SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número20Instituição geriátrica como uma instituição totalitária: gênero e saúde mentalO caminho trilhado por usuários de um Centro de Atenção Psicossocial do Estado do Pará: construindo itinerários na busca do cuidado índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.11 no.20 Barbacena jan./jun. 2017

 

ARTIGOS

 

O matriciamento em saúde mental na perspectiva dos gestores

 

The management perspective oversupport matrix in mental health

 

El apoyo matriz en salud mental en la perspectiva de los gestores

 

 

Alexandra IglesiasI; Luziane Zacché AvellarII

IDoutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); professora adjunta do Departamento de Psicologia da UFES.
IIDoutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); professora associada I do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O matriciamento tem se firmado como uma prática voltada à estruturação da rede de saúde por meio do fortalecimento das relações entre os profissionais e, consequentemente, destes com os outros atores sociais, incluindo usuários e gestores. Diante da potencialidade dessa estratégia, objetivou-se neste estudo analisar as concepções dos gestores sobre matriciamento em saúde mental, suas avaliações dos efeitos dessa estratégia e suas propostas de fortalecimento da referida prática. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 11 gestores, entre eles gerentes dos Centros de Atenção Psicossocial, das Unidades de Saúde e da coordenação municipal de saúde mental. A pesquisa utilizou a abordagem qualitativa e a técnica de análise de conteúdo de Bardin. Os resultados apontaram três grupos de entendimento para matriciamento: como apropriação da temática e do cuidado em saúde mental pela Atenção Básica, como estratégia de fiscalização do trabalho da atenção básica e como dispositivo de formação e orientação para ação em saúde mental. Destacaram-se, ainda, a ampliação do cuidado em saúde mental pelo matriciamento e a dificuldade de efetivação de encontros produtivos pautados na construção de parcerias para promoção à saúde. Assim, verificou-se a importância de o matriciamento ser colocado constantemente em análise, acreditando que esse fazer interativo possibilita o cuidado integral em saúde.

Palavras-chave: apoio matricial; saúde mental; atenção básica; gestão; centro de atenção psicossocial.


ABSTRACT

The matrix support has become a practice focused in the organization of a health network by the reinforcement of professional's relationships between themselves and, as a consequence, with other social actors like users and managers. Because of the potential of this strategy, the objective was to analyze the conceptions of managers over mental health matrix support, their evaluation of this strategy effects and its proposals to strengthen this support. Semistructured interviews were held with 11 managers, including the ones from Psychosocial Cares Centers (CAPES), from Health Unities (US) and from municipal coordination of mental health. This research used qualitative approach, such as Bardin content analysis technic. The results showed three groups of matrix support understandings: as thematic appropriation and mental health care by the Primary Care, as a labor inspection strategy of primary care and as a training device and guidance for mental health action. It was also highlighted the expansion of mental health care with matrix support and the difficulty to implement productive meetings lined in building partnerships for health promotion. Thus, it was verified the importance of matrix support to be placed constantly under review, believing that this interaction enables a comprehensive health care.

Keywords: matrix supports; mental health; primary care; health management; psychosocial care center.


RESUMEN

El apoyo matriz en salud mental se viene afirmando como una práctica dedicada a la estructuración de la red de salud por medio del fortalecimiento de las relaciones entre los profesionales y, por consecuencia, de ellos con otros actores sociales, incluyendo usuarios y gestores. Frente al potencial de esa estrategia, en este estudio se propuso analizar las concepciones de los gestores sobre el apoyo matriz en salud mental, sus evaluaciones de los efectos de esa estrategia y sus propuestas de fortalecimiento de esa práctica. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con 11 gestores, entre ellos gerentes de los Centros de Atención Psicosocial, de las Unidades de Salud y de la coordinación municipal de salud mental. La investigación utilizó el abordaje cualitativo y la técnica del Análisis de Contenido de Bardin. Los resultados apuntaron tres grupos de entendimientos para el apoyo matriz: como apropiación de la temática y del cuidado de la salud mental por la Atención Primaria, como estrategia de fiscalización del trabajo de atención básica y como dispositivo de formación y orientación para la acción en salud mental. Se ha destacado también la ampliación del cuidado en salud mental a partir del apoyo matriz, y la dificultad de realización de encuentros productivos pautados en la construcción de grupos para la promoción de la salud. Así, se ha verificado la importancia de poner el apoyo matriz en constante análisis, creyendo que el hacer interactivo posibilita el cuidado integral en salud.

Palabras clave: apoyo matriz en salud mental; salud mental; atención básica; gestión; centro de atención psicosocial.


 

 

1 INTRODUÇÃO

O matriciamento foi descrito em 2003, pelo Ministério da Saúde, como "um arranjo organizacional que visa dar suporte técnico em áreas específicas às equipes responsáveis pelo desenvolvimento de ações básicas de saúde para a população" (BRASIL, 2003, p. 80). Na perspectiva deste estudo, defendemos que o matriciamento vai além de um suporte técnico. Essa estratégia de trabalho tem a potencialidade de ser um encontro produtivo entre equipes com saberes, vivências e práticas diversas, que ao compartilharem tais conhecimentos devem atuar conjuntamente para o cuidado integral em saúde.

Em outras palavras, o matriciamento consiste em uma prática voltada à estruturação da rede de saúde por meio do fortalecimento das relações entre os profissionais e, consequentemente, destes com os outros atores sociais, incluindo usuários e gestores. O matriciamento, tema deste estudo, é tratado aqui em sua capacidade de fortalecimento dos sujeitos e coletivos, pela sua proposta de compartilhamento de saberes e práticas entre atores diversos, pela democratização das relações e pela transformação e superação de modelos hierarquizados (BERTUSSI, 2010; BRASIL, 2004).

Para tanto, torna-se imprescindível a abertura de novos canais de diálogo, o que implica, necessariamente, civilizar fronteiras, dissolver as barreiras existentes entre especialistas e generalistas, entre clínica e gestão, entre quem formula e quem executa. Nesse sentido, a estratégia de matriciamento busca promover encontros entre equipes que devem estar juntas em um processo contínuo de comunicação para a integração de saberes e práticas. Vale ressaltar que não se trata apenas de um compartilhamento de saber como transmissão de informação, mas da construção de saberes, que se dá por intermédio desses encontros produtivos e, sobretudo, de corresponsabilização pela prática de cuidado.

