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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.8 no.14 Barbacena  2010

 

ARTIGOS

 

"Qual é o meu lugar no mundo?" - reflexões sobre o papel da psicanálise na atenção integral ao portador de transtorno mental em conflito com a Lei

 

"What is my place in the world?" - Reflections about the role of psychoanalysis on the integral attention to mental disease patients in conflict with the Law

 

 

Denise da Rocha Tourinho*

Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Governo do Estado da Bahia

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é incitar os diversos setores envolvidos a fazer uma reflexão acerca da construção de uma nova prática de atenção ao portador de transtorno mental em conflito com a Lei. Após avaliar o papel da Psiquiatria Clássica na "institucionalização da loucura" e as propostas reformistas substitutivas, defende-se a integração operacional da Psicanálise em equipes interdisciplinares, com base na sua potencial capacidade de estruturação do discurso do "paciente judiciário", do seu reposicionamento subjetivo e da desconstrução social de mitos. Reconhece-se a necessidade de que esta proposta se sustente em políticas públicas transversais. No final do artigo há a apresentação de uma proposta governamental, que é uma síntese das concepções teóricas da Psicanálise com campos político-institucionais da Rede de Seguridade Social.

Palavras-chave: Prevenção, Atenção integral, Reforma psiquiátrica, Psicanálise, Justiça.


ABSTRACT

This article aims to encourage various sectors involved to think about building a new practice of attention to mental disturbed people in conflict with the Law. After evaluating the role of classical Psychiatry in the "institutionalization of madness" and the reform proposals, the article justify the operational integration of Psychoanalysis in interdisciplinary teams, based on its potential ability to structure the discourse of "patient justice", to reset him subjectively and to works in the social deconstruction of myths. We recognize the need to support this proposal in intersectoral public policies. We conclude by presenting a government proposal which develops a synthesis between the theoretical concepts of psychoanalysis with the political-institutional network of Social Security.

Keywords: Prevention, Integral care, Mental illness, Psychoanalysis, Justice


 

 

1. INTRODUÇÃO

O principal objetivo deste artigo é incitar os diversos setores envolvidos a fazer uma reflexão acerca das vicissitudes do processo da Reforma Psiquiátrica, quando se trata da prevenção e assistência ao portador de transtorno mental em conflito com a Lei. Iniciando com uma contextualização histórico-crítica do papel que coube à Psiquiatria Clássica na "institucionalização da loucura" e suas consequências subjetivas, procurou-se avaliar até que ponto a Reforma Psiquiátrica, com suas propostas institucionais alternativas ao asilo, logrou atingir essa população-alvo. Destacou-se, também, a necessidade de fazer intervenções específicas junto a essa população. Pretendeu-se, ainda, declarar a Psicanálise como uma resposta possível, integrada em equipes e contextos interdisciplinares, capaz de enfrentar esse desafio através da estruturação do discurso do sujeito psicótico em conflito com a Lei, do seu reposicionamento diante de si mesmo e da sociedade, e da desconstrução social de mitos. O trabalho foi concluído com a descrição, em linhas gerais, de uma proposta operacional voltada para a atenção integral ao "paciente judiciário", acreditando que ela concebe, no campo da práxis, uma síntese fértil entre as concepções teóricas da Psicanálise e da Psiquiatria Comunitária com campos político-institucionais da Rede de Seguridade Social. Esta proposta tem como objetivo preservar a cidadania e os direitos humanos das pessoas com transtornos mentais que cometeram delitos, a partir de uma intervenção preventivo/comunitária e assistencial, promovendo sua inclusão social.

 

O AVAL CIENTÍFICO PARA A ESTRUTURAÇÃO DO ASILO

Nascida de um movimento social que ganhou força extraordinária na Europa e nas Américas, a partir dos anos de 1950, a Reforma Psiquiátrica trouxe para o Ocidente grandes avanços e conquistas no campo dos Direitos Humanos e da Saúde Mental. A falência do modelo segregacionista de tratamento da loucura foi cientificamente reconhecida, hospícios foram desativados, leitos psiquiátricos fechados e os Estados passaram a tratar esta matéria em uma perspectiva governamental.

