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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.9 no.17 Barbacena dez. 2011

 

SESSÃO COMUNICAÇÃO

 

Aspectos psicológicos de crianças portadoras de transtorno do déficit de atenção e hiperatividade

 

 

Daniel Corradi CarregalI; Sebastião Rogério Gois MoreiraII

IGraduando em Medicina e Monitor Voluntário das Disciplinas Iniciação Científica I e II na Faculdade de Medicina de Barbacena, MG
IIDoutor em Psicologia Clínica, Membro da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC), Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos – UNIPAC (MG), Professor da Faculdade de Medicina de Barbacena, MG

Endereço para correspondência

 

 

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é um transtorno psiquiátrico que afeta de 3 a 5% das crianças em idade escolar nos Estados Unidos. Esta palotogia geralmente é caracterizada principalmente pela impulsividade, desatenção e hiperatividade (BARKLEY, 2006).

Segundo Danckaerts et al. (2010), entender o impacto dos transtornos psiquiátricos em geral, especialmente o TDAH, na qualidade de vida é um bom parâmetro para se analisar os sentimentos das crianças portadoras da patologia. Tendo em vista que a definição de qualidade de vida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) é:

a percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, nos contextos de cultura e sistemas de valores no qual eles vivem em relação com suas metas, expectativas, padrões e preocupações. (WHOQOL GROUP, 1995).

podemos suspeitar que a qualidade de vida das crianças acometidas pelo transtorno está vulnerável. Diante disto, Spitzer, Kroenke e Linzer (1995) sugeriram que o principal objetivo dos cuidados em relação à saúde é melhorar a percepção dos pacientes sobre a mesma, e até que ponto problemas desta natureza interferem em sua qualidade de vida.

A qualidade de vida é vista principalmente como um resultado de um relato do paciente (SPITZER; KROENKE; LINZER, 1995; MATZA et al., 2004) com uma diferença fundamental entre avaliação independente – por exemplo, ele não consegue se concentrar e isso o prejudica na escola; podemos pensar que ele deve sentir mal sobre a vivência do sintoma – e da avaliação subjetiva' – eu não consigo me concentrar, isso me atrapalha na escola e me sinto mal sobre esta falta, tendo um impacto geral em relação à forma como sinto sobre eu mesmo. A este respeito, o próprio relatório de uma criança parece ser essencial para capturar com precisão a sua qualidade de vida. No entanto, isso é complicado por diversas questões. As crianças pequenas (por exemplo, antes da idade de sete ou oito anos) podem não ter a compreensão, percepção ou habilidades de comunicação para fornecer válidas autoavaliações (BIBACE; WALSH, 2004). Isso pode ser acentuado nos casos de crianças com dificuldades de aprendizagem, aquelas em que as condições de saúde mental geram um impacto sobre sua capacidade de refletir e apresentar um relatório sobre seu estado interno com precisão (por exemplo, num estado de depressão), ou como habitualmente ocorre no TDAH, em que a criança pode apresentar dificuldade de se concentrar ao responder a um questionário. Nestes casos, pode-se ter de recorrer a um relato do pai/mãe ou do cuidador. Porém, não devemos deixar de focar uma perspectiva múltipla das diferentes linguagens das crianças ao incluí-las na condição de sujeitos envolvidos nas pesquisas produzidas nos mais diferentes lócus, na qual os pequenos estão inseridos, pois ainda que recorramos ao relato do pai/mãe ou do cuidador ou mesmo do seu educador, jamais podemos desprezar as diferentes linguagens expressas pelas crianças.

Em estudos prévios (DANCKAERTS et al., 2010; KLASSEN; MILLER; FINE, 2006) foi observada discrepância entre a avaliação da qualidade de vida das crianças portadoras de TDAH no que se refere aos pais e às crianças. Os pais relataram que as crianças tinham uma qualidade de vida pior, e estas relataram ter uma qualidade de vida normal, se comparada com outras crianças sem TDAH. Klassen, Miller e Fine. (2006) sugeriram algumas possíveis razões para a discrepância encontrada entre os relatórios de qualidade de vida dos pais e dos filhos. As crianças podem querer esconder os seus problemas, talvez por ignorá-los numa tentativa de lidar com os mesmos, possivelmente sofrendo um processo de adaptação à desordem, o que leva a uma mudança em suas normas internas que conduzem a alterações na avaliação da qualidade de vida. Elas também podem cometer erros sistemáticos na realização dos questionários por causa do seu estilo cognitivo impulsivo, bem como seus aspectos emocionais. Porém, devemos sempre estar ávidos em reconhecer que ainda no cotidiano de nossos pequenos, a razão instrumental, herdada das ciências positivistas, ainda silencia os mesmos a dizer suas verdades.

Para Eiser e Morse (2001), a qualidade de vida pode ser influenciada por diversos fatores próximos (relações familiares, amizades) e distantes (cultura e condição socioeconômica) e também as doenças apresentam grande contribuição. A saúde mental comprometida tem impacto negativo na capacidade das pessoas em participar efetivamente das atividades diárias, e isto pode ter consequências negativas para o seu estado geral e sensação de bem-estar. Um reduzido senso de bem-estar também pode gerar impacto sobre a saúde mental, por exemplo, produzindo maior labilidade no humor dessa criança. Na infância, os efeitos da saúde mental comprometida, sobre a qualidade de vida, são talvez mais óbvios e mais graves nas formas extremas de problema desta natureza (por exemplo, o autismo) ou aqueles que têm impacto direto no sentido do indivíduo em relação à autoestima (por exemplo, ansiedade e depressão). No entanto, há crescente evidência de que os assim chamados transtornos de externalização, como o TDAH, também reduzem substancialmente a qualidade de vida das crianças e dos jovens em relação aos seus sentimentos subjetivos de bem-estar e à sua capacidade de funcionamento cotidiano (DANCKAERTS et al., 2010).

