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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.8 no.15 Barbacena dez. 2010

 

ARTIGOS

 

O problema da constituição do corpo na psicose: o testemunho de Antonin Artaud

 

The problem of the constitution of the body in psychosis: Antonin Artaud's testimony

 

 

Tulíola Almeida de Souza Lima

Psicóloga, Mestre em Estudos Psicanalíticos pelo Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Endereço para correpondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho iremos tratar sobre a constituição do corpo e sua relação com o psiquismo. Seguiremos a perspectiva de Lacan, destacando a relação do sujeito com o elemento que o permite significar sua relação com o corpo próprio e também posicionar-se de determinada maneira em um discurso social. Em seguida analisaremos algumas produções de Antonin Artaud, pelas quais podemos recolher seu testemunho sobre a dificuldade de lidar com seu corpo, que foi agravada por causa de sua psicose. Por fim, partiremos das indicações da teoria lacaniana no que concerne à psicose, para tentar entender a necessidade que Artaud teve de estabelecer para si um novo arranjo de seu corpo e, ao mesmo tempo, um novo pacto com a linguagem.

Palavras-chave: Psicose; corpo; Artaud; psicanálise; testemunho.


ABSTRACT

This work deals with the constitution of the body and its relation with psychism. The analysis follows Lacan's perspective, stressing the relation of the subject with the element which allows the signification of its relation with its own body and also how the subject takes up a determined position from a social discourse. It also analyzes part of Antonin Artaud's production by which it is possible to collect his testimony on the difficulty of dealing with his body, which was aggravated due to his psychosis. Finally, an attempt is made to understand Artaud's need of establishing a new arrangement of his own body for himself and, at the same time, a new pact with language, through indications from Lacan's theory regarding psychosis.

Keywords: Psychosis; body; Artaud; psychoanalysis; testimony.


 

Na obra de Lacan, temos momentos variados nos quais ele tratou da constituição do corpo e sua relação com a função do registro imaginário no ser humano: há o texto clássico sobre o estádio do espelho, apresentado em 1949; há indicações nos seminários sobre as formações do inconsciente e sobre a transferência. Esses são os exemplos escolhidos, entre outras produções, que serão examinados mais detidamente ao longo deste trabalho.

Destaca-se o modo como Lacan enfatiza que a imagem do corpo próprio, tal como é apreendida na primeira infância, serve como antecipação de uma completude inexistente e, assim, recobre uma falta essencial, uma falha do organismo humano. Ou seja: o bebê, organismo prematuro, com as ligações neuronais ainda em fase de constituição, se anima ao se reconhecer como um ser completo, o que só é possível a partir do olhar de um outro que sustenta essa completude, e que o acompanha nessa miragem. Lacan afirma que o estádio do espelho pode ser pensado, então, como uma identificação, no sentido de uma "transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem" (LACAN, 1998, p. 97). Nesse momento, o ser não está ainda constituído enquanto sujeito de linguagem; ele passará a habitá-la só posteriormente. O corpo é construído primeiramente do lado externo do sujeito, e só depois ele se apodera da imagem, reconhecendo-a como correspondente ao seu próprio corpo. Este tem a ver, portanto, com a forma e com a representação de si.

No seminário sobre a transferência, realizado entre 1960 e 1961, Lacan retoma o poder sedutor da imagem, apresentando o esquema óptico. Nesse contexto, tal esquema contribui para tratar do narcisismo e de seus produtos - o eu ideal e o ideal do eu -, pois ilustra como o Outro interfere na relação especular. Enquanto o eu ideal se assemelha à função de uma identificação imaginária estabelecida entre o sujeito e o Outro, o ideal do eu associa-se à identificação pelo registro simbólico, cujos traços significantes passam a ter uma função específica na estruturação psíquica do sujeito. Assim, a imagem reconhecida como própria coloca-se como imagem ideal, pelo fato de esconder as fissuras do sujeito, como uma referência de algo que subsiste por si. A ilusão apresentada pelo vaso invertido, no esquema, metaforiza o que Lacan designa i(a), eu ideal, que é o suporte da função da imagem especular. Segundo Lacan,

Esta é a imagem especular enquanto tal, carregada do tom, do acento especial, do poder de fascinação, do investimento próprio que é o seu no registro libidinal, bem destacado por Freud sob o termo investimento narcísico. A função i(a) é a função central do investimento narcísico. (LACAN, 1992, p. 360).