Mas, entre todos esses avanços, talvez a maior conquista desta Reforma, ainda por ser plenamente atingida, seja a de devolver ao sujeito psicótico, antigo e docilizado "paciente psiquiátrico", a sua voz. Somente através desse processo de "desinstitucionalização" pode emanar o discurso do "louco", uma vez que se permite que ele articule, para si mesmo, a pergunta estruturante que cabe a todo e qualquer ser humano: "Qual é o meu lugar no Mundo?" A pergunta do sujeito é o único começo possível, mas a resposta exige construção, que não depende exclusivamente de um esforço pessoal e, paradoxalmente, aponta, desde já, para a necessidade de uma reforma da Reforma.

Seja na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil, o que se coloca em questão no movimento reformista de desospitalização da loucura é o paradoxo proposto, pela Psiquiatria Clássica, de segregar para cuidar, de excluir para incluir. Estudiosos do mundo inteiro demonstraram que o velho e assustador hospício, este lugar destinado ao louco, serve, na verdade, a outros objetivos. Foucaut (1978), em seu livro História da Loucura, faz uma análise contundente do lugar do "louco" no imaginário popular, na época contemporânea, lugar que herda dos "leprosos", quando os avanços da Medicina garantem que esses não mais se prestam ao papel do "outro" ameaçador. Segundo o autor, as sociedades, desde as mais antigas, elegem uma categoria de pessoas que, no imaginário popular, encarnam o "mal" - esse "outro" devastador, que não sou "EU", que está fora de mim e que me ameaça, com sua proximidade.

A insanidade, desde sempre presente nas famílias e comunidades, ganha na contemporaneidade uma dimensão cultural e subjetiva diferente: o "louco" passa a encarnar esse "mal", esse "outro ameaçador". A sociedade capitalista, com seus valores positivos necessariamente ligados à produção, tira da cena doméstica e das ruas e praças da cidade a visão, que se tornou "dantesca", das pessoas que portam transtornos mentais severos. A sociedade capitalista diz ao "louco" que ele não tem um lugar no mundo e que, por isto, deve se conformar com o que lhe é imposto: a prisão/tratamento em um asilo. Anos de segregação brutal tiram do sujeito psicótico qualquer possibilidade de subjetivação das suas questões fundamentais e de estruturação eficiente dos seus laços sociais e do seu delírio.

O aval científico para a segregação do louco no asilo vem da Psiquiatria. Ela diz que a loucura é doença incurável, e não uma forma peculiar de ser. Classifica a doença em tipos e subtipos e diz que é necessário proteger os doentes da sociedade, que não há mais espaço para eles, e que também é necessário proteger a sociedade dos doentes, que se acumulam pelas ruas da cidade, sem ter quem possa deles cuidar. A isso se presta a criação de hospitais psiquiátricos. Inicialmente associados a instituições de caridade, geralmente ligadas a ordens religiosas, os hospitais psiquiátricos, no seu formato contemporâneo, se estruturam como "instituições totais", conceito desenvolvido por Goffman (1999) para descrever instituições, como prisões e conventos, que segregam integralmente o indivíduo da sociedade. Em seus estudos, o autor descreve, com excepcional riqueza, os efeitos subjetivos da exposição de um ser humano ao aprisionamento em uma instituição total. A vida "intramuros" cria, segundo ele, indivíduos amortecidos em sua subjetividade e promove a formação de um aparelho sombrio de poder/subjugação.

Até os anos de 1990, era essa a proposta hegemônica do Brasil para lidar com a loucura. Os hospitais psiquiátricos, caminhando na direção exata descrita por Goffman (1999), transformaram-se em ambiente de tortura, de aniquilamento de laços afetivos, de profissionais de saúde mental embrutecidos e adoecidos, e de "pacientes" esvaziados da possibilidade de construir "o seu lugar no mundo", através da fala – pessoas sem voz.

Vidas humanas foram perdidas. Pessoas permaneceram nesses locais por 20, 30, 40 anos, sem qualquer direito de cidadania. Muito tempo se passou para que os profissionais de saúde mental, "no só depois", se levantassem para dizer que o internamento em um hospital psiquiátrico, sobretudo o internamento por longo período, era um ataque frontal aos princípios universais da dignidade da pessoa humana, tendo como efeito invariável a destruição da subjetividade.

