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Mental

Print version ISSN 1679-4427

Mental vol.10 no.19 Barbacena Dec. 2012

 

O desenvolvimento psíquico precoce e o risco de psicose de uma perspectiva psicanalítica

 

Early mental development and the risk of psychosis from a psychoanalytic perspective

 

 

Anna RianiI; Fatima CaropresoII

IMestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
IIMestre e Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo retomar e discutir algumas das hipóteses sobre o desenvolvimento psíquico precoce e o risco de psicose, elaboradas por certos autores de orientação psicanalítica, sobretudo, Margareth Mahler, Donald Winnicott, Renè Spitz e Arminda Aberastury. Em um primeiro momento, apresentamos e discutimos as fases do desenvolvimento do primeiro ano de vida consideradas como características do desenvolvimento psíquico infantil normal e, em seguida, nos voltamos para a questão das possíveis falhas nesse desenvolvimento que poderiam estar associadas à psicose segundo os autores acima mencionados.

Palavras-chave: Psicanálise; desenvolvimento psíquico; psicose; Donald Winnicott; Margareth Mahler.


ABSTRACT

The objective of this article is to resume and discuss some hypotheses about early mental development and the risk of psychosis made by some psychoanalytic authors concerned with these issues, especially Margaret Mahler, Donald Winnicott, Renè Spitz and Arminda Aberastury. First, we describe and discuss the stages of development during the first year of life which are regarded as typical of normal children's mental development. Next, we approach the question of possible failures in this development that could be associated with psychosis according to the authors mentioned above.

Keywords: Psychoanalysis; mental development; psychosis; Donald Winnicott; Margareth Mahler.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Entre os principais autores que investigaram o desenvolvimento psíquico precoce partindo de um referencial psicanalítico e formularam hipóteses para tentar esclarecer quais são os fatores relacionados ao surgimento da psicose, podemos citar a pediatra e psiquiatra húngara Margareth Mahler (1897-1985), o pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott (1896-1971), o médico e psicanalista austríaco Renè Spitz (1887-1974) e a psicanalista infantil argentina Arminda Aberastury (1910-1972). Tais autores chamaram atenção para a importância da qualidade dos cuidados iniciais na vida do bebê, especialmente no primeiro ano de vida.

Alguns deles, como Winnicott e Mahler, deram maior importância aos cuidados maternos para um desenvolvimento psíquico satisfatório. Aberastury, por sua vez, enfatizou o desenvolvimento lúdico da criança pequena, destacando a importância das primeiras brincadeiras no desenvolvimento saudável do psiquismo, especialmente aquelas em que o corpo do bebê está envolvido. Já Spitz, com uma vertente mais hospitalar, traz conceitos importantes sobre o desenvolvimento emocional primitivo relativo ao desenvolvimento social da criança pequena, contribuindo, assim, para que se compreenda a psicopatologia infantil.

O presente artigo tem como objetivo abordar o desenvolvimento psíquico precoce e o risco de psicose. Em um primeiro momento, apresentamos e discutimos algumas das características do desenvolvimento inicial do psiquismo, a partir de um recorte teórico de alguns dos principais conceitos desenvolvidos pelos autores acima mencionados. Em seguida, nos voltamos para a questão das possíveis falhas no desenvolvimento que poderiam estar associadas à psicose.

 

2 O DESENVOLVIMENTO PSÍQUICO PRECOCE

Segundo Mahler, Pine e Bergman, o desenvolvimento biológico do homem e o nascimento psicológico do indivíduo não coincidem no tempo, "pois o primeiro é um evento bem delimitado, dramático e observável; o último, um processo intrapsíquico de lento desdobrar" (MAHLER; PINE; BERGMAN, 1977, p. 15). Esse processo intrapsíquico, a que se referem Mahler, Pine e Bergman, é dividido em três fases distintas que se sucederiam ao longo do primeiro ano de vida da criança: a fase autística normal, a fase de simbiose e a fase de individuação-separação.

