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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.7 no.13 Barbacena  2009

 

ARTIGOS

 

A cidade que o crime construiu: breves considerações sobre o ambiente urbano a partir da linguagem1

 

The city built up by the crime: brief considerations on the urban environment departing from the speech

 

 

Helder Rodrigues Pereira* ; Bárbara Gecy Pereira Loschi; Hiltter Mahatma Pereira da Silva; Leila Leandro de Paiva; Lilian Silveira de Paula; Manoel Agostinho Gomes dos Santos**

Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC)

 

 


RESUMO

Este artigo tem como finalidade divulgar o trabalho realizado por um grupo de pesquisa financiado pela UNIPAC/FUNADESP, durante o ano de 2008. O grupo desenvolveu seus estudos sobre o discurso jurídico, tendo por base teórica os pressupostos linguísticos da Análise do Discurso e da Psicanálise. O principal objetivo é compreender a formação do espaço urbano a partir de seus componentes simbólicos, observáveis nas formações discursivas. A escolha desta temática levou os autores a pesquisar processos criminais e, dentre eles, selecionar um que, dada sua riqueza de detalhes, melhor pudesse contribuir para o alcance de suas propostas. Pelos resultados obtidos, conclui-se que a cidade se revela em suas letras, pois elas denunciam as mais diversas formas pelas quais o ambiente urbano foi continuamente significado por todos aqueles seus habitantes – sejam eles os homens de bem, sejam eles os transgressores das leis.

Palavras-chave: Melancolia, Sofrimento psíquico, História; Psiquiatria, Psicanálise.


ABSTRACT

The present article has the purpose of divulging the work developed by a team of researchers during the year of 2008, in a group of research financed by UNIPAC/FUNADESP. The group developed their studies on the legal speech, having as theoretical basis the linguistic assumptions of the Analysis of the Speech and the Psychoanalysis. The main objective is to understand the formation of the urban space from its symbolic components, observed in the discursive formations. The choice of this topic led the group to research criminal proceedings and, amongst them, to choose one that, due to the abundance of details, could better contribute for the accomplishment of their proposals. Through the results obtained, it can be concluded that the city reveals itself through its literature, which by what it is demonstrated, the city if discloses in its letters, outlines the most diversified forms by which the urban environment has been interpreted by all its inhabitants – whether they are good men or lawbreakers.

Keywords: City, Crime, Speech, Psychoanalysis


 

 

INTRODUÇÃO

O ESPAÇO URBANO COMO ESPAÇO DE HUMANIZAÇÕES

É de nosso interesse traçar uma compreensão simbólica do espaço urbano. A partir de nossos estudos, podemos compreender que a cidade não se constrói de forma casual, desconectada do universo humano, com suas conquistas e perdas. A cidade, ao se construir, constrói também o homem que está nela (o cidadão) e o homem que está fora dela, ao seu redor, significando-a a seu modo (o suburbano). As cidades estão em constantes significações, elas se metamorfoseiam, pois não são objetos independentes: antes, guardam relação contígua com os que as fazem no cotidiano. Falar das cidades é referir-se, metonimicamente, aos cidadãos e aos suburbanos. Por isto, é preciso falar das cidades e é possível identificar uma relação simbólica a partir dos fenômenos sociais. Sabemos que os citadinos compartilham um mesmo pacto social pelo qual, ao residirem em determinada cidade, obrigam-se às regras impostas e que, na maioria das vezes, estão organizadas em forma de leis ou apoiadas nas tradições da cultura local. Em troca, cidadãos e suburbanos recebem a proteção desse mesmo pacto, que dá à sociedade um aspecto urbano, conforme a intenção que cada classe social tem de viver sob a lei.