A imagem real que o sujeito vê no Outro é formada porque ele está em outro lugar, que não se confunde com o lugar exato ocupado pelo objeto refletido. A miragem ocorre precisamente porque o lugar de i(a) não está vinculado ao que se reflete em i'(a). O autor define, portanto, que o fundamento da imagem narcísica constitui a substância do eu ideal, i(a). O esquema evoca a relação entre o ideal do eu, o eu ideal e a figura do Outro, este relacionado, por sua vez, ao objeto do desejo. Com esses três termos, coloca-se em questão a encarnação imaginária do sujeito (LACAN, 1992). Ao introduzir o objeto do desejo, fica evidenciada a relação existente entre a identificação do sujeito e o que ele supõe existir no outro; ou, ainda, que para assumir uma imagem para si, é necessário um pacto determinado na relação com o Outro. Esse ponto nos dá indício da proximidade entre o amor e a identificação, já que nesta há o envolvimento de uma outra função que um objeto determinado assume, encarnado como o objeto de desejo, situado no outro com quem nos identificamos.

Atemo-nos aqui ao fato de que, nesse momento de sua elaboração, Lacan propõe que consideremos o Outro enquanto um espelho vivo, de maneira que, quando o sujeito olha para ele, é ele próprio quem se vê no lugar do sujeito - logo, no lugar que este ocupa no Outro. Este é, desse modo, o seu próprio olhar, cuja concepção está ligada ao esquema óptico e ilustra a inconsistência do Outro, no que se relaciona à identificação imaginária.

Podemos ainda considerar que o investimento libidinal direcionado ao corpo acaba por eternizar o objeto de desejo como uma forma, algo que o fixa para sempre no imaginário (LACAN, 1992). Na experiência humana, o corpo, assim como a imagem, tem a característica de a um só tempo mostrar e esconder algo implícito, por refletir algo que só está presente virtualmente.

Articulamos, assim, a imagem da forma narcísica do corpo ao significante do desejo. No seminário sobre as formações do inconsciente, Lacan define a função do falo, que, enquanto um significante, é aquele que marca o que o Outro deseja - este Outro é também marcado, em sua economia, pelo significante (LACAN, 1999). Na constituição do sujeito, no campo da neurose, há um momento de clivagem em torno da ação do significante, posto que, uma vez operante a regulação simbólica, é possível o sujeito mesmo perceber que há algo para além daquilo que ele demanda ao Outro, além daquilo que lhe é demandado. O sujeito assimila uma posição dialética.

Lacan, ao estabelecer algo que sempre resta, além do que pode ser satisfeito por intermédio do significante, localiza o resíduo irredutível ligado ao mesmo: ele afirma que a referida clivagem tem seu signo próprio, "mas esse signo vem a se identificar com essa marca no significado. É aí que o sujeito tem de encontrar seu desejo" (LACAN, 1999, p. 379). As consequências psíquicas disso relacionam-se ao reconhecimento de que, se o desejo do Outro é barrado, também o é o do sujeito, o que implica em ser a castração operante em sua economia psíquica; o desejo marcado pela castração revela uma certa relação com o significante falo.

Podemos, então, atribuir a essa incidência de uma regulação na relação especular o caráter de um "curto-circuito narcísico" - como afirma ainda o autor - no qual surge a possibilidade de que ocorra uma abertura na relação. É precisamente a intervenção simbólica que irá interromper o desdobramento imaginário infinito. Essa hipótese relaciona-se a outro aspecto, concernente ao gozo: em um primeiro momento, este seria livre, mas depois, uma vez construída a imagem do corpo, ele seria vinculado a um órgão preciso, com a função de regulação que mencionamos. O falo é pensado por Lacan como um órgão fora do corpo, representando, assim, a função essencial que permite diferenciar um objeto privilegiado na função geral do objeto do desejo, sendo ele o que permite a instauração de uma série organizada de objetos ligados à fantasia de um sujeito.

