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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.9 no.17 Barbacena dez. 2011

 

ARTIGO

 

O homem, sua psicose e a palavra cortada

 

The man, his psychosis, and stopped word

 

 

Atilio José MontanariI; Sandra Maciel de CarvalhoII

IMédico, Psiquiatra do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Cataguases, Psicanalista. Mestre em Psicologia/Psicanálise pelo Centro de ensino Superior de Juiz de Fora (CES-JF). Doutorando em Medicina I pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
IIPsicóloga do CAPS de Cataguases. Coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS-AD) de Cataguases. Especialista em Psicanálise pelo CES-JF. Mestranda em Psicologia pela UFJF

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo traz uma discussão sobre a demanda, o possível estabelecimento da transferência e sua função no tratamento da psicose, a partir de observações de uma psicóloga que atendeu um paciente no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Cataguases, Minas Gerais. Utilizam-se trechos de falas e da história clínica deste paciente, que chega encaminhado por outro CAPS e que, desde o primeiro encontro, traz imediatamente uma demanda. Após um curto período, o paciente volta para a cidade de origem, impedindo a continuidade do tratamento. Procura-se demonstrar também a natureza fugaz e imprevisível das ações, bem como da linguagem utilizada.

Palavras-chave: Psicose; CAPS; saúde mental; psicanálise; transferência.


ABSTRACT

This article provides a discussion about demand, the possible establishment of transfer and its role on the treatment of psychosis, from observations of a psychologist who attended a patient at the Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) from Cataguases, Brazil. Extracts of conversations and the history of this patient, who is referred by other CAPS, are used. Since the first meeting, he brings an immediate demand. After a short period, he returns to his home town, what makes impossible the continuity of the treatment. There is also, an intention to demonstrate the fleeting and unpredictable nature of the actions, as well as the used language.

Keywords: Psychosis; CAPS; mental health; psychoanalysis; transference.


 

 

O analista, pivô da transferência, não passa por sua pessoa. Há alguém que já está. Isso lhe daria outra maneira de abordar a diversidade dos casos e a partir deste momento, talvez encontrar uma nova clínica, diferente da psiquiatria clássica (LACAN, 1968).

Este esboço de estudo surge a partir de relatos de uma técnica sobre seus encontros com uma pessoa que iniciou, de modo fugaz, o tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Cataguases (MG) e se constitui resumidamente na descrição abaixo:

Chega encaminhado por um CAPS de outro estado. Desde que me foi apresentado, começou pequenas e confusas conversas onde me encontra. Normalmente, me aborda várias vezes ao dia. Faltam-lhe os dentes, o que torna ainda mais difícil sua dicção.

Do que foi possível compreender até agora, ele se julga vítima de uma perseguição por parte de uma grande empresa e cita os computadores (teria trabalhado lá?).

...

Afirma ter sido morto três vezes pelos médicos que fizeram experiências com seu corpo, aplicaram injeção de arsênico (?), diminuíram sua altura.

...

Hoje, acredita ter um câncer na garganta em função de uma gilete que teria engolido aos 13 anos, por medo, depois de ter sido abusado sexualmente por um homem. Afirma que a gilete está enferrujada e é, provavelmente, em função disto que tem "tétano".

...

Encontro-o no portão e ele me mostra uma gilete igual à que teria engolido. Eu a recolho e fico me indagando o que vai causá-lo o fato de eu agora ser guardiã de uma gilete... Percebo que começa a falar de maneira mais audível a partir daí.

...

Certo dia, na saída, ele vem me chamando na escada: ‘Doutora, doutora, descobre pra mim qual é o meu nome, eu não sou o João da Silva, não, eu tenho outro nome...'

...

Algumas vezes, pede para que eu apalpe seu pescoço para sentir a gilete e, por outras, enfia o dedo na garganta profundamente, procurando-a.

...

Diz que nunca matou ninguém e que a carbamazepina lhe faz mal, por isto, não vai mais tomá-la.

Acha que será necessário um "exame para examiná-lo por dentro" e fala do "bulbo' que liga a mente ao coração.

Acredita ser necessário também "derreter" a gilete e eu lhe digo que os remédios vão ajudar nisso.

...

Às vezes me chama por outro nome: "Sônia".

...

Sou informada por um membro da equipe de que a família decidiu voltar para seu estado de origem e não o vejo mais.

Segundo Nasio (1993), o "corpo" para a Psicanálise é o "corpo pulsional", isto é, regido pela libido e que trabalha em cima da satisfação, seja qual for a maneira como goza. Este gozo é um impulso de energia inconsciente, expresso direta ou indiretamente pelos atos do inconsciente.

