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Mental

Print version ISSN 1679-4427

Mental vol.8 no.14 Barbacena  2010

 

ARTIGOS

 

Fenomenologia do estigma em HIV/AIDS: "coestigma"

 

Phenomenology of stigma in HIV/AIDS: "co-stigma"

 

 

Virginia Moreira* ; Anne Mary Meneses** ; Débora B. Andrade*** ; Maria Catarina Araújo****

Universidade de Fortaleza

 

 


RESUMO

Como parte dos resultados de uma pesquisa fenomenológica longitudinal sobre a experiência vivida do estigma em HIV/AIDS no Nordeste do Brasil, surgiu um tema emergente que denominamos "coestigma". Como um desdobramento daquela pesquisa, objetivou-se com este estudo compreender as implicações no doente da experiência vivida do "coestigma" pelas pessoas que convivem ele. A metodologia utilizada compreendeu a re-análise, segundo o método fenomenológico crítico, de 82 entrevistas realizadas na pesquisa anterior. Os resultados mostram que as pessoas que convivem intimamente com o infectado pelo vírus sofrem tanto com a possibilidade de serem estigmatizados quanto com o "coestigma" já instalado, direta ou indiretamente, gerando formas adicionais de sofrimento ao doente que permeiam a experiência de adoecer com HIV/AIDS.

Palavras-chave: Estigma, "coestigma", HIV/AIDS, Fenomenologia


ABSTRACT

As part of the results of a phenomenological longitudinal research about the lived experience of stigma in Northeast Brazil, an emerging theme appeared and was named "co-stigma". As a continuity of that previous research, this study has the objective to understand the implications, on the ill person, of the lived experience of "co-stigma" suffered by the persons who share an intimate life with him or her. The methodology applied was the re-analysis of 82 interview transcriptions done during the previous research, according to the Critical Phenomenological Method. The results show that people who share an intimate life with those who are infected with HIV/AIDS suffer both from the fear to become stigmatized and the "co-stigma" already present, direct or indirectly, creating additional forms of suffering to the infected person, as part of the lived experience of becoming ill with HIV/AIDS.

Keywords: Stigma, "co-stigma", HIV/AIDS, Phenomenology


 

 

1 INTRODUÇÃO

A AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é, atualmente, alvo da atenção de diversos saberes, de governos nacionais e internacionais, e da sociedade em geral, em face da crescente incidência da infecção viral pelo HIV, bem como do grande avanço da terapêutica antirretroviral.

De acordo com o Programa Nacional de DST e AIDS, do Ministério da Saúde (BRASIL, s.d.), há cerca de 600 mil pessoas no Brasil que vivem com o HIV ou que já desenvolveram a AIDS. O Boletim Epidemiológico 2007 (BRASIL, s.d.), publicado pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS – UNAIDS – e o Ministério da Saúde, em 21.11.2007, divulgou que de 1980 a 2007 foram notificados 474.273 casos de AIDS no País, sendo 53.089 deles no Nordeste. Ao contrário das demais regiões, onde a incidência de AIDS tende à estabilização, no Norte e no Nordeste a tendência é de crescimento. Cinco anos depois de diagnosticadas, 81% das pessoas com AIDS no Nordeste estavam vivas, comprovando o grande avanço da terapêutica antirretroviral, que trabalha na manutenção imunológica do indivíduo infectado, corroborando a ideia de que a AIDS se estabeleça como uma doença crônica, já que a terapêutica disponível ainda não é de caráter curativo.

O HIV/AIDS não é compreendido apenas como uma epidemia biológica, mas também como um fenômeno social, manifestado através do comportamento que concretiza e reafirma valores sociais, assim como os modos de compreensão do adoecer (SANCHES, 2000). Guimarães e Ferraz (2002) afirmam que "o diagnóstico de soropositividade para o HIV representa, socialmente, muito mais do que a ameaça de uma doença fatal que afeta drasticamente a identidade da pessoa doente" (p. 77). Ter a doença significa lidar com questões complexas como o estigma, que pode ser tão incapacitante quanto a própria doença (CORRIGAN; LUNDIN, 2001).

