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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.7 no.12 Barbacena June 2009

 

ARTIGOS

 

Um caso que fala para a rede: a escuta analítica na articulação da assistência em saúde mental

 

A case that talks to the net: the analytical listening in the articulation of menthal healt care

 

 

Fernanda CanavêzI, * ; Pedro Moacyr Chagas Brandão JuniorII, **

I UFRJ
II UNIG

 

 


RESUMO

O artigo objetiva discutir a especificidade da atuação do psicólogo nas equipes de assistência em saúde mental, em especial o lugar reservado à escuta analítica nesse contexto. Para consecução deste objetivo, será dado relevo ao recorte clínico do caso de uma adolescente acompanhada no Estado do Rio de Janeiro pelas mais diferentes equipes do campo da Saúde Mental, da Assistência Social e até mesmo da Justiça. Esperamos questionar a inserção do psicanalista em tais equipes e a responsabilidade implicada em sua escuta na articulação com as demais propostas de acompanhamento diante os impasses colocados pela problemática da adolescente em questão.

Palavras-chave: Psicanálise, Saúde mental, Clínica, Rede subjetiva, Articulação.


ABSTRACT

This article discusses the specificity of the role played by psychologists as members of Mental Health care teams, and, in particular, the place reserved for analytical listening within this context. To reach this objective, emphasis is given to a fragment of a clinical case of an adolescent followed up by different Mental Health and Social Assistance teams and even by the Justice, in the state of Rio de Janeiro. Our aim was to question the participation of a psychoanalyst in such teams and his responsibility in listening, combined with the other follow-up proposals in face of the difficulties presented by the case under study.

Keywords: Psychoanalysis, Mental health, Clinic, Subjective net, Articulation.


 

 

Um pluralismo de diferenças livres, selvagens ou não
domesticadas, um espaço e um tempo propriamente
diferenciais, que persistem através de simplificações do
limite ou da oposição.

Gilles Deleuze

APRESENTAÇÃO

O presente artigo é fruto das interlocuções suscitadas a partir do acompa¬nhamento de uma adolescente, no Estado do Rio de Janeiro. Este caso é bastante paradigmático no tocante aos desafios que coloca para os trabalha¬dores do campo da saúde mental, dentre os quais a exigência de pensar qual seria a especificidade do trabalho do psicólogo entre os diferentes atores envolvidos da rede de assistência em saúde mental e, em especial, da escuta analítica neste contexto.

O diálogo iniciou-se a partir da problemática da adolescente, que na ocasião era atendida por um CAPSi1 e recebia o acompanhamento psicossocial sistemático de um projeto que visava a reinserção familiar de crianças e adolescentes abrigados ou em situação de risco social, desenvolvido em convênio com a Fundação para a Infância e Adolescência (FIA). Os questiona¬mentos tiveram início com a constatação da diversidade de intervenções observadas ao longo deste trabalho, uma vez que eram engendradas por equipes de trabalho igualmente heterogêneas.

Propomos circunscrever o deslocamento da atuação do psicólogo do lugar de escuta encastelada nas salas de ambulatório para a possibilidade de intervenções mais ampliadas, que levem em consideração os diferentes sabe¬res em pauta no acompanhamento dos casos que fazem parte da rede de assistência em saúde mental.

 

COM VOCÊS, A PERSONAGEM PRINCIPAL

Muito embora a apresentação do caso não faça parte do objetivo maior desta proposta, esperamos lançar mão de alguns aspectos envolvidos no referido acompanhamento para dar corpo à discussão empreendida.

A adolescente será chamada de Cordélia, nome tomado de empréstimo da peça Rei Lear, de William Shakespeare. O rei decide dividir o seu reino entre suas três filhas de maneira proporcional ao afeto e à dedicação das mesmas. Uma delas, Cordélia, recusa-se a pactuar com essas exigências tirânicas. O importante a destacar aqui é tal recusa por parte da filha em responder às demandas do pai, colocando em questão seu poder arbitrário decorrente de uma posição autoritária e irreflexiva (BRADLEY, 2009).

