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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.10 no.18 Barbacena jun. 2012

 

ARTIGOS

 

Instituindo a flexibilidade: o trabalho clínico de passagem da internação psiquiátrica à vida na comunidade

 

Introducing flexibility: clinical work with the transition from psychiatric hospitalization to community life

 

 

Luzia Rodrigues PereiraI; Nuria Malajovich MuñozII

IEspecialista em clínica psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Especialista em saúde mental nos moldes de residência pelo Instituto Municipal Philippe Pinel (UFRJ), Psicóloga do Instituto Nacional de Câncer (INCA)
IIDoutora em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia/UFRJ, Professora adjunta do curso de psicologia da Universidade Federal Fluminense - Polo Universitário de Rio das Ostras

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo versa sobre as especificidades de um trabalho clínico que visa a produzir a passagem do psicótico de um dispositivo hospitalar à vida na comunidade. Consideramos que esse dispositivo pode ocupar uma função que não é estática para os usuários, mas que se modifica de acordo com o percurso de cada um. Fazemos menção aos conceitos oriundos da psicoterapia institucional francesa e à psiquiatria democrática italiana, que auxiliarão a pensar na possibilidade de circulação de pessoas com transtornos mentais. Citamos ainda autores que trabalham na perspectiva do campo freudiano, levando-se em conta a leitura lacaniana. Dois casos clínicos aqui apresentados ilustrarão a questão exposta de como um psicótico pode prescindir de uma instituição, servindo-se dela.

Palavras-chave: Psicose; instituição; psicanálise; reforma psiquiátrica; comunidade.


ABSTRACT

This article discusses the specificities of a clinical study that aims to analyze the transition of a psychotic person who was being treated in a mental health hospital to community life. We consider that this institution can hold a function that is not static for users, but instead changes according to each person´s route. To discuss it, we will use concepts coming from the French institutional psychotherapy and the Italian democratic psychiatry, which will help to consider the possibility of people with mental disorders to circulate in society. Authors that use Freud´s theory, considering the Lacan´s reading of Psychoanalysis, will also be cited. Two clinical cases will be presented to illustrate the question of how a psychotic person can dispense with and take advantage of the institution.

Keywords: Psychosis; institution; psychoanalysis; psychiatric reform; community.


 

 

1 INTRODUÇÃO

A criação de novos dispositivos assistenciais para pessoas com transtornos severos e persistentes ocorrida no Brasil a partir da década de 1990 vem exigindo a construção de novas formas de lidar com as exigências clínicas derivadas de uma prática voltada para a inserção comunitária dessas pessoas, visando à ampliação, à reorganização ou à reconstrução dos laços sociais, afetivos e familiares.

Essa tarefa não é, entretanto, sem sobressaltos, já que muitos apresentam sérias dificuldades de operar no cotidiano em decorrência de uma situação de grave vulnerabilidade social ou por estarem atravessando algum momento crucial da vida. A relação terapêutica é imprescindível nessas ocasiões, oferecendo uma referência estável, que, muitas vezes, evita a perda dos laços ou uma possível desestabilização. O trabalho nas novas instituições requer, portanto, atenção especial à particularidade, acompanhando cada sujeito em seu percurso singular.

No que se refere ao modo de operar na clínica, gostaríamos de salientar importantes indicações fornecidas pela psicoterapia institucional francesa ao ressaltar a importância de um estabelecimento de referências plurais de modo a sustentar endereçamentos múltiplos, tornando a transferência menos perturbadora. Ao evitar a relação dual, é possível se proteger do risco que ela comporta de tornar a presença da referência terapêutica excessiva ou muito persecutória.

As atividades, oficinas ou atendimentos oferecidos devem ser capazes de acolher aqueles que deles necessitam e, ao mesmo tempo, remeter a um plano mais coletivo de maneira a tecer uma articulação entre as diferentes instâncias que compõem um projeto terapêutico (VERZTMAN, 2001).

