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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.7 no.13 Barbacena  2009

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e cultura

 

Psychoanalysis and culture

 

 

Júlio Eduardo de Castro*

UFSJ

 

 


RESUMO

Este ensaio tem a intenção de marcar alguns pontos possíveis de articulação entre o sujeito que interessa à Psicanálise ($) e a cultura. Pretende-se, portanto, apontar alguns possíveis veios de estudo e pesquisa no campo psicanalítico, principalmente no que diz respeito às suas conexões com a cultura. Para tal, recorreu-se à obra de Freud e ao ensino de Lacan.

Palavras-chave: Psicanálise, Cultura, Sujeito barrado ($), Outro (A), Objeto a (causa-do-desejo)


ABSTRACT

This essay has the intention of outlining some possible articulation points between the subject of interest to the Psychoanalysis ($) and the culture. Thus, it aims at showing some possible study and research veins in the psychoanalytical field, mainly in what concerns its connections with the culture. For this purpose, Freud’s work and Lacan’s teachings were utilized.

Keywords: Psychoanalysis, Culture, Barred subject ($), Alter (A), Object a (cause-of the-desire).


 

 

Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome
só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta
manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação
que podemos pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama:
um estilo (LACAN, 1998a p. 60).

 

A existência de uma tensão inevitável entre esses dois campos epistemológicos, a Psicanálise e a Antropologia cultural, nos estimulou a extrair da obra de Freud e do ensino de Lacan algumas proposições passíveis de articular, mesmo que de modo incipiente, a clínica psicanalítica à cultura. O propósito principal deste trabalho é, antes de tudo e de modo minimalista e geral, demarcar alguns pontos possíveis de articulação entre o sujeito (que tanto interessa à Psicanálise) e a cultura (aqui tomada na acepção antropológica, qual seja, como o conjunto de padrões, comportamento, crenças, conhecimentos, costumes, etc., que distingue um grupo social). Para tal, ao focalizar a investigação na conexão/articulação de dois campos do conhecimento, a Psicanálise e a Antropologia cultural – essa conexão apresenta-se, já desde Freud, como um vasto campo de pesquisa, sendo, entretanto, ainda pouco explorado – formulamos, ao modo de proposição, três princípios elementares e fundamentais que servem de base a uma ordem de conhecimento a ser levado em consideração em pesquisas futuras sobre essa temática. Essas três proposições têm aqui a função de serem utilizadas como coordenadas lógico-conceituais que auxiliem pesquisadores e estudiosos de Psicanálise a se situarem nesse campo conectivo. São elas 1:

Primeira proposição: ‘O sujeito do coletivo nada mais é que o sujeito do particular’ (FREUD, 1980; LACAN, 2003). :

Inserir o sujeito ($) na banda de Möebius foi um recurso que Lacan usou com vistas a quebrar antigas dicotomias ‘dentro X fora’; ‘interior X exterior’; ‘o sujeito está dentro X o social está fora’, etc. Para Lacan há, portanto, uma continuidade elementar entre o sujeito ($) e o campo do Outro (A), ou seja, na composição do sujeito entram os recursos do Outro (tanto em termos de ‘significação fálica’, quanto de ‘tesouro de significantes’) e a forma singular de extração do objeto a desse mesmo campo. Mais adiante2, em seu ensino, Lacan dirá que o sujeito é o efeito de um corte realizado sobre essa mesma banda (LACAN, [n.p.]). O corte, então, é o que faz existir esse ser de origem compósita chamado sujeito. Subentende-se que essa concepção do sujeito como efeito do corte, e mesmo do nó como suporte do sujeito (LACAN, 2007), é uma versão topológica das velhas operações ligadas à constituição do sujeito: a alienação no campo do Outro e a separação do campo do Outro por meio da extração do objeto a (LACAN, 1979). Mais adiante, ainda em seu ensino, Lacan (LACAN, 2003, 2007) constitui o sujeito como o que resulta do enodamento borromeano dos registros (RSI) por meio do sinthoma (Σ)3.:

