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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.7 no.13 Barbacena  2009

 

ARTIGOS

 

O lugar ocupado da Psicanálise nas novas instituições de Saúde Mental

 

The position occupied by the Psychoanalysis in the new Mental Health institutions

 

 

Alana Alves Gomes*

Universidade Federal da Paraíba

 

 


RESUMO

O presente artigo trata da discussão acerca do papel da Psicanálise nas novas instituições de saúde mental, tal como o CAPS. Esta discussão ressalta as contribuições geradas com a Reforma Psiquiátrica e o enriquecimento do campo da saúde mental com a presença da Psicanálise lacaniana, com seu suporte teórico e sua visão particular da loucura. A Psicanálise busca dar uma outra resposta ao tratamento oferecido às psicoses nas antigas instituições psiquiátricas. Para isto, oferece particularidade e singularidade em seu trata¬mento, respeito e dignidade para aquele que sofre, possibilitando que ele seja responsável por sua condição de sujeito detentor de direitos e deveres.

Palavras-chave: Psicanálise, psicoses, saúde mental, reforma psiquiátrica.


ABSTRACT

The present article focuses the discussion of the role of Psychoanalysis in the new environments of mental health, such as the CAPS. This discussion emphasizes the contributions generated by the Psychiatry Reformation and the enrichment of the field of mental health with the adventure of the Lacanian Psychoanalysis, with its theoretical support and its particular optic of the madness. The Psychoanalysis seeks to provide another answer in terms of the treatments available for psychosis in the traditional Psychiatric institutions. For this purpose it offers peculiar and singular treatments, respect and dignity to those who suffer,enabling them to be responsible for their condition of subjects withholders of rights and obligations.

Keywords: Psychoanalysis, psychosis, mental health, Psychiatry Reformation.


 

 

1. INTRODUÇÃO

A palavra loucura, por ser pejorativa, revela tanto uma estrutura, quanto uma lógica, uma ofensa e um ato incompreensível. A questão da loucura, e o que fazer com ela, há muitas décadas vem sendo discutida, de diferentes maneiras, por cada sociedade.

A loucura, com sua nomenclatura, traz para cada pessoa um sentido: para algumas seria um mal-estar na alma, para outras a falta da racionalidade, um defeito. Diante desses sentidos, o louco é discriminado, roubado em seus direitos humanos e sociais, tendo cuidados específicos, como o isolamento e o trancafiar.

Na sociedade ocidental a loucura passa a ser concebida como uma doença mental, e por muito tempo esteve sob o domínio único e exclusivo do saber médico da Psiquiatria; só ela poderia dizer algo sobre a loucura e o seu tratamento.

A Psiquiatria surge com o objetivo de controlar, isolar o doente mental em instituições manicomiais e hospícios. Seu discurso aprisiona o discurso da loucura, no sentido de se dizer detentor da verdade sobre esta. Assim, o psiquiatra é responsável direto pelo seu tratamento, influenciando diretamen¬te a definição dos padrões do que é e do que não é considerado normal na sociedade.

O discurso psiquiátrico passa a exercer poder na sociedade e na atuação direta sobre a individualidade dos sujeitos considerados loucos, passando os manicômios e hospícios a instituições totais, em que se acreditava ser ambien¬tes propícios para o tratamento de tais sujeitos, onde eram cometidos maus tratos e abusos.

Diante desses fatos de abusos e maus tratos, surgiram movimentos humani¬tários que levantaram a bandeira contra esse sistema. Esses movimentos político-institucionais passaram a ser conhecidos por Reforma Psiquiátrica, e almejavam a reorganização do campo da Psiquiatria.

A partir da Reforma Psiquiátrica a questão da saúde mental ganha destaque em vários ramos da sociedade, como uma das prioridades para as organizações especializadas em saúde, fazendo emergir a discussão em torno dos tratamen¬tos oferecidos à loucura.

A Psicanálise entra nesse lugar, oferecendo um tratamento mais humani¬zado, focalizando o sujeito que sofre na sua particularidade.