O estigma é, atualmente, uma das prioridades de pesquisa pela OMS – Organização Mundial da Saúde, tendo em vista que apesar de ser amplamente aceita a evidência sobre as consequências do estigma, individualmente e no âmbito da saúde pública, faltam dados sobre como lidar efetivamente com esse problema. Ainda é pouco compreendido como os significados e os processos culturais produzem as configurações particulares do estigma.

Goffman (1988) ressalta que os gregos da Antiguidade, dentre os quais se originou o termo estigma, usavam a palavra para se referir a sinais corporais (cortes ou queimaduras no corpo) feitos com o fim de "evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava" (p.11), e se apropriou do termo para aplicá-lo à "situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena" (p. 04). O autor conceituou estigma como um atributo profundamente desacreditador, que resulta em uma identidade social contaminada, socialmente indesejável e em rejeição decorrente dessa identidade. Há três tipos de estigma: as abominações do corpo (por exemplo, as deformidades físicas), as culpas de caráter individual (como doença mental, prisão, vício, homossexualismo, etc.) e as tribais (raça, religião, etc.).

A partir da leitura de Goffman (1988), Guimarães e Ferraz (2002) afirmam que o estigma é uma construção social legitimada pelo outro, compreendido como uma rede de normas, códigos e comportamentos de um grupo ou sociedade, que delineia territórios de "normalidade". Se em determinados momentos, sob certas circunstâncias, algumas pessoas e/ou grupo ultrapassam o limite circunscrito deste território, "instala-se um desvio que, por sua vez, é acompanhado de acusação, isolamento, rejeição e redução do espaço socioeconômico e da cidadania do estigmatizado" (p. 79).

A AIDS apareceu para o mundo na década de1980, entre os homossexuais, e ficou conhecida, de início, pelo nome de câncer gay, o que sugere que a AIDS pode ter sido interpretada pela sociedade em geral como uma culpa de caráter individual, categoria na qual Goffman (1988) insere o homossexualismo. Mais adiante as prostitutas, os viciados em drogas injetáveis e os hemofílicos foram agrupados com os homossexuais e cunhou-se a expressão grupo de risco – que não é mais utilizada, uma vez que o vírus passou a se espalhar de forma indiscriminada, não mais se concentrando em grupos específicos.

A associação do HIV/AIDS com algo vergonhoso, que estigmatiza, pode ter sido uma generalização decorrente do tipo de pessoas que integravam o grupo de risco, e pode ter sido reforçada pelo fato de que as pessoas com HIV/AIDS são percebidas pela sociedade em geral como responsáveis por causar sua infecção. Ressalvado o caso dos hemofílicos, a contaminação pelo HIV é frequentemente associada a uma "vida sexual ilícita" (MOREIRA, 2005). O que se discute no atual cenário dos estudos em HIV/AIDS é o comportamento de risco, caracterizado pela relação sexual (homo ou heterossexual) com pessoa infectada, sem o uso de preservativos; pelo compartilhamento de seringas e agulhas (principalmente no uso de drogas injetáveis); pela transfusão de sangue contaminado pelo HIV; e pela reutilização de objetos perfurocortantes com presença de sangue ou fluidos contaminados pelo HIV.

Corrigan e Lundin (2001) formularam alguns conceitos, e uma gradação, para ajudar na compreensão de como a sociedade estigmatiza. O primeiro deles é atitude. Em seguida vêm o estereótipo e o preconceito, que juntamente com a atitude são conceituais, enquanto a discriminação é comportamental (RODRIGUES, 2002). Atitude é definida como a combinação daquilo que nos parecem fatos do mundo real com os nossos valores ou as nossas reações emocionais. A atitude pode ser negativa ou positiva. Estereótipos são atitudes sobre grupos que nos ajudam a compreendê-los. Os estereótipos também podem ser negativos ou positivos. Quando o estereotipo é negativo, ele é chamado estigma. O preconceito ocorre quando alguém endossa um estereótipo negativo sobre um grupo. E a discriminação é o comportamento que resulta do preconceito, quando as pessoas acreditam e concordam com um estereótipo negativo.