Em 1938, ele já descrevia a importância da família e de seus complexos (LACAN, 1987) como célula elementar da sociedade e, posteriormente (LACAN, 1998b, 1998c), como instituição por meio da qual se ingressa no campo do Outro. O conceito de Outro traz as marcas tanto da ‘Outra Cena’ freudiana, referente aos sonhos, quanto do estruturalismo antropológico (de Lévi-Strauss) e linguístico (de Ferdinand Saussure). É tido ainda como ‘o lugar da língua’ que, estruturalmente, determina o sujeito, ou seja, aquilo que o sujeito traz de determinação simbólico-cultural já inscrito ao modo de ‘tesouro ou repertório de significantes’. A família é, portanto, o lugar onde ocorrem os contatos primordiais com o Outro, sendo por isso mesmo um ponto de articulação possível do sujeito com a cultura. A posição/função basilar da família, atando o individual ao coletivo e vice-versa, é, pois, determinante na constituição do sujeito, justo por ser nela que as primeiras experiências com Outro se fazem presentes e inscritas. Por esse aspecto, a família pode ser um filão de investigação acerca das conexões da Psicanálise com a cultura. :

Segunda proposição: ‘Não há despertar coletivo’ (FREUD, 1980; LACAN, 2003). :

Essa formulação, de cunho lacaniano, é inspirada na análise que Freud fez acerca dos fenômenos de grupo e de suas relações com o ‘eu’ da segunda tópica do aparelho psíquico. Por essa análise sabemos da participação do mecanismo de identificação (ao líder no lugar de ‘ideal do eu’) na alienação subjetiva. Em nome do comum, o sujeito se aliena em relação ao que o seu desejo aponta como incomum ou mesmo inédito, de modo que, pela via da psicologia de grupo, não há chance de mudança de posição subjetiva, pelo contrário, há fixidez do sujeito ao gozo de todos (comum) e o consequente adormecimento do desejo em nome da manutenção da estrutura grupal (e do eu). Por isso Lacan desacredita, alinhando-se a Freud, no despertar coletivo, principalmente ao conceber o funcionamento do ‘eu’ como correspondente da psicologia de grupo, ou seja, como sede das resistências, individuais e coletivas, ao desejo. Do mesmo modo, o mal-estar na cultura é correlato ao mal-estar subjetivo, nos abrindo assim a perspectiva para se pensar o sintoma, tanto como produção de um indivíduo, como de um grupo social. O próprio Freud, quando estabelece que o prognóstico de um tratamento psicanalítico seja mais favorável quando um toque, portanto uma implicação subjetiva é acrescentada ao sintoma, não deixou de considerar o sintoma em sua dupla face: o que ele traz de típico (trazido do Outro, cultural e linguajeiro) e o que a ele é acrescentado como atípico (as contingências e o modo de extração do objeto a). O gozo do UM (MILLER, 1999), com tudo o que ele comporta de crença na unidade do eu e do grupo e, por conseguinte, de interseção dos registros simbólico e imaginário, é apontado por Lacan como afastado do objeto causa-do-desejo (a) e, por isso mesmo, distanciado da ética da Psicanálise, que, por desígnio, deveria denunciar seu engodo e inconsistência. :

Terceira proposição: ‘O estilo é tributário do objeto causa-do-desejo (a), pois nele o impossível da relação sexual se escreve como sinthoma (Σ)’ (LACAN, 1998, 2007). :