 

O MOVIMENTO DE DESOSPITALIZAÇÃO DA LOUCURA

A Europa, desde o final dos anos de 1950, apostou no investimento de verbas públicas em Programas Nacionais de Saúde Mental, sobretudo na Inglaterra, Itália e França, que exportaram o novo paradigma de "desospitalização" da loucura para outros países. Os Estados Unidos, nos anos de 1960/70, investiram na construção de um modelo de saúde mental transdisciplinar, que se contrapõe ao modelo de doença mental, para explicar e tratar a psicose. A partir de pesquisas científicas, novas propostas de tratamento para o portador de transtornos mentais foram apresentadas ao mundo, sempre em uma perspectiva comunitária, ou seja, incluindo o sujeito psicótico em seu próprio contexto e preparando a comunidade, e a ele próprio, para permanecer usufruindo dos espaços e da vida da cidade.

No Brasil, nos anos de 1980, estruturou-se o movimento social da "Luta Antimanicomial", propondo a desconstrução do modelo assistencial hospitalar e asilar da loucura. Do ponto de vista reformista, o internamento por longos períodos não é, efetivamente, uma modalidade terapêutica e tem efeitos nefastos para a subjetividade humana. Trata-se, na verdade, do aprisionamento do louco, confortável apenas para a sociedade, com suas teses imaginárias de "defesa social", e não para ele próprio. Era necessário e urgente, portanto, libertá-lo, ou seja, devolver a esse sujeito o seu direito inalienável de ser gente e de estar no mundo.

A Reforma Psiquiátrica nasce aí, nesta certeza científica e moral de que a "loucura" deve estar livre e de que a sociedade tem para com ela uma imensa dívida. O Movimento da "Luta Antimanicomial" (Lei no 10.216/2001) consegue legitimidade para essa proposta reformista no Congresso Nacional em 2001, quando se normatiza um modelo de assistência integral alternativo, totalmente financiado e sustentado pelo "recém-nascido" Sistema Único de Saúde. Internamentos por longo período e sem motivação clínica tornam-se ilegais no País. O novo modelo prevê a oferta de serviços com múltiplas atividades terapêuticas, tirando do médico psiquiatra o poder hegemônico, distribuindo-o em uma equipe interdisciplinar. O essencial nessa proposta parece ser a possibilidade concreta, caso o serviço funcione a contento, de que os profissionais envolvidos estejam preparados para lidar com o singular em cada caso atendido, sem perder de vista o contexto existencial do sujeito, em suas dimensões afetivas e relacionais.

O pressuposto, calcado em inúmeras pesquisas científicas, é de que serviços alternativos ao internamento, voltados para a manutenção dos laços sociocomunitários e afetivos, capazes de oferecer uma escuta singularizada ao sujeito, desde que funcionando em rede, têm muito mais efetividade do que aqueles que retiram o louco do seu convívio comunitário. Com base nessa lógica, o novo modelo reformista requer investimento governamental, na medida em que propõe a construção de uma Rede Substitutiva de Cuidado em todo o País, cabendo ao município a principal tarefa de atenção integral, mantendo Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Hospitais-dia e Centros de Convivência. Os hospitais psiquiátricos e hospitais gerais com leitos psiquiátricos permanecem existindo, destinados exclusivamente a períodos curtos de internamento e ambulatórios. Dos CAPS espera-se o mais importante: a produção terapêutica do sujeito e a possibilidade de que, sob intervenção interdisciplinar, ele possa se reposicionar diante do seu delírio, de si mesmo e do mundo.

Podemos entender que a moradia do louco "libertado" volta, nessa proposta, a ser responsabilidade dele mesmo. A Reforma Psiquiátrica, portanto, coloca a esse sujeito a complexa problemática da "responsabilização". Convocado a ser livre, o sujeito é levado a se questionar: "Para onde vou?" Como vimos, a resposta exige elaboração e ações concretas que não dependem exclusivamente dele mesmo, mas envolvem a sua contextualização em uma rede de relações sociais capaz de inseri-lo efetivamente. Aí ganham papel importante a família, o governo e a Psicanálise.

Para dar conta da resposta governamental, foram propostos Programas Ministeriais, como o "De Volta Para Casa" do Ministério da Saúde, além da manutenção de Residências Terapêuticas, dispositivos caros e, muitas vezes, de difícil gestão, destinados aos remanescentes dos longos períodos de internamento que perderam os vínculos sociais e afetivos e se enquadram na dramática categoria de "abandonados".