As cidades antigas eram cercadas por muralhas que as protegiam da invasão de outros povos, mas guardava também um sentido simbólico, pois representava, inclusive, os limites para o pacto social, simbolizando a definição dos espaços dos que se submetiam ao pacto e dos que dele se afastavam. A margem da sociedade estava, pois, definida a partir da construção das mura¬lhas. A cidade moderna não tem mais muralhas concretas e as pedras já não mais delimitam espaços que definem lugares dos desejáveis e os separam dos outros. Dizemos, pois, que desde suas construções as muralhas ocuparam um lugar privilegiado na mentalidade do espaço coletivo. Se as muralhas não estão mais presentes como construções arquitetônicas, seu aspecto simbólico ainda permanece inabalável na mentalidade que as pessoas guardam das cidades. Portanto, se as muralhas de pedra desapareceram e delas conhecemos apenas ruínas, seus aspectos simbólicos permanecem e, de alguma forma, o cidadão estabelece espaços aceitáveis onde é possível viver, afastando, para longe desse espaço, os sujeitos que não se encontram sob as mesmas condições suas.

Nas estruturas estabelecidas na forma de morar de uma família ou na infraestrutura urbana percebemos uma constante modificação. Em grande parte do período feudal, moravam em uma mesma casa diversos membros da mesma família. A partir do século XII e XIII as famílias passaram a viver em ambientes mais urbanizados e a morar em lugares mais compactos, como apartamentos, passando a se organizar de forma nuclear, cuja composição era apenas o pai, a mãe e os filhos. Esta estrutura penetrou nas mentalidades e encontrou simbolização nas representações pictóricas da Sagrada Família – desenvolvidas apenas após a mudança da forma da estrutura familiar no século XII. Nessa representação, José, Maria e Jesus trazem a idealização simbólica de uma família nuclear e independente, na qual estão em harmonia o pai, a mãe e o filho (LE GOFF, 1988).

Começamos a delinear, desta forma, a delimitação dos espaços conduzida por uma expectativa do modus vivendi. As pessoas que, de alguma maneira, iam contra os costumes estabelecidos da sociedade deveriam ser excluídas, já que significavam a face insuportável do cotidiano, a revelar a miséria, o desencontro, a imprevisibilidade, o mal. As faces dos rejeitados, certamente, vão se modificando, haja vista que as muralhas não mais são de pedra e se prestam a uma maior maleabilidade de significações. Na era medieval, por exemplo, os celibatários eram mal vistos por não seguirem o mesmo estilo de vida dos outros cidadãos (constituir família) e eram, por isto, considerados suspeitos e, geralmente, obrigados a se integrar à Igreja, como a pedir refúgio e proteção.

A cidade é um local privilegiado onde o homem pode realizar o seu propósito de ser social. Um local onde a própria humanidade é possível. No entanto, é também na cidade que podemos ver com mais clareza o aspecto do mal que há no homem. Nela não impera solenemente a espada da Justiça. Antes: ela é espaço de luta de classes, ela é o lugar onde Eros e Thanatos se digladiam num sem-fim de vitórias e derrotas.

Portanto, é preciso suplantar uma visão romântica em torno das cidades. Para tal, a proposta é que nos adentremos em uma cidade, não pela via dos urbanos, mas pelas mãos dos desordeiros, dos suburbanos, daqueles que fizeram da lei sua inimiga e da ordem o escárnio. Dessa forma, podemos construir uma compreensão do espaço urbano a partir do subúrbio. Para fazermos tal investida, elegemos uma cidade: São João del Rei (MG); elegemos um tempo: o século XIX; elegemos uma abordagem: a discursiva; elegemos um gênero: o discurso jurídico; e elegemos um homem: o criminoso, a fim de traçarmos uma compreensão do espaço urbano. Durante o ano de 2008, desenvolvemos uma pesquisa para análise discursiva de processos-crime para, a partir deles, compreendermos aspectos importantes da vida social humana. Um processo-crime foi escolhido, por suas peculiaridades: fora escrito em 1860 e reaberto em 1869. Trata-se de uma suspeita de homicídio por envenenamento. Relata o percurso de dois homens diferentes: um trabalhador e um gaiato, em um jogo de oposições que perpassa pelo processo e significa a imagem de ambos como o urbano e o alheio às regras, sob as muralhas da língua, definida no contexto do discurso jurídico. A cidade de São João del Rei era um importante centro urbano, por se constituir em um entreposto de tropeiros, portanto contava com um contínuo fornecimento de gente. Como considerou Braudel (1997), uma cidade é sempre uma cidade, onde quer que ela se encontre. Seja na antiga Atenas ou na moderna Nova Iorque, há algo que uma cidade não pode deixar de ter: o fornecimento de pessoas que chegam atraídas por suas luzes, suas perspectivas, suas promessas de vida melhor. No caso específico deste estudo, o século XIX foi privilegiado como marco temporal por ser o momento de expansão do Positivismo – que via nas ciências a grande possibilidade de demarcar todos os espaços possíveis para a compreensão do homem e suas invenções.