Logo, o gestor, em suas funções de planejamento, coordenação, regulação, controle e avaliação de ações, tem papel importante também nessa proposta de matriciamento, podendo tanto representar um obstáculo a essa prática (pela tentativa de controle dos sujeitos) quanto possibilitar a reinvenção do trabalho, pela certeza de que o processo de gestão envolve todos os atores implicados na produção de saúde, conforme trazido pela Política Nacional de Humanização (NORONHA; LIMA; MACHADO, 2004; BRASIL, 2009).

Apesar de termos clareza de que o processo de gestão não está restrito a um único sujeito, corroboramos o entendimento de que os gestores, formalmente designados como tais, "ocupam um papel específico que os diferenciam dos outros atores que participam do processo de gestão, tanto nas responsabilidades, na forma de produzir e exercitar o poder" (SILVA, 2012, p. 37).

Por tudo isso, pensamos ser relevante considerar as concepções dos gestores a respeito do matriciamento, para refletirmos sobre as possibilidades concretas de reversão de uma prática de gestão historicamente hierarquizada para outra voltada à cogestão. Isso porque a política em si, no papel, não garante sua efetividade. Compreendemos que o modo como esses profissionais gestores entendem a proposta de matriciamento e atuam em relação a ela interfere diretamente na possibilidade de concretização ou não dessa prática em toda a sua capacidade de produção de autonomia, de integralidade do cuidado e da intersetorialidade da atenção.

O matriciamento necessita também de credibilidade por parte dos gestores, no sentido de favorecer a gestão participativa, pautada em uma perspectiva crítica e política de trabalho, que não reforce os especialismos, os quais reproduzem práticas empobrecidas e pouco favoráveis a produzir efeitos desinstitucionalizantes nas vidas de todos os sujeitos envolvidos — usuários, familiares, gestores e profissionais de saúde (DIMENSTEIN et al., 2009).

Nessa perspectiva, este estudo teve por objetivo analisar as concepções dos gestores sobre o matriciamento em saúde mental, as avaliações que eles têm a respeito dos efeitos dessa estratégia, bem como suas propostas para o fortalecimento da referida prática.

 

2 MÉTODO

Trata-se de um estudo exploratório, de abordagem qualitativa, realizado em um munícipio do Sudeste do Brasil, que concretiza o matriciamento em saúde mental à Atenção Básica por meio de seus três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): adulto, álcool e drogas, e infantil. Vale enfatizar que a cidade possui algumas particularidades no que diz respeito aos profissionais que compõem as Unidades de Saúde (US). Desde 2007 o município conta com equipes ampliadas em suas 30 Unidades de Saúde, compostas por assistente social, profissional de educação física, farmacêutico, fonoaudiólogo, ginecologista, pediatra e psicólogo, além dos profissionais previstos pelo Ministério da Saúde para composição mínima da equipe de Saúde da Família, incluindo equipe de saúde bucal. O município está dividido em seis regiões de saúde, e cada qual abrange um território específico, com realidades diversificadas.

Para esta pesquisa foi selecionada uma US de cada região, totalizando seis US. Quatro delas funcionam na lógica da Estratégia de Saúde da Família (ESF), e as outras duas atuam como Unidades Básicas sem ESF. Para escolha dessas unidades, a pesquisadora, que era servidora pública do município à época, escolheu aquelas com as quais mantinha menor contato no dia a dia de trabalho. A partir de então, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os gestores dessas seis US, com os gestores dos três CAPS, com o atual coordenador municipal da área técnica de saúde mental e com o coordenador da época da implantação do matriciamento no município. As 11 entrevistas aconteceram individualmente e foram gravadas em áudio após a devida autorização dos participantes, da Secretaria Municipal de Saúde, bem como do Comitê de Ética em Pesquisa.

Seguiu-se com a análise dos dados, a qual utilizou a análise de conteúdo, definida por Bardin (1988) como um conjunto de técnicas de análise das comunicações voltadas a obter indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção das mensagens, por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens.

 

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

3.1 Concepções sobre o matriciamento em saúde mental

Os gestores entrevistados trouxeram entendimentos que se assemelham, se diferenciam e se complementam a respeito do matriciamento em saúde mental.

O primeiro entendimento trazido pelos gestores destaca o matriciamento como uma possibilidade de apropriação da temática e do cuidado em saúde mental por parte também das equipes da Atenção Básica.

O apoio matricial veio para abrir os olhos destes profissionais em relação à saúde mental, até porque antes tinha aquela coisa muito prática de encaminhar: "Tem transtorno mental, vai para o psicólogo". A intenção do apoio é envolver uma equipe multiprofissional, trabalhar junto, este paciente chegar à unidade e ele ter uma referência, mas não uma pessoa como referência, uma equipe como referência [gestor US 2].

Nessa linha de raciocínio, segundo análise do coordenador municipal 2, o matriciamento em saúde mental conseguiu cumprir dois de seus objetivos: fazer com que a pessoa em sofrimento psíquico circule nos espaços da US, e ampliar a apropriação do cuidado em saúde mental por parte também das equipes da Atenção Básica.

Até pelas queixas você vê os avanços. Se as pessoas se queixam, solicitam capacitação, discussão, vaga de internação, são problemas a serem enfrentados, mas que mostram que tem caso cuidado. O apoio entrou como ordenador do cuidado, envolvendo a rede, no sentido de produzir um arranjo institucional entre as políticas intersetoriais que incidem sobre aquele sujeito [coordenador municipal 2].

Essa discussão aponta a abertura para um trabalho integrado conforme almejado pela proposta teórica do matriciamento em saúde mental. Vai, até mesmo, além da interação entre US e CAPS, para uma perspectiva de ação em rede, que deve atuar por desfazer aquelas relações hierárquicas, as quais distanciam e separam profissionais de saúde, usuários e gestores.

Assim, estruturam-se possibilidades concretas de um cuidado integral construído mediante as necessidades da população assistida, pela valorização das relações entre sujeitos, os quais passam a ser referidos pelo nome e pela história que possuem, estimulando a corresponsabilização pela produção de saúde (ONOCKO-CAMPOS, 2003). Nessa lógica, o gestor US 2 convoca uma relação usuário–equipe, expandindo, assim, até as possibilidades de relação desses sujeitos em sofrimento no sentido de produção de autonomia, que diz da ampliação de suas interações com o outro e com o mundo que os rodeia. Não se trata, portanto, de uma relação profissional psi1 e usuário, no caso do matriciamento em saúde mental, mas de uma convocação a todos os profissionais para exercerem a função de cuidar, presente no campo de saber da saúde.

