurose, temos um nome-do-pai que vem ocupar o lugar do desejo da mãe e promover a metáfora paterna, a significação fálica e a lei simbólica. É preciso ter o nome-do-pai, mas é também preciso que saibamos nos servir dele (LACAN, 1958, p. 163). A maneira do sujeito se servir do nome pai vai propiciar resultados, destinos e histórias singulares.

Nas psicoses, verifica-se na clínica a forclusão do nome-do-pai6, que, no entanto, não funcionou como ponto de basta, ancorando a linguagem. Assim, teremos um sujeito habitado por uma linguagem à deriva. Contudo, os efeitos forclusivos do nome-do-pai são menos percebidos na psicose ordinária, pois se o Outro está contido por um fio mediante o simbólico, ele está plenamente calçado pelo imaginário, o que promove a estabilização mínima na estrutura psíquica.

Na psicose ordinária pode-se observar uma colagem, até mesmo um mimetismo, ao Outro sem distúrbio da linguagem, porém algo está mal engatado na linguagem, e até mesmo manco na transferência. Trata-se de uma estrutura psíquica com uma discreta ancoragem no registro simbólico, mas com uma infiltração imaginária significativa no inconsciente. No caso de Caol, em primeiro lugar, é evidente a relação de estranheza entre o eu e o corpo, assim como se observa a desconexão entre as pulsões parciais, particu¬larmente a pulsão oral e o inconsciente. Em segundo, um laço social do sujeito se estabelece como mínimo, no qual ele faculta uma relação fragmen¬tária e diminuta com o Outro.

Pode-se pensar na psicose ordinária como possuindo quatro características essenciais (MILLER, 1998, p. 130). A primeira se baseia na singularidade do sintoma, no qual o sujeito apresenta um funcionamento psicótico, malgrado atípico. A segunda característica é a do gozo, na medida em que o sujeito se localiza sob o eixo do abuso ou do excesso. Reúnem-se aqui todos aqueles que abusam do jejum, do excesso de comida ou de substâncias tóxicas, como nos casos de transtornos alimentares ou drogadicção. A terceira é veri¬ficada nos casos como o de Caol, no qual a questão está localizada no corpo. Nesse tipo, agrupam-se todos os fenômenos que incidem sobre o corpo, como o delírio somático, a obesidade, as anorexias, as bulimias e os fenômenos psicossomáticos. Por fim, a quarta característica é aquela em que o sujeito funciona a partir da inexistência do Outro. Nessa última característica encontra¬mos um indivíduo que busca estabelecer um espelhamento com o outro semelhante. Trata-se de um mimetismo cuja reversibilidade está no campo imaginário. O sujeito escolhe um parceiro para fazer através dele a sua própria imagem e a suplência do Outro que não existe.

A fórmula do sintoma é semelhante ao nome-do-pai e é um princípio cardeal da clínica borromeana7. Digamos que o sintoma pode assumir a função do nome-do-pai. Na realidade, na era do declínio dos ideais, o nome-do-pai não vale mais que um sintoma. Podemos, então, interrogar se a anorexia não é uma maneira de Caol tratar o desejo da mãe, uma vez que para ele não ser mais frustrado, se priva de tudo. Caol não se encontra no campo do desejo, nem tampouco da demanda. Na verdade, Caol está no campo apenas da necessidade. Trata-se de um sujeito preso à necessidade para se safar do desejo da mãe. Destarte, no caso de Caol, a anorexia é uma pèreversion8, uma modalidade do nome-do-pai que tenta amarrar o real, o simbólico e o imaginário, na medida em que tenta tratar o desejo da mãe.

 

DEFESA

Um ponto relevante a ser considerado no caso é o fato de Caol, quando jovem, ter desenvolvido um comportamento excessivamente metódico. Com efeito, nos casos de psicose ordinária, não é raro encontrarmos sujeitos que usam de sintomas obsessivos compulsivos como defesa para se protegerem do gozo do Outro. Os sintomas dos transtornos obsessivos compulsivos ser¬vem como uma moldura que organiza um quadro de uma pintura contemporâ¬nea pouco compreensível. Com efeito, esses sintomas organizam e contêm o caos psicótico. Recentemente, um caso tão intenso de transtorno obsessivo compulsivo que ocultava uma psicose foi assistido no Instituto Raul Soares – FHEMIG, onde foi batizado, de maneira original, de psicose obsessiva.