 

A CIDADE E SEUS PROCESSOS FUNDADORES

O crime é algo que marca uma sociedade. Ele provoca uma ruptura e expõe aqueles que nele se envolveram: vítima ou algoz. O crime provoca uma cisão na tessitura urbana e se reveste como um acontecimento. Uma vez ocorrido o crime, ele sai da esfera do real e começa sua escalada pelo universo simbólico. O crime é falado, é narrado, é representado. Uma das formas de se falar de um crime é o processo-crime. Ele se encontra de tal forma organizado que delimita ações específicas, o que é mesmo de se esperar, pois o processo-crime encontra-se no universo do discurso jurídico, com suas margens específicas, dentro das quais permite que uns falem ao passo que proíbe a fala a outros indivíduos da sociedade. Poucos serão convidados a prestar depoimento no processo. Esta escolha não se baseia nas diferenças de classes, mas nas diferenças linguísticas. Assim, o discurso jurídico confere o direito de dizer a alguns e silencia tantos outros.

Vejamos o processo em questão. Ele vem narrar um acontecimento, um homicídio, uma morte. Ele vem inaugurar a figura do criminoso e da vítima e, para tanto, conta com a ação linguística dos adjuvantes: testemunhas, peritos, dentre outros. Em síntese, o processo afirma que:

Aos 26 de junho de 1860, em Brumado, distrito de São Gonçalo, faleceu Francisco Theodoro, após ingerir cachaça fornecida por Francisco José da Costa. O informante foi Francisco, filho da vítima, que contou ao delegado que seu pai, no leito de morte e com presença de testemunhas, afirmara que estava envenenado e morria, e quem o matava era Francisco José da Costa, por ter-lhe dado cachaça envenenada para beber.

Há relatos que Francisco Theodoro não sofria de qualquer moléstia e que existia uma antiga rixa entre a vítima e o acusado. Outro fato importante é que Francisco Theodoro e Francisco José da Costa, quando se encontraram, estavam indo em direções opostas. Porém, o réu mudou o percurso e seguiu a mesma estrada que Francisco Theodoro, a fim de executar sua ação criminosa. Tão logo a vítima bebeu o líquido, o réu a deixou, prosseguindo o seu antigo caminho e abandonando o outro à própria sorte.

O julgamento foi realizado após serem ouvidas as testemunhas, os peritos, o promotor de justiça e o advogado de defesa. O réu Francisco José da Costa foi considerado culpado e condenado à prisão, além de ter seu nome inserido no rol dos culpados.

Em 1869, por força de uma petição, o processo foi reaberto. Na petição, o advogado, em nome do réu, argumenta pela inexistência de provas conclusivas que tornassem a culpa a decisão mais sábia, pois os peritos haviam averiguado e sequer encontraram sinais evidentes de envenenamento. Diante dessas argumentações, o réu foi dado como inocente e posto em liberdade.

Dentre outros, o processo nos permite uma leitura compreensiva com base em Bakhtin (1995), a partir das noções de discurso relatado, pois nele as partes envolvidas têm sua fala descrita pelo escrivão do processo, que escuta o que é dito pelas partes e repassa para o papel na forma escrita, seguindo seus próprios métodos de formação gramatical e de acordo com sua visão de mundo, embora só possa transitar, linguisticamente, no interior das margens permitidas pelo discurso jurídico.

Para fazermos um breve exercício de análise discursiva, vamos nos ater a um recorte do processo. Esse recorte foi feito sobre os discursos do advogado de defesa e dos peritos, os quais podem ser analisados na segunda parte do processo: passados nove anos desde a condenação inicial do réu.