E onde as pessoas aprendem a estigmatizar? Corrigan e Lundin (2001), Goffman (1988) e Guimarães e Ferraz (2002) concordam que o estigma é um fenômeno que se dá nas interações sociais. Corrigan e Lundin (2001) explicam que os estereótipos são construídos com a experiência, adquiridos através do contato regular com membros de um grupo em particular – as pessoas desenvolvem atitudes em relação a certos grupos com base no número de vezes que interagem com ele. Os estereótipos são transmitidos socialmente – as atitudes para com certos grupos são aprendidas com base nos mitos e outras representações que as pessoas têm deles. Eles ressaltam que nos Estados Unidos a TV, os filmes e outras formas de mídia são os maiores propagadores de certos estereótipos e que "os estereótipos influenciam a maneira como nós compreendemos e estigmatizamos os grupos e freqüentemente conduzem a uma compreensão errônea acerca das pessoas que compõem esse grupo" (CORRIGAN; LUNDIN, 2001, p.i22). Estes autores denunciam que o estigma tem um duplo efeito sobre suas vítimas. As pessoas infectadas pelo HIV/AIDS sofrem tanto pelos sintomas da doença, quanto pela ignorância e, ou, conceitos falsos sobre HIV/AIDS e seus modos de contaminação, que levam ao estigma (MOREIRA, 2005). A discriminação que resulta deste processo pode vir a ser tão incapacitante quanto a doença.

Para Goffman (1988), o estigma é utilizado para se referir ao distanciamento do ideal criado nas expectativas sociais. Assim, o estigma é construído nas relações interpessoais a partir de significações sociais que transformam "expectativas normativas, em exigências apresentadas de modo rigoroso" (p.12). A atribuição de um desvio modifica o modo como os indivíduos veem a si mesmos e como eles são vistos pelo outro, que exerce um olhar "normatizador". Nesse sentido, o normal e o estigmatizado são perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos (normal e estigmatizado). No entanto, estes são partes um do outro, pois aquele que é estigmatizado num determinado aspecto exibe todos os preconceitos normais contra os que são estigmatizados em outro aspecto. Há ainda outros conceitos elaborados por Goffman (1988) que são relevantes para a compreensão do estigma. Por exemplo, o de identidade social. A identidade pode ser classificada como Identidade Social Real, quando a identidade "corresponde à categoria e os atributos que o indivíduo estranho, na realidade, possa possuir" (p. 12), e como Identidade Social Virtual, aquela resultante das exigências que as pessoas (na sociedade) fazem, e do caráter que estas imputam ao indivíduo que está à sua frente, ao qual reconheceu como estranho. Destes conceitos decorrem mais dois: o de desacreditado e desacreditável. Desacreditado refere-se àquela pessoa cujo "estigma é conhecido (visível) pelos "normais", antes que estes entrem em contato com aquele, ou que se torna evidente, no momento em que estes entram em contato com aquele" (GOFFMAN, 1988, p.i51), por exemplo, uma pessoa que nasceu com um braço mirrado, que não desenvolveu. Um fator importante para o desacreditado é a manipulação da tensão gerada durante os contatos sociais. O desacreditável é aquele cuja diferença (defeito, diferença dos normais) "não está imediatamente aparente e nem se tem dela um conhecimento prévio" (p. 38). A questão colocada para o desacreditável é a manipulação de informação sobre seu defeito. Exibi-lo ou ocultá-lo, revelá-lo ou escondê-lo? Além disso, e em cada caso, para quem? Como? Quando e Onde?

Aqui se insere o paciente infectado pelo vírus HIV. Ele pode escolher esconder a informação sobre sua identidade social verdadeira – a de infectado pelo HIV –, recebendo e aceitando um tratamento com base em falsas suposições a seu respeito, por exemplo, a suposição de que ele é sadio, porque o HIV não é visível na fase inicial da doença.