A fase autística normal corresponderia às primeiras semanas que sucedem ao nascimento, nas quais o bebê apresentaria alternância entre os estados de sonolência e satisfação das necessidades. Nessa fase, os processos fisiológicos predominariam sobre os psicológicos e o objetivo principal seria a aquisição, por parte do bebê, de um equilíbrio homeostático em sua nova condição extrauterina. Neste momento do desenvolvimento, o bebê não seria capaz de perceber absolutamente nada além do que fosse sentido em seu corpo como desprazer ou satisfação. Ele vivenciaria o que a autora chama de narcisismo primário absoluto, pois acreditaria que somente ele existe no mundo.

Uma característica do narcisismo primário absoluto, de grande importância para o presente estudo, é a criatividade primária, conceito desenvolvido por Winnicott (2000). Tal criatividade consistiria na crença, por parte do bebê, de que tudo que o satisfaz é fruto de sua criação. Por exemplo, quando sentisse o desconforto orgânico da fome e sua mãe o alimentasse, julgaria que o seio foi produto de sua criação, mesmo sem compreender o que é o seio e nem mesmo que existe a mãe. Segundo Mahler, Pine e Bergman (1977), a passagem da fase autística normal para a simbiótica se daria a partir da percepção pelo bebê, ainda que não muito clara, de que há algo para além de sua criatividade primária que traz conforto ao seu desprazer. Essa percepção o destituiria do narcisismo primário absoluto e originaria uma nova maneira de compreender os fenômenos por ele vivenciados.

Na fase simbiótica, que se iniciaria por volta do fim do primeiro mês e início do segundo, haveria uma fusão do bebê com sua mãe, mais especificamente, com parte dela, pois, a princípio, a mãe seria percebida como seio, por ser este a fonte central de satisfação. Assim, o seio seria vivenciado como um prolongamento de seu corpo.

Ao longo dessa fase, contudo, a criança começaria a perceber a mãe como um todo e não somente como um seio, o que possibilitaria, como dizem Mahler, Pine e Bergman (1977), que exterior e interior, eu e não-eu, começassem a ser diferenciados. Spitz (1987) acredita que a simbiose é o estágio no qual iniciaria a vivência de um princípio de realidade e, consequentemente, de frustrações, que surgiriam nas ocasiões em que a satisfação não viesse imediatamente após o desejo e a necessidade se instalarem no bebê.

Os estímulos externos chegariam à criança principalmente através da mãe e a ela caberia a função de iniciar a criança na consciência de seu próprio corpo. Esse processo envolveria a introjeção de uma imagem corporal construída a partir das sensações resultantes do toque, do aperto, do olhar, das palavras, as quais dariam origem a várias respostas orgânicas e consequentes traços mnêmicos. Nesse contexto, o afeto seria de extrema importância para que a experiência fosse favorável à criança e para que a mãe fosse sentida como fonte de segurança.

A questão mnêmica foi estudada por Spitz (1987) a partir do sorriso do bebê, diante da figura da mãe, como resposta ao reconhecimento daquele que se encontra diante dele. Suas pesquisas o levaram à conclusão de que a mãe é eleita pelo filho como primeiro objeto de amor, tendo em vista que o amor a si mesmo, que o bebê apresenta na vivência do narcisismo primário absoluto, não o faz objeto de amor dele mesmo. Assim, Spitz (1987) considera a fase simbiótica como pré-objetal por ser nela que se daria a ocorrência do primeiro contato do bebê com o mundo. Essa fase serviria, mais adiante no desenvolvimento da criança pequena, como precursora da relação dual estabelecida com seu objeto, a mãe.