A Atenção Básica tem a possibilidade de contribuir para a construção daquele outro lugar social, anunciado por Birman (1992), para as pessoas em sofrimento psíquico, ao transpor esse sofrimento de uma posição exclusivamente individual para uma dimensão social, que relaciona vários aspectos a essa situação vivida. Dessa forma, é possível operar ações de cuidado em rede, as quais consideram os sujeitos (mesmo aqueles em sofrimento) como indispensáveis nessas negociações cotidianas para a promoção de vida.

Essa potencialidade da Atenção Básica se afirma pela sua proximidade com a vida em movimento, que a propicia trabalhar com esses sujeitos em sofrimento psíquico e com a população de modo geral, a contratualidade social e o lugar dessas pessoas em sofrimento como cidadãos de direito, e não de doentes, anormais, perigosos, irresponsáveis, insensatos, incompetentes e incapazes (AMARANTE, 1999; KINOSHITA, 1996).

Nesse contexto, o matriciamento em saúde mental tem a importante função de fomentar encontros efetivos entre saberes e práticas diversas e complementares que compõem essa complexa intenção de cuidado integral. É importante considerar que a maioria dos profissionais da Atenção Básica não possui ainda em sua formação técnica tal enfoque em saúde mental; e, mesmo se o tivesse, tal cuidado requisita necessariamente o máximo de entrecruzamentos possíveis, tendo em vista toda uma história de estigmatização e exclusão social.

No entanto, sabe-se da dificuldade de tais articulações entre profissionais e serviços, tanto que os gestores asseguram que o matriciamento em saúde mental depende ainda, em grande parte, do "perfil" do psicólogo: "Eu vejo que depende do psicólogo que está lá, se está disposto, se quer fazer junto, ou se não quer também fica o apoio meio sem acontecer. É o psicólogo que ainda leva a discussão para a equipe da unidade" (gestor CAPS B).

Isso aponta certa dificuldade da Atenção Básica ainda, na ausência do profissional psi, no caso da saúde mental, em assumir o cuidado pela sua população adscrita independentemente da patologia que se apresenta. Por outro lado, essa mesma fala assinala certo avanço nesse cuidado em saúde mental pela equipe da Atenção Básica, uma vez que aparentemente esse profissional psicólogo já consegue levar a discussão para a equipe da US, mesmo mantendo-se como referência da área. Essa referência mantém-se em certo grau, pela especificidade do núcleo psi, o qual representa uma importante contribuição nesse cuidado, assim como o saber da psiquiatria, como trazido pelos gestores das US: "A gente também precisa de mais vindas do psiquiatra. Tem coisas que o médico de família também quer esclarecer sobre medicação, por exemplo, detalhes médicos que ficam de fora".

Como discutido em outro estudo sobre a temática (IGLESIAS; AVELLAR, 2016a), é imperativo ser cauteloso com a supervalorização da psiquiatria em detrimento dos outros saberes indispensáveis nesse cuidado em saúde mental, mas também com a desconsideração dessa práxis nesse cuidado, sob o risco de se manter uma disputa de poder no campo da saúde, que distancia a efetivação da integralidade. Essa dificuldade de acesso ao psiquiatra nesse processo de matriciamento em saúde mental já foi apontada em outra investigação (FIGUEIREDO, 2006) e justificada pela pouca presença desse profissional na rede, o que em alguns momentos tem dificultado o trabalho de cuidado, principalmente dos casos mais graves. Por outro lado, essa dificuldade de acesso tem também, despertado um processo inventivo interessante por parte das equipes na construção de estratégias variadas de cuidado e promoção da equidade do acesso, uma vez que se opera uma análise detalhada das vulnerabilidades e dos recursos de cada usuário, para então indicar a intervenção psiquiátrica.

Como trazido pelo coordenador municipal da área técnica de saúde mental 1: "O apoio matricial precisa acontecer para favorecer uma lógica de atenção que passa por certa noção de integralidade, reabilitação psicossocial, corresponsabilidade do serviço com o cuidado". Todas essas noções são priorizadas de certo modo pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pela Atenção Básica e pelo modelo de atenção psicossocial, baseadas em uma perspectiva ampliada de saúde pela promoção à saúde, a qual preconiza relações transversais, ao crer ser relevantes as contribuições de todos para as mudanças sociais necessárias à produção de vida.

Contudo, apesar dessa perspectiva teórica voltada à horizontalização das relações de poder, na prática o matriciamento também tem se firmado, conforme trazido por alguns gestores de US, como um dispositivo que acabou por reiterar aquelas relações verticalizadas entre especialistas e generalistas: "O apoio vem aqui já naquela forma engessada: 'É assim, tem que ser assim'. [...] A gente sente a necessidade de discutir como vai ser a conduta de cada caso" (gestor US 3).

Com essa discussão, os gestores trazem um segundo entendimento sobre matriciamento em saúde mental, que o destaca como uma estratégia para fiscalização do trabalho da atenção básica. Isso resultou em resistências por parte desse nível de atenção à proposta matricial e na manutenção de relações hierarquizadas entre profissionais da atenção básica e profissionais matriciadores: "O apoio na verdade é para dizer o que tem que fazer, fiscalizar, cobrar. Aí fica[m] difíceis as relações, porque são profissionais do mesmo nível, só de serviços diferentes".

Ao contrário das discussões trazidas até aqui neste texto, esse gestor apresenta a possibilidade de manter relações hierárquicas de poder-saber também mediante o matriciamento, demostrando que o encontro em si não garante a transversalidade das relações, nem o compartilhamento efetivo de saberes e práticas.

Em relação a isso, Onocko-Campos (2003) argumenta sobre a imprescindibilidade de o matriciamento se desvincular de qualquer linha de mando, para assim aprimorar o desvelamento dos usos do poder e desnaturalizar a forte associação entre técnica e poder. Trata-se de relações e construções históricas que precisam ser trabalhadas e colocadas em análise cotidianamente, para que as hierarquias entre categorias profissionais e/ou entre serviços, por exemplo, não se mantenham também com base nesse dispositivo que se pretende articulador de rede.