Dentro do campo da saúde mental, a Psicanálise visa contribuir para a especificidade da sua prática, no entanto nem sempre recebe crédito por sua inserção neste campo, sendo considerada como aquela que nada pode contribuir para a saúde mental. É nesse intuito que surge a necessidade da elaboração deste artigo, no sentido de esclarecer a importância da Psicanálise nesse campo de atuação, com seu diálogo e respeito pela condição particular de cada sujeito, ao promover o resgate da dimensão subjetiva do adoecimento psíquico, oferecendo sua ética, com uma prática voltada para advir um sujeito que possui sua cidadania e seus direitos.

 

2. A PSICANÁLISE NA REFORMA PSIQUIÁTRICA

No Brasil, o movimento da Reforma Psiquiátrica é relativamente novo. Nascida do reclame da cidadania do louco e desdobrada em um campo amplo e diversificado de práticas e saberes, abarcando tanto a assistência psiquiátrica, quanto os níveis políticos, jurídicos e culturais da relação da sociedade com a loucura, possuiu três referências de ação: a desinstitucio¬nalização, a reabilitação psicossocial e a clínica institucional (TENÓRIO, 2001b).

Um dos paradigmas desse movimento brasileiro foi o marco inaugural, assistido em 1987, no Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira, em São Paulo, com sua nova forma de cuidados aos pacientes com transtorno psíquico grave, ampliando o surgimento da rede de cuidados dos CAPS. Essa forma de atenção psicossocial consistia em interferir positiva¬mente no cotidiano da vida dos pacientes, ajudando-os nas diversas esferas do viver.

O conceito de sujeito contemplado pela reforma se presta a expressar tanto a dimensão política e cultural, trazida pela questão da cidadania, que envolve a relação da sociedade com a loucura e o reconhecimento do louco como sujeito de direitos e sujeito social, quanto a dimensão de como operar na singularidade de cada caso (TENÓRIO, 2001a).

Alguns autores e agentes da reforma se perguntam: como pensar a Psicanálise dentro da Reforma Psiquiátrica e como ela poderá contribuir? Pois bem, a Reforma Psiquiátrica e a Psicanálise lacaniana possuem em seu centro a questão da loucura e participam do seu agenciamento social. Mas elas não são a mesma coisa; a reforma é um movimento bem maior, que engloba o político, o social e também o clínico. Já a Psicanálise é uma clínica específica, a clínica do sujeito, ainda que participe do social, buscando fazer advir um sujeito na psicose, e como ele se relaciona com os procedimentos sociais, políticos, institucionais e terapêuticos da reforma.

Constatamos que na Reforma Psiquiátrica a presença dos psicanalistas é marcada por certas tensões. Alguns agentes da reforma apontam que a Psicanálise possui uma visão preconceituosa da psicose, com a foraclusão como defeito no simbólico, e enfatizam o individual, desconsiderando a dimen¬são política e social do sofrimento mental.

Por outro lado, os psicanalistas apontam, na prática e na ideologia da reforma, uma diluição da especificidade da psicose e uma certa negligencia¬ção em oferecer ao psicótico um espaço de trabalho subjetivo, pois enfatizam os espaços coletivos e com objetivos de reabilitação psicossocial, não levando em conta a teorização psicanalítica de que o psicótico pode não suportar a injunção fálica de responder como sujeito, mediante tais objetivos. Para os psicanalistas o trabalho deve ser feito de modo a não fazer apelo a um sujeito que não pode responder, e sim criar condições ali na existência aniqui¬ladora da psicose, para que se possa produzir um sujeito (TENÓRIO, 2001b).

Para Tenório (2001a), há um interesse da reforma pela Psicanálise, que consisti no fato de ela ser um conjunto articulado de conceitos e práticas que visam a localização do sujeito no seu sofrimento e busca dar ao problema da loucura uma outra resposta social, com a bandeira da cidadania posta no centro das reformulações técnicas e administrativas, para a dignificação do tratamento ao doente mental, com uma diversidade de práticas e teorias para a sua inclusão no convívio social.