Notamos aqui a função do significante fálico na constituição psíquica. No seminário sobre a transferência, Lacan afirma que a relação do corpo próprio com o falo tem um caráter central:

Ela condiciona a relação com os objetos mais primitivos. Seu caráter de objeto separável, possível de se perder, sua colocação em função de objeto perdido, todas essas características não se apresentariam da mesma maneira se não houvesse, no centro, o objeto fálico, emergindo como de um plano à frente da imagem do corpo. (LACAN, 1992, p. 369).

Neste ponto, nota-se a função de ordenação, função centralizadora, da referência fálica, a qual será utilizada adiante para comentarmos os efeitos sobre o corpo nos casos em que presumimos que ela se ausentou. Em outras palavras, quando formos tratar da psicose, partiremos do princípio de que, quando essa referência não é operante, a relação com o corpo torna-se ainda mais problemática.

No mesmo seminário citado, Lacan retoma a castração como um conflito propriamente imaginário, decorrente da "relação inominada, porque inominável, porque indizível do sujeito com o significante puro do desejo", relação esta que se projeta "sobre o órgão localizável, preciso, situável em alguma parte do conjunto do edifício corporal" (LACAN, 1992, p. 242). O conflito consiste, deste modo, em o sujeito se ver como privado ou não desse órgão.

As referências de Lacan abordadas até aqui se voltaram para o registro imaginário, o primeiro nessa nossa investigação sobre a relação com o corpo. Mas temos que considerar, em segundo lugar, o corpo como símbolo, uma presença que representa uma ausência - relação simbólica que demonstra a incidência da linguagem.

Quando Miller comenta as formulações de Lacan sobre a imagem do corpo, ele nos indica que "não se pode compreender o privilégio específico dessa imagem, sua importância para os seres humanos, sem a suposição de que ela esconda uma falta essencial" (MILLER, 2008, p. 19). Em sua leitura retroativa da obra de Lacan, notadamente no que concerne ao estádio do espelho, esse autor considera a castração como aquilo que delimita a falta primordial do ser no momento do reconhecimento da imagem. Trata-se de uma lógica retroativa, o que permite a Miller propor a fórmula i(a)/(-): para ele, "i(a) é a transcrição lacaniana da imagem do outro, mas abarca também a imagem do corpo próprio em sua distância" (MILLER, 2008, p. 19).

Deste modo, podemos pensar, de acordo com o autor, que o Outro personifica-se na imagem do corpo próprio e que caberá ao sujeito produzir uma significação para essa experiência. Dado o caráter vacilante da significação imaginária, será necessário, portanto, uma intervenção de outra ordem que a permita fixar-se em algum ponto.

Desde a formulação de Freud sobre a castração, já se considerava a importância da imagem do corpo do outro: para o pequeno Hans, por exemplo, a percepção da falta do pênis no corpo da mãe foi uma constatação que lhe fez produzir uma série de elaborações e sintomas, que variavam entre negar a falta - no caso do corpo de sua pequena irmã - e temer perder o seu próprio órgão (FREUD, 1996 [1909]). Esse caso nos permite enfatizar a localização da castração no campo do Outro, bem como a importância da percepção da imagem na constituição psíquica.

Lacan, por sua vez, indicou que a função da imagem é relacionar o organismo com a realidade; é a partir daí que este cria para si uma identificação, após superar o despedaçamento real de seu corpo, até uma "totalidade ortopédica" (LACAN, 1998, p. 100) e, assim, a experiência do espelho irá marcar todo o desenvolvimento posterior do indivíduo.

Tendo assim exposto sobre a relação entre o registro imaginário e o simbólico no que se refere à imagem do corpo, resta-nos, enfim, traçar algumas considerações sobre o que seria o corpo no registro do real. Aqui podemos aproximar o corpo sem forma definida - condição inicial de qualquer sujeito - com a ideia freudiana de corpo libidinal, ou seja, algo do organismo que não representa a forma corporal, mas é, todavia, investido. A pulsão, cujo caráter é o de sempre se satisfazer, independentemente do destino (FREUD, 1996 [1915]), aproxima-se do real; e podemos, acrescentando à leitura de Freud os registros delimitados por Lacan, afirmar que a satisfação pulsional ocorre sem respeitar a forma simbólica ou a imaginária.