Ainda de acordo como o mesmo autor, o corpo falante interessa à Psicanálise devido ao seu conjunto de significantes, mas que não seja uma fala através de palavras, mas expresso através do rosto, do comportamento das atitudes, etc.

Assim, é supondo que o analista tem um saber efetivo sobre o corpo que o paciente se dirige àquele. E o faz sem atentar que é ele próprio quem porta este saber e será o seu discurso que norteará todo o processo de autoconhecimento, pois o lugar da teoria do analista é o lugar da verdade (NASIO, 1993), mais precisamente uma função de verdade, determinando em nós um modo particular de ação. A principal característica do sintoma é que o psicanalista faz parte dele1.

Neste caso, a verdade não é adequação da palavra, mas os efeitos que ela provoca no analista, que poderiam ser desnudar o inconsciente, aprimorar os órgãos sensoriais e facilitar a integração com os demais (NASIO, 1993).

A Psicanálise vê o corpo em relação ao significante, dentro da fala ou do sexual. O corpo nunca é total, mas um gozo local, acumulado em uma determinada parte. Podemos constatar que a relação do sujeito com seu corpo não é de posse, mas de exterioridade. Os neuróticos falam: "meu corpo", não "eu corpo". Tomando a expressão de Lacan "o ‘Outro' é o corpo" (LACAN, 1985a).

Este "corpo" é marcado pelo significante, "que modela a vida e o ser do sujeito" e pode ser pensado de três formas (nasio, 1993):

1) Através do imaginário, no qual é visto como uma imagem;

2) No simbólico, marcado pelo significante, reconhecido pelo outro, que está presente no seu discurso, articulado numa estrutura lingüística;

3) No real, sinônimo de gozo, onde não foi simbolizado e onde a libido se apoia e as pulsões se fixam.

Quando um gozo advém diante de uma presença maciça do corpo, seja em análise ou no caso específico aqui, em uma instituição pública (CAPS), a dificuldade para quem escuta talvez seja transformar o dizer concreto do paciente em uma fantasia ou delírio (dependendo do caso), pressuposto em uma teoria preexistente (FREUD, 1910), observando que o corpo real se apodera do órgão em questão e invade o espaço da linguagem, podendo assumir diversas formas, inclusive uma atuação, como uma tentativa de suicídio ou de homicídio (passagem ao ato).

Neste momento, o terapeuta muitas vezes pode se perguntar se conseguirá "conter" o impacto de lidar com o real, nu e cru em um ambiente analítico ou institucional. (NASIO, 1993).

Todo acontecimento está inscrito na relação transferencial (FREUD, 1912), observado de acordo com a perspectiva do real, simbólico e do imaginário (DARMON, 1994), onde o objeto trazido representa a deficiência do saber, que se exprime como signo, e o sentido dado pelo analista faz desaparecer a ideia de acaso (FREUD, 1907).

Este objeto assume um lugar de saber (mestre), podendo ocupar provisoriamente o foracluído. Neste lugar de mestre, a terapeuta pode e deve, com autoridade, aconselhar o sujeito sobre os riscos do objeto que ele lhe mostra, para evitar que o gozo seja por demais mórbido.

O que fazer frente ao psicótico é uma questão que permanece em aberto para a maioria dos analistas, apesar da existência de uma apreciável literatura a respeito.

Deparamo-nos, frequentemente, com testemunhos de analistas que falam sobre o que não é estratégico, o que não é tático ou, em outras palavras, o que não se deve fazer com psicóticos. Estas indicações, de signo negativo, parecem atestar a complexidade que representa este problema. Sobre a demanda, diz-se que se constrói a partir da oferta.

O ponto de partida da demanda é aquilo que pode ser chamado de significação em suspenso. Diz-se, de modo clássico, que o neurótico chega com uma questão, enquanto o psicótico traz uma resposta (LEMOS, 1999).

Por não poder reconhecer o simbólico, faz um delírio, de acordo com suas próprias palavras (realmente cortadas), sem se dar conta do gozo que o invade, projetando na aflição da terapeuta, que por sua vez propiciaria seu reposicionamento.

Geralmente, o sujeito psicótico dá uma significação que, como intuição ou como metáfora delirante, é trazida para o analista a fim de torná-lo testemunha desta ou para que a avalize. Pode ser, também, que o psicótico vá à procura de um analista na esperança de que este faça cessar o "sem fim" significante, pela falta do significante privilegiado que não pôde advir (QUINET, 2000).

No caso em questão, pode-se afirmar que, ao receber em suas mãos "a gilete", a terapeuta age maternalmente, com poder e isto é aceito pelo paciente, que se liberta do estrangulamento, podendo retomar sua fala.