À medida que os leitos psiquiátricos foram sendo reduzidos no Brasil, a Reforma foi se deparando com a imensa complexidade dessa problemática e as respostas governamentais parecem sempre insuficientes. Por mais "serviços alternativos" que sejam montados, por mais bem estruturados que alguns poucos sejam, os profissionais de saúde mental parecem não ter modificado o seu olhar sobre o "louco" e a loucura. Também eles sofreram a "institucionalização", também eles adoeceram, e nenhuma Lei, nenhuma Portaria Ministerial, nenhuma Política Nacional vai impor essa mudança, a não ser através de um investimento significativo na formação desse profissional, que precisa desenvolver a habilidade de se relacionar com o "louco" e a loucura no campo da subjetividade.

 

QUE VENHA A PSICANÁLISE!

Na perspectiva da Psicanálise, a loucura é identificada através do discurso. É na escuta psicanalítica que se pode identificar uma estruturação clínica na qual falha o processo de simbolização (LACAN, 1988), ou seja, por questões orgânicas e, ou, psicológicas nem sempre é possível ao sujeito fazer colar um significante, atribuído pela cultura, a determinados significados. Ao se deparar com certos conteúdos psíquicos, seja na realidade, seja na elaboração imaginária, o sujeito se desequilibra e não consegue inseri-lo adequadamente na cadeia de significantes, tal como a comunidade espera dele. Ali onde o sujeito se percebe incapaz de lidar com a realidade, a partir do campo simbólico, ele constrói toda uma elaboração delirante que tenta dar sentido ao vivido. Ainda assim, em certos momentos, diante de alguns aspectos "inomináveis" de sua vida, a estruturação delirante não é totalmente competente para mantê-lo em equilíbrio comportamental e o sujeito faz o que se pode chamar de "passagem ao ato" psicótico. Ou seja, é para buscar o equilíbrio psíquico, para tentar dar um sentido e possibilitar a sua própria existência, que o sujeito psicótico transgride as regras sociais de conduta, com a possibilidade de, nesse "surto", violar as Leis.

Entender a psicose a partir desse referencial teórico implica a necessidade de uma práxis totalmente diferente daquela proposta pela Psiquiatria Clássica. Aqui se torna condição fundamental e primeira a escuta do sujeito, desde sempre. Os Programas Nacionais de Saúde, fundamentados na perspectiva da prevenção e da promoção à saúde mental, de caráter comunitário, propõem que as famílias devem ser acompanhadas por equipes de saúde, capazes de identificar a loucura em seu seio e, no caso das crianças, até mesmo ser capaz de preveni-la. Identificar a loucura através do discurso de toda a família deve ser papel de uma equipe de Saúde da Família, que irá encaminhar o sujeito psicótico para um serviço capaz de ajudá-lo na difícil tarefa de lidar com a linguagem e de se manter existindo, de forma sustentável, no mundo. No Brasil, de acordo com a Lei no 10.216/2001, esse serviço é o CAPS.

Os CAPS, portanto, assim como o Programa de Saúde da Família, precisam funcionar da forma mais adequada possível, não tanto em termos de estrutura física, mas de quantidade e qualidade de profissionais de saúde, sob pena de que a ausência dos manicômios se torne um vazio contra o qual, com toda razão, a sociedade irá se levantar. Esses serviços precisam contar com equipes altamente qualificadas na escuta do sujeito psicótico, capazes de dar a ele uma atenção singular, caso a caso, tecnicamente supervisionada, voltada para o reposicionamento do sujeito diante da estrutura delirante que ele precisou construir, responsabilizando-o por suas escolhas e necessidades, trabalhando a simbolização, dentro do possível, para que ele dispense "a passagem ao ato". Neste sentido, talvez o referencial teórico/prático, no campo da Psicologia, que ofereça melhores possibilidades seja a clínica psicanalítica – uma clínica, na verdade, sem setting, que pode ser feita em qualquer lugar, em qualquer momento, ali onde exista um sujeito e seu psicanalista.

A Psicanálise deve compor a equipe de saúde mental, cujo papel não pode ser apenas o de assistência ao "caso", mas deve ser também o de "gerenciamento do caso", garantindo não apenas o trabalho clínico, mas a representação do sujeito diante dos demais serviços da Rede de Saúde Pública e Privada, diante da justiça, da família e da comunidade. Estamos em um campo onde mitos e toda uma representação do imaginário popular veem no "louco" a encarnação da "periculosidade" e do "mal". É tarefa desta equipe de saúde mental a desconstrução desse lugar social, fazendo com que os vizinhos, a família, o juiz, o promotor, os colegas de trabalho, todos, enfim, consigam enxergar para além do que veem, percebendo naquela pessoa a sua complexa humanidade. É trabalho dessa equipe zelar pelos direitos daquele sujeito, o que só pode ser garantido pela sua compreensão em um nível muito profundo. Lamentavelmente, as equipes de saúde, muitas vezes, não atingem esse nível de compreensão, pois desconhecem a clínica psicanalítica. Vacilantes e movidas pelo mito e pelo medo, acabam, elas próprias, clamando pelo internamento.