Acerca da díade estabelecida nessa fase, Lamanno (1990) diz que "o bebê sente que cada ato de sua mãe seja um ato de si mesmo, cada resposta materna, obra de seu desejo, cada vivência prazerosa não seja senão uma mostra de sua onipotência [...]" (p. 20). Essa onipotência do bebê assemelha-se à criatividade primária, porém, na fase simbiótica, esse processo não ocorreria com tanta força como na fase autística, pois, em alguns momentos, a frustração geraria a dúvida, o que faria com que o bebê aos poucos fosse percebendo que o que o satisfaz é algo do mundo exterior. De acordo com a teoria de Mahler, Pine e Bergman (1977), essa percepção se consolidaria por volta dos quatro ou cinco meses, idade em que iniciaria a fase de separação-individuação.

A fase de separação-individuação seria composta por dois momentos distintos, que se entrelaçariam no processo do desenvolvimento intrapsíquico. A autora conceitua separação como a saída da criança da condição fusional com a mãe, enquanto individuação seria o movimento de assumir suas características individuais. O processo de separação seria decorrente da diferenciação e perduraria durante todo o restante do primeiro ano de vida. Nessa fase, ocorreriam fenômenos que propiciariam ao bebê lançar mão do recurso criativo como forma de amenizar angústias e conflitos, pois a criança começaria a se perceber realmente como separada da mãe e viveria momentos de solidão e angústia na sua ausência. A primeira experiência criativa do bebê (criatividade primária) não teria sido consciente e volitiva enquanto recurso ansiolítico.

Como dissemos, na fase simbiótica, o bebê começaria a constituir uma imagem corporal e a identificar a mãe, demonstrando isso através do sorriso. Na fase de separação, o reconhecimento da imagem corporal tornar-se-ia ainda mais aguçado. A criança passaria mais tempo acordada e permaneceria alerta aos estímulos oriundos do ambiente, mesmo sem compreendê-lo de forma clara.

Por volta dos seis meses, há "sinais definidos de que o bebê começa a diferenciar seu próprio corpo daquele da mãe" (MAHLER; PINE; BERGMAN, 1977, p. 74), processo esse que ocorreria através de explorações manuais, táteis e visuais. Assim, se daria a superação do estado simbiótico, no qual dois corpos encontrar-se-iam fusionados. Mahler, Pine e Bergman (1977) observam que:

É durante a primeira subfase de separação-individuação que todos os bebês normais dão seus primeiros passos hesitantes em direção à libertação, num sentido corporal, de sua, até então, completamente passiva condição de bebê de colo - o estágio de unidade dual com a mãe. (p. 75).

Aos sete ou oito meses de idade, a criança iniciaria um processo de comparação entre a mãe e outros que se aproximam, distinguindo aqueles que lhe são familiares daqueles que não o são. Isso vai ao encontro do que Spitz (1987) denominou ansiedade dos oito meses, entendendo esse fenômeno como aquele em que a criança rejeita um estranho por este não apresentar os traços de sua mãe. Assim, quando na presença de alguém que não consta em seu arsenal mnêmico, seria percebida a ausência da mãe e surgiria o sentimento de que ela a deixou. A criança, então, passaria a rejeitar tudo o que não é a sua mãe. Nesse movimento de rejeição a partir da comparação com a mãe, haveria um reflexo do estabelecimento real da relação objetal, sendo ela o objeto de amor do filho. A ausência da mãe e a necessidade da criança em separar-se dela impulsionaria à vivência dos fenômenos transicionais descritos por Winnicott (2000), os quais aconteceriam entre os quatro e doze meses de idade, atingindo seu clímax por volta dos oito meses. Para entendermos o que propõe Winnicott, é preciso que voltemos à fase infantil anterior aos oito meses, quando o bebê, após o nascimento, utiliza a mão na boca para estimulá-la e tranquilizar-se. Com o passar do tempo, a criança passa a se interessar por bonecas, ursinhos ou outros objetos que se tornam especiais e estão com ela todo o tempo, ou grande parte dele, sendo preciso levar em viagens, na hora de dormir, ou quando está sozinha.