Tanto o advogado de defesa quanto os peritos possuem uma escolha lexical própria, o advogado procura utilizar palavras ligadas à religião e os peritos utilizam uma fala mais técnica (científica), voltada para a medicina, pois eles representam a fala do saber científico nesse processo.

Devido a essas escolhas lexicais o advogado e os peritos trazem um novo ponto passível de análise, que é a presença do interdiscurso, aqui tomado como categoria de análise. O advogado se apodera do léxico do discurso religioso e os peritos, do discurso científico, uma vez que o discurso jurídico, por si só, não é capaz de dar uma conclusão ao processo. É por utilizar aspectos do interdiscurso (da religião e da ciência) que o advogado e os peritos vão dizer, a partir de uma posição privilegiada, o que Foucault (2003) denominou discurso no verdadeiro, haja vista que ao dizer o indivíduo ocupa um lugar de verdade, a partir do qual é ouvido e acreditado, proferindo um discurso legitimado pela sociedade a partir de suas instituições.

Vejamos, pois, aspectos do interdiscurso religioso, evidenciado no enunciado do advogado “... que sequioso chega ao gargalo seus lábios secos, e sorve o milagroso líquido a longos tragos...”. A palavra em destaque foi escolhida pelo advogado de defesa, que trata a cachaça não mais como líquido envenenado, capaz de provocar a morte, mas o chama de milagroso, como líquido capaz de aplacar a sede e manter a vida. É uma escolha lexical que modifica o sentido do líquido, modifica o sentido do processo, recria um indivíduo, retirando-o do lugar de criminoso para colocá-lo no lugar de cidadão. Desta forma, ele interpela o juiz a um novo pensamento: como a ingestão de um líquido milagroso poderia provocar a morte?

Por seu turno, o discurso científico fica evidenciado no seguinte enunciado dos peritos “... o veneno vegetal mata [agindo] sobre o sistema nervoso e não podia produzir as lesões...”. A escolha dos peritos se dá no léxico técnico, no domínio da ciência – que também falava no verdadeiro, além da religião, àquela época e naquela cidade.

Advogado e peritos tentam, pois, ressignificar o crime à sua maneira, conferindo-lhe, desta feita, menor periculosidade e possibilitando uma leitura diversa de todo o processo, a despeito das decisões tomadas anteriormente, que culpabilizavam o réu. O juiz, afinal, não dispõe sobre a verdade dos acontecimentos, mas sobre a regularidade do processo. Isto implica decisões do aparato jurídico que não estão calcadas no registro do real (o crime como ação), mas no registro do simbólico (o crime como representação da lingua¬gem).

 

SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DA TEORIA DISCURSIVA PARA A COMPREENSÃO DO ESPAÇO URBANO

Trabalhamos a Análise do Discurso a partir de uma perspectiva teórica francesa, que teve início no século XX (nos anos de 1960). Seu objeto de estudos é o discurso que não é só fala, mas também é texto, imagem, dança, etc. Essa nova perspectiva teórica tem por base a interdisciplinaridade, sob a influência da Linguística, do Marxismo e da Psicanálise.

A Linguística afirma que a linguagem não é transparente para o homem e a língua, que é seu objeto de estudos, tem sua organização, independente¬mente dos princípios positivistas e racionais. A Análise do Discurso afirma que a relação entre linguagem/pensamento/mundo não se dá de forma direta de um ao outro, mas sofre influência de várias regras. A partir disso, podemos entender que a linguagem não é transparente porque, às vezes, o locutor diz uma coisa e o locutário entende outra, ou então ela não é capaz de expressar o que o locutor está sentindo e quer dizer. A Análise do Discurso também é influenciada pelo Marxismo, ao pressupor um materialismo histórico, no qual há um real da história que não está dado ao homem. Então, o homem faz história e esta não é transparente para ele, porque é perpassada por ideias que não são propriamente as dele. São ideologias que se materializam no discurso, que só fazem sentido em relação à história. Por fim, há a influência da Psicanálise, que diz que o indivíduo se torna sujeito quando faz a entrada no mundo simbólico. Segundo Pêcheux, apud Coracini (2007), a análise do discurso procura compreender a língua não só como estrutura, mas, sobretudo, como acontecimento (que permite a pessoa perguntar onde, como e porquê surgiu aquele discurso), saindo da noção de indivíduo para a de sujeito que se forma na relação com a história, com o simbólico.