Então, o trabalho da Psicanálise deve vir junto com a Reforma Psiquiátrica, numa posição de solidariedade e engajamento no trabalho continuado de oferecer ao psicótico condições mais favoráveis para que, na dependência do seu ato, ele possa se exercer no laço social.

 

3. PSICANÁLISE E SAÚDE MENTAL

A estrutura manicomial que se apresentava antes nessa sociedade e as contribuições da Reforma Psiquiátrica proporcionaram transformações da assistência pública em saúde mental, com a criação de dispositivos de cuidado e atenção ao sofrimento psíquico. No entanto, houve o desafio no enfrentamento do lidar com esse sofrimento, que não contava mais com os velhos métodos tutelares e excludentes, típicos da velha ordem psiquiátrica como nos diz Foucault (1975), uma ordem que se mostrava pelo seu caráter de poder da relação médico – paciente.

Hoje o campo da saúde mental é um lugar de muitos discursos. Por ter se tornado rico em sua constituição, vivencia-se tanto o discurso da perspectiva médica quanto o do social, do político e do, porquê não, analítico, que se insere na lógica do não todo, do caso a caso.

Há muito tem se discutido sobre as questões que perpassam a ação analítica no campo da saúde mental. Muitos são os desafios pautados pelos preceitos da Reforma Psiquiátrica, especialmente quanto à questão da rein¬serção social de portadores de sofrimento psíquico grave. Alguns espaços têm sido criados no sentido de reorientar o modelo assistencial de ações centradas no hospital manicomial para uma atenção comunitária, visando, assim, uma mudança na difícil realidade psiquiátrica brasileira.

Nesse novo cenário atribuído à luta da reforma consolidam-se as chamadas novas instituições de saúde mental, como os “Centros de Referência em Saúde Mental” (CERSAM), o “Centro de Atenção Psicossocial” (CAPS), os “Centros de Convivência”, os “Hospitais-dia”, as “Pensões Protegidas”, a “Escola Plural”, entre outras.

Na saúde mental uma das principais questões a ser discutida gira em torno da inserção do psicanalista no âmbito da saúde pública, que é complexa e algumas vezes polêmica, pois a imagem que se possui do analista é presa ao divã entre as suas quatro paredes de um setting-analítico, sendo então discriminado como aquele que nada poderia fazer de útil em uma instituição.

Mas, a Psicanálise está saindo das suas “quatro paredes”, e podemos pegar emprestado o conceito proposto por Laurent (1999) de “analista-cidadão”, sintonizado com a necessidade de seu tempo, para pensar na inserção do psicanalista na saúde mental e sua importância, uma vez que ele busca que o indivíduo se responsabilize por seus atos, respondendo por si mesmo, tornando-se assim o sujeito operador do seu tratamento.

Portanto, a Psicanálise como método de tratamento e investigação se insere em uma ética fundada a partir da solução singular dada pelo sujeito à errância do seu desejo e a seu modo de gozo (MONTEIRO, 2009). Como confirma Barreto (2009), é da ordem da autenticidade do sujeito, do que é mais verdadeiro de si mesmo, ou do que é mais verdadeiramente si mesmo.

 

4. A PSICANÁLISE NAS INSTITUIÇÕES

O trabalho empreendido em instituições de saúde mental que se apresentam como modelos substitutivos às intervenções asilares e manicomiais tem se comprometido com a “cidadania do louco” e com os tratamentos não segregrativos. Mas, a partir do que nos traz Viganó (1999), de que a abertura dos manicômios não exclui a segregação, o trabalho deve ser feito voltado para as práticas da Psicanálise de não segregar os pacientes em função do meio sociocultural, da demanda, do nível intelectual ou do lugar em que são tratados (LAIA, 2003).