No que se refere à organização institucional, a tradição basagliana apontou como um dos fatores fundamentais para a superação do modelo manicomial a abertura definitiva de suas portas. Trata-se de uma construção cotidiana que não se circunscreve apenas ao interior dos serviços, mas que implica uma atuação efetiva no território. A novidade reside na possibilidade de uma abertura que promove, por meio de manobra ativa, novos problemas. Estes, por sua vez, permitem a modificação da cultura dos atores em jogo por meio do exercício de sua gestão (ROTTELI, 2001).

Para acompanhar de forma terapêutica a passagem de pessoas de um dispositivo hospitalar de tratamento à vida na comunidade, deve-se manter a possibilidade de circulação dos sujeitos, zelando para que o tratamento posterior a uma internação não desemboque no controle excessivo por parte dos técnicos, ou em desassistência. Trata-se de elaborar modos de operar na clínica que levem em consideração a particularidade individual e seus múltiplos endereçamentos, mantendo as portas sempre abertas.

Por outro lado, não é incomum que pessoas com transtornos graves acabem estabelecendo uma relação de dependência com instituições de internação (FREUD, 1918), demonstrando resistência inicial em aceitar tratamentos substitutivos. É fundamental que a equipe de cuidados possa escutar essas pessoas e acompanhá-las, de modo a recolher suas indicações sobre as razões e questões que as levam a se manter reclusas.

A partir da consolidação da rede CAPS, tem-se discutido as possibilidades de operar a prática psicanalítica em diversos dispositivos da Reforma e utilizar suas ferramentas como orientação para o trabalho na saúde mental (FIGUEIREDO, 2004, 2005; ELIA; COSTA; PINTO, 2005; CALAZANS; BASTOS, 2006). Propõe-se, assim, formalizar uma prática que se ocupe ao mesmo tempo do sujeito, como produto da linguagem e da forma como esTa se articula para cada um, mas que se interesse e forneça ao sujeito as condições necessárias à sustentação de sua cidadania (GUERRA, 2005; RINALDI; BURSZTYN, 2008).

A partir de um trabalho coletivo, trata-se de nortear gradativamente, em cada caso, desenhos que incluam a rede de referência e a comunidade. O trabalho institucional não pode ser sustentado por regras burocráticas, reforçando uma tendência própria ao modo de organização da psicose, que é o de se alocar no lugar de objeto, deixando-se abandonar em suas necessidades e subjetividade.

Ao contrário, cabe a cada instituição inventar um modo de funcionamento que possibilite a execução de projetos individuais construídos a partir das indicações oferecidas pelos próprios sujeitos. Deve aceitar se deparar com o inusitado e, a partir da surpresa, abrir uma direção clínica que parta do contato singular de cada um com a instituição e com o seu adoecimento.

Não se trata de um trabalho estático, mas de um fazer que se modifica mediante a construção subjetiva de cada paciente. Trata-se de possibilitar, e mesmo suportar, que os usuários possam prescindir do serviço quando se sentirem à vontade e em condições para tal. Há nisso uma situação paradoxal: muitas vezes um serviço precisa se tornar presente, mas não excessivamente, de modo a permitir que cada um possa se manifestar.

O trabalho desenvolvido em serviços substitutivos deve estimular que seus usuários se remetam cada vez mais a outros espaços, reorganizando ou organizando sua inserção na comunidade. Apesar disso, cabe acolher aqueles que necessitam contar com uma referência mais contínua e estar alerta para intervir caso isso se faça necessário.

Por meio de dois casos clínicos, tentaremos elucidar, a partir da orientação psicanalítica, o uso que determinados sujeitos fazem de uma internação hospitalar. Trata-se de verificar como se constrói para cada sujeito uma saída que permita prescindir da instituição.