O jejum prolongado de Caol, a partir das datas religiosas, com a perda de 10 kg, pode ser considerado uma nova forma de desencadeamento. O jejum religioso, muitas vezes tentado sem sucesso pelos membros da família, foi apreciado com orgulho pela mãe, que também aprova o comportamento bizarro do filho de ingerir congelados. Na sua história, cabe ainda comentar uma internação anterior em outro hospital, em que ele foi submetido a oito sessões de eletroconvulsoterapia. Dois fatos advindos desse episódio nos chamam atenção: primeiro, o fato de ele passar a se alimentar compulsivamen¬te e deixar os estudos. Então, poderíamos supor que, ou bem Caol estuda e não come; ou bem Caol come e não estuda; e o segundo é o fato de a mãe achar que ele tinha ficado gordo como uma bola após as sessões de eletrocon¬vulsoterapia. Por mais que uma pessoa desnutrida comesse e ganhasse peso, seria improvável que chegasse a ser “gordo como uma bola”.

Caol assinala que “come apenas o suficiente para realizar suas atividades diárias”; “alimento quando tenho fome, mas não tenho sentido mais fome, pois tenho reservas”. Nesse enunciado, Caol qualifica que está no campo da necessidade. Não há espaço para a vontade, nem para o desejo. O sujeito transita no espaço restrito da necessidade, que é o espaço que o desejo da mãe lhe deixou. É como se o desejo da mãe predissesse que na demanda o sujeito encontraria o objeto inadequado e no desejo, a insatisfação. Então, antes que a vida fizesse seu trabalho, a mãe delimitaria o espaço da necessi¬dade como seguro para ele transitar. A mãe chegou a considerá-lo um robô. Talvez, quem sabe, uma marionete manipulada pelo desejo materno ou um robô programado pelo desejo caprichoso da mãe. No campo da necessidade, não há perigo de frustração, visto que há um objeto adequado para cada tipo de necessidade.

A clínica ilumina o ponto da proibição superegoica do desejo e da demanda quando o sujeito vai ao supermercado e retira das prateleiras os alimentos e os coloca no carrinho para, depois, retirá-los, reposicionando de novo nas prateleiras, repetidamente. O shopping e o supermercado são emblemáticos quanto à demanda e ao desejo. Com efeito, não precisamos, essencialmente, de quase nada daquilo que se encontra nas gôndolas de um supermercado. No caso, há um esboço da demanda quando Caol retira os alimentos da prateleira para, depois, recuar da demanda, visto que o desejo da mãe, expresso como supereu arcaico, apenas permite a necessidade como possível.

Caol internou-se várias vezes. Nas primeiras internações, ele passou a ler a Bíblia e alguns textos filosóficos. O que se poderia esperar como suplências pela religião ou pelo saber não se sustentou ao longo da evolução do caso. Por último, Caol buscou socorro em Shopenhauer: O mundo como vontade e representação. Caol diz que o livro fala sobre “o conhecimento como objeto de desejo e vontade”. Caol espera que através de Arthur Shopenhauer ele possa conhecer o desejo e a vontade. Mas, como se sabe, a vontade não é senão a demanda.

 

O ARROZ E O FEIJÃO

Parece-nos que o ponto crucial do neodesencadeamento da psicose de Caol reside na passagem em que a mãe se posicionou contra o curso de filosofia escolhido pelo filho, aconselhando-o a fazer um concurso público “para garantir o arroz com feijão”. Caol conta que a conversa ocorreu durante o jantar, em um momento muito “infeliz”, pois o pai chegou em seguida, contradizendo o dito materno, assinalando que ele poderia até viver para estudar. É curioso que a mãe consiga localizar e reconhecer como “válida a hipótese de que talvez o filho estivesse tentando provar a ela que não necessita do arroz com feijão para fazer filosofia”. Ademais, ressalta que “o filho pode ter se chocado com as diferentes opiniões dos pais”.