Outra vertente da demanda é o pedido de fazer barreira ao gozo do "Outro", que o protegeria deste "Outro" presente em sua vida através das alucinações, manipulando-o, pela exclusão do objeto (representante da foraclusão), numa tentativa de resgatar a realidade, forçando uma divisão onde ela não se deu (SCHERMANN, 1999).

Na esquizofrenia, a transferência pode ser organizada em relação a uma demanda imaginária do "Outro", numa postura de sacrifício, de entrega do sujeito em relação a esta demanda. Isto pode ser uma forma de suprir a ausência de "EU" dependente do "Nome-do-Pai", excluído da dimensão imaginária, fantasmagórica, pois o corpo não é percebido como uma unidade (PANKOV, 1983).

Pode-se ressaltar que esta relação não impede uma contínua oscilação, na tentativa de constituir uma metáfora delirante respondendo a uma exigência paterna. O analista se encontra numa situação difícil, a de não ocupar o lugar desse "Outro"absoluto e, ao mesmo tempo, manter o laço analítico (LACAN, 1992).

Se existe a transferência na psicose é porque existe uma relação com o saber. A demanda surge então pela foraclusão do Nome-do-Pai (ETKIN, 2000).

É fato que o problema da transferência das psicoses não seria o da sua existência, mas sim o das suas características. No neurótico, o que institui a transferência é a suposição de um saber a alguém, que sabe do que lhe faz sofrer, que sabe o que lhe falta. No psicótico, também há um sujeito do saber, porém, não é suposto a um outro, ele é encarnado como verdadeiro (MOTTA, 1989).

O laço social estabelecido a partir desta modalidade de transferência é o que mostrará o diagnóstico de psicose, onde o saber e o sujeito que dele se deduz não faltam, ao contrário, tornam-se certeza. Há aqui, o que Lacan chamou de "impossível de suportar", pois nunca se sabe se o que foi dito caiu no lugar certo (LACAN, 1985b).

Cabe ao analista manobrar a transferência num sentido de dirigi-la como objetivo estratégico de barrar o gozo do "Outro" que invade o sujeito na psicose. Para isso, é fundamental que saiba em que lugar o analisando o situa (QUINET, 2000).

Algumas vezes, pode ser difícil distinguir o analista do "Outro", ao pedir que suporte sua busca de uma metáfora de substituição ou quando se oferece ao seu gozo. Nestes casos, o analista é testemunha da junção do real e do simbólico, terreno no qual, o psicótico arrisca a se perder a todo o momento (CARRATO, 1999).

Perguntas do tipo: Como atuar com o simbólico da palavra sobre o real do gozo? Como ocorre a interpretação? São comuns, mas aqui não se trata da interpretação para dar significação, mas tentar obter uma metáfora delirante que poderá promover uma estabilização. Na esquizofrenia, vamos nos defrontar com uma multiplicidade de significantes, sem marcas na significação fálica. São significantes dispersos à semelhança dos seus órgãos (LACAN, 1985b).

É fundamental saber escutar aquilo que os psicóticos falam de sua relação com o signo, que se estabelece num registro diferente daquele estabelecido pelo terapeuta. Este, entendendo-se por sua constituição de neurótico, pode se sentir tentado a perseguir um ideal de normalização, como se pudesse recalcar o polo paterno que está no real; no simbólico. Manter o saber com o terapeuta poderia sustentar o paciente em uma filiação delirante a este e implicaria a manutenção de um laço sem fim (MENDES, 2005).

Ao avançar no campo das psicoses, os esforços do terapeuta são autênticos, originais e até ousados, pois, a perturbação que se quer remediar é um estado de desordem, devastação e dissonância. Tenta-se esboçar um laço estrutural no que se encontra desorganizado, enxertando o que parece nunca ter sido alcançado, com o objetivo de criar um "fantasma", ou seja, uma imagem dinâmica do corpo que facilite a percepção da falha nesta imagem e, se possível, repará-la (MENDES, 2005).

Esta função de imagem do corpo, somente pode ser concebida a partir de uma rede de relações humanas, onde se permite constituir uma lei. Há, na psicose, uma destruição da imagem corporal, perdendo a ligação das partes com o todo e, também, em relação com o mundo sensível, numa ausência de ligação entre interior e exterior, o que impede a criação de cadeias de associação que permitam reencontrar a ligação com os restos destes mundos destruídos. Além das partes não estarem ligadas, muitas vezes elas não são reconhecidas como partes (Calligaris , 1989).