A revisão da literatura sobre estigma mostra que a maior parte das pesquisas sobre este tema focaliza apenas os pontos de vista expressados ora pela sociedade ora por profissionais da saúde, deixando de fora a percepção dos estigmatizados. Kleinman (1995) defende a necessidade de uma compreensão mais ampla da experiência de adoecer, definindo doença (disease) na perspectiva médica, doença (sickness) na perspectiva do senso comum do contexto social e doença (illness) na perspectiva da experiência vivida do doente. Segundo Kleinman (1980), as atividades de cuidado em saúde são respostas organizadas socialmente diante da doença, devendo ser constituídas pela interação de três diferentes perspectivas: a profissional, a popular e a do doente. Nas palavras de Kleinman,

a tendência antropológica para criar arquétipos culturais dos sempre confusos e incertos detalhes de uma história pessoal de doença – uma abordagem para a qual nós também temos contribuído – é uma interpretação inválida do sofrimento humano tanto quanto a tendência biomédica para criar uma metáfora biológica pura para a dor (KLIENMAN, 1995, p. 101).

Em agosto de 2004 teve início no APHETO – Laboratório de Psicopatologia e Psicoterapia Humanista Fenomenológica Crítica, na Universidade de Fortaleza, em colaboração com o Departamento de Medicina Social de Harvard, o projeto de pesquisa longitudinal (2004 – 2008) A experiência vivida do estigma: um estudo sobre a doença mental e HIV/AIDS no Nordeste do Brasil, que desenvolveu uma análise crítico-cultural da experiência vivida do estigma na doença mental e HIV/AIDS no Nordeste do Brasil (MOREIRA, 2005; MOREIRA e MELO, 2008). A pesquisa teve como base o desenho de uma pesquisa transcultural coordenada pelo Prof. Byron Good (DSM – HARVARD), que investiga a hipótese de que o estigma varia entre doenças, bem como dentro e entre as culturas, e visa futuras comparações transculturais. O estudo descrito neste artigo é um desdobramento daquela pesquisa e pretende contribuir para uma compreensão mais ampla do sofrimento relacionado com o estigma em HIV/AIDS, analisando a illness (doença), ou seja, a experiência de adoecer na perspectiva do próprio doente. Tem como objetivo compreender as implicações, no doente, do "coestigma" como uma das formas de estigma experienciado pela pessoa que convive com o infectado, buscando aprofundar o conhecimento sobre como o sofrimento pelo coestigma, em relação às pessoas que partilham de uma convivência mais íntima com as pessoas infectadas pelo HIV/AIDS, ocasiona um sofrimento adicional ao próprio doente. O termo "coestigma" foi criado pela equipe desta pesquisa a partir da utilização do prefixo "co", que designa a ideia de "juntamente", transmitindo, assim, a ideia de referir-se ao compartilhamento do estigma por pessoas que, de alguma forma, relacionam-se ou convivem com uma pessoa ou grupo estigmatizado. O "coestigma" é definido aqui como uma extensão do estigma sofrido pelo soropositivo aos familiares e/ou às pessoas de sua convivência. Eles podem enfrentar distanciamento de vizinhos, colegas e amigos, quando revelada a existência do familiar soropositivo, gerando um sofrimento adicional ao doente, pela extensão do estigma às pessoas de seu convívio mais íntimo.

 

2 MÉTODO

Foram realizadas entrevistas fenomenológicas com 30 pacientes com diagnóstico de HIV/AIDS, em um hospital público de Fortaleza. As entrevistas foram aplicadas ao longo de aproximadamente dois anos, com um intervalo de dois a quatro meses, visando possibilitar uma compreensão detalhada do curso e da experiência vivida do estigma na perspectiva do indivíduo doente. A pergunta disparadora era: "Como está sendo para você a experiência de ter esta doença"? A partir desta pergunta as entrevistas foram conduzidas de forma semi-estruturada, como uma conversa.

Constituíram-se critérios de inclusão: pessoas com idade entre 16 e 70 anos, residentes no Estado do Ceará, de ambos os sexos, com o diagnóstico (há pelo menos um ano) de soropositividade para o HIV, em tratamento em um hospital público de Fortaleza. Foi obtida uma permissão por escrito de cada sujeito-colaborador, que foi devidamente aprovada pelo Comitê de Ética responsável.