Esse enunciado se refere ao último tempo do ensino de Lacan, principalmente ao momento em que ele lia James Joyce por meio da topologia dos nós, e pressupõe que o estilo é, antes de tudo, a manifestação de um sujeito como movido pelo objeto causa-do-desejo: a ? $4, conforme a escrita do discurso do psicanalista (LACAN, 1992). Com o estilo – sempre singular, sem necessariamente ser individual – há presentificação/escrita da falta, de modo inédito, no campo do Outro. No contexto de final de análise, essa presentificação/escrita da falta acompanha a ‘destituição subjetiva’, ou seja, se faz concomitantemente à queda de algumas identificações secundárias (S2 que encobriam a) e ao tremor das identificações primárias (S1), e então conduz o sujeito ($) ao surgimento de um desejo inédito. No contexto cultural, o estilo manifesta-se sempre com um que de heresia, de reação à tradição, à ortodoxia. E é por essa característica básica, de perfurar as formas-padrão de fazer e de apreciar cultura, que ele, o estilo, tende a subverter o status quo. Não nos esqueçamos que o ensino de Lacan teve esse viés subversivo (que o diga sua excomunhão da IPA5), e que os efeitos de seu ensino na cultura abalaram algumas das formas-padrão, fosse de cura, de ensino, de política, ou mesmo de abordagem da ciência e da arte. Lacan levou a sério o aforismo de Buffon, que afirma que ‘o estilo é o homem’, entretanto acrescentando ‘... a quem me endereço’, ou seja, aos analistas. E foi de tal modo que Lacan se escreveu na história da Psicanálise: como um estilo único e inconfundível de psicanalisar e de ensinar, qual seja, de fazer a transmissão da psicanálise.

 

 

Referências

CASTRO, Júlio Eduardo de. Consequências éticas da teoria lacaniana dos discursos no ensino da psicanálise. 2006. Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica) –Universidade Federal do Rio de Janeiro-RJ, 2006.         [ Links ] :

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: ___ (Ed.). Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII, Rio de Janeiro-RJ: Imago, 1980.         [ Links ] :

LACAN, Jacques. O mal-estar na cultura (1930[1929]). In: ___ (Ed.). Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI, Rio de Janeiro-RJ: Imago, 1980a.         [ Links ] :

___. A família (1938). Lisboa: Assírio e Alvim, 1981.         [ Links ] :

___. Os complexos familiares (1938). Rio de Janeiro-RJ: Zahar, 1987.         [ Links ] :

LACAN, Jacques. A psicanálise e seu ensino (1957b). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998a.         [ Links ] :

___. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998b.         [ Links ] :

___. A instância da letra ou a razão desde Freud (1957a). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998c.         [ Links ] :

___. O Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.         [ Links ] :

___. Abertura desta coletânea (1966). In; Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.         [ Links ] :

___. O Seminário 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1992.         [ Links ] :

___. Prefácio a O despertar da primavera (1974). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.         [ Links ] :

___. O Seminário 22: RSI. (1974-1975). Versão anônima em francês e português, sem data.         [ Links ] :

___. O Seminário 23: O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.         [ Links ] :

___. Joyce, o Sintoma (1976). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.         [ Links ] :

MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. La Cause freudienne, n. 43, 1999, p. 7 a 29.         [ Links ] :

MILNER, Jean-Claude. A obra clara: Lacan, a ciência e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.         [ Links ] :

 

 

Artigo recebido em: 13/5/2009
Aprovado para publicação em: 10/12/2009

 

 

1 Como as proposições apresentadas a seguir não são necessariamente citações, ao lado de cada uma delas constam as principais referências textuais em que foram embasadas.
2 No segundo classicismo, de acordo com a divisão didática feita por Milner sobre a obra de Lacan (MILNER, 1996).
3 Letra grega usada por Lacan para se referir ao sinthoma como a quarta rodinha, acrescentada ao nó borromeano de três, que amarra os registros [real ®, simbólico (S) e imaginário (I)] que compõem o sujeito (LACAN, 2007).
4 Este matema (a ? $), característico do discurso do psicanalista, é um dos que compõem a teoria lacaniana dos discursos. Os outros dois termos (letras) inventados e usados por Lacan, nesta mesma teoria, são S1 (significante-mestre) e S2 (o saber). Para maior detalhamento acerca da teoria dos discursos ver Lacan (1992) e Castro (2006).
5 Associação Internacional de Psicanálise.
* Psicanalista, Mestre em Educação pela PUC-RIO, Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ e professor adjunto de Teoria e Clínica Psicanalíticas na UFSJ, Rua José Vicente de Almeida, no 30, bairro Águas Santas, CEP: 35325-000, Tiradentes-MG. e-mail: julioecastro@mgconecta.com.br

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