É com essa instigação que passamos agora aos fragmentos do caso da “nossa” Cordélia. A adolescente é filha de uma mãe alcoolista que engravidou aos 30 anos, e desde o início evidenciou dificuldades para se responsabilizar por sua filha. A menina foi então criada pela a avó até os 5 anos de idade. Na ocasião a avó “devolveu” a menina para a mãe biológica, marco inicial de um histórico de agressões mútuas, de maneira que Cordélia encontra na rua um refúgio para a vivência insuportável de sua casa.

Longe de ser um caso de sucesso, nossa Cordélia também questionava e, a todo momento, recusava-se a responder da maneira esperada pelos serviços que a assistiam. Ela não cessava de apontar para os limites das tentativas de adequação às inúmeras instituições pelas quais passou. Não era raro sermos convocados pelas equipes dessas instituições para a notificação de que Cordélia deveria ser transferida, pois ela transgredia todas as regras de convi¬vência estabelecidas. Além disso, as dificuldades se apresentavam em relação à sua saída, uma vez que a adolescente não se encaixava nos perfis previa¬mente determinados para a população a ser acolhida pelos referidos serviços.

Diante da dificuldade de adequá-la ao perfil de instituições psiquiátricas, Cordélia acabava caindo na condição de delinquente. Contudo, o rótulo de delinquente também não lhe caía como uma luva, pois seu comportamento agressivo, a forma com que se relacionava com as pessoas e uma inquestioná¬vel pobreza discursiva apontavam para algo que extrapolava uma mera condição de inadequação social. Para a Psiquiatria, delinquente. Para a Justiça, psiquiátrica.

E assim Cordélia passava de equipe em equipe, de instituição à instituição, de modo que seu principal problema parecia residir na impossibilidade de adequação a um perfil previamente estabelecido pelos serviços em questão. O que parecia ficar para segundo plano era a possibilidade de escutar essa adolescente, tentar entender seus atos como parte de uma problemática subjetiva mais ampla. Nesse sentido, na impossibilidade de “fazer parte de algum perfil” e, ao mesmo tempo, de ter sua singularidade considerada, Cordélia é compelida à rua, de maneira que, assim como ocorria em sua casa, suas evasões das diversas instituições pelas quais passou se tornaram constantes.

 

DE QUE SUJEITO SE TRATA?

O acompanhamento de Cordélia suscita uma discussão tão antiga quanto o próprio surgimento da Psicanálise como método de tratamento. Isso porque este método surgiu como proposta clínica que pretendia oferecer escuta ao que escapava às tentativas de adequação na modernidade. Para fazer uma breve exposição do modo pelo qual a Psicanálise surge como método de tratamento, vale investigar as peculiaridades da concepção freudiana de sintoma neurótico.

Com efeito, a visada de Freud sobre os sintomas subverteu aquela da Medicina moderna. Os sintomas histéricos (FREUD, 1983-95) eram verda¬deiros corpos estranhos no seio da ciência em voga, uma vez que não apresen¬tavam um substrato anátomo-patológico no qual pudessem estar calcados os seus determinantes. Ademais, muito embora os sintomas histéricos pudes¬sem ser inicialmente afastados com o tratamento hipnótico, tão logo entrava¬vam a prática clínica dos médicos de outrora.

Destarte, a recalcitrância que as neuroses histéricas expunham abalava os alicerces da clínica, cujo anseio maior residia na remissão sintomática. Essas neuroses surgiram como um ponto enquistado a obstaculizar a promessa de povos evoluídos dispostos a trabalhar pelo bem-estar de suas nações. Não é à toa que tão logo os estudiosos começaram a se ocupar dos fenômenos histéricos estes adquiriram um colorido de degenerescência ou tropeços morais, formulações que os tomavam negativamente no contexto social (FREUD, 1914), uma vez que não estavam de acordo com os preceitos morais na ocasião.