A pulsão é um elemento não eliminável da cultura e, ao satisfazer-se, ela não raramente destrói um vínculo social. O registro real relaciona-se ao que é mais abstrato na experiência individual, e é por isso que a noção lacaniana do objeto a representa a tentativa de localizar algo que aparece sem forma, ou aparece de uma forma extremamente peculiar, que afeta o indivíduo de maneiras diversas.

Assim, a noção lacaniana do gozo, por sua vez, serve-nos para pensar naquilo que está em jogo no convívio social, enraizado no fato de habitarmos um corpo - relação por isso difícil de ser regulada, mesmo em sujeitos ordenados falicamente, que têm certa estabilidade por basearem-se em uma referência simbólica específica. O objeto a é localizado em uma zona de interseção entre o "corpo em pedaços", conforme a expressão de Lacan no contexto do estádio do espelho (LACAN, 1998), e o campo do Outro, zona esta de fronteiras pouco definidas, onde não sabemos muito bem o que é nosso e o que nos é alheio.

Miller, ao retomar a noção de objeto a na lógica da castração, afirma que a imagem não se sustenta sem um investimento libidinal, o qual deve ser sempre renovado. Mas quando ele não o é, ocorrem perturbações diversas no nível da percepção das imagens, como observamos com frequência em casos de psicóticos. Por isso, podemos definir que "a correlação entre a e (-Φ) [símbolo da castração] implica toda a metáfora paterna, a regularização do gozo do lado da castração" (MILLER, 2008, p. 21). Acrescenta-se a isso que a imagem só pode se sustentar na ação do Nome-do-Pai, suporte este que permite localizar cada um a si mesmo e o semelhante, em seu devido lugar.

Vejamos o caso apresentado por Réginald Blanchet, o paciente Luc, para quem os fenômenos alucinatórios vividos indicam um gozo inefável, angustiante, impossível de o sujeito localizar (BLANCHET, 2000). Neste caso, a sexualidade do sujeito é vivida como um impasse; mais do que isso, ele testemunha um regime de gozo não ordenado falicamente. O autor conclui que a dificuldade maior do paciente é decorrente do fato de sua identificação fundar-se essencialmente no imaginário, sendo que o sujeito é seu próprio corpo. O corpo não corresponde à imagem ideal, o que implica em uma outra forma de investimento libidinal. Para esse sujeito, ter um corpo falho ou ser falho é equivalente, e é isso o que produz sua angústia - e, a partir dela, ocorre sua procura por um psicanalista. A angústia, aqui, está relacionada ao "desagenciamento entre os dois registros do imaginário (a imagem do corpo) e do simbólico (identificação significante)1" (BLANCHET, 2000, p. 89). A tese que pode ser construída a partir deste caso é de que a satisfação pulsional que ocorre fora do princípio de limitação fálica faz com que o sujeito seja reduzido ao seu corpo, ao invés de possuir um.

Podemos mencionar, de passagem, que na teorização de Lacan a respeito do gozo distinguem-se o gozo fálico, que é possível de se localizar, por ter uma referência bem definida, e o gozo do corpo, não situável, que acomete o sujeito sem nenhuma regulação simbólica. Recorremos a Miller, mais uma vez, que nos esclarece sobre essa distinção: o corpo entregue ao gozo em sua totalidade separa-se da concentração libidinal sobre um órgão específico (MILLER, 2008).

Se, na teorização freudiana, toda e qualquer satisfação pulsional acontece no corpo, na elaboração de Lacan sobre o gozo, acrescenta-se que o corpo pode ser pensado como instrumento de satisfação, com a característica fundamental de o gozo estar tanto no nível do prazer quanto do sofrimento. Na psicose, porém, o lugar do Outro não se apresenta com a subtração do gozo, sendo este, por isso mesmo, percebido pelo sujeito como um gozo louco (RABINOVITCH, 2001), desordenado. A hipótese que adotamos a respeito do corpo na psicose é a de que ele permanece sendo objeto do gozo do Outro, restando ao sujeito confundir-se com seu próprio corpo, ao invés de considerá-lo como algo que ele possui.