A Reforma Psiquiátrica, com propostas comunitárias importantes, mas com equipes de saúde mental insuficientes e incapazes de atuar no essencial da psicose, está fadada a um imenso e doloroso fracasso. Que venha a Psicanálise integrar esta equipe, oferecendo ao sujeito psicótico uma escuta diferenciada, que se inicia com o autoconhecimento, e oferecendo à própria equipe a possibilidade de escutar a si mesma e rever o seu discurso, sustentando-o perante quem quer que seja.

 

O EXCLUÍDO DOS EXCLUÍDOS

Com muito barulho, a Reforma Psiquiátrica abriu as grades dos hospícios e ofereceu o mundo aos loucos, até então encarcerados, fazendo a sociedade, ao menos, reconhecer a sua existência e seus direitos. Nessas instituições, por vezes, a punição adentra o campo da irracionalidade e os gestores, quando se importam, têm de se deparar com sua própria impotência. Nos velhos manicômios, permanecem eles – os que, em função do seu delírio, em decorrência de alguma alucinação, transgrediram a Lei.

Seja no campo da Saúde Mental, seja no campo jurídico, o "paciente judiciário" encarna a própria ambiguidade: juristas entendem que, louco ou não, o sujeito que comete um crime deve ter sua vida regida pela legislação pertinente às Execuções Penais (LEP, Lei de nº. 7.210/84), que o destina, a depender do que atesta o psiquiatra e do que decide o juiz, a um hospital-prisão para cumprimento, não de uma pena declarada, mas da chamada "Medida de Segurança". Profissionais de saúde mental engajados na Reforma Psiquiátrica entendem que, criminoso ou não, o louco deve ter o seu tratamento como prioridade, obedecendo à legislação pertinente aos Portadores de Transtorno Mental (Lei da Reforma Psiquiátrica n0 10.216/2001), que destina o louco infrator, preferencialmente, a serviços comunitários substitutivos, sendo vedada a sua internação por critérios que não sejam técnicos, certificados por médico psiquiatra. Fica também vedada a sua internação por longo período.

Ambas as normas citadas são leis federais de caráter específico, sendo a Lei de nº. 10.216/01 a mais recente. Elas se chocam frontalmente. Não há um consenso sobre qual das duas deve prevalecer para regulamentar o tratamento que deve ser dado ao "paciente judiciário" neste país. Na prática prevalece a LEP, ainda assim, em alguns casos, descumprida em muitos itens de garantia de Direitos Humanos. Normalmente, o esquema se repete: ao cometer algum ilícito, o "louco" é capturado pelo Sistema Penal, através da Polícia. Poucas vezes essa captura se dá por crimes hediondos, embora estes sejam os que aparecem na mídia, o que dissemina a imagem de que os crimes cometidos por loucos, em geral, são bárbaros, e "vende" a ideia fantasiosa, porém útil, da "periculosidade". Porém, na verdade, a maior parte das infrações cometidas por estas pessoas é considerada ilícita de menor poder ofensivo. Se antes o Estado esteve ausente para prevenir "a passagem ao ato" delituoso, agora ele entra cena exclusivamente para punir, mas ainda assim de forma precária, visto que a polícia geralmente não tem a menor estrutura para lidar com a loucura. Em muitos casos, ele não se mostra dócil, nem sob tortura. É necessária uma estrutura penal tecnicamente mais competente para fazê-lo calar os gritos e submeter-se. Aparece, nesse ponto, a parceria com a Psiquiatria. O Poder Judiciário, após consulta ao Poder Técnico, através de um exame cientificamente questionável, declara a "Insanidade Mental" do sujeito incômodo e decreta a Medida de Segurança.