Nessa perspectiva, esta análise envolve repensar o lugar da equipe de referência que, muitas vezes, espera do matriciador a resposta pronta e definitiva para o problema que apresenta; e a posição do matriciador, que, por vezes, se coloca no lugar de saber e define ao outro o que deve e não deve ser feito. Bertussi (2010) destaca a importância de as equipes envolvidas se verem sempre como partes da construção de alternativas de soluções, e não como clientes de salvadores da pátria e/ou como os próprios salvadores. Tudo isso requer dos envolvidos disponibilidade de, em vez de travar uma disputa pelo poder para si, para seu serviço ou para sua categoria profissional, abrir-se à possibilidade de construção de outras formas de fazer saúde, acessando intensidades, potências de luta, escuta e invenção coletiva.

O terceiro entendimento trazido pela gestão associa o matriciamento à função formativa e de orientação para a ação em saúde mental: "Eu entendo que no matriciamento uma equipe que está diante de um caso complexo solicita o apoio para quase que supervisionar o caso e dar orientação a esta equipe para ação, como uma formação mesmo" (gestor CAPS C).

Iglesias, Avellar e Dalbello-Araújo (2016) destacam o valor do matriciamento nesse quesito formativo, contudo é preciso diferenciar essa proposta de um trabalho de supervisão, naquele sentido taylorista de controle e fiscalização do cumprimento de normas (CAMPOS, 1998). Ao contrário, como argumentado por Campos, Cunha e Figueiredo (2013), o matriciamento atua na construção de análises e propostas de ação, mas também, conforme necessário, na efetivação de práticas conjuntas entre matriciador e matriciando.

No mais, vale ressaltar a defesa de que esse processo formativo pelo matriciamento se dê em uma via de mão dupla, de modo que tanto matriciandos quanto matriciadores se beneficiem dessas trocas de saberes e práticas na revisão de suas práxis cotidianas. Logo, o gestor CAPS ressalta em sua fala os benefícios desse trabalho para os CAPS, afirmando a ideia de tratar-se de uma possibilidade de abertura e aproximação dos CAPS com o território: "Com o apoio, você sai daquela coisa de CAPS só para dentro, fechado, que repete um pouquinho desta coisa manicomial, para visualizar uma série de outras possibilidades que não conseguia ver" (gestor CAPS B).

Interessante e importante salientar a relevância do matriciamento também para o CAPS, desbancando qualquer ideia de hierarquização, como destacado pelo gestor CAPS B: "Nesta relação todos se beneficiam". A provocação do matriciamento em fazer circular matriciadores e matriciandos tem força para favorecer o conhecimento de outras possibilidades de cuidado, pelo reconhecimento dos outros atores, de serviços e de setores diversificados, em suas possibilidades de cooperar pela promoção à saúde.

3.2 Reflexões sobre as mudanças ocorridas com a implantação do matriciamento em saúde mental

Em relação às mudanças ocorridas no cuidado em saúde mental pelo matriciamento, os gestores que trazem a concepção relativa à apropriação do cuidado em saúde mental pela atenção básica, destacam o fato de que casos difíceis no campo da saúde mental passaram a ser cuidados também por esse nível de atenção. Para o gestor US 4, inicialmente, os profissionais da Atenção Básica tinham medo de lidar com pessoas em sofrimento psíquico: "Eles se sentiam mal de não cuidar, mas o medo era maior, mas com o apoio do apoio isto melhorou". Nas palavras do coordenador municipal da área técnica de saúde mental 2:

Muitos abraçaram mesmo, fizeram oficinas, grupos, geração de renda, passaram a cuidar de alguns casos até sozinhos, buscavam somente ajuda quando chegava ao limite. Ajudaram também nisto aqueles psicólogos da unidade que se colocaram no território em uma relação de apoio, voltado para a promoção, fazendo busca ativa, cartografando com olhar epidemiológico as questões da saúde mental, descobrindo novos casos — muitos casos de cárcere privado apareceram —, entendendo como as pessoas usam drogas no território. Muitas coisas melhoraram em relação à garantia de cuidado em saúde mental, incluindo os casos mais graves. Os serviços de internação, inclusive, falam que quando é paciente morador do município é bem mais tranquilo, porque eles sabem que o paciente vai ser cuidado.

Sendo assim, anuncia-se que aquele objetivo do matriciamento em saúde mental de ampliação da atenção às pessoas em sofrimento psíquico parece, em grande parte, ter sido alcançado. Acredita-se que isso se relaciona também, com a presença do psicólogo na Atenção Básica, que pode contribuir para garantir a proximidade com o território e a sistematicidade da presença da saúde mental nas unidades, que talvez os CAPS — como matriciadores — sozinhos não conseguiriam assegurar em toda a sua amplitude (IGLESIAS; AVELLAR, 2016a). Logo, conseguiu-se ampliar o escopo de ações ofertadas com potencial promocional, já que com base na fala do coordenador as intervenções não se fixaram na doença, mas na possibilidade de gerar renda, por exemplo.

De acordo com os gestores que trazem tais discussões, essas mudanças parecem relacionar-se ao trabalho do matriciamento de reconhecer e atuar por desfazer os "fantasmas" das equipes, as quais, por integrarem uma sociedade que associou — e ainda associa — a loucura e o consumo prejudicial de álcool e outras drogas à periculosidade e a tantas outras negatividades, têm seus medos em operar com pessoas em sofrimento psíquico. Nessa condição de medo, fica difícil qualquer equipe visualizar a possibilidade de cuidado em saúde mental, mais ainda a proposição e a efetivação de ações nesse sentido de cuidado. Nesse contexto, o matriciamento pode exercer mais uma de suas possibilidades: suporte naquilo que assusta uma determinada equipe e/ou a faz sofrer. O sofrimento da equipe pode vir também dessa dificuldade de visualizar estratégias de cuidado perante situações tão complexas que surgem no cotidiano do cuidado em saúde mental. Assim, essas equipes, também vivenciando um momento de sofrimento, tendem a se afastar do compromisso com o cuidado. Dessa forma, fazem- -se indispensáveis o olhar do outro, o encontro produtivo, a troca, o feedback daquilo que já foi feito e das alternativas futuras possíveis nesse trabalho em saúde mental, para que essas equipes se sintam fortalecidas ao cuidado.

Nicácio (2003) aponta a importância das discussões desses medos e dessas angústias das equipes no cuidado às pessoas em sofrimento psíquico também nesses espaços de encontro, para além do caso propriamente dito. A autora problematiza que esses sentimentos têm relação com a cultura de associação da loucura à periculosidade, mas também com a dificuldade de lidar com o desconhecido, com a imprevisibilidade do sofrimento psíquico. Estamos falando de sujeitos que vivenciam tal situação de sofrimento de modo singular e que, portanto, requisitam a invenção constante de modos de cuidar.