O tema da identidade é colocado em questão na nossa relação com o corpo, pois a experiência cotidiana nos revela que não nos identificamos, em geral, com nossa própria imagem. Pensando na identidade como a função que permite saber se alguma coisa é igual a ela mesma, podemos estabelecer uma relação direta entre a linguagem, o que é da ordem do símbolo, e o corpo. Este é um exemplo da precariedade de designação do aparelho de linguagem. Lacan afirma que um homem que se interroga sobre sua identidade "tem que se situar, não no interior de um recipiente limitado que seria seu corpo, mas no real total e bruto com o qual ele tem de lidar" (LACAN, 1992, p. 81) - o que se nos impõe como uma regra, da qual dificilmente nos esquivamos.

De fato, podemos aproximar o estatuto da realidade, para Freud, como algo que foi depurado de seus excessos e, para Lacan, como uma espécie de composição que vela o real. Com isso, diferenciamos o real da realidade, tal como estipulado por Lacan, para podermos abordar o problema da realidade na psicose, onde a relação com o corpo se mostra como uma comprovação do desconforto de habitar o corpo e manter um pacto de linguagem compartilhado socialmente. Voltaremos a isso mais adiante.

Para constituir um corpo, é preciso basear-se na conexão entre a presença e a ausência de um determinado elemento, referenciar-se simbolicamente ao Nome-do-Pai; no caso das psicoses, nas quais tal conexão é inoperante, essa constituição torna-se ainda mais problemática. A relação do esquizofrênico com o corpo foi mencionada por Lacan2, por ela demonstrar claramente o enigma da relação com o corpo e com os órgãos, sendo um exemplo da necessidade de recorrer a outros modos simbólicos de se colocar nessa relação, que não seja por meio de um discurso estabelecido. O esquizofrênico não recorre a um discurso típico e, por isso, tem que inventar um modo de reunificar e sustentar seu corpo (MILLER, 2003).

No entanto, embora a esquizofrenia seja um tipo de psicose em que essa relação problemática se evidencia, gostaríamos de introduzir aqui o caso específico de Antonin Artaud, artista francês falecido em 1948, cujo diagnóstico de psicose não deixa dúvida, embora não saibamos precisar se era esquizofrênico. Ele produziu uma série de obras que indicam a mesma relação problemática e chegou a mencionar seu projeto de construir um "corpo sem órgãos", testemunhando, assim, sua experiência. Talvez, a partir desse novo corpo, ele poderia se estabilizar - o que, a nosso ver, equivaleria a se estabilizar na relação com a linguagem.

O lugar de onde Artaud fala revela como ele viveu de maneira contundente um problema universal. Iremos ver como isso foi representado por ele, a partir não só de alguns de seus trabalhos escritos, como também em outros modos de expressão no campo das artes. Comecemos a partir da carta deixada por Artaud, considerada uma espécie de despedida sua:

Quem sou eu?/ De onde venho?/ Sou Antonin Artaud/ e basta eu dizê-lo/ como só eu o sei dizer/ e imediatamente/ verão meu corpo atual/ voar em pedaços/ e se juntar/ sob dez mil aspectos/ notórios/ um novo corpo/ no qual nunca mais/ poderão/ me esquecer. (WILLER, 1983, p. 146).

Em um de seus poemas, recolhemos o seguinte trecho:

Entre o corpo e o corpo não há nada,/ Nada além de mim./ Esse não é um estado,/ não é um objeto,/ não é um espírito,/ não é um fato,/ menos ainda o vazio de um ser,/ absolutamente nada de um espírito, nem do espírito,/ nem um corpo,/ é o intransplantável eu./ Mas um eu, /eu não o tenho./ Eu não tenho eu, pois só há eu e ninguém,/ sem reencontro possível com o outro,/ esse que eu sou é sem diferenciação nem oposição possível,/ é esta intrusão absoluta de meu corpo, em todo lugar. (ARTAUD, 2006, p. 238; grifo do autor).

Nestes dois exemplos, vemos como ele tentou escrever sobre esse corpo tão estranho, sob forma de poesia. Por outro lado, consideramos que a criação de Artaud mais singular foi o chamado Teatro da Crueldade, que não era para ser convencional como o teatro, não era para ser meramente uma manifestação artística. O teatro, tal como Artaud o queria, deveria ser um teatro de sangue, "em que cada representação terá feito algo corporalmente para aqueles que representam e para aqueles que vêm ver os outros representarem" (carta de Artaud, apud WILLER, 1983, p. 146).