Consideramos que Caol experimentou uma situação de duplo vínculo ou contraditória que pressupõe chamadas ao nome-do-pai inexistente, de maneira que permaneceu encantado e congelado pela linguagem. Freud vai assinalar que, se por um lado, na neurose há um investimento na repre¬sentação da coisa, por outro, na psicose há um investimento na representação das palavras (FREUD, 1990, p. 232). No caso aqui relatado de Caol, a enun¬ciação “garantir o arroz com o feijão” ganha todo um investimento na represen¬tação das palavras, de modo que elas se tornam pesadas, sólidas, constituindo um verdadeiro monolito indestrutível. Outro exemplo da literalidade de seu pensamento se dá quando é solicitado que escreva uma frase qualquer, com princípio, meio e fim. Caol escreveu: “uma frase completa tem princípio, meio e fim”.

A mãe de Caol revela que o relacionamento com o marido não fica tão gelado quando o filho está doente. Ademais, cabe ressaltar que sua irmã mais nova vai responder ao sintoma de Caol fazendo nutrição, para saber como se come. De qualquer modo, parece que a anorexia de Caol tem alguma serventia para a mãe e para a irmã. Então, podemos perguntar se a anorexia não terá para Caol também alguma serventia. Com efeito, Caol faz dela uma função paterna. Lacan diria que a anorexia é um dos nomes-do-pai. Caol trata o desejo da mãe com a anorexia, não no sentido de uma anorexia histérica que saboreia o nada em oposição ao desejo da mãe. Caol evoca a metáfora do graveto que impede que a boca do Outro se feche sobre ele. O mundo está minado e é muito perigoso, e a mãe se coloca na posição de frustrá-lo para evitar um mal maior.

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

Na direção do tratamento, é preciso supor um sujeito na psicose. Somos tentados a dizer que não há sujeito na psicose, mas para tratar Caol interessa-nos supor um sujeito aí capaz de demandar e desejar (MILLER, 2006, p. 44). É preciso resgatar o sujeito petrificado pelo significante e relançá-lo como possibilidade de abertura para a linguagem. Então, para se alcançar um efeito de sujeito na psicose, torna-se necessário um grau de separação entre o sujeito e o Outro, através de um elemento que possa fazer as vezes do nome-do-pai. A partir do desejo do analista, Caol necessita encontrar outros elementos, menos mortíferos e mais saudáveis, que possam fazer valer o nome-do-pai. Caol recupera algum desejo de se alimentar quando está internado longe da mãe. Entretanto, mais do que uma separação física, a direção do tratamento deve visar uma separação simbólica.

Faz-se necessário localizar o momento em que o sujeito se desenganchou da relação com o Outro. No caso de Caol, já temos o ponto do neodesencadea¬mento localizado até mesmo pela mãe. Através de um trabalho que visa a retroação significante, tentaremos contornar esse buraco do real através de significantes que produzam novos enganchamentos, de modo que se permita a direção da cura mediante possíveis reengachamentos.

No que tange ao afeto de Caol e à promoção de alguma transferência, Éric Laurent propõe – a partir da psicanálise dos anos de 1960 – o holding como uma técnica de manejo da transferência que redireciona a escuta analítica para sustentar e formatar o ego. O holding que foi proposto por Sandor Ferenczi e repensado por Éric Laurent (MILLER, 2003, p. 159) indica que o tratamento pode ser sustentado entre vários, porém com um analista em particular. Se, por um lado, o trabalho entre vários possibilita sustentar a imagem corporal, não investida de narcisismo, por outro, a transferência no particular possibilita a nominação do sujeito.