A dissociação das estruturas do corpo vivido é, na maioria das vezes, irreversível e, se for possível, o reconhecimento de sua própria imagem é um ato de liberdade e aceitação. Caso contrário, a vivência dissociativa leva ao medo de aniquilação, substituído pela gilete que lhe corta a garganta, introduzida em função de outra pessoa, ameaçadora e detentora de todo o poder sobre si.

Neste momento de perplexidade, o sujeito se lança e "entrega" uma gilete à psicóloga, como numa garantia de poder sair deste mundo de dentro e se abrir a relações humanas, mesmo que perigosas. Há um comentário expressivo da terapeuta:

[...] ele não me entrega de imediato, ele me mostra uma igual à que teria engolido. Vejo isto como uma "demanda-teste": como ela vai se comportar? É Diferente dos outros que abusaram de mim? Que lugar ela vai ocupar? Foi o fato de eu ter aceitado recolher a gilete e guardá-la comigo que o possibilitou outra demanda: descobre meu nome [...]

Se for através da linguagem que se constitui o sujeito, seria necessário falar, neste caso, de uma ausência de subjetivação. A relação com o outro é peculiar, pois todo sujeito começa sua vida subjetiva no campo do "Outro" e é engendrado a partir desse campo, em decorrência de seu desamparo e de sua dependência ao "Outro primordial" (LACAN, 1998).

Assim como acontece para o neurótico, para o psicótico também há um significante primordial S1, que representa a criança no campo do "Outro". O problema é que, a partir desse primeiro significante, engendrado no campo do "Outro", não se seguem outros. Um significante isolado não pode ser considerado, pois seu significado não será incluído no deslizamento e nas possibilidades de combinação e substituição com outros significantes, peça fundamental no funcionamento da linguagem (NASIO , 1988).

Um significante isolado terá apenas valor de signo, com apenas um significado. Se o "Outro" está fixado a um só significado, ficará sempre no mesmo lugar: no do "Outro" absoluto, não recortado, não simbolizado, sem a polissemia, a variabilidade e a incerteza. Com o surgimento de um novo sujeito, o sujeito da pulsão de quem se faz objeto (se assujeita) o psicótico, por não dispor dos recursos da linguagem, não pode criar uma realidade fantasmática que possa protegê-lo da invasão do "Outro" (KATZ, 1989).

O psicótico, por meio de seu delírio, buscará reconciliar-se com a ideia insuportável de sua fantasia (FREUD, 1912).

Uma intervenção, uma palavra dirigida ao "Outro"do sujeito pode apaziguar ou negativizar seu gozo, barrando-o. A palavra dirigida ao "Outro" desordenado não simboliza, mas localiza. Dar uma resposta afirmativa e categórica, recortando um lugar para o sujeito, parece colocar ordem no "Outro" e tem, como efeito, a pacificação deste sujeito. Trata-se, porém, de um efeito efêmero. Assim, é preciso inventar (ETKIN , 2000).

Esta invenção, o sujeito a constrói para defender-se do "Outro" gozador e, por isso, precisa ser tratada com toda atenção. Cada terapeuta pode ter suas habilidades específicas, mas deve contribuir para tornar presente uma figura do "Outro" que permita ao sujeito encontrar para si um lugar de possibilidades na transferência e dispensar, assim, a passagem ao ato.

O desafio é inventar uma resposta para o acompanhamento da psicose, pois, diante do risco da passagem ao ato ou da transferência erótico-agressiva trazidos pela psicose, deparamos com um "não saber" sobre esse gozo.

Deve-se ainda observar que "dizer não" ao gozo do "Outro" não implica uma espécie de tentativa de restituir ou de instalar a lei ou a função paterna. Não há amarração de um ponto que centralize o saber, organizando todas as outras significações. O discurso não se autoriza a partir de uma transmissão, não se estabelece uma filiação. Nesse sentido, nomeia o psicótico como sujeito errante, que faz um percurso infinito sem um destino idealizado.

Cabe ressaltar que o fato do psicótico não estar referido à função paterna, não significa que exista uma exclusão do simbólico, ele está tomado na estrutura da linguagem, não estando apenas entre o imaginário e o real. Mas, a linguagem é metonímica, sem uma metáfora fixa (LACAN, 1985b).