A realização de um percurso singular possibilitou que cada sujeito encontrasse outros recursos, compondo uma nova rede de referências. Isso não se deu, entretanto, sem um trabalho institucional específico, o qual exigiu, conforme será demonstrado, uma relação particularizada em relação às possibilidades inventivas do sujeito, mas ao mesmo tempo a manutenção cuidadosa de um intenso exercício de circulação.

Caminhando com João

Demonstraremos como foi para um sujeito, a quem chamaremos de João, a experiência de saída de uma instituição de internação e sua inserção em um Centro de Atenção Psicossocial.

Sua primeira internação ocorreu na adolescência, época em que seus pais se divorciaram e ele foi reprovado em um exame de ingresso para as forças armadas. Apaixonou-se por uma vizinha: "um amor platônico, ela nunca soube". Alcoolizado, invadiu a casa da jovem e foi expulso pelo pai da mesma. Em seguida, começou uma produção delirante centrada na figura de uma apresentadora de televisão, deslocando-se, com o passar do tempo, para a mídia em geral.

Foram inúmeras as internações em diversas instituições psiquiátricas, inicialmente por curtos períodos de tempo, aumentando gradativamente. Como ele próprio dizia: "Passo mais tempo no hospital que em casa", "tenho mais tempo de internação do que de idade".

Iniciou o tratamento psicológico em abril de 2008, e questionando o que a profissional queria saber, afirmava veementemente "meu ciclo acabou". Interrogado sobre o que seria isso, respondia "já tenho minha aposentadoria, minha mãe fica com o dinheiro, já trabalhei, fiz hospital-dia, não quero saber de mais nada, não tenho que fazer mais nada".

Experimenta um sentimento de que o saber científico não poderia ajudá-lo, dizendo-se "um caso perdido da psiquiatria, vocês não vão me curar, nem Freud daria conta de mim". Ressalta que não quer receber alta médica, pois nas ocasiões em que vai para casa fica mal, grita muito e perde o controle. A internação era apontada, nesse primeiro momento, como um espaço de contenção física: "se aqui eu apronto, sou amarrado, contido. Em casa não tem nada disso, aí aparece bombeiro, vizinho, vira o caos".

A vida social parecia perigosa e persecutória para João, e o muro do hospital lhe dava a sensação de defesa, contendo suas crises. Entretanto, mostrava-se hostil na enfermaria, chegando a agredir e brigar com outros pacientes.

A possível retomada de um trabalho em uma cooperativa o deixou muito agressivo, embora tivesse manifestado o desejo de prosseguir a atividade. João sentiu, na ocasião, que a equipe queria "abusar" dele: "querem que seja escravo naquela cooperativa, querem me envenenar, vocês querem me derrubar, aquele pessoal quer me explorar".

Após murmurar essas palavras em tom extremamente explosivo, esmurrou a mesa do ambulatório que o separava de sua psicóloga, a qual se levantou imediatamente, abriu a porta e se despediu, assinalando a impossibilidade de prosseguir o atendimento e propondo retomar em um momento em que estivesse mais calmo.

Um novo ciclo se inicia com a realização dos atendimentos em ambientes abertos, permitindo que João consiga falar de sua agressividade: "estou sendo atendido no pátio porque fui muito agressivo. Eu sei, você ficou com medo". Assegurando-lhe sobre a continuidade dos atendimentos, a psicóloga confirma que sua decisão está relacionada ao episódio ocorrido na sala do ambulatório. João narra outras explosões de agressividade e de impulsividade e, ao contar sua história, os episódios vão se apaziguando e diminuindo.

Conta, então, que trabalhou como figurante em uma importante rede de televisão, o que culminou com a abertura de seu primeiro quadro delirante. Fala das músicas e trabalhos que enviou para a emissora e de seus ídolos, que lhe roubavam produções e ideias.

Ao perceber o caráter invasivo dessas figuras, e diante da proposta de fazer-se de ponte para ligar sua psicóloga ao sucesso, apresentando-a a seus ídolos, esta afirma que seu compromisso era com ele, e que não estava interessada em atender pessoas de outros lugares. Após essa intervenção, João fala da perseguição que sofre da mídia, que envia mensagens através das cores da televisão e dos vultos que o impedem de fazer suas coisas.