No que se refere à orientação do tratamento, há um forte acordo, por exemplo, com relação ao resgate ou à construção da cidadania, no sentido de unir esforços para evitar ou mesmo combater uma internação manicomial. A Psicanálise nem sempre é uma referência adotada com tranquilidade no âmbito da clínica, embora se reconheça, em muitos casos, a eficácia de suas propostas. O analista de orientação lacaniana visa encontrar um outro modo de operar com o sujeito psicótico dentro dessa norma institucional, reinventando cotidianamente seu lugar, tentando equacionar ao mesmo tempo as peculiaridades da clínica da psicose e essas normas (TENÓRIO, 2001b).

Na maioria das vezes é observado na prática diária das instituições um desrespeito à singularidade dos sujeitos. Diante disto, busca-se que a subje¬tividade de cada sujeito não seja generalizada nem engolida pelo saber cientí¬fico.

O psicanalista, dentro das novas instituições de saúde mental, deve oferecer ao psicótico a ordem do laço social e trabalhar junto ao psicótico e junto ao corpo social, no sentido de criar as condições para esse pertencimen¬to.

Monteiro (2009) propõe três frentes de ação do trabalho do analista na instituição, que consistem: na atuação diante do específico do caso, visando o advento do sujeito; na participação do analista na equipe; e na incidência da escuta psicanalítica na atuação junto à família.

Mas, ainda segundo essa autora, devemos tomar a construção da clínica do sujeito como ponto de partida da posição ética que o analista deve assumir na política institucional. E o que seria essa clínica do sujeito? Para Lacan (2003, p. 220) é “introduzir o sujeito como tal”, com sua história, com seu delírio e com o seu sintoma, para que ele adivinha e seja responsável por sua existência. Então, ao excluir a clínica do sujeito, deixa-se de fora a Psicanálise do campo da saúde mental, e exclui o próprio sujeito.

Tenório (2001b, p. 91) contribui com a ampliação do conhecimento a respeito da clínica do sujeito, ao propor que

a atenção psicossocial e a clínica do sujeito não são a mesma coisa. Mas uma pode tornar a outra possível desde que a primeira evite dois riscos: o de impor ao psicótico ideais de funcionamento que são nossos e aos quais ele muitas vezes não pode correspon¬der, e o de acreditar que o bem estar psicossocial torna menos o trabalho subjetivo na palavra: e que a segunda reconheça os limites de qualquer prática ligado à palavra e a necessidade, em certos casos prioridade, na psicose grave, de ajuda concreta e cotidiana ao viver.

Lamy (2003) ressalta que o trabalho em instituições, com suas rotinas e seus pedidos de resoluções rápidas, pode fazer apelo fácil por uma atitude psicoterápica. Cabe então ao psicanalista não ser cúmplice do gozo institu¬cional, e apontar para o real em jogo em cada caso e em cada situação, abrindo espaço para o desejo.

A resposta da Psicanálise gira em torno da ética da posição subjetiva, pois problematiza a demanda do paciente, suspende a resposta a ser dada, oferecendo assim uma clínica para cada caso, procura apontar para o real, para o que escapa à palavra, age em direção ao tratamento do gozo e utiliza como recurso a intervenção pela palavra, seja em oficinas terapêuticas ou em atendimentos individuais, onde o analista possa sustentar seu lugar.

A posição ocupada pelo analista é a daquele que pede por uma rede de assistência, que seja passível de suportar e respeitar os direitos desse sujeito inseridos no campo da saúde mental. Ele não deve retroceder diante desse Outro institucional, deve sustentar sua posição diante das dificuldades, seja com o tempo, com a equipe ou com a burocracia institucional. O analista não pode contrapor-se à equipe como um cavaleiro templário em nome de Deus. Ele deve assumir a posição humilde para não incorrer no erro do discurso do mestre, e deve estar aberto ao diálogo entre a equipe, propor¬cionando assim, no buraco cerne do seu saber, o espaço frutífero para construção de uma prática que permita ao sujeito a livre expressão da sua singularidade.