Na obra A ordem do discurso, Foucault (2003) discute como se dá a organização dos discursos, de seus acontecimentos. Isso é possível através das instituições que, por meio das leis, controlam a sua produção e seu aparecimento. Foucault (2003) fala de alguns procedimentos internos de controle e delimitação dos discursos, onde os próprios discursos exercem seu controle. São três: o primeiro é o do comentário, que é “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito” (FOUCAULT, 2003, p. 25). Caracteriza, assim, que “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2003, p. 26). O segundo procedimento é o do autor, este “como princípio de agrupamento dos discursos, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência” (FOUCAULT, 2003, p. 26). O autor é quem organiza, agrupa, dá sentido ao discurso. Ele é a própria ordem do discurso. Por fim, o terceiro procedimento é o da disciplina, como organização e coerência dos discursos. Posteriormente, o autor argumenta acerca de outro conceito importante, que é o de “no verdadeiro”, uma posição em que os indivíduos se encontram quando falam, um lugar onde a pessoa vai falar e todos vão acreditar no que ela diz. Para estar “no verdadeiro” é preciso obedecer às regras da instituição.

Além de Foucault, existem outros autores importantes para se entender e pensar a Análise do Discurso. Podemos começar com o conceito de ideologia, que segundo Althusser, apud Brandão (2002), encontra sua materiali¬dade no discurso, além de interpelar indivíduos em sujeitos. Ele diz ainda que existem sempre Aparelhos Ideológicos do Estado que sustentam as práticas da ideologia. Esses podem ser entendidos como a família, a política, a religião, os costumes, etc. Bakhtin, apud Brandão (2002), traz a noção de enunciado e enunciação. O enunciado pode se repetir, é muito mais do que uma frase ou aglomerado de frases, é um conjunto de ideias que, em determinado contexto, vão dar sentido ao discurso. A enunciação não pode se repetir jamais porque é um ato individual, é a emissão de um conjunto de signos nas interações sociais. Courtine, apud Brandão (2002), traz a noção de condições de produção, onde os discursos estão inseridos. São elas: o contexto sócio-histórico, os interlocutores (pessoas que vão expressar a linguagem verbal ou não-verbal), a imagem que fazem de si e do outro que as ouve, o lugar de onde falam. Tudo isso vai contribuir para a produção de um discurso. Maingueneau, apud Brandão (2002), nos ajuda a pensar a interdiscursividade, que é a relação que se estabelece entre os discursos, em uma contínua relação de reciprocidade. Orlandi (2003) fala da polissemia, pela qual o discurso pode provocar vários sentidos. Para a Análise do Discurso, o que importa é o efeito de sentido que ele produziu nas pessoas, não importa o que o locutor quis dizer, o efeito de sentido não pode ser dominado por ele. Elaborada por Pêcheux, apud Brandão (2002), a noção de formação discursiva é aquela que define o que pode e deve ser dito num lugar social historica¬mente determinado. Por fim, Ducrot, apud Brandão (2002), apresenta dois conceitos importantes, o de polifonia e o de dizer e dito. A polifonia refere-se à característica de toda fala ser perpassada pela fala do outro. A pessoa sempre fala a partir de algum lugar, ela não é a origem do discurso. Tratando-se do dizer e do dito, o dizer é aquilo que fica explícito no enunciado e o dito seria aquilo que fica implícito, assim é possível perceber como ambos estão correlacionados.

Foucault, apud Brandão (2002), concebe o discurso como dispersão. Para ele caberia ao analista do discurso interpretá-lo e descrevê-lo, de modo que se pudesse entender sua formação, sua unidade, talvez. Ele diz ainda que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2003, p. 10).