Para um tratamento de saúde mental que legalmente não pode durar mais do que três anos, o sujeito é levado ao "Manicômio Judiciário", rebatizado como Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Mas, de fato, nunca se sabe quanto tempo uma pessoa levará para deixar um dispositivo penal como este. Muitas pessoas nunca mais saem de lá. A justiça se mostra, talvez propositadamente, incoerente. Preso ao texto morto da Lei, o juiz, não raramente, ignora o que se passou e o que se passa na vida daquele que julga. Sem contexto, sem história, um dia o sujeito está livre, pela ordem do seu julgador. Mas, então, todos os seus laços já foram rompidos! O sujeito não tem mais para onde ir. A família não o aceita, a comunidade, muitas vezes, quer vê-lo morto. Nem o Ministério Público, algumas vezes, deseja tê-lo naquela Comarca, "para proteção e Defesa Social". Os governos municipais não têm onde abrigar essas pessoas, não há Residências Terapêuticas para elas, em quase todos os municípios brasileiros. Não há CAPS em número suficiente. Não há uma rede substitutiva aos hospícios que esteja efetivamente estruturada.

Nos poucos serviços existentes, a relação dos profissionais de saúde mental com o portador de transtornos mentais em conflito com a Lei é de medo. Segundo experiências adquiridas, profissionais que deveriam participar de seu processo gradual de "desinternação", ajudando a preparar a sua saída e sustentar a sua liberdade, muito frequentemente elaboram pareceres técnicos com um só diagnóstico: "sociopata". Não importa quem seja, o que tenha a dizer, a sua singularidade, o diagnóstico já está previamente elaborado e não por critérios técnicos, mas por critérios subjetivos dos profissionais da Rede, frequentemente mal preparados, sem a devida qualificação técnica e sem condição emocional para lidar com a loucura, menos ainda com o crime. É comum ver enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras da Rede, equipes inteiras, elaborando pareceres emocionados e apavorados, sugerindo a permanência e, ou, o retorno do "paciente judiciário" para o Hospital de Custódia e Tratamento, ao menor sinal de seu transtorno. Com o aval técnico em mãos, o juiz ordena o seu retorno. Há de se sublinhar, aqui, a semelhança da prática dessa modalidade jurídica, chamada Medida de Segurança, com a Prisão Perpétua.

 

OUTRO PARADIGMA PARA O TRATAMENTO DO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL EM CONFLITO COM A LEI: UMA PROPOSTA

Pela clara violação à Lei Federal no 10.216/2001 e à legislação internacional de Direitos Humanos, é mister que o Brasil construa um novo modelo de atenção integral ao portador de transtorno mental em conflito com a Lei, em consonância com os princípios da Reforma Psiquiátrica e com as Políticas Públicas de Saúde Mental propostas pelo Ministério da Saúde. Já vimos que a integração inter e transdisciplinar é condição sine qua non para a viabilidade de uma nova proposta nesse campo, uma vez que lidamos com duas formas de exclusão: a "loucura" e o "crime", que juntas não apenas somam os seus efeitos, mas os multiplicam exponencialmente,, gerando, em alguns casos, a "morte social" do sujeito.

Para fazer frente a essa demanda, seria necessário que os governos se organizassem para o desenvolvimento de programas estaduais, com o objetivo de preservar a cidadania e os direitos humanos das pessoas com transtornos mentais que praticaram delitos, a partir de uma intervenção preventivo/comunitária e assistencial, promovendo sua inclusão social. As ações previstas em um programa desse tipo deveriam estar inseridas em uma política transversal, envolvendo setores diversos (saúde, assistência social, previdência social, justiça, entre outros) e todos os entes federativos: municípios, Estados e União. Essa proposta deve se diferenciar pela regionalização/descentralização dos serviços a serem oferecidos e pela inclusão dos direitos de cidadania e garantias socioassistenciais e de benefícios previdenciários a serem garantidos pelo programa, através de parcerias, além da perspectiva de qualificação sistemática dos profissionais da Rede de Seguridade Social e do Sistema Penal, em uma perspectiva psicanalítica.

Para garantir que o atendimento propicie o mínimo afastamento do assistido, da sua família e da sua comunidade, serviços do Programa seriam montados em territórios de identidade do Estado, já equipados com uma Rede Substitutiva de Saúde Mental minimamente estruturada. Desta forma, o atendimento de saúde e jurídico ao "paciente judiciário" seria o mais descentralizado/regionalizado possível.