Contudo, essa expressão dos medos e das angústias não é algo simples, tendo em vista, por exemplo, uma formação em saúde voltada ao bem-estar a qualquer custo, inclusive do profissional prestador do cuidado. Nesse contexto, é necessária a construção cotidiana de um vínculo entre os profissionais envolvidos, de modo que se sintam à vontade também para trazer suas fragilidades para a roda de conversa. A partir daí, tem-se estruturada a possibilidade concreta da ampliação de uma comunicação verdadeiramente aberta entre matriciadores e matriciandos e, consequentemente, do fortalecimento do agir cotidiano dessas equipes.

Outra mudança percebida por esses gestores refere-se à melhoria do contato do médico de família com o psiquiatra, mediante a implantação do matriciamento em saúde mental. Outras aproximações também puderam ser notadas, como pontuado por alguns gestores: aproximação e melhoria das relações entre os CAPS, aproximação da Atenção Básica com a temática da saúde mental e aproximação do CAPS com o território.

Todos esses movimentos de aproximação parecem ter contribuído para uma mudança importante no campo da saúde mental: a redução do número de internações psiquiátricas. "Teve uma redução dos números de internação. Então, são sinais que não foram formalizados, mas que mostram que tem um efeito, inclusive externo" (coordenador municipal 2).

Nesse caso, o município parece ter conseguido ampliar as possibilidades de respostas ao sofrimento psíquico, que não necessariamente o internamento. Segundo Lima Júnior et al. (2010), essas situações de redução do número de internações relacionam-se diretamente com a construção de garantias e condições para que o sofrimento psíquico seja manejado com os recursos do território, por entenderem o vínculo como a maior tecnologia de que a terapêutica da saúde mental dispõe. Sendo assim, relacionamos todas as aproximações possibilitadas pelo matriciamento (entre os CAPS, entre eles e o território e entre a Atenção Básica e a saúde mental) como importantes na efetivação da reforma psiquiátrica em toda a sua potencialidade.

Por fim, vale dizer que houve gestores, principalmente aqueles que trazem a concepção do matriciamento como estratégia de fiscalização do trabalho da atenção básica, que afirmaram não reconhecer nenhuma transformação propiciada por esse matriciamento.

3.3 Problematização das dificuldades relacionadas ao matriciamento em saúde mental

Em relação às dificuldades para a efetivação do matriciamento em saúde mental, houve uma diversidade de entraves de ordem organizacional, estrutural e relacional, de acordo com os diferentes pontos de vistas dos gestores.

Na realidade das US que ainda não funcionam na lógica da ESF, os gestores referiram-se à falta de reuniões de equipe e de carga horária dos médicos clínicos para a composição desse cuidado em saúde mental como dificultadores à efetivação do matriciamento, entendido como uma possibilidade de trabalho em conjunto.

A primeira dificuldade é o fato de não ser estratégia, que você realmente tem que acompanhar mais de perto os casos e não consegue. É a reunião que não tem, o médico que é só quatro horas. Você fica travado em algumas ações de promoção, de prevenção, de grupo, de estar junto para intervir junto [gestor US 2].

A ESF já foi anunciada por alguns autores (SOUZA, 2004; SCÓZ; FENILI, 2003; MELO, 2009) como um importante dispositivo de promoção de outros modos de se relacionar e cuidar da pessoa em sofrimento psíquico. Isso porque, entre os seus princípios norteadores, a ESF traz a coordenação do cuidado integral e o acompanhamento longitudinal do processo saúde–doença como fundamentos de seu cotidiano de trabalho, facilitado também pela presença do agente comunitário de saúde. No caso do sofrimento psíquico, a longitudinalidade do cuidado faz-se extremamente importante, tendo em vista tratar-se de situações que não implicam resoluções imediatas, ao contrário, requisitam a constituição de vínculo que só se constrói pela proximidade e disponibilidade de quem cuida e é cuidado. No mais, por todo o histórico de restrição do transtorno mental ao manicômio — lugar zero de trocas sociais —, o trabalho atual com a saúde mental necessita ainda mais investimento, no sentido de desconstruir e construir, "no interior das casas, na vizinhança, na comunidade, outras relações com as diferenças", para que assim essas pessoas possam "ocupar outro espaço de circulação" na sociedade (SOUZA, 2004, p. 141).

Nesse contexto, afirma-se a força da ESF nesse trabalho em saúde mental, o que não significa a inviabilidade desse cuidado também nos espaços daquelas unidades que não funcionam na lógica da ESF. A Atenção Básica em si caracteriza-se pela valorização da acessibilidade, da continuidade e da integralidade para a promoção, prevenção, proteção e reabilitação em saúde (STARFIELD, 2002; BRASIL, 2006), contudo torna-se difícil a efetivação dessas propostas se não estiverem garantidos carga horária suficiente dos profissionais de saúde nem o trabalho em equipe, por exemplo. Como bem destacam Campos et al. (2008), a própria produção de saúde depende necessariamente, tendo em vista toda a sua complexidade, do entrecruzamento de vários saberes. Para tanto, não se pode perder de vista a necessidade da organização do processo de trabalho, de modo que os profissionais das US, independentemente de ser ou não ESF, atuem efetivamente como equipe: "Encontrando campos de atuação que possam ser implementados por todos os membros de forma interdisciplinar ao lado de núcleos de práticas específicas de cada categoria de trabalhadores" (CAMPOS et al., 2008, p. 112).

No caso específico da proposta matricial, é impensável sua efetivação em toda a sua potencialidade sem o estabelecimento de reuniões de equipe regulares, concretamente favoráveis às trocas necessárias à construção do cuidado integral. Concretamente, porque não basta estar garantido nas agendas um horário para esses encontros se reproduzirmos nesses espaços relações verticais de poder, em que uma minoria opina e decide sobre o melhor a se fazer no campo da saúde. Figueiredo (2006) e Oliveira (2011) também trazem em seus estudos a reflexão sobre a indispensabilidade das reuniões de equipe incorporadas como rotina de trabalho para a operação do matriciamento, reuniões que se configurem como dispositivos de cogestão, garantidas e incitadas pelo gestor do serviço.