Pesquisas realizadas por Marton et al. (2011), para avaliar as habilidades comunicativas sociais em crianças portadoras de TDAH, demonstraram que as crianças formalmente diagnosticadas com este transtorno têm habilidades comunicativas sociais globais menores do que as crianças sem TDAH. Isso sugere que elas são menos propensas a formar múltiplas perspectivas e coordená-las, do que de crianças de sua idade. A compreensão dos pensamentos e dos sentimentos das outras crianças facilita os processos de comportamento, incluindo a solidariedade, a partilha, o acolhimento e a ajuda, sendo todas essas habilidades pró-sociais, promovendo comportamentos saudáveis e relacionamentos sociais positivos. Sendo assim, as crianças que apresentaram níveis mais baixos de habilidades comunicativas sociais tiveram dificuldade em formar e manter amizades. Segundo Taanila et al. (2009), elas correm um risco consideravelmente maior de conflitos familiares, repetência na escola, rendimento acadêmico baixo e problemas de conduta tendo saúde emocional prejudicada e competência social menor do que os seus colegas. Isso tende a progredir da adolescência à idade adulta.

Harty et al. (2009) realizaram estudos em que foram acompanhadas 85 crianças diagnosticadas com TDAH pelo período de 10 anos, com o intuito de se avaliar distúrbio de comportamento das crianças na transição infância-adolescência. Foi observado que crianças diagnosticadas na infância apresentaram altos riscos de agressão associado com aumento da emotividade sob a forma de raiva, mas não de hostilidade, evidenciando que o TDAH é um importante fator na qualidade de vida das crianças e adolescentes. De acordo com Gau, Ni e Shang (2011), crianças diagnosticadas com TDAH, que têm a persistência da patologia na adolescência, estão propensas a um alto risco de desenvolverem comorbidades psiquiátricas, sendo necessário o diagnóstico e tratamento ainda na infância, para que diminua o risco de comorbidades.

As relações interpessoais das crianças com TDAH com seus pais, irmãos, professores e colegas são comumente caracterizadas como negativas e conflituosas. Por conseguinte, as crianças com este transtorno são constantemente rejeitadas por seus colegas. Conforme apontamentos de Hinshaw (1992), "os problemas interpessoais das crianças com TDAH podem muito bem ser os aspectos mais salientes e debilitantes do seu comportamento psicopatológico". Para se ter relações sociais apropriadas são necessárias as habilidades de observar e interpretar as emoções das pessoas, para se poder corresponder às expectativas da sociedade.

Em estudo realizado por Fonseca et al. (2009) foi analisada a capacidade de crianças diagnosticadas com TDAH em reconhecer e interpretar emoções. Observou-se que crianças com este transtorno tiveram maior dificuldade em reconhecer emoções faciais, também interpretar emoções em situações diárias, evidenciando que estas apresentaram um déficit geral no que se refere à interpretação de emoções.

Posto isto, se percebe que crianças portadoras de TDAH estão sujeitas a maiores dificuldades na sua adaptação psicossocial, podendo não ser compreendidas pelos colegas e vivenciar exclusão das atividades propostas pelos seus pares. Costumam ainda ter dificuldade no relacionamento com seus pais, por falta de organizarem sua dinâmica cognitiva e emocional, causando-lhes frustrações. Toda esta dinâmica pode agravar ainda mais suas dificuldades, inclusive o fato de lidarem com sua autoestima, intensificando de maneira significativa as dificuldades próprias do transtorno somadas aos fatores do seu ambiente social. Poderíamos chamar de uma "confusão de ideias e sentimentos", visto que a criança vem ao mundo de uma maneira diferente das expectativas que a sociedade projeta sobre ela, muitas vezes reagindo de forma agressiva, rebelde às normas esperadas pelos grupos nos quais está inserida. Desta forma, demonstra comportamentos agressivos, respondendo com forte sentimento de exclusão. Pode por outro lado, recruzar frequentemente, formando um conceito negativo de si própria, sofrendo fortes sentimentos de culpa, pois passa a assimilar que sua presença pode ser ameaçadora ao seu ambiente social, dado suas limitações; não se sentindo, assim, merecedora de receber afeto dos que vivem ao seu redor. Passa, então, a desacreditar no afeto das pessoas à sua volta, usando como estratégia de sobrevivência emocional o afastamento dos amigos e familiares, restringindo cada vez mais o relacionamento afetivo, podendo até mesmo dificultar o diagnóstico e a possibilidade de intervenções terapêuticas que contribuam para a melhora de seu transtorno.

É importante também a avaliação subjetiva das emoções, o que a criança sente a respeito da patologia e o que isso afeta em sua vida. Geralmente, as crianças mais novas tendem a não conseguir relatar exatamente o que sentem; porém, pela análise dos dados e pelo relato dos pais é notável que estas tendam a ser mais agressivas, isoladas e com humor diminuído, contribuindo para pior qualidade de vida.

Considerando as fundamentações teóricas expostas, percebemos que as reflexões preliminares apresentadas nesta comunicação já sinalizam para pais, educadores e profissionais da saúde, em especial aos da saúde mental, o quanto temos que debruçar nos estudos sobre o transtorno em questão, a fim de que a partir do entendimento do mesmo, possamos contribuir para a realização de um precoce diagnóstico, utilizando das melhores formas de intervenção multiprofissional sobre este, visando possibilitar melhoras nas situações presente e futura dos prognósticos da patologia e proporcionar, por conseguinte, uma melhor qualidade de vida às crianças portadoras da patologia em estudo.

 

REFERÊNCIAS

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