Cada serviço contaria com equipes itinerantes, formadas, no mínimo, por um psicólogo/psicanalista, um assistente social, um terapeuta ocupacional e um assistente jurídico. A equipe do Programa deveria garantir a escuta clínica do caso, em uma perspectiva psicanalítica, para gerenciá-lo diante das entidades e dos serviços que, culturalmente, não lidam com a sua singularidade. Esta equipe, para funcionar como tal, teria como prática cotidiana o acompanhamento clínico e a discussão interna do caso, bem como articulações intersetoriais que garantissem o seu bom andamento.

Especificamente, um programa dessa natureza deveria ter como meta a inclusão de 100% dos seus assistidos na Rede Substitutiva de Saúde Mental do SUS e na Rede de Assistência e Previdência Social do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Entendemos que essa meta jamais seria atingida se, estrategicamente, o programa não contar com intervenções de qualificação de profissionais da Rede de Seguridade Social, no processo de inclusão de ações preventivas e assistenciais, nos Programas Comunitários de Atenção Básica (sobretudo Programa de Saúde da Família, os CAPS e os Centros de Referência em Assistência Social-CRAS). Essas ações de qualificação deveriam contar com cursos e oficinas periódicas, além de intervenções diretas de discussão continuada de casos, da equipe do Programa com as equipes da Rede.

Outro ponto importante a ser trabalhado pelo programa seria o engajamento da equipe na luta pelos direitos processuais penais dos assistidos. Isso requer, também estrategicamente, a qualificação/sensibilização de profissionais do Direito, na desconstrução de mitos, na ampliação de conhecimentos nas áreas biopsicossocial e na mudança de práticas consolidadas, relativas ao "paciente judiciário". Parcerias com o Tribunal de Justiça, Defensoria Pública, Ministério Público, OAB e Secretaria de Segurança Pública deveriam garantir cursos e oficinas periódicas, além de discussões continuadas de casos, da equipe do Programa com os "Operadores do Direito".

De acordo com a Lei, a moradia do assistido deve ser junto à família. A opção de moradia de cada pessoa assistida deve começar a ser construída por ela mesma. Nesse momento, um psicanalista, fazendo operar o seu ato, é quem poderia levar o sujeito a dar o primeiro passo, ou seja, perguntar a si mesmo: "Qual é o meu lugar no mundo?" Toda a equipe, direcionando um olhar singular para o sujeito, estaria empenhada em auxiliá-lo a construir sua opção de vida, fazendo todas as articulações intersetoriais necessárias.

A estrutura de atenção proposta seria, basicamente, a seguinte: o sujeito, morando em casa, sempre que possível, seria sistematicamente acompanhado pela equipe gerenciadora do caso, mas deveria transitar por todos os âmbitos comunitários necessários para sua inserção social, incluindo o sociolaborativo e educacional. Considerando que a sociedade não está preparada para ver humanidade na pessoa do louco que comete um crime, a intervenção principal da equipe passaria a ser no campo da vinculação: "colada" no sujeito, até que ele próprio se "descole", a equipe garante esse trânsito, esse ir e vir do sujeito, por onde quer que ele necessite, para se reposicionar no mundo.

Conclui-se com a reflexão de que um programa como este é necessário no momento histórico em que vivemos: quando a Reforma Psiquiátrica luta pela estruturação dos serviços substitutivos, mas ainda não dá conta do seu funcionamento da forma esperada. Visto que as pessoas que cumprem Medida de Segurança não podem, ainda, contar com esta rede alternativa, em todos os aspectos, cabe ao Governo destinar "equipes sentinelas" para suprir uma falta que, esperamos, será temporária. A Psicanálise, assim como outros atores, protagonizaria importante papel em programas desse tipo, tanto na atuação direta das equipes, quanto na qualificação da Rede, em um processo de transformação que o tornaria prescindível, com o tempo.

 

 

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978.         [ Links ]

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1999.         [ Links ]

LACAN, Jaques. O Seminário – Livro 3. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em: 9/3/2009
Aprovado para publicação em: 28/4/2010

 

 

* Doutora em Saúde Pública (UFBA), Mestre em Saúde Comunitária (UFBA), Psicóloga (UFBA), Superintendente de Apoio e Defesa aos Direitos Humanos da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Governo do Estado da Bahia. Endereço: Rua dos Colibris, no 521, Cond. Nova Era, apto 1201, Imbui, Salvador-Bahia. Brasil. CEP: 41720-060. Tel.: (71) 3231-6783/ (71) 8790-6783. E-mail: denisetourinho@sjcdh.ba.gov.br

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