Segundo o autor, esses dois fenômenos, o chupar o dedo e a escolha do objeto, estariam intimamente ligados, apesar de separados por um determinado espaço de tempo. Ele argumenta que introduziu

As expressões 'objeto transicional' e 'fenômeno transicional' para designar a área intermediária da experiência oral e a verdadeira relação objetal, entre a atividade da criatividade primária e a projeção do que já teria sido introjetado [...] (WINNICOTT, 2000, p. 317).

Essas situações iniciariam quando a mãe se tornasse capaz de frustrar seu filho e inscrevê-lo na desilusão, no princípio de realidade. Na fase autística normal, a mãe teria respondido às necessidades do bebê de forma mais imediata (princípio do prazer), nutrindo uma ilusão de que o querer e o poder são iguais e fruto de sua criatividade primária. Esse comportamento perduraria ainda na fase simbiótica até que a criança percebesse que o seio não é um prolongamento de seu corpo, mas parte integrante de um todo que é o corpo da mãe.

Assim, acredita Winnicott (2000) que a frustração faria com que houvesse um tempo de espera entre a necessidade e a satisfação e, portanto, possibilitaria a percepção de que há algo para além da sua capacidade criativa, ou seja, um mundo externo. Segundo ele,

A mãe suficientemente boa, [...] parte de uma adaptação quase total às necessidades de seu bebê, e com o passar do tempo adapta-se cada vez menos inteiramente, de acordo com a capacidade crescente do bebê de lidar com suas falhas. (WINNICOTT, 2000, p. 326).

Com a crescente constatação da não satisfação imediata, aumentaria a capacidade do bebê de percepção da realidade externa (objeto não-eu) e, consequentemente, a sua necessidade de testar onde está o limite entre o eu e o outro.

Aberastury (1992) comenta que, antes da escolha objetal aos oito meses, a criança brinca consigo mesma na busca de respostas para sua tese de que existe sem a mãe. Assim, ela esconde o rosto na coberta para depois descobri-lo e perceber que nada aconteceu, brincadeira típica do quarto mês. Segundo a autora, haveria, neste jogo, uma elaboração da angústia da separação da mãe. Outra atividade é jogar os brinquedos no chão e tê-los de volta após alguém pegá-los, descobrindo que os objetos podem ir e voltar sem que nada ocorra para o bebê. Com isso, iria surgindo uma compreensão sobre o "poder perder e recuperar o que ama" (ABERASTURY, 1992, p. 30).

Todos esses acontecimentos preparariam a criança para a chegada do oitavo mês, época em que, de fato, a criança se separaria de sua mãe. Mahler, Pine e Bergman (1977) contribuíram de maneira mais específica para o esclarecimento do fenômeno transicional de Winnicott ao introduzir uma visão motora desta fase, dizendo que, neste momento, a criança estaria apta a engatinhar e o faria. Ela se movimentaria para longe da mãe e retornaria quando a distância, ou o tempo sem a presença da mãe, se tornasse angustiante, numa tentativa de "reabastecimento emocional" (MAHLER; PINE; BERGMAN, 1977, p. 92).

O impulso de separar-se da mãe, ainda que angustiante, seria necessário à criança que, em pleno desenvolvimento de sua potencialidade locomotora, testaria sua capacidade de se manter longe da mãe. Primeiro engatinhando e depois andando, ela iria para longe e retornaria quando sentisse a necessidade de ter a figura da mãe real aos olhos. Mahler, Pine e Bergman (1977) denominam essa atividade de treinamento e reaproximação e aponta que ela só finaliza quando a criança sente-se segura de que a mãe continua existindo, mesmo sem que ela seja capaz de vê-la, e se torna capaz de permanecer algum tempo sem a sua presença.

O continuar existindo sem a presença física aos olhos remete ao conceito de constância de objeto, que consiste na certeza da existência do objeto, mesmo que fora do campo de visão. Assim, parece possível estender tal conceito à constância de pessoa e aplicá-lo à constância que a criança assume em relação à mãe quando já individualizada.