Ao falarmos de cogestão, estamos mais uma vez argumentando neste estudo a necessidade de envolvimento de todos os profissionais, e não a restrição da responsabilidade ao psicólogo, no caso da saúde mental, pelo cuidado dessas pessoas em sofrimento. Por exemplo, os demais profissionais podem também incorporar às suas ações em saúde conversas sobre a ansiedade ou a tristeza vivenciadas pelo usuário, ao mesmo tempo em que falam das outras questões de saúde, independentemente de ser ou não ESF, abrindo, portanto, caminhos para uma clínica mais ampliada (FIGUEIREDO; FURLAN, 2008).

Segundo Figueiredo e Furlan (2008), ainda se faz presente no cotidiano dos profissionais de saúde certo medo do aparecimento, nos espaços de atendimentos, de questões referentes ao viver. Teme-se que tenha que entrar em contato com o fato de que um bebê continuará desnutrido porque não tem o que comer; ou porque sua jovem mãe mal consegue cuidar de si mesma. Como ele garantirá a eficácia dos medicamentos e o discurso de "quem quer se cuidar, se cuida"? (FIGUEIREDO; FURLAN, 2008, p. 417).

São questões importantes também de serem trabalhadas no processo de matriciamento, até mesmo para evitar outras tantas dificuldades que podem surgir por conta desses medos que obstaculizam aquele cuidado integral que perseguimos. Em relação a essa discussão, o gestor US 6 destaca como um entrave ao matriciamento as frustrações vivenciadas pelos profissionais nesse cuidado em saúde mental, decorrentes da complexidade dos casos, que acaba afastandoos dessa proposta de cuidado em saúde: "Eu sinto que é um público desgastante. Você tem que insistir e às vezes você vai voltar e ele vai falar a mesma coisa. A gente não vê aquele resultado. Em longo prazo frustra um pouco".

As situações de sofrimento psíquico trazem uma complexidade não só pela vivência em si, mas também pela pouca proximidade dos profissionais de saúde com essa temática em suas formações, o que pode dificultar ainda mais o manejo desses casos. Nesse contexto, no plano do ideal, o matriciamento tem papel importante de promover o compartilhamento de responsabilidades e práticas a partir do encontro entre equipes, atenuando as sobrecargas de uma ou outra equipe por esse cuidado e ampliando as possibilidades de invenção de alternativas resolutivas de cuidado. No entanto o matriciamento também pode ter efeito contrário, caso seja tomado como um espaço de fiscalização do que está sendo ou não feito. Por conseguinte, torna-se ainda mais provável que a frustração aconteça, já que normalmente tais situações de sofrimento psíquico, diante de toda a complexidade discutida, necessitam do envolvimento de vários atores sociais, o que extrapola o setor saúde, para a efetivação da integralidade da atenção. Isso não significa aquele idealizado bem-estar físico, mental e social, mas a ampliação dos sentidos de vida dessas pessoas.

É importante que o matriciamento em saúde mental se afirme legitimamente como uma estratégia de suporte mútuo entre as equipes, para que as frustrações (que possivelmente surgirão, uma vez que estamos operando pela mudança de paradigmas historicamente consolidados) não se revertam em desistência desse trabalho nem/ou na sucumbência à perspectiva do isolamento e da exclusão das pessoas em sofrimento psíquico. Figueiredo e Furlan (2008, p. 242) chamam a atenção para o fato de que os serviços de saúde, especialmente a Atenção Básica, vêm crescentemente "recebendo 'casos' que expressam a realidade social dos territórios nos corpos e nas vidas das pessoas". Isso tem provocado "angústia e sentimento de impotência nesses trabalhadores e gestores". Por conseguinte, as autoras sugerem a ampliação do olhar sobre o território, o que afirma, mais uma vez, a importância do encontro produtivo entre o saber da saúde mental e o saber generalista da Atenção Básica.

Para tanto, é preciso investir constantemente nas relações entre os envolvidos, tendo em vista também a fala do gestor CAPS C, que aponta a existência de importantes dificuldades relacionais entre CAPS e US, as quais podem representar um obstáculo à efetivação do matriciamento em saúde mental:

No território a equipe tem todo um contexto de violência e aí ela tem necessidade de compartilhar com o outro, às vezes ela sinaliza isto e a gente fala: "Não é não, deficiência mental não é para CAPS", "isto também não é", "isto não". Quando estamos no CAPS, não conseguimos visualizar, por exemplo, o medo que faz com que este profissional se feche também e diga: "Olha, este caso também não é meu, este caso é do outro que não está lá no território". Aí você acha que ele não quer, mas a violência interfere e atravessa diretamente o trabalho de matriciamento. Então todo mundo fica muito fechado, e a gente acaba perdendo a oportunidade até de pontuar o que a gente precisa com a equipe, porque a gente não tem vínculo com ela. Porque, quando você escuta, você vai vinculando e, quando você coloca uma barreira, acabou. Você tem que estar junto até a pessoa depois desgarrar.

Normalmente, as equipes precisam se sentir matriciadas para assumirem a responsabilidade pelo cuidado, ainda mais no que diz respeito à saúde mental, por toda a estigmatização já discutida. Para tanto, há que se operar certo abandono dos protocolos, no sentido de se disponibilizar mais a estar e fazer com o outro, independentemente da situação que se apresenta, ao contrário de uma postura defensiva de fluxos fechados, que consolidam barreiras aos encontros produtivos necessários ao cuidado. Se a equipe da Atenção Básica, por exemplo, solicita esse matriciamento, mesmo de maneira equivocada, é porque ela visualiza nele certa possibilidade de cuidado, fora ser uma importante oportunidade de educação continuada, educação permanente, formação de vínculo — indispensável à criação de uma proximidade para posterior promoção de autonomia — e abertura para o território, necessário à promoção à saúde e à desinstitucionalização do cuidado.

Seguindo na problematização sobre as dificuldades que circundam o matriciamento em saúde mental, o coordenador municipal da área técnica de saúde mental 1 traz ainda como um dificultador à efetivação do matriciamento a falta de identificação de alguns profissionais concursados com a saúde mental:

O apoio matricial, para além de uma técnica, precisa de certa ideologia de cuidado, precisa de um profissional consciente disto e isto não é fácil. São profissionais concursados que estão em CAPS e não gostam de CAPS. Então, como que esta pessoa vai fazer algum apoio matricial?

A ideia trazida nessa fala corrobora a preocupação de Nascimento e Oliveira (2011), as quais destacam a importância de problematizar a formação desses profissionais de saúde para além do conhecimento técnico, no sentido de fomentar habilidades e atitudes necessárias aos desafios atuais do trabalho em saúde, tendo em vista a responsabilidade social envolvida nessa ação profissional.