 

SOBRE A FORMAÇÃO DO DISCURSO JURÍDICO E SEU PAPEL NA COMPREENSÃO DO ESPAÇO URBANO

As instituições são organizadoras das falas e das escritas, que se formam dentro dos limites impostos pelo gênero do discurso. Neste sentido, a instituição judiciária organiza o discurso jurídico, definindo quem pode falar e quem tem voz perante a justiça. Define também como se deve dar essa fala e quando ela se torna oportuna. O advogado de defesa, por exemplo, escreve sua petição baseada nas leis, argumenta a partir do discurso legal e por isso ele é ouvido.

Foucault (2003) fala do ritual que define a qualificação que deve possuir o sujeito que fala. Dentro do discurso jurídico podemos exemplificar esse ritual no caso do discurso do advogado de defesa. Para defender alguém perante a justiça, o ritual define que a fala pertence a um graduado em Direito, a fim de garantir o domínio dos parâmetros legais.

Pela prática judicial, as investigações aprofundam-se na vida do sujeito, procurando achar indícios do que poderia levá-lo a cometer um crime, como no caso citado, por exemplo. Ela também demonstra, ao longo dos autos, várias formas de saber sobre o mesmo fato. A prática judicial tem como direção a investigação do crime; isto implica sua relação com a verdade. Portanto, As práticas judiciárias - a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impõe a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história - me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudados (FOUCAULT, 2001, p. 3).

No processo estudado temos, em princípio (1860), um crime, o que Foucault (2001) considera o aspecto da infração. Pela noção de infração, o autor considera que o dano praticado pelo criminoso não é somente uma ofensa de um indivíduo a outro, mas é, antes de tudo, uma ofensa ao Estado, à lei do Estado, à sociedade, à soberania, ao soberano. Ora, sendo o dano causado também um dano social, a mesma sociedade considera que os crimes não podem passar sem punição. A sociedade não aceita alguns compor¬tamentos que se mostram desviantes dos preestabelecidos como aceitáveis no meio social. “O crime é algo aparentado com o pecado e com a falta; é algo que danifica a sociedade; é um dano social, uma perturbação, um incômodo para toda a sociedade” (FOUCAULT, 2001, p. 37). Essa afirmação justifica as práticas judiciárias. Esse desejo da sociedade por justiça e por punição se desenvolve dentro do próprio discurso jurídico. Um exemplo disso é parte do enunciado da petição escrita pelo promotor José Moreira da Rocha: “Tão importante e monstruoso crime não deve passar impune”2.

Nesse sentido, a sociedade vê o criminoso como um inimigo. Portanto, se ele é criminoso e se rompeu o pacto social, a lei penal deve agir sobre ele de modo a puni-lo, de modo a reparar o mal causado ao outro indivíduo e à sociedade. A punição tem início a partir de uma ação do promotor público, que é o homem a quem compete, perante a lei, representar a sociedade e os seus anseios. Quando acontece algum comportamento que rompeu com as leis sociais, ele é quem vai apresentar a denúncia no ministério público.

Após a denúncia do promotor instaura-se o inquérito. O inquérito é o procedimento no qual a prática judiciária procura saber o que de fato ocorreu. Pelo inquérito, as autoridades jurídicas investigam minuciosamente o fato – no caráter simbólico da língua. Segundo Foucault (2001), o que ele faz é reatualizar um acontecimento através dos testemunhos de pessoas que, por algum motivo, podem falar sobre o fato. No processo tratado, ressaltamos que a fala das testemunhas está ligada à fala da vítima, mas sempre por representação, pois todos alegaram ter ouvido exatamente da boca daquele que morria que a culpa era de quem lhe dera cachaça envenenada para beber.

No antigo Direito Germânico, quando acontecia um crime similar ao do processo em questão, um dos parentes da vítima exercia a prática judiciária com vingança. No Direito Moderno, entretanto, isso não acontece mais, porém o assassino continua sendo punido. Dizemos que ele continua sendo morto segundo certas regras, certas normas, porque ao colocar o assassino na prisão já temos uma forma de privação, privação do convívio social e de tudo que ela proporciona como qualidade de vida. “O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra” (FOUCAULT, 2001, p. 25).