Aceita sair de licença hospitalar, mas pede que sua psicóloga garanta que nada irá lhe acontecer. Suporta a ausência de garantia, aceitando a oferta de sua psicóloga de estar por perto caso precise.

Os atendimentos passam a se realizar, a pedido de João, em movimento, ao caminhar. Iniciam um percurso no próprio hospital, que passa a ser estendido ao campus da universidade próxima e, posteriormente, ao bairro. Essa atividade dá inicio a uma clínica peripatética, como descreve Lancetti (2006), "praticada em movimento, no dentro fora dos consultórios, nos espaços e tempos traçados".

Após algumas licenças, João obtém alta médica, passando a ir com muita irregularidade ao seu tratamento ambulatorial. Fala da sua dificuldade de comparecimento, sempre acuado com os sinais que vê pelo caminho. Volta a se internar cerca de três meses depois, muito agitado, dizendo que a imprensa, além de roubar suas ideias, irá matá-lo. "Eles são vingativos, vão me matar. Estão em todos os lugares, em todos os hospícios. Maluco é uma fonte de criação e eles roubam tudo de graça".

Pede que sua psicóloga lhe dê papel e caneta e passa a redigir um "dossiê", que tem como função protegê-la. Fala da internação de outra forma, não mais como contenção, mas como "o lugar onde tenho amigos, posso zoar muito aqui dentro". Sua casa é vista como um lugar que traz solidão: "lá só lavo louça, durmo, lavo louça, não tem ninguém para zoar".

Fala que tudo o que acontece com ele está relacionado a "quem me governa", referindo-se à emissora que rouba suas idéias e não paga pelo que ele já produziu. Questiona-se se esse seria um trabalho mais adequado, já que era baseado numa relação desigual e injusta. Concorda e afirma que não: "só eu que me ferro, eles só ganham".

Manifesta o desejo de ter uma licença e, ao retornar da mesma, solicita alta da internação com a proposta de dar continuidade ao tratamento no ambulatório. No entanto, não consegue aderir ao tratamento ambulatorial, justificando sua ausência: "não consigo sair de casa. Preciso falar por telefone, a terapia tem que ser por telefone". Reforçava-se o convite para que o paciente fosse ao ambulatório. Ele agendava o dia, porém, não comparecia.

Em determinado momento, consegue expressar sua dificuldade e formular um pedido: "Aí pra mim é pra internar, fico com medo, se for, vou querer ficar internado, é longe demais, fico paranoico no ônibus. Quero ir para um hospital mais perto". Entendendo o seu pedido como uma possibilidade de dar continuidade ao tratamento em um Centro de Atenção Psicossocial, a psicóloga acata sua recusa de não ocupar mais o lugar daquele que era permanentemente internado no hospital psiquiátrico, e o auxilia a prescindir desse lugar.

Após conversas regulares com a equipe do CAPS, algumas idas com o paciente e sua mãe até lá, foi necessário suportar sua insegurança e o medo de "perder a vaga do hospital", ou de não poder recorrer a uma internação. Foi preciso que a equipe de referência do hospital garantisse mais uma vez que estaria presente para recebê-lo caso necessitasse. Coube a ele, então, convencer a mãe de que "seria melhor ir pra lá porque é mais calmo, chego mais depressa e não fico com vontade de me internar".

O acompanhamento de João prosseguiu no CAPS, despedindo-se no momento em que realizou sua primeira consulta com seus novos técnicos. Agradeceu à psicóloga por não ter "desistido", lembrando que fizeram "boas caminhadas juntos". Ajudar a trilhar o caminho, possibilitar que um sujeito possa advir em sua particularidade, acompanhar seu percurso singular e despedir-se dele para que tenha a possibilidade de seguir adiante, foram os aprendizados extraídos no trabalho de acompanhamento de João em sua ida a uma nova instituição.