Em pesquisa realizada pelas autoras (NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2011) sobre as competências para o processo de trabalho nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), foi apontada a necessidade de conhecimento sobre as políticas públicas de saúde, território, perfil epidemiológico da população e rede de cuidados, mas também a imprescindibilidade de acolhimento, de escuta, de comunicação e do trabalho em equipe. Nessa discussão, vale destacar a defesa deste estudo na possibilidade de produção social dessas habilidades, o que desfaz qualquer ideia de responsabilização única e simples de um indivíduo pela não efetivação de qualquer proposta. Todas as habilidades tornam-se importantes para o trabalho no SUS, mas, assim como a cultura institucional, a subjetividade é socialmente produzida no encontro entre as pessoas.

A efetivação das potencialidades do matriciamento discutidas até aqui necessita também de algumas garantias estruturais e organizacionais. Isso comparece nas falas dos gestores, os quais afirmam que o fato de o município, por exemplo, não ter governabilidade sobre todos os níveis de atenção representa certo entrave:

Alguns casos muito graves são bem conduzidos. O apoio vai junto com a unidade e, na hora de internação ou urgência, nada acontece. Os leitos de urgência não são do município. Às vezes a gente tem seis profissionais, juntando da básica com do CAPS, que passam o dia inteiro esperando o SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], esperando vaga, e o cara continua em casa mal. Então, realmente, a falta de todos os pontos da rede atrapalha o matriciamento, mas não são todos os casos que precisam disto [coordenador municipal 2].

Vale ressaltar essa última pontuação feita pelo coordenador municipal da área técnica de saúde mental 2 de que não são todos os casos que precisam dessas articula- ções com o hospital — apontadas como arrumações difíceis no cotidiano do trabalho —, para que essa dificuldade não sobrepuje tantas outras possibilidades de cuidado nas unidades ou nos CAPS. Com isso, não estamos desmerecendo a necessidade de resolução de tais desafios. Essas carências na rede representam entraves ao cuidado, já que a Atenção Básica, nesse processo de matriciamento, traz para a cena do território essas situações de sofrimento psíquico, o que vai requisitar a garantia do cuidado pela rede como um todo. Uma rede que, como diz Figueiredo (2006, p. 39), atue efetivamente como colaboradora do cuidado em saúde mental, e não como uma teia na qual a pessoa em sofrimento psíquico fique presa, sem acesso, perdida nos "emaranhados da desresponsabilização, uma rede de salvamento e não de captura e indefesa".

Ainda na perspectiva de discussão das garantias necessárias à efetivação do matriciamento em toda a sua potencialidade, os gestores apresentam outros entraves: dificuldade de deslocamento do profissional de um serviço a outro para o encontro entre equipes e a rotatividade dos profissionais das equipes, além de incompatibilidades de agendas entre matriciador e matriciando. "Eu vejo alguns diretores reclamando: 'O matriciamento em saúde mental quer um dia, o idoso quer outro'. É agenda demais, e eles têm uma demanda muito grande. Você vai marcar uma compartilhada para 30 dias por conta de não ter agenda. Acaba que não tem um processo" (gestor CAPS B).

Além disso, os gestores apontam como dificuldade para o fortalecimento do matriciamento em saúde mental a falta de espaços de discussão entre os matriciadores. "Alguns matriciadores começaram a fazer de um jeito, outros de outro, e não se falavam exatamente. Então teve a falta de alguns alinhamentos, da diferença do que é crise, do que é urgência, por exemplo. A cada crise ressurge esta discussão: 'O paciente é meu ou não é?'" (coordenador municipal 2).

Nesse contexto de discussão, Figueiredo (2006) ressalta a necessidade de reconhecermos que essas mudanças da lógica de trabalho trazidas pela base conceitual do matriciamento, não são simples de serem incorporadas, em sua abrangência, pelas equipes e que não se dão de modo automático, com a determinações de diretrizes. Essas mudanças precisam ser trabalhadas com as equipes, inclusive as equipes matriciadoras, por meio desses encontros de reflexão e análise crítica sobre o próprio trabalho. Assim, esses encontros tornam-se "continentes aos problemas na relação entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura, à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com a pobreza e a violência" (FIGUEIREDO, 2006, p. 131). A autora acrescenta que todas essas questões podem se reverter em entraves à efetivação do matriciamento — como também discutido neste texto —, caso não estiverem garantidos esses espaços de "reflexão e formação permanentes para processá-las, capazes de realimentar constantemente as fortalezas do apoio matricial enquanto arranjo transformador das práticas hegemônicas na saúde" (FIGUEIREDO, 2006, p. 131).

A ausência desses espaços de discussão acerca da proposta matricial pode levar também a alguns outros problemas, como citado pelo gestor CAPS C, relativos a equívocos de demandas das unidades ao matriciamento e aos riscos de atendê-las, caso as propostas não estejam bem apreendidas pelos envolvidos:

Às vezes a demanda aparece como "venham tratar e tomar conta do caso". Isto faz com que desapareça o principal agente que é o caso, e aí ficaria melhor mesmo na lógica da referência e contra referência. A gente não pode perder a lógica e a essência do matriciamento, que é apoiar e orientar a direção de uma intervenção. Tinha um caso que eles queriam porque queria[m] a presença do CAPS para fechar o diagnóstico e para encaminhar a situação, enquanto que a dificuldade era de estabelecer vínculo com uma pessoa que não queria fazer vínculo. O problema é quando os apoiadores entram nesta, que apenas os centros mesmo que têm condições de resolver. Isto nos coloca de um problema das microrrelações para um problema macro, que é hoje a demanda de internação compulsória para todos os usuários de crack ou de qualquer outra droga que esteja em situação de rua (gestor CAPS C).

Há um risco colocado aí de perdermos o foco das ações em saúde: o sujeito. Ao priorizarmos sobremaneira o diagnóstico e a transferência de responsabilidade ao outro pelo cuidado, para nos eximir de toda a complexidade que esses casos envolvem, configura-se, como trazido em outro estudo, um "jogo de empurra" que apenas distancia a possibilidade de efetivação da integralidade do cuidado (IGLESIAS; AVELLAR, 2016a). O matriciamento supõe, como discutido no plano teórico, corresponsabilidade, principalmente por acreditar que a qualidade da atenção não é possível de modo fragmentado nem isolado. Isto é, requer-se necessariamente múltiplas articulações entre saberes e práticas diferenciadas, igualmente importantes nesse cuidado.