O discurso jurídico não se sustenta por si só, ele precisa de outros discursos. Então temos nele o interdiscurso, segundo argumenta Foucault (2003). No processo tratado temos o discurso religioso e o discurso científico que sustentam o discurso jurídico e dão a ele um caráter argumentativo.

Foucault (2001) afirma que toda sentença judicial não é uma sentença de verdade. O juiz não julga a verdade, mas a regularidade do processo, a regularidade discursiva do processo. Isso fica evidente no processo tratado, no qual o réu, inicialmente, foi acusado e, posteriormente, com a reabertura do processo, foi considerado inocente devido a outros usos do mecanismo significante da linguagem.

 

ALGUMAS IMPLICAÇÕES DA PSICANÁLISE NO DISCURSO SOBRE O SUJEITO NAS CIDADES

Foucault (2003) considera que a vontade de verdade é apoiada pela instituição. Neste sentido, ela é conduzida por um conjunto de práticas, da mesma forma que o saber é transmitido na sociedade, exercendo sobre o discurso um poder de coerção.

O discurso é aquilo que é o objeto de desejo, e não apenas uma ferramenta do sistema de dominação, é o poder do qual queremos nos apoderar. Garcia-Roza (2000) diz que o surgimento do homem se deu junto com o desenvolvimento da economia capitalista e seus mecanismos de controle do desejo. A Psicanálise, por sua vez, vem para desqualificar o sujeito do conhecimento como lugar onde a verdade aparece. Ela retira o sujeito da verdade e revela a verdade do sujeito. Vem perguntar por esse sujeito desejante que foi anulado pelo capitalismo.

É juntamente com o conceito de inconsciente que Garcia-Roza (2000) faz uma ruptura entre enunciado e enunciação. Ele diz que “o sujeito do enunciado não é aquele que nos revela o sujeito da enunciação, mas aquele que produz o desconhecimento desse último” (GARCIA-ROZA, 2000, p.i23). Ou seja, a consciência não é “o lugar da verdade do sujeito, mas o lugar de seu desconhecimento” (GARCIA-ROZA, 2000, p. 23).

Em seu texto Por que articular Ética e Psicanálise?, Kehl (2002) argumenta que o homem contemporâneo quer apenas eliminar sua angústia em vez de buscar seu sentido: “o sentido já não é mais um valor inerente à própria vida, é o efeito de uma construção discursiva que confere significado à precariedade da existência” (KEHL, 2002, p. 9). Ora, toda produção de sentido está voltada ao outro, ao que a autora vai chamar de cadeia de produções. Para ela, os discursos contemporâneos a respeito da vida se apoiam cada vez mais em razões de mercado, razões que se consomem em si mesmas. Fazendo um paralelo com os conceitos de aparelhos ideológicos de Althusser, pode-se dizer que essas razões de mercado são massificantes, fazendo prevalecer a ideologia dominadora. Elas interpelam indivíduos em sujeitos; essa interpe¬lação se dá quando o sujeito se insere em práticas exercidas por aparelhos ideológicos.

Kehl (2002) faz uma referência à única lei universal que nos torna seres da cultura e que nos faz renunciar ao excesso de gozo: a lei do incesto. Sua inserção no inconsciente acontece por meio da linguagem. A internalização da lei pelo sujeito priva-lhe do pleno gozo e é transmitida através da lingua¬gem pela sociedade na qual o sujeito está inserido. “É a palavra que nos separa do gozo” (KEHL 2002, p. 23). Nesse mesmo sentido, Bakhtin (1995) afirma que a língua é um fato social por se apresentar na constituição do significado, integrando as enunciações individuais que são próprias da relação entre a sociedade e a língua. Para ele a palavra é o signo ideológico por excelência e, por isto, é nela que se manifesta a ideologia. Portanto, pelo fato de a ideologia significar as diferentes formas da realidade, as leis de uma sociedade são estabelecidas através dos signos.