Bedere, por sua vez, destaca o seguinte trecho de uma carta de Artaud: "O teatro é um transbordar passional, uma aterradora transferência de forças, do corpo, ao corpo. Esta transferência não pode se reproduzir duas vezes" (carta de Artaud, apud BEDERE, 2007, p. 10). Esse mesmo autor, ao analisar a obra de Artaud como um todo, fazendo um percurso em sua produção antes e depois dos surtos e internações, afirma que há nele uma tentativa sôfrega de reencontrar o corpo perdido, por meio do uso da linguagem, e também reencontrar suas próprias palavras. A representação proposta levaria a um afeto que incidisse também sobre o corpo: o teatro serviria, então, para relacionar a linguagem e o corpo, beneficiando-se da materialidade da primeira: "Essa linguagem objetiva e concreta do teatro serve para cercar, encerrar órgãos. Ela circula na sensibilidade" (ARTAUD, 1999 [1938], p. 103). Notemos que esta não era possível de ser alcançada pela representação comum, sendo, por isso, necessária a invenção de uma nova forma de representação. A função do teatro de Artaud seria estabelecer uma nova regra de ligação entre certas formas de linguagem - de uso das palavras - e certas formas de sensibilidade.

É possível pensarmos que, uma vez não tendo sucesso em sua escrita por sua produção poética, Artaud recorreu ao teatro para desenvolver algo próprio, pelo qual pudesse expor suas ideias. No contexto cultural francês, influenciado pelo movimento vanguardista da época - o movimento de desconstrução artística ligado também ao teatro - houve espaço para as ideias inéditas apresentadas por ele. É curioso notar, deste modo, como essa saída parecia permitir a Artaud um apaziguamento de sua relação com o corpo e, ao mesmo tempo, uma outra relação com a linguagem.

Na sua intervenção transmitida por rádio chamada "Para acabar com o julgamento de Deus", em 1947, Artaud tentou significar a crueldade como "extirpar pelo sangue e através do sangue a deus, o acidente bestial da animalidade humana inconsciente, onde quer que se encontre" (apud WILLER, 1983, p. 160). Talvez não seja ousado afirmar que, quando Artaud menciona Deus, na psicanálise podemos interpretar que se trata da sua relação com o Outro. Afinal, de acordo com a elaboração de Lacan acerca do estádio do espelho, aprendemos a reconhecer a mãe como a primeira encarnação do Outro, em relação à qual a criança é levada a se posicionar como alienada em seu desejo e, em um segundo momento, como separada desse lugar em que era colocada pela mãe.

No entanto, sendo a fase do espelho muito anterior, na lógica dessa relação com o Outro, o reconhecimento do rosto da mãe e daquilo para além do que ela afirma acaba compondo um protótipo da relação mais fundamental do sujeito com essa alteridade. Antonin Artaud, no movimento de acabar com o julgamento de Deus, poderia, assim, se posicionar no mundo de maneira singular, tentando deslocar o lugar ocupado por ele em relação ao Outro.

Nas suas ideias delirantes, ele menciona a periculosidade de deus3 como algo inserido no corpo, que, no seu caso, afetava a consciência e, por isso, poderia parecer, ao olhar alheio, que ele sofria de alucinações. Artaud afirma que "O homem é enfermo porque é mal construído" (apud WILLER, 1983, p. 161), e que deus, juntamente com seus órgãos, o corrói. Ao final do texto, fica mais claro o que poderia ser uma possibilidade de Artaud estabilizar-se, se fosse possível um novo estatuto de seu corpo - o que iria, ao mesmo, tempo conferir-lhe maior liberdade:

Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força/ mas não existe coisa mais inútil que um órgão./ Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,/ então o terão libertado dos seus automatismos/ e devolvido sua verdadeira liberdade./ Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas/ como no delírio dos bailes populares/ e esse avesso será/ seu verdadeiro lugar. (apud WILLER, 1983, p. 161-162).