Um retorno ao Norte

O caso clínico de Márcia nos auxiliará a ilustrar como uma instituição pode auxiliar um sujeito a encontrar uma direção que o ajude a construir seu percurso singular, mesmo que isso o leve a outros horizontes.

Na ocasião em que Márcia estava internada, seus familiares se recusaram a buscá-la. Ela, por sua vez, negou-se a ir para casa; só aceitou sair da internação psiquiátrica cerca de um mês após ter recebido alta, acompanhada da assistente social da equipe. A paciente, acompanhada pela assistente social, foi recebida com espanto e tristeza pela família. Segundo o relato da assistente social, os familiares ficaram assustados com a chegada da paciente, e a neta começou a chorar copiosamente ao ver a avó.

Havia uma proposta de retorno à instituição para atendimento ambulatorial. No entanto, ela não compareceu e se reinternou alguns meses depois por ter agredido a filha, brigado com a vizinhança e matado um gato. Nessa época, a psicóloga pôde entender melhor sua história: Márcia residia no interior de Pernambuco, veio com o marido "tentar a vida no Rio". Quando se mudou, tinha um filho; e, no Rio de Janeiro, teve mais dois filhos.

Quando seus filhos eram adolescentes, apaixonou-se por um homem, abandonou a família e foi residir com ele. Moraram juntos por alguns anos até que ele a deixou e se mudou para outro estado. Ela, então, tornou-se moradora de rua por certo período: "eu não queria saber de nada, não morri de fome porque me davam comida". Posteriormente, foi resgatada pela família, que a aceitou de volta. Nessa época, teve sua primeira internação. Manteve seu tratamento ambulatorial em uma policlínica próxima a sua casa, mas comparecia com muita irregularidade. As crises se acentuaram, e sua relação com a família foi se tornando cada vez mais difícil.

Durante essa internação, a psicóloga percebeu que Márcia não achava que precisava de tratamento. Culpava os filhos e o marido pelo que lhe acontecia. Após alguns dias, no momento de sua alta, a equipe tentou sem sucesso contatar sua família. Foi acionado o Programa de Saúde da Família da região, que informou que os familiares tinham se mudado da comunidade. A filha de Márcia foi localizada, mas não se mostrou disposta a ajudar a mãe.

Junto à equipe do PSF, a equipe responsável pelo caso optou por investir no retorno de Márcia para sua casa, posto que esta havia sido deixada pelos familiares e tinha uma aposentadoria por ter trabalhado em uma escola, o que lhe permitia viver. Uma cuidadora foi indicada para auxiliá-la, indo ao hospital algumas vezes para visitá-la e buscá-la no dia da alta.

Márcia viria semanalmente, acompanhada da cuidadora, ao ambulatório do hospital para atendimento, mas não compareceu e voltou a se internar em poucos dias. A cuidadora conta que Márcia ficou muito triste em casa, sem sequer se alimentar. Em seguida, para "afastar a tristeza", gastou todo o dinheiro da aposentadoria com roupas e se recusou a tomar a medicação. Segundo a cuidadora, Márcia "Foi ao shopping, comprou um vestido por duzentos reais, usou ele uns dias e depois botou fogo pra não lavar". Além disso, roubou algumas roupas no varal da vizinha, sendo ameaçada na comunidade.

A cuidadora falou de sua dificuldade em continuar acompanhando a paciente, e Márcia pediu para se internar. Disse ter queimado as roupas que comprou "porque é difícil pra lavar em casa". Fala da dificuldade em morar na comunidade e aponta uma nova direção: queria retornar para sua cidade natal, localizada no interior de Pernambuco, onde tem tios, irmãs, sobrinhos e seu pai, já bastante idoso. Almejava residir com seu pai e irmã, gostaria de ajudá-los financeiramente com o dinheiro que recebe da aposentadoria. Márcia não os via há cerca de quinze anos, mantendo contato apenas por telefone ou carta.