Para explicar a formação da identidade, Coracini (2007) cita os conceitos de arquivo e memória de Foucault, e faz um gancho com o Estádio do Espelho proposto por Lacan. O arquivo é a lei do que pode ser dito e, como tal, tem o poder de modificar os discursos, fazendo permanecer alguns dizeres e fazendo desaparecer outros. O arquivo é o que garante a memória, e esta é o que garante a manutenção dos aspectos culturais. Sendo assim, o arquivo é responsável por materializar os discursos e, consequentemente, se torna, de forma insidiosa, um mecanismo daquilo que Foucault chama de relações de poder.

Para Lacan, nós nos vemos pelo olhar do outro. É o discurso desse outro que nos constitui como sujeito. E dessa forma constituimos no nosso imaginário a verdade sobre nós mesmos, identificando e fixando-a. Com isso, Coracini (2002, p. 17) afirma que “o sujeito é uma construção social e discursiva em constante elaboração e transformação”, transforma e é transformado pelo outro. E, sendo um lugar no discurso, o indivíduo é um resultado do “poder disciplinar”, que constitui o imaginário e a identidade do sujeito.

A mesma autora diz que Foucault assume o sujeito como função, abandonando a ideia de racionalidade e colocando-o dentro do discurso, de onde formará uma parte significativa de sua identidade, que vai definir as relações de poder, “o que pode ser dito, onde, quando, de que modo, etc.” (CORACINI 2002, p. 23). Portanto, as manifestações do poder compreendidas na língua colocam o sujeito diante de uma problemática em torno da questão da verdade. A verdade que a justiça alcança não é, em alguma instância, a verdade do sujeito. Este, por sua vez, está envolvido em uma rede de significações inconscientes que podem conduzi-lo para o bem ou para o mal, a despeito do que dizem as regras e suas vicissitudes no ambiente urbano.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O crime deixa a desejar. Ele revela que a sociedade não é capaz de conduzir o homem com segurança pelos caminhos da civilização. No entanto, será mesmo o desejo de segurança o que move o homem? Ou podemos afirmar que a grande motivação humana continua sendo a instabilidade, a morte? Seja como for, quando um crime emerge no ambiente urbano, ele traz consigo uma série de significações da urbanidade. Uma, no entanto, nos parece mais importante: a revelação das porosidades das muralhas urbanas e de sua incapacidade em separar, em espaços seguros, o urbano de seu oposto: o subúrbio. Na verdade, como podemos ver, um não existe sem o outro. Como na mitologia grega, Amor e Ódio não eram opostos, mas irmãos, também no universo urbano o cidadão e o transgressor não são opostos, mas caminham juntos, tais como as personagens do processo-crime estudado. Ora, um deles estará sobreposto a outro. Mas a sobreposição não é uma ação que se revela no registro da realidade: antes, elas se mostram no simbólico da linguagem que é capaz, em seu constante jogo de oposições, de fazer de um trabalhador uma vítima e de propor o castigo ao algoz para, posteriormente, reabilitar o mesmo algoz, declarando-o inocente e sedento de justiça.

Por essas razões, podemos compreender que os interstícios da língua revelam os caminhos sinuosos da cidade, cuja significação pode ser apreendida a partir daqueles que a falaram, a escreveram e, desta forma, a viveram.

 

 

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 7. ed. Tradução de Michel Lahude e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995.         [ Links ]

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. A análise do discurso. In: ___ (Ed.). Introdução à análise do discurso. Campinas-SP: EdUNICAMP, 2002. p. 13-37.         [ Links ]

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Artigo recebido em: 13/10/2009
Aprovado para publicação em: 29/11/2009

 

 

1Artigo elaborado como resultado de projeto de pesquisa desenvolvido na Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), sob financiamento da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular (FUNADESP).
2 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Museu Regional de São João del Rei. Arquivos de processos-crime, 1860-1869.
* Professor-coordenador do projeto de pesquisa: Margens sociais: uma compreensão discursiva sobre a exclusão social em processos criminais da Comarca do Rio das Mortes.
** Alunos de iniciação científica

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