A ansiedade e insegurança, devido à ausência da mãe, teriam que ser superadas pelo bebê para que ele se separasse completamente dela e se individualizasse. A escolha do objeto transicional teria o papel de ajudar nessa superação. Esse objeto geralmente seria aquele que esteve próximo da criança em momentos prévios de ansiedade devido à frustração materna e que trouxe conforto e prazer. Desta forma, o objeto transicional viria para suprir uma lacuna no relacionamento mãe-bebê, trazendo segurança toda vez que a distância da mãe trouxesse sentimentos de desconforto. Assim, simbolicamente, o objeto transicional seria uma representação interna da presença materna.

Winnicott (1975) esclarece que

Não é o objeto, naturalmente, que é transicional. Ele representa a transição do bebê de um estado fundido com a mãe para um estado em que está em relação com ela como algo externo e separado. (p. 30).

Dessa maneira, a principal função do objeto transicional seria proporcionar à criança segurança e alívio na vivência da angústia de separação da mãe. À medida que crescesse e se assumisse como diferenciada desta, iria havendo um desprendimento também do objeto transicional por ele não mais ser tão necessário, uma vez que estar longe da mãe não causaria tanto desconforto quanto antes. No entanto, Winnicott (2000) acredita que, em qualquer momento, a criança poderia retornar ao objeto transicional, o que ocorreria quando alguma situação se apresentasse como ameaçadora e fizesse a criança sentir a mesma angústia experienciada na vivência de separação.

O oitavo mês seria, então, de grande importância no desenvolvimento da criança. Ele seria o marco de início de um movimento de separação e início do processo de individuação, o qual de fato só se completaria, segundo Mahler, Pine e Bergman (1977), por volta dos três anos.

Para poder, no entanto, construir uma imagem interna da mãe, a criança precisaria passar por diversos momentos da díade. Na simbiose, a mãe que satisfaz as necessidades do bebê se colocaria numa posição boa, assumindo uma postura contrária, má, quando frustrasse o filho. Ultrapassada a fase simbiótica, a criança seria capaz de perceber que a mãe boa e a mãe má são uma só, conseguindo compreender que pode ter sentimentos ambivalentes pela mesma pessoa. A frustração e inscrição da criança no princípio da realidade é que possibilitariam, entre outras coisas já discutidas, que o não fosse compreendido pela criança.

Spitz (1987) acredita que o não é um dos organizadores do psiquismo da criança, pois ele é a primeira representação efetiva da lei, e, portanto, do outro, reforçando a ideia, característica da fase de individuação, de que ela e a mãe são pessoas separadas, uma vez que a ordem vem de fora e agride seu narcisismo, sua vontade. Segundo Mahler, Pine e Bergman (1977), "esta fase do desenvolvimento é marcada pelo conflito entre a iniciativa da criança e as apreensões da mãe" (p. 138). A mãe torna-se o ego externo da criança e precisa orientá-la nessa busca de si mesma. A princípio, essa interdição seria feita por gestos e palavras e, à medida que a criança se tornasse verbal, somente a palavra seria necessária.

Por todos esses eventos, a criança formaria em seu psiquismo uma imagem interna representativa da mãe, a qual daria segurança para o ir e vir dos dois elementos da díade. Quanto mais essa imagem se tornasse estável, mais a criança delimitaria suas fronteiras egoicas, ou seja, mais ela se individualizaria até atingir a máxima completude possível em relação a si mesma. Para Mahler, o marco do fim do processo de separação-individuação se daria em torno dos 30 meses. Segundo a autora, essa fase de separação-individuação seria "próxima da experiência de um segundo nascimento, sendo [...] um rompimento da membrana simbiótica [...]" (MAHLER, 1983, p. 8).