O próprio Freud apontou o caráter antissocial dos sintomas neuróticos (FREUD, 1913a), descartando qualquer serventia que eles pudessem ter para a sociedade moderna. Com efeito, para além de considerar os neuróticos um estorvo a ser neutralizado para o bem da sociedade, Freud não parou de denunciar que esses sintomas colocavam em xeque os preceitos da cultura em questão, e aí residia a sua positividade. Portanto, é possível afirmar que eles constituíam estruturas a-modernas, ou seja, veículos de críticas dirigidas ao projeto moderno de adequação (CANAVÊZ, 2008). Coube a Freud não pactuar com esse projeto para lançar luz às falas das histéricas, àquilo que escapava a uma apreensão normativa.

Em linhas gerais, podemos afirmar que o nascimento da Psicanálise remonta à possibilidade de lançar luz ao que era relegado aos recônditos da marginalidade pela ciência moderna. A histeria extrapolava todo e qualquer diagnóstico conhecido até então, o que não foi suficiente para impedir que Freud se dedicasse a escutar aquelas que desse mal sofriam.

Em outras palavras, é possível afirmar que o método psicanalítico carrega desde sempre o caráter de colocar em xeque os saberes previamente estabe¬lecidos, uma vez que possui como fio norteador a exigência de potencializar o sujeito subjacente ao véu das ordens normativas, do imperativo de adequa¬ção. Quando abdica da possibilidade de pôr em crise, de questionar quaisquer forças que almejam subsumir o sujeito, a Psicanálise deixa escapar por entre os dedos aquele que se configura como seu objetivo principal, qual seja, a escuta do sujeito.

É por isso que o filósofo Derrida (2001), em pronunciamento contundente a respeito da Psicanálise na contemporaneidade, propõe dois tipos de resistência: a resistência no mundo à Psicanálise e “a resistência ao mundo no interior de uma psicanálise que resiste a si própria” (DERRIDA, 2001, p.i14). Deixemos a discussão do primeiro tipo ao pai da Psicanálise, cuja tarefa também se expressou na denúncia às medidas coercitivas por parte da sociedade (FREUD, 1908). O segundo tipo de resistência interessa aos propósitos deste artigo, pois não cessa de nos lembrar que a Psicanálise também “faz parte do mundo”, de modo que sua possibilidade de pôr em crise não deve ser tomada de maneira ingênua como contraponto dos norma¬tivos, dos dispositivos previamente estabelecidos.

Ao contrário, seria demasiadamente pueril considerar que sua tarefa reside exclusivamente em fazer questionamentos. De maneira análoga, não propomos questionar os demais tipos de saberes em jogo no acompanha¬mento de Cordélia, mas problematizar os manejos que correm o risco de desconsiderar o sujeito em questão, tarefa na qual a própria Psicanálise deve se incluir, como antídoto contra a armadilha de resistir ao mundo e ao próprio sujeito, nos descaminhos que este encontra para colocar em crise o mundo do qual faz parte.

 

A ESCOLHA PELA RUA

Conforme apontado anteriormente, as evasões de Cordélia tanto de casa quanto das instituições pelas quais passou eram muito frequentes. Diante das dificuldades vividas, seja no trato com sua mãe, que nunca se apropriou de sua função como tal junto à filha, ou com as equipes que se ocupavam de seu caso, Cordélia fazia a escolha pelas ruas.

Essa postura constituía um impasse para os serviços, uma vez que há um impedimento jurídico que impossibilita a rua como objeto de escolha por parte de uma adolescente. Ainda que a discussão sobre a permanência de crianças e adolescentes não tenha sido alvo de muitas elaborações em nosso percurso histórico, faz-se premente apontar os números crescentes que caracterizam essa situação nos últimos anos. 1

Com efeito, a rua sempre esteve presente no acompanhamento de Cordélia, seja por seu próprio comportamento ou pelo discurso de sua mãe. Esta última relatava que ficou em casa “sem saber o que era rua” até os 30 anos. Com essa idade começou a ensaiar suas saídas de casa, as quais se resumiam ao consumo abusivo de álcool nos bares da região. Nesse período, ela engravida de Cordélia.