Em decorrência da descontinuidade de tratamento e/ou colaboração de alguns pacientes, o método longitudinal, que previa a realização de seis entrevistas com cada paciente, em alguns casos não foi finalizado, reduzindo de forma significativa o número de entrevistas realizadas. Para fins deste artigo, foram reanalisadas 82 entrevistas realizadas com pacientes com HIV/AIDS, sendo em número de 30 a primeira entrevista, 28 a segunda, 12 a terceira, 6 a quarta, 3 a quinta e 3 a sexta, ao longo de dois anos. A redução significativa no número de sujeitos-colaboradores que responderam sua terceira, quarta, quinta e sexta entrevistas configura, em si, um fenômeno peculiar a este estudo longitudinal, uma vez que a descontinuidade do tratamento desses pacientes em um hospital público de Fortaleza merece estudos mais específicos.

Este artigo enfoca apenas os resultados relativos ao fenômeno emergente "coestigma" e, sobretudo, aquilo que o perpassa; o intuito é aprofundar a compreensão desta, dentre as várias formas de estigma na experiência vivida de pessoas que convivem com HIV/AIDS. Com este fim, as entrevistas realizadas na pesquisa anterior foram reanalisadas segundo o método fenomenológico crítico (MOREIRA, 2004; MOREIRA; BORIS, 2006; MOREIRA, MELO, 2008; MOREIRA; TELLES, 2009), de acordo com os seguintes passos:

1.oReleitura da transcrição literal de cada entrevista, na qual ficou preservada a originalidade das falas dos sujeitos-colaboradores e da entrevistadora, assim como ficaram registrados narrativamente quaisquer outros sons que ocorreram no momento da entrevista.

2.oDivisão do texto narrativo em movimentos, de acordo com o tom deste.

3.oAnálise descritiva do sentido que emerge de cada um dos movimentos, buscando compreender os múltiplos significados da experiência vivida em HIV/AIDS, com foco na compreensão da experiência vivida do estigma.

4.o"Sair dos parênteses", momento em que as pesquisadoras dialogaram com os resultados da pesquisa e com as publicações de outros pesquisadores do mesmo campo de pesquisa. Nesta etapa focalizamos a discussão mais especificamente sobre o coestigma.

 

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Durante a reanálise das entrevistas foram constatados como temas emergentes alguns assuntos que estão implicados na constituição do fenômeno "coestigma" e que nomeiam as divisões do texto a seguir.

Cumpre lembrar que "coestigma" é estigma. É o estigma sofrido pela pessoa que não possui o atributo estigmatizador – neste caso, que não está infectada pelo HIV, tão somente convive com o estigmatizado. Então, as falas tratarão de estigma, só que evidenciando o sofrimento decorrente do estigma experimentado por outra pessoa que não o estigmatizado (o doente), mas que vem a causar sofrimento adicional ao próprio doente.

Como um momento relacionado à vivência do coestigma foi encontrado:

Controle da informação

Ah, porque a mãe, a mãe já teve conversando com a D.C. (vizinha), né? Mas só que ela (D.C.) num tá nem aí pra vida dos outros. (...) A outra vizinha fala da vida de todo mundo. Aí a mãe fica logo com medo dela... contar pros outros.

Não! Meus vizinhos, não! Só alguns, por exemplo: A agente de saúde, ela passou lá em casa pra fazer um cadastro, aí eu num ia negar, né Dra.?! Pra essas pessoas que trabalha na saúde eu num nego não! O posto lá do PSF sabe! O médico, eu trabalhei com ele lá na regional, no hospital do município! (...) Os vizinhos eu não contei não!