Algumas crianças, contudo, não percorreriam esse caminho satisfatoriamente, não se separando e, consequentemente, não se individualizando de maneira sólida, o que poderia levar a um quadro de psicose.

 

3 AS FALHAS NO DESENVOLVIMENTO PSÍQUICO E O RISCO DE PSICOSE

O diagnóstico de psicose pode ser feito com precisão apenas na adolescência, cabendo ao termo traço psicótico denominar esse estado antecipado de crianças com possibilidade dessa patologia. Segundo alguns autores, a estrutura básica da psicose se desenvolveria, em grande parte, a partir da maneira como fossem estabelecidas as relações mãe-bebê e da forma como a criança recebesse os cuidados oriundos do mundo externo. Nesse sentido, Winnicott (2000) diz que:

O diagnóstico é feito quando o ambiente não consegue ocultar ou resolver as distorções do desenvolvimento emocional, levando a criança a organizar-se em torno de uma linha de defesa que se torna reconhecível como uma entidade patológica. Esta teoria parte do princípio de que as bases da saúde mental são lançadas na primeira infância pelas técnicas utilizadas com naturalidade por uma mãe preocupada em cuidar de seu filho. (p. 305).

Segundo Winnicott o ser humano possuiria uma tendência inata para o desenvolvimento. No universo psicológico, diz ele,

[...] há uma tendência ao desenvolvimento que é inata e que corresponde ao crescimento do corpo e ao desenvolvimento gradual de certas funções [...] Todavia, esse crescimento natural não se constata na ausência de condições suficientemente boas [...] ( WINNICOTT, 1993 [1965], p. 5).

Dias (2003) a descreve como uma tendência inata à integração em uma unidade ao longo de um processo de amadurecimento, a qual dependeria, para se concretizar, da existência contínua de um ambiente facilitador.

Uma vez que todos os indivíduos possuiriam essa tendência ao amadurecimento e que nenhuma tendência inata se oporia a ela, o fator diferencial na constituição psíquica dos indivíduos é remetido, em grande medida, às diferentes condições ambientais às quais eles são submetidos ao longo de seu desenvolvimento e, em especial, em seu primeiro ano de vida. Segundo Winnicott, "o desenvolvimento emocional do primeiro ano de vida lança as fundações mesmas da saúde mental do indivíduo humano" (1993 [1965], p. 5). O essencial, para um desenvolvimento psíquico satisfatório, seria que a criança dispusesse de um ambiente facilitador que lhe permitisse a realização da sua tendência inata ao desenvolvimento.

Segundo Winnicott (2000) e Mahler, Pine e Bergman (1977), a fase autística e a simbiótica seriam os momentos de possibilidade de estruturação da psicose. Nelas, como vimos, não haveria ainda a diferenciação entre a criança e a mãe. Com o tempo, a frustração advinda da mãe impulsionaria a criança a perceber a existência de algo para além do narcisismo primário, que contribui para a sua sobrevivência. Este movimento faria com que ela iniciasse o movimento de separação da mãe e de busca da sua individualidade. Seria justamente a falha ou o não estabelecimento desse processo que poderia levar à psicose.

Para Mahler (1983) haveria duas formas de descrição clínica da psicose infantil, a "psicose autista infantil e a psicose simbiótica infantil". Ambas estão relacionadas à maneira como a relação objetal se desenvolveu, respectivamente, nas fases autística normal e simbiótica. Na psicose autista infantil, a criança se apresenta como se jamais tivesse percebido a mãe como um objeto emocionalmente representativo. Já na psicose simbiótica, há a permanência de uma relação simbiótica mãe-bebê. A criança não consegue ultrapassar essa fase objetal, fundindo sua própria imagem a imagem mental que tem da mãe e permanecendo, assim, em uma relação não diferenciada. Dessa forma, a psicose seria um quadro de regressão emocional às fases primitivas do desenvolvimento. Em suas palavras temos que

[...] as síndromes psicóticas infantis precoces, tanto a de forma autística quanto a simbiótica, representam fixações ou regressões aos dois primeiros estágios evolutivos de "indiferenciação" dentro da unidade primitiva mãe-filho. (MAHLER, 1983, p. 52).