O recurso à rua começou a se repetir por parte da adolescente quando as brigas com sua mãe se tornaram mais frequentes. Esta chegava a enunciar que desejava a morte de sua filha, tendo abandonado Cordélia alguma vezes nas ruas na expectativa de que ela não mais retornasse. E a adolescente acaba por cumprir este mandato, transitando por todo o Estado do Rio de Janeiro e evidenciando uma intimidade com a rua que poucos demonstram ter.

Cordélia ensaiava um percurso que se tornou comum ao longo de seus descaminhos: quando estava em casa com a mãe, a relação tornava-se insuportável e a adolescente acabava evadindo. Nas ruas geralmente era recolhida e seu destino era algum dispositivo, seja da esfera da Assistência Social ou da saúde mental. Por inúmeras vezes esteve em emergências de Hospitais Gerais, a partir das quais era encaminhada para instituições fechadas, hospitais psiquiátricos ou até mesmo instituições para menores infratores.

Vale ressaltar seu comportamento diante dos técnicos que a assistiam: em um primeiro contato, mostrava-se disposta a cooperar. Marcada que era por uma vida dura, vítima de abandonos recorrentes, rapidamente suscitava um comportamento de penalização por parte dos técnicos. Por conta desta situação, ela era rapidamente inserida nas instituições nas quais estava sendo assistida pela primeira vez. Todavia, essa configuração inicial logo se trans¬formava em agressões por parte da jovem, e aqueles que dela se ocupavam logo sentiam repulsa e acabavam por reproduzir o histórico de abandonos.

Os serviços por onde Cordélia passou se transformavam em verdadeiros palcos, onde suas atuações ganhavam a cena principal. Nesta configuração, técnicos, familiares e demais que tentavam estabelecer com ela uma relação de cuidado acabavam se tornando, eles próprios, expectadores e objetos de suas cenas. Enigmática – na medida em que não foi possível chegar a um consenso nem mesmo quanto ao seu diagnóstico – Cordélia chega a um desfecho trágico, o mesmo que fora traçado por Shakespeare: a morte. Numa de suas fugas de casa, acaba sendo atropelada e vem a falecer alguns dias depois.

 

CAIU NA REDE É PEIXE? A ESCUTA DO SUJEITO NA ARTICULAÇÃO DA REDE EM SAÚDE MENTAL

Antes de tecer comentários sobre a articulação da rede de assistência em saúde mental, é oportuno lembrar que este campo é relativamente novo. A título de exemplificação, a legislação que concretiza as ações nesta área data da última década. A Lei 10.216, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, foi sancionada apenas em 2001 (BRASIL, 2004, p. 17). Além disso, mesmo no csmpo da saúde mental, estamos cientes de que ainda há muito a avançar no que diz respeito às diferentes regiões de nosso país, já que o movimento da Reforma Psiquiátrica apresentou núcleos de atuação mais expressivos em determinadas regiões. 3

Desse modo, a assistência destinada a crianças e adolescentes está histori¬camente muito mais próxima dos campos da Assistência Social e da Educação, do que do âmbito da saúde mental. Tais campos têm raízes metodológicas diferentes e, por conseguinte, mandatos igualmente diversos. Há um hiato, portanto, no que diz respeito às formações profissionais dos técnicos envolvidos na de rede assistência.