Outro aspecto a ser notado é que aquilo que Artaud chamava de órgãos pode não ser exatamente o que chamamos dessa forma. É essa impressão que temos, por exemplo, no texto publicado postumamente, intitulado "Interjections", em que ele enumera vários elementos da cultura - entre partes do corpo (como língua, glote etc.), glossolalias, conceitos abstratos - para dizer da constituição de um corpo, mas os quais não serviriam para constituir o seu próprio (ARTAUD, 2006). Nesse sentido, podemos ainda observar, em um de seus desenhos, realizado em abril de 1946, como ele se representa (Figura 1).

 

 

O desenho foi feito e entregue ao Dr. J. Latrémolière para o agradecer pelos eletrochoques, juntamente com um comentário, no qual Artaud trata da sua relação com a dor: esta aparece como algo externo, sempre diante do homem. Nesse desenho, vemos como ele tinha a imagem de seu corpo: algo construído como uma montagem, uma junção de vários elementos, como uma bricolagem. Assim, adotamos como hipótese, neste trabalho, de que é esse efeito que se produz quando um sujeito não tem a sua imagem no espelho para sustentar a imagem do próprio corpo.

O caso de Artaud, se assim pudermos o denominar, para tentar apreender em quê a sua experiência pode ensinar à Psicanálise, nos colocaria um problema de definição quanto ao tipo de sua psicose. A princípio, se fôssemos priorizar sua relação com o corpo e algumas de suas alucinações, descritas por ele mesmo - embora não definidas enquanto tal -, poderíamos aproximá-lo da esquizofrenia. No entanto, sua produção no campo do teatro parece tentar circunscrever sua relação com o Outro, conforme mencionamos anteriormente. Estabelecer uma nova forma de teatro, para ser apresentado com o intuito que ele tinha, teria como efeito um impacto preciso na relação social. Além disso, seu delírio por vezes pareceu assumir, durante suas crises, um caráter persecutório (BEDERE, 2007). Nesse sentido, não seria mais adequado pensá-lo como um caso de paranóia? Embora não nos seja possível definir o tipo de sua psicose, fica indicada, de todo modo, a sua dificuldade de inserção em um discurso.

A tentativa de se construir um corpo fora da regulação fálica mostra-se, portanto, como uma experiência angustiante, em que, muitas vezes, delírios apresentam-se como modos de atribuição de sentido, por meio da localização do gozo em uma figura exterior ao sujeito, como no caso de um Outro perseguidor. No caso atendido por Blanchet, citado anteriormente, as alucinações apresentavam-se juntamente com a angústia; esse autor conclui que o sujeito, preso nessa angústia provocada pelo estatuto de seu corpo, tentava o impossível onde ele era chamado a se sustentar (BLANCHET, 2000).

Na teorização de Lacan sobre a psicose, ele relaciona os objetos voz e olhar com a alucinação auditiva e visual, experiência na qual eles se apóiam. Presumimos que não há a extração do objeto a na psicose e, por isso, "nessa experiência não há deslibidinalização da realidade (...). O psicótico experimenta a si mesmo e dolorosamente o olhar que vem do mundo, mas são 'as coisas que o olham', alguma coisa 'se' mostra" (MILLER, 2009, p. 23). A extração do objeto a é o modo como Lacan trata da exigência de diminuição do investimento libidinal na realidade: para esta ser percebida objetivamente, é necessário que seja esvaziada do gozo, o qual se localiza precisamente na relação com o objeto citado.

Poderíamos com isso especular que a dor descrita e retratada por Artaud é decorrente dessa experiência de ser olhado pelo mundo, uma vez que ele não teve subtraído de si o objeto que teria localizado e concentrado o gozo, separando-o do sujeito. Acompanhando o raciocínio de Miller, podemos afirmar que o imaginário está envolvido na captura do gozo, estando este condicionado à relação e ao modo de interação que se estabelece entre os três registros - real, imaginário e simbólico - no caso de cada sujeito.

A respeito das invenções psicóticas, o autor afirma que, em casos de paranoia, as invenções se distinguem por incidirem basicamente no laço social, ao contrário das invenções esquizofrênicas (MILLER, 2003). O problema central para o paranoico seria não a relação com o corpo, mas a relação com o Outro. O paranoico é levado, portanto, a inventar uma nova relação com o Outro. Em todo caso, na particularidade do caso, importa-nos mais averiguar se o que foi inventado teria servido para fazer laço social.