Nessas falas evidencia-se a divisão nítida dos grupos para quem falar e para quem não falar. As pessoas afirmam que a revelação do diagnóstico, por elas ou por seus familiares, se dá apenas para aqueles de quem vislumbram receber apoio. Uma estratégia amplamente empregada, segundo Goffman (1988),

pelo sujeito desacreditável, é manusear os riscos, dividindo o mundo em um grande grupo ao qual ele não diz nada e um pequeno grupo ao qual ele diz tudo e sobre o qual, então ele se apóia; ele co-opta para exibir sua máscara precisamente àqueles indivíduos que, em geral, constituiriam o maior perigo (GOFFMAN, 1988, p. 106).

...só sabem que eu tô assim em tratamento, aí às vezes comenta, eu num falo que eu tô com essa, esse problema, Dra.! Eu digo que tô me tratando, venho me tratando de prevenção de câncer... Assim, só falo essas coisas, sabe?! Nunca falo que tô com HIV com as minhas colegas... pros meus vizinhos... assim!

A paciente mente sobre o seu estado clínico com medo do estigma. Diz que tem câncer para desviar a atenção de seus vizinhos sobre suas rotineiras idas ao "médico" (hospital).

Os relatos dos pacientes mostram que a maioria deles oculta seu diagnóstico pelo maior tempo possível para aquelas pessoas que não fazem parte do seu núcleo familiar; alguns confidenciam para poucas pessoas; uma pequena parcela dos entrevistados fala tranquilamente sobre o assunto com muitas pessoas e ainda existem aqueles que escolhem ficar em silêncio, guardando para si o seu quadro clínico.

É importante ressaltar que a possibilidade da experiência do fenômeno "coestigma" acontecer emerge a partir da revelação do diagnóstico por parte da pessoa infectada. É a partir do momento que o diagnóstico se torna público que o sujeito vem a ser estigmatizado, e as pessoas que convivem no seu círculo mais íntimo passam a ser identificadas com a referência ao estigma dele, tornando-se também estigmatizadas, embora de forma diferente.

Visibilidade da doença e revelação

Entrevistadora: (...) Como você faz pra manter o segredo disso?

Entrevistado: 'AIDS' (nesse caso a paciente estava se referindo ao HIV) não tá escrito na aparência, né?!

A visibilidade é um aspecto de grande relevância para a estigmatização, é o processo que concretiza a pessoa como desacreditado e desacreditável, tal como definido por Goffman (1988).

No que se refere ao HIV/AIDS, as categorias visibilidade e controle da informação são aspectos que estão intimamente relacionados com os processos clínicos dessa infecção, pois a doença sintomática só é perceptível após a grande queda da imunidade do organismo. Assim, a variabilidade temporal na evolução clínica da infecção é um fator que possibilita um maior conforto e êxito na busca de se manter o segredo do seu próprio quadro clínico.

Formas de "coestigma"

Na reanálise das entrevistas ficou evidente que os pacientes-colaboradores sentem receio de que as pessoas que convivem com eles compartilhem do estigma a eles dirigido, desencadeando, assim, o desejo de proteger seus familiares, amigos e outras pessoas de sua convivência de também sofrerem por estigma. O coestigma se dá, então, de diferentes formas:

- Diagnóstico e "coestigma"

... Porque eu sei que se isso vazar (o diagnóstico) e as pessoas ficarem falando, a minha filha vai sofrer. O meu filho que é um bebê, daqui a pouco vai crescer, vai ter amizade, vai sofrer também, né? Porque as pessoas... Têm muitas pessoas preconceituosas.

A paciente prefere não revelar o diagnóstico com receio de que seus filhos venham a ser estigmatizados – "coestigma" - e sofrer discriminação.

Barbieri et al. (2005) assinalam que o diagnóstico positivo de HIV modifica a vida tanto do doente quanto de seus familiares, e eventualmente dos amigos próximos. E ressaltam que a partir da revelação do diagnóstico, a estrutura familiar será testada, desencadeando atitudes de afastamento e/ou aproximação por parte dos parentes.