A Psicanálise lacaniana tem como ponto de partida o sintoma, que indica que algo não está funcionando, trabalhando não a sua eliminação, mas sim sua metamorfose e a reconciliação do sujeito com ele, ou seja, um querer saber sobre o seu sintoma. Em vez de tratamento do sintoma, tratamento pelo sintoma (BARRETO, 2009). Como afirma Quinet (2003, p. 100), “... a direção da cura com o sujeito psicótico não está na suspensão do sintoma”, pois esse trás um apaziguamento patente do gozo ao qual o sujeito esta submetido.

Kaufmanner (1999, p. 116), em seu texto de “transferência na psicose”, cita Éric Laurent em seu seminário em Tel Aviv, em que lembra que na Psicanálise a localização do sintoma traz consigo uma significação.

Se alguém diz ‘estou perdido sem meus pais’, não sabemos o que isto quer dizer se não sabemos a que sintoma relacionar essa frase. Se o sujeito nos diz ‘estou perdido sem meus pais” e desmaia, estamos diante de um histérico. Se o sujeito diz “estou perdido sem meus pais’ e a partir desse momento sente a necessidade de contar os objetos que estão sobre o piso, estamos, então, frente a um sujeito que, ao invés de desmaiar, se sustenta pelo significante o melhor que pode e estamos diante de um obsessivo. E se o sujeito diz ‘estou perdido sem meus pais’ e escuta uma prova de que está perdido na forma de uma voz que lhe diz ‘está perdido’ (ou pensa na frase ‘eu venho do salsicheiro’ e escuta uma voz que lhe diz ‘porca’), e está convencido de que o mundo todo está por desaparecer, sabemos que esse sujeito tem uma certeza e, portanto, supomos que se trata de uma psicose.

Esse tratamento pelo sintoma implica uma mudança da relação do sujeito com o seu gozo, numa perspectiva ética que se distancia da moral e que se realiza no caso a caso, numa ética em que a exigência não é adequar-se à norma social, mas sim não ceder ao seu desejo. Logo, a Psicanálise é da ordem da mudança; depois dela, o sujeito não é mais o mesmo, é diferente de antes, requerendo mutação subjetiva (BARRETO, 2009).

Nas instituições de saúde mental consegue-se frequentemente substituir um sintoma mais penoso e mais limitante por um mais suportável.

Lacan, ao reelaborar o conceito de sintoma para Sinthoma, faz pensar que do sintoma ao Sinthoma há um avanço do sujeito rumo aquilo que nele existe de mais singular (BARRETO, 2009).

A Psicanálise não se especializa, nem tão pouco se generaliza. É sempre “desespecializada”, ou melhor, a Psicanálise é especializada no sujeito. Seja onde, quando e em quem ela for aplicada, ela se aplica como Psicanálise no plano da terapêutica apenas ao sujeito, em especial, independentemente de qual seja o segmento a que ele pertença. E é dessa maneira singular que a Psicanálise orienta o trabalho analítico em uma instituição. Dialogando com as diversas áreas de conhecimento a ela pode então contribuir para manter o sujeito em sua singularidade através do debate da saúde mental (BARRETO, 2009).

 

5. A CLÍNICA DA PSICOSE E A PSICANÁLISE

As conhecidas loucuras são denominadas pela Psicanálise como psicose, e Lacan vem contribuir a partir de sua tese de doutorado, trazendo uma nova compreensão desta, diferente do legado deixado por Freud.

Freud, em determinado momento, não acreditava num tratamento possível para a psicose, pois para ele as catexias objetais desses pacientes foram abandonadas e sua libido objetal deve ter sido transformada em libido do ego, impossibilitando o tratamento, pois não há manifestação da transferência e, consequentemente, o estabelecimento da promessa de cura.

Posteriormente, em “neurose e psicose”, Freud (1976) sugere uma mudan¬ça de técnica para o tratamento da psicose, caracterizando o delírio como tentativa de cura. Como ele próprio diz, apud Quinet (2003, p. 97), “é uma peça que se cola lá onde houve uma falha na relação do sujeito com a realidade”.