O manejo da transferência é fundamental para que o psicótico possa construir sua história, sua envoltura narcísica e readquirir os laços sociais. Por fim, será preciso que Caol estabeleça um holding transferencial no qual se insira o desejo do analista para que ele consiga extrair uma reciprocidade, da qual possa resgatar os significantes para incluí-lo na demanda e no desejo. A função do desejo do analista é promover um saber fazer com o real, na medida em que esse desejo é um dispositivo que faculta para o psicótico a invenção de um saber calcado na alíngua (MILLER, 2003, p. 145). 9

 

 

REFERÊNCIAS

FREUD, S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. In: STRACHEY, J. (Ed.); RIBEIRO, V. (Trad.). O inconsciente (1915). Vol. 14, 3. ed., Rio de Janeiro: Ed. Standard Brasileira/Imago, 1990. p. 191-252.         [ Links ]

LACAN, J. (1955-56). As psicoses. In: MILLER, J. A. (Ed.). MENEZES, A. (Trad.). O Seminário. Vol. 3, 2. ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar (versão brasileira de 1985).         [ Links ]

LACAN, J. (1957-58). As formações do inconsciente. In: MILLER, J. A. (Ed.), RIBEIRO, V. (Trad.). O Seminário. Vol. 5, 2. ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 1-531 (versão brasileira de 1999).         [ Links ]

LACAN, J. Seminário 22. R. S. I. inédito.         [ Links ]

MILLER, J. A. Os casos raros, inclassificáveis da clínica psicanalítica. Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.         [ Links ]

MILLER, J. A. La psicosis ordinária. Buenos Aires: Paidós, 2003.         [ Links ]

MILLER, J. A. Introducción a la clínica lacaniana. Conferencias em España. Barcelona: Escuela Lacaniana de Psicoanális, 2006.         [ Links ]

ROUDINESCO, R. PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em: 1/11/2008
Aprovado para publicação em: 25/11/2008

 

 

1 Bengalas imaginárias é um termo usado por Jacques Lacan no Seminário 3 para designar uma sustentação da estrutura psicótica por elementos imaginários (LACAN, 1955/1956). As psicoses, In: MILLER, J.-A. (Ed.) e Menezes, A. (Trad.). O Seminário (v. 3), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2. ed. (versão brasileira de 1985).
2 Real é um termo empregado como substantivo, consagrado na clínica lacaniana, introduzido por Lacan em 1953 para designar uma realidade imanente à representação e impossível de ser simbolizada. Está indissociável dos registros simbólico e imaginário e surge como apanágio da experiência psicótica. Para ler mais sobre o real, recorrer a Roudinesco (1998, p. 644).
3 Termo criado por Jacques Lacan em 1953 e conceituado em 1958 para designar o significante da função paterna. Para ler mais sobre o significante nome do pai, recorrer a Roudinesco (1998, p. 541).
4 A cetose é resultado da queima de gordura pelo jejum prolongado.
5 O falo é um conceito introduzido por Melanie Klein e Ernest Jones, e posteriormente atualizado por Lacan como falo simbólico, oriundo do significante nome-do-pai e promotor da significação fálica da linguagem.
6 Forclusão é um termo criado por Lacan para designar a rejeição de um significante nome-do-pai, que é um significante essencial para o universo simbólico do sujeito. Quando há forclusão o significante nome-do-pai não é integrado ao inconsciente pelo recalque e retorna sob a forma de um real delirante e alucinatório. Para ler mais sobre a forclusão, recorrer a Roudinesco (1998, p. 245).
7 A clínica borromeana, também conhecida como segunda clínica de Lacan, é designada pelo enlaçamento dos registros psíquicos real, simbólico e imaginário por um quarto elemento que faz as vezes da função paterna. Para ler mais sobre a clínica borromeana, recorrer a Lacan (2008).
8 Lacan faz uma homofonia de pèreversion para designar uma nova e possível versão do pai. Para ler mais sobre a pèreversion, recorrer a Lacan (2008).
9 Alíngua é um termo cunhado por Lacan que designa o núcleo real da linguagem, de onde os significantes podem advir.
* Psicanalista membro da EBP-AMP; Coordenador da Residência de Psiquiatria do IRS; Preceptor da Residência do IPSEMG.
** Residente de Psiquiatria do Hospital Governador Israel Pinheiro – IPSEMG.
*** Residente de Psiquiatria do Hospital Governador Israel Pinheiro – IPSEMG.

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