Após contato com seus familiares no interior de Pernambuco, foi acionada a rede de saúde mental da região. Teve início um trabalho de rede com três equipes em uma mesma direção clínica: a possibilidade de construir "uma vida nova" e a importância de continuar e aceitar um tratamento em Pernambuco.

A equipe de saúde mental de sua terra natal iniciou um trabalho com os familiares de Márcia por meio de visitas domiciliares. A equipe do PSF tentou localizar seus filhos, sem sucesso, para comunicar sua decisão e tentar implicá-los no processo.

Chegado o dia da viagem, ela se recusa a andar de avião, à noite, com a assistente social: "tem que ser de dia". Posteriormente, em reunião com as equipes do PSF e do hospital, Márcia fala de sua insegurança em ir com a assistente social sem sequer informar aos filhos. A equipe do PSF consegue localizar um filho, que, por sua vez, mostra-se irritado com a possibilidade de a mãe ir para outro estado. Solicita-se, então, que ele compareça ao hospital. Ele se prontifica a voltar a morar com a mãe, mas esta se nega: "aqui já deu, quero ir pro Norte". Em seguida, pede ao filho que a leve: "eu fico mais segura com você".

Somente ao definir uma direção a alta pôde se efetivar. Ela suportou não ter conseguido se despedir dos outros filhos, assinalando que talvez fosse importante construir algo novo antes dessa reaproximação.

Seu filho se organizou, tirou férias, acompanhou Márcia e passou alguns dias com ela no interior de Pernambuco. Entrou em contato conosco quando voltou e disse que a mãe estava bem. Ligamos também para uma nova vizinha de Márcia, que nos informou que ela estava fazendo tratamento e frequentando os eventos da praça da cidade. O retorno ao "Norte" abre uma nova possibilidade de se localizar, reconstruindo sua vida em outro espaço.

A orientação psicanalítica em instituição: instituindo a flexibilidade

No trabalho institucional, a escuta da particularidade é prioritária e deve abarcar a dimensão subjetiva do adoecimento. A clínica com pessoas com transtornos graves e persistentes frequentemente exige o trabalho institucional, que tem como função oferecer uma contenção que permita atravessar e superar impasses existenciais: para João, tratou-se de se encontrar meios para sobrepujar sua agressividade; e, no caso de Márcia, a instituição impediu novas passagens ao ato.

Viganó (2002) aponta que a vida social pode se tornar perigosa para alguns sujeitos, que recorrem ao corpo institucional como defesa contra a experiência de invasão. É importante que o trabalho tenha como direção a produção de um sujeito inédito, pois não se pode esquecer que, por oferecer uma estrutura muito fixa, uma instituição pode muitas vezes impedir a parceria criativa do sujeito.

Ao acolher a solução de João de seguir o seu tratamento em outro lugar, frente à sua constatação de que ir ao ambulatório o incitava a se internar, e ao nos deixarmos surpreender pelo desejo de Márcia de encontrar o seu Norte, uma experiência clínica inédita pôde se construir. A partir das sugestões dos próprios sujeitos foi traçada uma direção clínica particular. Não se tratou de oferecer ou dar respostas a priori, mas de suspendê-las, temporariamente, de forma a não excluir o saber do usuário, permitindo que cada um encontrasse os arranjos que lhes fossem possíveis.

O tratamento voltado para pessoas com transtornos graves não exige, necessariamente, uma estrutura coletiva de resposta (ZENONI, 2000). Muitas vezes, o sujeito cria uma composição de referências que lhe permite sentir-se amparado em sua comunidade, em seu próprio bairro, com a vizinhança, envolvendo-se em atividades artísticas, religiosas ou outros recursos disponíveis. Márcia planeja criar uma rede na qual possa se apoiar e que, ao mesmo tempo, ajude outras pessoas.