Mesmo que baseado em ideias delirantes, o "Teatro da Crueldade" sofreu a contingência de ter encontrado respaldo no meio artístico e, assim, Artaud pôde ser reconhecido pelo seu trabalho, não só pela produção ligada ao teatro, especificamente, mas também por toda a sua obra - suas traduções, cartas e demais produções -, que compõe uma obra a qual contribuiu para inseri-lo em um discurso, pelo reconhecimento de sua autoria (BEDERE, 2007). Essas invenções nos levam a pensar que há algo da relação do ser humano com a linguagem que faz com que alguns pontos só possam ser tocados de maneira indireta, e nisso consistiria a função das invenções e alusões relatadas nos casos de psicose.

A teoria de Lacan sobre o estádio do espelho apresenta uma tese em que a assunção de uma imagem provoca uma transformação no sujeito, sendo essa imagem uma forma completa e idealizada do corpo, marcando o desenvolvimento psíquico. Assim, tal como Miller, podemos dizer que "o corpo é essencialmente uma forma. Trata-se não apenas da forma do corpo, mas do corpo como distinto do organismo" (MILLER, 2009, p. 16).

A partir do que foi exposto, concluímos que a imagem do corpo está sempre em relação com um déficit, justamente por conferir unidade a algo que foi apresentado de maneira disforme. De todo modo, essa normatização que ocorre geralmente quanto à imagem do corpo é evidentemente ausente em casos como o de Artaud.

Ram Mandil4 propõe a hipótese de pensarmos sobre Artaud como se este tivesse vivido em um movimento oscilante, entre órgãos sem corpo, de um lado, e o corpo sem órgãos, de outro, entre os quais o "Teatro da Crueldade" viria a incidir para levar o sujeito de um estado ao outro. Ao primeiro corresponde a língua articulada, o diálogo: exatamente onde Artaud não podia se manter. Ao segundo, as glossolalias, como uma linguagem única, inédita, não dividida (lembremo-nos na definição do novo espaço de atuação do ator de seu teatro e de interação com a plateia), representando a possibilidade de Artaud posicionar-se em um novo plano de realidade. A comunicação direta almejada entre o ator e o espectador, com esse efeito direto, se assemelharia a uma linguagem pouco metafórica. Juntamos ao raciocínio de Mandil a ideia de que, nesse movimento da linguagem na experiência de Artaud, em sua correlação com o corpo, o corpo anatômico, delimitado pelas palavras, bem como o corpo como imagem, não era para ele digno de interesse. O que ele planejava para si era um corpo com outro estatuto.

Por fim, podemos afirmar que o caso de psicose analisado neste trabalho muito nos instrui quanto ao problema da constituição de um corpo para si. Apesar de termos retomado somente uma pequena parte da vasta produção de Artaud, parece-nos ter ficado evidente o modo como ele localizou e tentou resolver esse conflito. A invenção do seu teatro gerou grande impacto no momento de sua criação e ainda gera nos dias de hoje. Embora tenhamos enfatizado esta produção com o viés da manifestação psicótica, resta-nos ainda dizer que, para além da contribuição teórica para este campo, Artaud nos permite vislumbrar o testemunho de uma experiência extremamente singular, cujo sofrimento foi algumas vezes atenuado, a partir de seus esforços e invenções.

 

REFERÊNCIAS

ARTAUD, A. (1938). O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Universidade Federal de Minas Gerais
Avenida Antônio Carlos, 6.627 - Pampulha, Belo Horizonte, MG
CEP: 31270-901. Tel.: (31) 3409-5042
E-mail: tuliolaa@yahoo.com.br

Artigo recebido em: 21/02/2010
Aprovado para publicação em: 27/01/2011

 

 

1 Em francês no original (tradução nossa).
2 Remetemos o leitor ao texto de Lacan, "O aturdito", o qual iremos mencionar apenas sob a ótica de J. Alain-Miller, para um possível aprofundamento do tema da esquizofrenia. (LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003).
3 Adotamos daqui em diante a grafia com a letra minúscula, tal como o próprio Artaud se refere ao longo de seu texto.
4 Trata-se de uma ideia apresentada pelo professor Ram Mandil durante uma aula da disciplina "Corpo e linguagem: testemunhos literários e seus limites", vinculada ao Mestrado em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no dia 24 de setembro de 2009.

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