Originariamente, a inserção da Psicologia no campo da saúde mental se deu por intermédio da clínica, em sua versão mais clássica, e a partir de suas múltiplas orientações teóricas, ainda que a presença maciça da Psicanálise possa ser constatada ainda hoje nos discursos dos técnicos e, de modo mais tangível, na bibliografia requisitada para esta categoria profissional em concursos realizados para a atuação na área. O fato é que a figura do psicólogo sentado do outro lado da mesa, disposto a escutar o paciente que adere ao tratamento ambulatorial, tornou-se um jargão dentre os profissionais do campo. A restrição do psicólogo à escuta encastelada nas salas de ambulatório dificil¬mente se encaixa nos moldes de um movimento antimanicomial engajado com o acompanhamento psicossocial de seus usuários, constituído como processo em permanente construção (AMARANTE, 2007).

Em contrapartida, os campos da Educação e da Assistência Social tendem a se dirigir para a proteção dos direitos, com base em regras e modelos legais postos previamente para todos. Longe de propor um lugar à parte para a Psicologia, cujo mandato não deve negligenciar os direitos de seus usuários, espera-se problematizar a exigência do discurso pela proteção dos direitos do cidadão na sua relação com a construção de uma clínica que se faz no caso a caso.

Com efeito, o esforço da clínica é primar pela particularidade de cada caso, de um a um. Dizendo de outra forma, o objetivo maior da clínica é trazer para o primeiro plano o sujeito em questão. Com isso, corre-se o risco de negligenciar que tal sujeito faz parte de uma sociedade, portanto enredado por suas problemáticas. Fazendo eco à proposição freudiana, a psicologia individual é desde sempre social (FREUD, 1921), de modo que conceber o sujeito apartado na cultura da qual faz parte e ao mesmo tempo constitui é, de saída, uma tentativa fracassada.

A rede de assistência em saúde mental, teoricamente, viria a ser tecida justamente de acordo com as demandas de cada caso, de maneira a contemplar as suas peculiaridades. Nesta perspectiva, os profissionais deveriam assumir uma função que está além de uma proposta reduzida à mera técnica de tratamento, mas que tem como base ações que visem melhorar a qualidade de vida dos sujeitos a partir do acolhimento e cuidado do paciente. Nesta visada, a rede de cuidados deve levar em conta “as singularidades de cada um e as construções que cada sujeito faz a partir de seu quadro” (BRASIL, 2005, p. 76).

Por isso, a rede de assistência é contemplada nos termos de uma rede subjetiva quando tratamos da lógica do acolhimento em saúde mental. O fato é que, na prática, a articulação entre campos tão diversos, que funcionam por lógicas tão diferentes, não se dá sem impasses. Impasses que às vezes acabam por formar não uma rede, mas um emaranhado no qual o sujeito não se insere, mas se perde. Sujeito que se perde, técnicos que se perdem em suas propostas, ou melhor dizendo, técnicos que “nos perdemos”.

O caso de Cordélia demarca um ponto cego entre inclusão e exclusão, tratamento e adequação social. Por vezes, imbuídos do imperativo de inclusão acabávamos excluindo Cordélia, como uma adolescente-problema, que demandava cuidados diferenciados com relação aos demais usuários dos serviços. Norteados pela penalização, os técnicos rapidamente a acolhiam, muito embora a exclusão fosse a cena seguinte neste enredo trágico.

Da demanda por tratamento restava uma garota-problema, cujas questões relativas a uma problemática subjetiva mais ampla nem mesmo chegaram a ter lugar em tantos impasses que se reduziam ao perfil que deveríamos carimbar aos inúmeros prontuários de Cordélia. Esta mostrou de maneira trágica que não há diagnóstico, teorias ou lei preestabelecidas que deem conta de suas questões. Todavia, mesmo que a responsabilidade de seu caso não pudesse ser conferida de modo absoluto à alçada de nenhuma das instituições pelas quais passou, ainda assim era preciso se responsabilizar e implicá-la em sua responsabilidade, por exemplo, de eleger a rua como uma escolha.