Compartilhando dessa ideia, Lacan (1985) propõe que o inconsciente está estruturado como linguagem, então o enunciado presente no delírio é da ordem de um significante, e a significação virá de um “Outro”, que “invade” o sujeito, num gozo paradoxal que não pode ser barrado, e que faz do sujeito um objeto de gozo do Outro, tendo como resultado o desvanecimento desse sujeito. Na transferência, o analista vem ocupar a posição de barrar o gozo do Outro que invade o sujeito na psicose.

Diante da especificidade da psicose, os psicanalistas enfrentam uma tarefa árdua, e talvez fosse mais fácil recuar diante dela. Mas Lacan nos diz o contrário, e os analistas que seguem sua orientação não querem o mais fácil, e sim o desafio de lutar pela condição de sujeito que o psicótico pode atingir, e ser o portador de seus direitos.

O psicótico, por muito tempo, já foi excluído, discriminado como aquele que nada poderia oferecer à sociedade. Mas o tempo mudou e o respeito por aquele que sofre já se apresenta em alguns ramos da sociedade. Políticas públicas foram voltadas para eles, e cada vez mais os estudos estão avançando em suas direções.

Para Lacan, a psicose resulta da foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e o fracasso da metáfora paterna, ocasionando uma problemática em relação a situar-se na partilha dos sexos e na sua própria existência (QUINET, 2003).

De acordo, com Kaufmanner (1999, p. 114),

na psicose, a incorporação do simbólico se faz sem a castração. O corpo que advém como Outro não é deserto de gozo. O gozo permanece no Outro e no corpo, não é localizável pelo significante fálico bem como os objetos não estão separados do Outro, não foram extraídos. Portanto, se o Nome-do-Pai seria o que separaria desejo e gozo, ficando o desejo no campo do Outro e o gozo com a Coisa, com a foraclusão, o Outro goza.

Ao propor que a foraclusão é um mecanismo específico da psicose, Lacan volta ao conceito de Verwerfung, proposto por Freud no seu texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958), dizendo que a Verwerfung será tida, portanto, como foraclusão do significante.

Lacan, na formalização de sua clínica, a partir de sua tese de doutorado (1932) “O caso Aimeé”, aponta que o problema da indicação da Psicanálise para um caso de psicose era devido à transferência. É neste ponto que Lacan formaliza sua primeira clínica, retomando o trabalho de Freud sobre o delírio, com o caso Scheber como paradigma, da formação delirante como uma tentativa de restabelecimento do sujeito.

Segundo Beneti (2005), nessa primeira clínica o tratamento possível para a psicose deveria se dar a partir da Metáfora Delirante, como um “ponto de mira e de chegada”, da construção subjetiva delirante estabilizadora do sujeito, no entanto essa forma de estruturação é temporária. Em certo momento não irá servir mais para o sujeito, o que resultará em desestruturação, assim como ocorreu no caso de Schereber. Essa primeira clínica é centrada na foraclusão do significante Nome-do-Pai.

Lacan, na sua segunda clínica, com Joyce como paradigma, muda sua posição com relação ao tratamento do sujeito psicótico, ao propor que no sujeito neurótico as esferas do real, do simbólico e do imaginário estão enlaçadas ao nó borromeano, por um quarto nó, que seria o Nome-do-Pai. Como foi visto na psicose, o Nome-do-Pai não se encontra presente, resul¬tando na separação das esferas. De acordo com Beneti (2005), essa segunda clínica vem com a pluralização dos Nomes-do-Pai, que vão se constituir com os sinthomes estabilizadores, que aparecem como quarto termo reparador do nó borromeano, ou seja, com a desestruturação enfrentada pelo sujeito, devido à falta desse significante Nome-do-Pai, ele irá construir um sinthome, que vem para representar o quarto faltante na busca da estabilização, através do trabalho produzido pela suplência subjetiva.

De acordo com Barreto (2009), a segunda clínica de Lacan, com a contri¬buição de Miller, anteviu, com notável precisão aos tempos atuais, o declínio das identificações verticais, tempo em que o grande Outro não existe, pois se sabe, de sua estrutura de ficção, que tudo não passa de semblante.