Alguns sujeitos podem formar uma espécie de instituição virtual, pluralizando seus endereçamentos. Pode-se pensar a rede como sendo formada por pontos de encontro, cooperação e iniciativas entre as pessoas, ou seja, estabelecendo a possibilidade de circulação de um lugar a outro. É o sujeito que organiza sua rede a partir de sua criatividade e soluções inventivas, cabendo à equipe de cuidados cuidar de seu planejamento.

Viganó (2002) alerta que a instituição não se constitui em si mesma como garantia, não produzindo necessariamente um trabalho que faça rede. Mostra que esta pode, muitas vezes, funcionar como uma rede de internet, de forma mecânica e desumanizada, sendo importante personalizá-la. Deve funcionar como uma alavanca, permitindo, a partir dos pontos que a compõem, invenções singulares. A rede se humaniza de formas diferentes, a partir das soluções criativas e do movimento singular de cada um. Ela deve ser, dessa forma, o instrumento para a construção e a reconstrução de possibilidades de existência.

Vale ressaltar que para a organização e o planejamento da rede se efetivarem, é importante que existam os dispositivos de saúde e certa flexibilidade para que cada sujeito se utilize deles de acordo com sua demanda e singularidade. Ao referir-se a uma pesquisa realizada em alguns CAPS do Estado de Minas Gerais, Pinto (2009) aponta a diversidade do funcionamento dos serviços em relação a cada caso: "encontramos 'uma instituição' única para cada paciente".

Figueiredo (2005) aponta que ao partilhar o que se recolhe de cada caso, a cada intervenção pode-se tecer um saber sobre o sujeito, recolhendo elementos por ele fornecidos como sinais para a direção do tratamento. Eis a tessitura que aponta o caminho a seguir para cada um, a cada tempo, delineando uma rede do cuidar que se articula com a própria condução do tratamento que cada caso clínico exige.

Os casos apresentados demonstram que uma mesma instituição exerce funções diferentes para cada paciente, o que contribui para que sejam tomados enquanto sujeitos. Alkmim (2008) propõe, nessa mesma via, buscar em cada caso a exceção, discutindo formas de trabalho que circunscrevam e viabilizem um caminho não devastador para cada sujeito. Considerar a instituição como exceção implica perguntar a nós mesmos sobre que lugar a instituição ocupa para cada sujeito, delimitando o seu papel e sustentando um circuito de relações.

A equipe precisa ser flexível e se ater às particularidades de cada um, de modo a se engajar na construção coletiva de um saber que não é sobre o paciente, mas que se constrói a partir do que ele nos indica, efetuando-se através do trabalho em equipe. Pode-se estabelecer um laço produtivo entre o trabalho de diferentes técnicos ao visar tanto a um fazer clínico como à produção de um saber que lhe é consequente. Nesse sentido, é relevante mencionar como norte a transferência de trabalho como um instrumento entre pares que busca tanto a produção do saber como o fazer clínico. (FIGUEIREDO, 2000).

Di Ciaccia (2005) descreve uma prática com a psicanálise em instituição que surge a partir de exigências impostas pela clínica com crianças autistas. Trata-se de um dispositivo em que cada um dos participantes está atento para favorecer e recolher as produções do inconsciente na linguagem, remetendo-as à construção do caso em equipe. Aponta, assim, para a importância da parceria de trabalho em uma instituição que crie novas saídas e intervenções clínicas. A participação dos técnicos não se restringe apenas à sua especificidade profissional; há, sobretudo, o desejo de trabalharem juntos, sob um determinado espírito, que tem o intercâmbio como mola propulsora.

Discernir aquilo que é inédito, o modo como cada um encontra um percurso excepcional é uma manobra que requer trabalho coletivo e compartilhado. É importante, a cada vez, encontrar meios de ajudar os sujeitos a criarem soluções próprias, construindo um lugar que os possibilite prescindir da instituição na condição de dela se servirem.

 

REFERÊNCIAS

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