- Receio do "coestigma"

...tem uma... uma outra coisa. Ela... ela tem medo... Eu acho que quem tem mais medo que alguém chegue a saber é ela, sabe? Por causa das amizades... tem um ciclo grande... os amigos dela são tudo juízes, promotores e essas coisas assim. Eu acho que ela tem medo (breve silêncio)... por causa disso isolarem ela... Isso é besteira... mas eu tenho certeza que ela tem medo disso. ...eu procuro não pensar muito nisso, porque se eu for... ficar... é... com aquela neura nessa história aí eu prefiro não pensar assim... ... num, num é por mim não. É pelas minhas filhas. Porque a do meio ela diz assim: 'mãe, não fica comentando muito não'. Ela fala assim. Não sei se é porque elas têm medo assim, do esposo delas saber...

Estas falas deixam claro que familiares do indivíduo infectado sentem que sofrerão em decorrência do estigma dirigido àquela pessoa se o diagnóstico sair do âmbito familiar. Ou seja, de acordo com os relatos anteriores, antes mesmo do atributo que estigmatiza ser reconhecido pelo outro já existe sofrimento perante a possibilidade de compartilhar o estigma que "não é próprio" da sua condição. Fica evidente que o "coestigma" é fonte de sofrimento para aqueles que não possuem o atributo estigmatizador.

- Receio do "coestigma" e busca por apoio

... Não só eu... porque a minha esposa não queria que eu contasse pra ninguém. A minha sogra... ela contou, sem eu saber ela contou pra minha sogra...

Ainda nesse contexto, alguns familiares expressam de maneira clara e objetiva o desejo de manutenção do segredo referente ao quadro clínico da pessoa com quem convivem, e que está infectada pelo HIV. Configurando uma exceção, este caso, que mostra que a pessoa que sofre pela iminência de vir a compartilhar o estigma em HIV-AIDS, parece buscar apoio em pessoa de sua confiança, no caso, sua mãe.

- O peso do "coestigma"

Não é por mim! Porque por mim qualquer pessoa pode saber! Sou capaz de dizer a qualquer uma pessoa! Mas a minha filha, as minhas filhas não quer que eu diga muito, sabe?! São elas! Não quer que eu fale muito assim... Diga pra todo mundo. Especialmente a que mora comigo! A casada não! A que mora comigo, ela fica mais assim... Mamãe não fique comentando pra todo mundo não! Minha filha e o que é que tem? Eu acho que não vale nada!

Em determinados casos o sofrimento causado pelo receio de ser estigmatizado é maior entre aqueles que experimentariam o "coestigma".

- Extensão do atributo estigmatizante, ou "coestigma"

Mas o que mais me magoava, mais me magoa, é quando falam da minha filha. Porque pelo fato de eu ter as pessoas não entendem que a minha filha tá bem, que a minha filha não tem, não pegou. Não, eles pensam que minha filha tem. Então eu fico triste por isso, porque eles falam com discriminação da minha filha...

Na fala dessa entrevistada constata-se a concretização do estigma. E mais que isso, a discriminação. Verifica-se que as pessoas que convivem com eles, embora sejam estigmatizadas de forma diferenciada e menos intensa, levam na sua experiência vivida um grande sentimento de tristeza, sofrimento e discriminação. O sofrimento dos familiares ou pessoas próximas ao paciente também é motivo de sofrimento para ele. A ignorância e os conceitos às vezes falsos sobre como se contrai o HIV/AIDS propiciam a efetivação do estigma e o ato discriminatório.

- Discriminação em decorrência de "coestigma"

... E isso me magoa muito, porque eles tinham o maior carinho pela minha filha, ela frequentava a casa deles, brincavam com a minha filha, gostavam muito dela, depois disso não quiseram nem saber. Me proibiram de entrar na casa deles e de ter contato com o pessoal lá, os netos, sobrinhos deles. Então eu fiquei muito triste com isso. Mexeu com a minha filha, pronto, pra mim é demais.

Evidencia-se nesta fala o "coestigma" na experiência vivida em HIV/AIDS, materializando-se na forma de acusação, rejeição social e exclusão, efetivando o afastamento e o abandono nas relações. Para esse sujeito-colaborador o "coestigma" é delineado de forma concreta, fazendo com que o próprio paciente, seus familiares, amigos e pessoas próximas sofram discriminação em decorrência do estigma direcionado à pessoa infectada.