De acordo com Lacan, no Seminário 3 (1985b), a fórmula da prática psicanalítica com o psicótico é "introduzir o sujeito". Introduzir o sujeito na sua lógica inconsciente, implicar o sujeito na sua história, no seu gozo e no delírio que ele constrói para se sustentar e para conter-se. Isso implica em deixá-lo falar da vida, onde ele se faz protagonista e que revela sua relação com o outro, dar a ele a chance de vincular seu passado com seu presente revelando a fixação do seu gozo onde se condensa seu sintoma. Lacan afirma que a estrutura clínica equivale à estrutura da linguagem, que se estabelece à medida que o sujeito vai fazendo sua passagem pelo complexo de Édipo, marcando sua entrada no mundo simbólico e no mundo dos significantes. O sentido da análise é atribuir para o sujeito significados aos significantes que marcaram sua história e seu discurso.

Para que o sujeito atribua significado aos seus significantes, é necessário que ele faça sua entrada no simbólico e, assim, ordene seu mundo interior com o mundo externo. Essa entrada na ordem simbólica dá a armadura da estrutura clínica do sujeito.

O psicótico desconsidera completamente o Nome-do-Pai, ou seja, a lei simbólica, o que implica no não atravessamento do sujeito pela fase edípica, colocando em causa toda sua rede de significantes. O sujeito não é, portanto, submetido à castração simbólica, à significação fálica e, como consequência, o significante que traz a significação sobre seu sexo, fica sem referências.

A fala do psicótico está sempre muito mergulhada num desespero e a impressão que se tem é que nenhuma intervenção psicológica faz nascer o desejo nesse sujeito ou faz com que ele saia de si mesmo na direção do outro. Assim, qualquer diálogo que o analista tente manter tende a fracassar e as tentativas de mediação ficam sem efeito.

O trabalho na clínica da psicose leva o analista a um caminho de angústia, diante do silêncio sem eco desse sujeito. E o analista se torna obrigado a renunciar ao seu saber, ao que sente e ao que imagina, projetando a si mesmo em um corpo sem palavra (MENDES, 2005).

A clínica da psicose é um terreno mal definido, por isso, exige bastante cautela. É como se o analista percorresse a beira de um abismo onde a palavra desapareceu. Porém, é nesse abismo que a palavra pode se dizer no lugar onde nada pode ser dito do sujeito, nem do "Outro". Onde tudo se perde por justamente nada faltar.

Nesse sentido, o psicótico é um sujeito errante em busca de uma referência que lhe falta, que coloca o sujeito no mundo, a referência que sustenta a lei.

A tentativa segue no caminho de assegurar que o psicótico crie, de alguma forma, uma pseudorreferência a qual ele possa se remeter, na esperança de organizar um saber ao redor de um polo central, que sempre terá lugar na realidade, nunca simbolizado.

Esse é o caminho para um trabalho com pacientes psicóticos; caminho que a equipe que os atende deve percorrer lado a lado com eles, facilitando, pela transferência, a construção da metáfora delirante e não assumindo a posição de um saber, de uma referência, que vai sendo imposta ao longo do processo terapêutico, pois, classicamente, este é o desencadeador da crise psicótica: o encontro com a lei não simbolizada, que desestabiliza o saber do sujeito (MENDES, 2005).

No tratamento institucional, o desafio para a equipe é inventar uma resposta para o acompanhamento da psicose, pois, diante do risco da passagem ao ato ou da transferência erótico-agressiva trazidos por ela, cada membro da equipe se depara com um não saber sobre esse gozo, a partir da intervenção e do estilo de cada um. Nesse sentido, a posição da equipe que intervém é muito mais de alunos do que de mestres da psicose (MENDES, 2005).

Não se pode esquecer que a transferência deve também se dirigir à instituição que está acolhendo o psicótico e não somente a indivíduos em particular, pois a instituição será, nesse momento, objeto e base da referência que o sujeito está tentando construir. Essa base é de caráter provisório, pois o sujeito deverá criar uma referência imaginária relativa à sua vida, ao seu saber e não relativa à crise, à doença, as quais são representadas pela instituição que cuida delas (MENDES, 2005).

A realidade muitas vezes pode agir como um mecanismo de inviabilização da construção de uma referência, como aconteceu com o caso descrito, em que a errância se reproduz na realidade, levando o sujeito de cidade em cidade, facilitando a exclusão, deixando livre o caminho para o processo de cronificação. Seria o domínio da doença institucionalizada sobre o sujeito.

Poderíamos concluir que o objetivo do trabalho terapêutico é fazer o paciente gozar e obter satisfação do seu próprio corpo e do outro e, não ser apenas, objeto de gozo do outro.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Rua Dr. Lobo Filho, 43/301. Cataguases, MG.
CEP: 36770-006.
E-mail: atiliopsiq@gmail.com

Artigo recebido em: 25/07/2011
Aprovado para publicação em: 20/10/2011

 

 

1 Para maiores esclarecimentos, ver LACAN, J. Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise. 1953. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.