Então o trabalho analítico se faz no sentido de possibilitar ao psicótico, muitas vezes tomado diante deste Outro inefável como objeto de seu gozo, a oportunidade de se fazer sujeito de uma experiência, saindo daquilo de que se trata na condição psicótica: a posição de objeto. O ato analítico se faz pela via da regulação desse gozo invasor e desmedido, visando o seu esvazia¬mento, através do dispositivo da trivialização.

Essa demanda por uma barreira ao gozo do Outro nos remete à transfe¬rência, em que Lacan vem propor que o analista ocupe a posição de secretário do alienado, sabendo escutar aquilo que o psicótico revela de sua relação com o significante, assegurando, desta forma, a posição de testemunha da relação do sujeito com o Outro que o invade. Portanto, o analista deve realizar manobras de transferências, que visam barrar este gozo para que, assim, o analisante se instaure como sujeito, e não como objeto de gozo do Outro (QUINET, 2003)

Na utilização das manobras de transferências na psicose, deve-se ter cuidado para não forçar o psicótico a apelar por uma referência com a qual não conta, tal como aquelas que dizem respeito à neurose. A intervenção e a interpretação baseada no esquema do Édipo podem provocar um desenca¬deamento em pacientes psicóticos e pré-psicóticos, já que lhes faltam um significante correspondente.

Dentro da instituição de atenção psicossocial, a transferência vai se dar independentemente da presença do psicanalista. Ela passa a ser uma nova forma de lidar com uma relação que já existe e está presente; a relação do usuário com a própria instituição, com seus atributos imaginários.

Nessas instituições a equipe multiprofissional, com a qual o usuário vai lidar em diferentes momentos, deve estar pronta para aceitar a transferência e permitir que ela continue transferindo. Assiste-se então, neste contexto, ao manejo específico da transferência, cujo endereçamento pode ser feito à instituição, ao tratamento ou a um profissional (TENÓRIO, 2001b).

Portanto, através da Psicanálise, com sua técnica que dinamiza e renova a cada dia a posição do analista, o trabalho deve ser de não recuar diante da psicose, requerendo prudência; prudência esta que coloca o analista na posição de secretário do alienado, procurando o respeito à singularidade do paciente com seu sintoma.

 

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho realizado nas novas instituições de saúde mental precisa estar de acordo com as novas propostas de assistência ao sofrimento psíquico, que procura a singularidade de cada caso, sem excluir o aspecto social e político vigente na sociedade. Mas não se trata apenas de inserir o sujeito na norma social, mas promover um resgate da dimensão subjetiva do adoeci¬mento em todas as suas formas, fazendo com que o sujeito participe do tratamento e se responsabilize pelos seus sintomas.

O sujeito psicótico, como todos os outros, é detentor de direitos sociais, políticos e de cidadania, e é com este intuito que o trabalho psicanalítico na instituição faz advir um sujeito que responda como tal. Ao fazer uso da clínica do sujeito adquire-se um enorme conhecimento da condição particular que cada paciente apresenta, e como se constrói a clínica a partir do caso com seus elementos que o constitui como único.

A Psicanálise, nesse campo da saúde mental, articula-se em vários discursos, como o social, o institucional e o psiquiátrico, e nessa articulação o analista ocupa um novo lugar, fora do divã, o de enfrentar a dificuldade de seu tempo, com uma prática humilde e aberta ao diálogo entre a equipe, criando um espaço frutífero para a construção de uma prática que permita ao sujeito a livre expressão da sua singularidade. Procura-se ainda a ética para cada caso, que leve em conta a individualidade do sintoma e a subjetividade para que o sujeito possa aparecer e dizer algo da sua vida.

 

 

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Artigo recebido em: 13/7/2009
Aprovado para publicação em: 10/12/2009

 

 

* Psicóloga, formada pela Universidade Federal da Paraíba, especialista em Saúde Mental pela Faculdades Integradas de Patos, Rua Manoel Barbosa Neto, no 25, Centro, 58475-000, Queimadas, Paraíba, telefone: (83) 9972-7717, e-mail: alanaalgo@yahoo.com.br

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