 

4 CONCLUSÃO

Os resultados deste estudo mostram a existência do "coestigma" nas falas dos pacientes entrevistados como uma forma marcante de estigma. Pode-se concluir que, depois da desinformação, o estigma é o fenômeno que mais realiza estragos indiretos, tanto ao soropositivo como às pessoas de seu convívio. E os limites circunscritos pelo estigma são mais amplos do que parecem à primeira vista, pois não afetam apenas a vida das pessoas que carregam consigo o estigma, mas interferem também na vida de seus próximos, na forma de "coestigma". Fica evidente que o compartilhamento do estigma é delineado de forma simbólica ou concreta, ocorrendo acusação, rejeição e limitação espacial, fazendo com que o próprio paciente, seus familiares, amigos e pessoas próximas sofram.

Esta pesquisa expõe um sofrimento que passa despercebido: o do familiar do estigmatizado, que por sua vez ocasiona sofrimento adicional ao próprio doente. Todos os holofotes estão sobre o doente. A doença em si maltrata. Os grupos de ajuda, as associações, as palestras são em si um esforço para fornecer informação e apoio ao doente no nosso Estado. No entanto o seu companheiro, seu filho ou aquele que convive no âmbito da sua intimidade sofre "em silêncio". Muitas vezes, vítimas do autoestigma.

O tema utilizado neste artigo para nomear este fenômeno - "coestigma" - se afina com as preocupações do momento refletidas nas políticas da UNAIDS, que luta para erradicar o estigma, que além de causar sofrimento à pessoa com diagnóstico de soropositividade para o HIV e a seus familiares, muitas vezes colabora para impedir o tratamento. Esta pesquisa, visando aprender sobre a HIV/AIDS na perspectiva do doente, pretende contribuir para ampliar o conhecimento relacionado ao estigma que vive a pessoa com diagnóstico de HIV/AIDS, além de exaltar a relevância de uma contínua reflexão que abarque questões cruciais sobre o contexto psicossocial das pessoas que "convivem" com o HIV/AIDS e dos reflexos causados por esta convivência.

Pelos resultados desta pesquisa constata-se a necessidade da elaboração de políticas sociais públicas que incluam os familiares das pessoas que vivem com HIV. Propõe-se que psicólogos, assistentes sociais e secretarias de saúde possam vir a desenvolver programas de apoio a essas pessoas, a exemplo do ALANON, braço dos Alcoólicos Anônimos.

Para o doente, o fato de que as pessoas de seu convívio venham a sentir-se ajudadas e apoiadas pode estabelecer a diferença entre continuar com a família ou separar-se dela; e é de interesse do poder público que a família cuide de seu doente, em vez de deixar todo o trabalho e ônus para a saúde pública, que, por sua vez, jamais poderá substituir o acolhimento familiar necessitado pelo doente.

 

 

REFERÊNCIAS

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Artigo recebido em: 5/3/2010
Aprovado para publicação em: 9/8/2010

 

 

* Universidade de Fortaleza. Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP), Pós-Doutora em Antropologia Médica (DSM-HARVARD). Av. Washington Soares, 1321- Edson Queiroz – (85) 3477- 3219 - 60811-341 – Fortaleza,CE. E-mails: virginiamoreira@unifor.br e virginia_moreira@hms.harvard.edu
** Universidade de Fortaleza. Psicóloga. Av. Washington Soares, 1321- Edson Queiroz – (85) 3477- 3219 - 60811-341 – Fortaleza,CE. E-mail: annemeneses@yahoo.com
*** Universidade de Fortaleza. Psicóloga. Av. Washington Soares, 1321- Edson Queiroz – (85) 3477- 3219 - 60811-341 – Fortaleza,CE. E-mail: deborabandrade@gmail.com
**** Universidade de Fortaleza. Graduanda em Psicologia (I. C. FUNCAP). Av. Washington Soares, 1321- Edson Queiroz – (85) 3477- 3219 - 60811-341 – Fortaleza,CE. E-mail: mcatarina_psi@yahoo.com.br

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