Bergeret (1983) aponta que a mãe é o grande facilitador para que a condição não individualizante ocorra e especifica três maneiras de atuação para tal: a superproteção, a ausência e a satisfação inoportuna.

A mãe superprotetora seria aquela que "não permite à criança ter acesso ao registro do desejo por estar sempre presente" (BERGERET, 1983, p. 220), ou seja, ela não esperaria a criança ter a necessidade para satisfazê-la, gerando uma incapacidade no filho de perceber o que sente e o que quer, uma vez que tudo lhe seria dado no momento em que a mãe quisesse e não ele. Não haveria, nessa relação, nenhum nível de frustração por não haver nem mesmo a necessidade consciente da criança.

A ausência materna, oposta à superproteção, seria a constância e permanência no estado de frustração, de forma que a mãe não satisfaria a necessidade da criança, perdendo o sentido para ela desejar algo. Assim, a criança seria mantida em um estado de eterna dependência, por não saber como sair dessa posição. Segundo Bergeret (1983), a satisfação inoportuna poderia ter um impacto psíquico na criança semelhante ao impacto da ausência materna, pois esse equívoco na satisfação "representa uma forma de discordância entre a necessidade fisiológica que se exprime e o sentido (desviante) que a mãe lhe confere" (BERGERET, 1983, p. 221). É como se a criança sentisse frio e fosse alimentada, ou estivesse chorando de fome e a mãe trocasse sua fralda, deixando sempre o filho frustrado em relação à sua real necessidade e fazendo com que seu desejo perdesse o sentido, assim como ocorreria no caso da ausência materna.

Seja na superproteção, na ausência, ou na satisfação inoportuna, o fato é que a condição unipolar não possibilitaria o estabelecimento de relações objetais com outros além da mãe. O mundo da criança com traços psicóticos seria, então, restrito a ela e à mãe, com a ressalva de que esta é tida como um prolongamento de seu corpo, não assumindo uma posição de totalidade frente à criança. A condição fragmentada da mãe seria também a condição fragmentada da criança, que não perceberia seu corpo como uma totalidade e não sentiria sua personalidade como estando nele localizada. Sendo assim, não seria capaz de movimentar-se na busca de uma separação e individuação pela angústia de que, separada da mãe, ela deixaria de existir. Assim, sua percepção do eu e do outro-que-não-o-eu não se desenvolveria de maneira sólida.

Winnicott (2000) comenta que "é frequente presumir-se que, na saúde, o indivíduo encontra-se sempre integrado, vivendo dentro do próprio corpo e sentindo que o mundo é real" (p. 225). No entanto, para a criança com traços psicóticos, o mundo seria visto de maneira hostil e ameaçadora para sua personalidade frágil e desintegrada. Mahler (1983) observa que a ansiedade de separação é tão intensa que inviabiliza sua vivência.

Embora atribua maior importância aos fatores ambientais na etiologia das psicoses, Winnicott reconhece que fatores hereditários também devem ser levados em consideração. A seguinte passagem é elucidativa a esse respeito:

[...] o meio ambiente ingressa no quadro da psiconeurose, em parte por determinar a natureza do padrão de defesa. A psiconeurose, contudo, não encontra a sua etiologia na condição ambiental, mas nos conflitos pessoais que pertencem especificamente ao indivíduo. Em contraste, a criança anti-social é muito claramente anti-social em resultado de uma privação. Também, para nossa surpresa, descobrimos que na etiologia do mais grave transtorno psiquiátrico, a esquizofrenia, um fracasso do cuidado na fase mais inicial de dependência absoluta da primeira infância é ainda mais importante que o fator hereditário. (WINNICOTT, 1994 [1961], p. 57-58).