Nesse sentido, entendemos que o principal papel da escuta analítica na discussão desses impasses é apontar os efeitos dessa responsabilização e fazer com que todos os atores envolvidos estejam implicados na gestão de tal corresponsabilidade. Desta forma, não seria pertinente afirmar um desloca¬mento do papel do psicólogo daquele que só tinha a escuta engessada nos limites de uma sala de ambulatório a oferecer para aquele de articulador dos diferentes manejos presentes na rede de assistência em saúde mental? Qual é a função da escuta analítica em tal rede subjetiva?

Certos de que não há uma resposta definitiva para tal questão, ensaiamos que o psicólogo é um dos atores responsáveis pela construção permanente dessa rede subjetiva e que, neste processo, deve assumir a responsabilidade por considerar os sujeitos em questão. Nesse sentido, a escuta desses sujeitos deve ser o fio norteador de sua prática, muito embora esta possa ir além dos limites do ambulatório.

O mandato de potencializar o sujeito em acompanhamento exige que a articulação dos diferentes manejos em curso na construção da rede subjetiva esteja permanentemente aliada à escuta do sujeito. Essa escuta implica contemplar as peculiaridades de cada caso, as quais sempre produzirão restos dos normativos e perfis preestabelecidos. Em outros termos, a escuta analítica implica considerar tais restos e reconhecer também nestes uma afirmação do sujeito.

Cordélia extrapolava todos os limites institucionais, apontando justamente para aquilo que escapa às nossas tentativas de normalizar, de adequar. Feitas essas considerações é possível retomar a pergunta: o que cai na rede é peixe? Talvez uma das particularidades da rede em saúde mental seja o caráter permanente de sua construção, onde não há lugares previamente definidos de modo absoluto, seja do lado dos usuários, seja do lado dos técnicos. Ainda assim, é preciso não perder de vista a nossa responsabilidade na construção desta rede e na escuta dos sujeitos que dela fazem parte.

Freud (1913), ao comentar a peça de Shakespeare, afirma que o rei carrega a sua filha morta nos braços – antes de sua própria morte – e se reconcilia com a necessidade de morrer. Faz-se premente não nos ocupar apenas da tarefa de desemaranhar esta rede, com o risco de perdermos “nossos peixes”. As Cordélias nos ensinam que o trabalho de construção da rede nunca se dá por completo. Ainda assim, como o Rei Lear, é importante nos reconciliar com aquilo que escapa e, portanto, resta dos normativos, dos dispositivos preestabelecidos, a despeito das dificuldades.

 

REFERÊNCIAS

AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.         [ Links ]

BRADLEY, A. C. A tragédia shakespeariana: Hamlet, Otelo, Rei Lear, Macbeth. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2009.         [ Links ]

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Artigo recebido em: 27/7/2009
Aprovado para publicação em: 30/8/2009

 

 

1 Os CAPS são serviços de atenção diária, regulamentados pela Portaria 336/GM, de 19.2.2002, que se destinam ao atendimento de crianças e adolescentes com grave sofrimento psíquico. Nessa categoria estão incluídos os sujeitos psicóticos, autistas, neuróticos graves e todos aqueles que, por sua condição psíquica, apresentam dificuldades para manter ou estabelecer laços sociais.
2 Para uma investigação mais aprofundada a respeito do assunto, remetemos o leitor à leitura do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (2006).
3 Para um breve panorama das diferentes iniciativas ao longo do movimento da Reforma Psiquiátrica, sugerimos a leitura de Tenório (2002).
* Psicóloga e psicanalista. Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Av. Pasteur 250 – fundos, Pavilhão Nilton Campos, Urca-RJ 22290-240 - Tel.: 3873-5343 fernandacanavez@gmail.com
** Psicólogo e psicanalista. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise (UERJ). Professor da Universidade Iguaçu (UNIG). Av. Abílio Augusto Távora, 2134 Nova Iguaçu – RJ,26275-580 Tel.: 2765-4037 pedromoacyr@uol.com.br

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