Sobre o papel desempenhado pelos fatores hereditários da etiologia das psicoses infantil, Margareth Mahler (1983) diz o seguinte:

No que tange à questão de colocar a etiologia da psicose infantil em fatores hereditários versus traumáticos e de frustração, podemos afirmar ser difícil determinar onde se localiza o distúrbio grave na psicose infantil precoce; se foi causado por uma falta de empatia ou patologia materna, por grande desvio inato do ego do bebê, por uma inerente falta de contato com o meio ambiente ou por descabida necessidade de fusão parasitário-simbiótica com o adulto. (p. 25-26).

As considerações de Winnicott deixam claro que a falha nos cuidados recebidos pela criança no início de seu desenvolvimento desempenha o papel mais importante na etiologia das psicoses, embora a presença de fatores causais hereditários nessa etiologia não possa ser excluída. Já Margareth Mahler (1983) reconhece que tantos fatores herdados como ambientais estão envolvidos em tal etiologia, mas aponta a dificuldade de definir com precisão qual desses fatores desempenha o papel mais importante.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que percebemos a partir da análise das hipóteses formuladas pelos teóricos abordados é que a psicose parece resultar de um desenvolvimento emocional insatisfatório, no qual o processo de separação e individuação não teria sido alcançado, ou não teria sido plenamente consolidado. Eventos importantes no desenvolvimento da criança pequena devem ser vivenciados de maneira satisfatória para que sejam bem elaborados. Nesse contexto, os fenômenos transicionais e as brincadeiras com o corpo, num primeiro momento, e, posteriormente, com objetos se destacam como fundamentais para a aquisição da integridade do eu.

Assim, as fases do desenvolvimento propostas por Margaret Mahler atreladas às vivências transicionais teorizadas por Winnicott mostram quão importantes são as experiências do primeiro ano de vida para o desenvolvimento saudável do psiquismo. Nessa fase, os bebês vão da onipotência à separação e, para que esse percurso seja satisfatoriamente percorrido, é necessário um ambiente facilitador que propicie à criança, por exemplo, poder brincar com o próprio corpo para depois saber brincar com objetos. Entretanto, quando esse ambiente não se apresenta favorável, ou quando fatores hereditários interferem no desenvolvimento da criança pequena, o curso das aquisições psíquicas pode culminar numa patologia como a psicose.

Spitz ressalta a importância dos organizadores sociais e da capacidade da criança em introjetá-los. Quando essa introjeção falha, possivelmente toda uma cadeia derivada dessas aquisições decorrentes da relação da criança com o social é prejudicada, fazendo com que a criança permaneça no estado onipotente, sem um contato satisfatório com o mundo externo.

As considerações acerca do desenvolvimento das fases e das experiências vivenciadas em cada uma delas indicam que a falha nos cuidados recebidos pela criança no início de seu desenvolvimento exerce papel central na etiologia das psicoses, embora o papel desempenhado por fatores herdados em tal etiologia não possa ser desconsiderado. De qualquer forma, as teorizações dos autores mencionados neste artigo apontam para a possibilidade de prevenção dos transtornos psíquicos, a partir de um trabalho profilático que busque orientar os pais e cuidadores no sentido de propiciar às crianças o ambiente facilitador necessário para um desenvolvimento psíquico saudável.

 

REFERÊNCIAS

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_______ O brincar e a realidade. São Paulo: Imago, 1975 [1971]         [ Links ].

 

 

Endereço para correspondênciaI:
Rua Tabajara Ferreira de Toledo, 305, Portal da Torre - Juiz de Fora, MG
CEP: 36037466. E-mail: annariani@hotmail.com

Endereço para correspondênciaII: Pós-Graduação em Psicologia - ICH Universidade Federal de Juiz de Fora
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Artigo recebido em: 03/04/2013
Aprovado para publicação em: 04/06/2013

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