No entanto, ainda é marcante no setor da saúde a centralidade da doença e da lógica do encaminhamento, o que representa obstáculo à efetivação daquele matriciamento voltado à possibilidade de trabalho conjunto, o qual, ao contrário daquela lógica que implica normalmente transferência de responsabilidade, busca o compartilhamento dela.

No mais, o coordenador municipal da área técnica de saúde mental 2 percebe como um dificultador a pouca apropriação dos CAPS da proposta matricial. Para ele, os CAPS teriam condições de estarem mais envolvidos no matriciamento, "inclusive era uma coisa que a gente esperava e não foi cumprida".

Falta esta apropriação dos CAPS deste processo, deles ajudarem as unidades a ter mais recursos de cultura, de socialização, de lazer, de geração de renda, pode avançar para ter cooperativa de usuário, atividade durante o fim de semana. Mas ainda falta uma maior apropriação, saber: "Quantos usuários vocês têm? Quais são graves?". Tranquilizar a básica, porque a básica vem muito na questão do incêndio do caso, da crise, e acho que às vezes o CAPS entra nesta também, querendo cuidar, o que é legal, mas tem que dar uma saída depois. Cuidou? Agora vamos ajudar a unidade para ela vê que não tem todos os casos graves, este é um caso no meio de dez, mas que os outros nove são tranquilos, e se a gente cuidar, acompanhar, a gente não é pega de surpresa tantas vezes. Então acho que isto é possível o CAPS fazer, vê onde tem muito usuário que está dentro do CAPS que precisa sair, vê o que tem no território, vê esta parte de inserção e trabalho, contar com a comunidade como recurso. Isto é pouco feito pela unidade e pelo matriciamento do CAPS [coordenador municipal da área de saúde mental 2].

Por fim, vale dizer também que houve gestores que não reconhecem nenhuma dificuldade relacionada ao matriciamento: "Não tem nenhuma dificuldade, nem para agendar. Eles mesmo ligam" (gestor US 5).

3.4 Propostas de mudanças para o matriciamento

Foi marcante entre os gestores, principalmente entre aqueles que trazem a concepção do matriciamento como uma possibilidade de trabalho conjunto e de formação e orientação para a ação em saúde mental, a proposta de criação de equipes específicas para o trabalho de matriciamento, com mais disponibilidade à Atenção Básica, com um dia da semana para atender a cada US. Assim, segundo o gestor CAPS B, seria possível reduzir aquela perspectiva ainda presente em algumas unidades de que "todos os casos de sofrimento psíquico têm que ser do CAPS". Com essa discussão, o coordenador municipal da área técnica de saúde mental 1 agrega à proposta a possibilidade de implantação de NASF, a fim de evitar possíveis conflitos de relações entre equipes de serviços diferentes que se colocam na defesa por uma ou outra instituição da qual fazem parte:

Talvez criar NASF, mas, mesmo assim, acho que deveria ter uma forma de articulação NASF e CAPS, porque nas reuniões nacionais a gente vê problemas em relação a esta articulação que dificulta o trabalho. Nós temos número de profissionais e variedade para fazer um bom NASF, só que teria que ter muito trabalho para este processo integrar e não ser mais um elemento da rede para fragmentar e virar ambulatório, porque a gente sabe que no Brasil também tem NASF que são ambulatórios. Então, marca[m]-se as consultas. Isto também não significa que teria que acabar com o apoio matricial nos CAPS, pelos CAPS. Mas ter estas outras equipes.

Como discutido, a regularidade de uma equipe para essa função tem importantes vantagens em fazer valer a integração da saúde mental na Atenção Básica em toda a sua potencialidade. No que diz respeito à implantação de NASF, o coordenador municipal da área técnica de saúde mental, conhecendo a história desse matriciamento no município, que já possuiu equipes específicas para o exercício dessa função matricial (IGLESIAS; AVELLAR, 2016b), consegue ponderar os riscos dessa conformação, caso não se garanta a articulação dessas equipes das unidades com os CAPS, a fim de não se configurar um intermediário na relação entre esses serviços substitutivos e a Atenção Básica.

Essas vantagens e ponderações já foram percebidas e analisadas em outros contextos, tanto que o Ministério da Saúde lançou em 2008 a proposta das equipes NASF, que nascem com tal vocação de realizar matriciamento, estando lotadas na Atenção Básica. Não que outros serviços não possam trabalhar com base nessa perspectiva, até é importante que o façam, mas as equipes NASF trabalham necessariamente sustentadas pela lógica matricial, com o objetivo de fortalecer a Atenção Básica em suas fragilidades, fazendo com ela e não por ela (CAMPOS, 1998).

Independentemente de o matriciamento ser realizado por equipes específicas de dentro ou de fora do CAPS, o gestor US 4 traz a proposta de ampliação da frequência dos matriciadores no espaço da Atenção Básica, incluindo o psiquiatra, para o fortalecimento desse trabalho matricial e para a ampliação das possibilidades de ação para além da discussão de caso: "Vejo que, sendo uma coisa rápida, não se aprofunda, no máximo que faz é um relato. A gente precisa de mais tempo, porque a saúde mental está muito mais presente na família, começa com as crianças, vai para um transtorno maior quando adulto, o autismo está em alta. É isto".

Tal proposta vai ao encontro de alguns dados já discutidos neste texto sobre a maior visibilidade da saúde mental no campo geral da saúde. Para além do fato de a "saúde mental está muito mais presente na família", ocorreu a ampliação do olhar acerca da temática, por todos os movimentos históricos relativos à reforma psiquiátrica. Isso tem requisitado, especialmente da Atenção Básica, que está onde as pessoas em sofrimento psíquico vivem, certo aprofundamento nas discussões das situações cotidianas, o que remete à necessidade da maior presença do matriciamento para dar suporte a essa equipe na desafiadora tarefa de desinstitucionalização e promoção à saúde mental.

Na direção de avaliação dessas práxis matriciais, os gestores apontam como proposta a ideia de um levantamento e de uma análise sistemática do matriciamento para possíveis replanejamentos desse trabalho: "Acho que é preciso fazer uma leitura do que foi o projeto, o mapa inicial, e projetar o futuro e lá na frente fazer isto novamente" (gestor CAPS C).

Para esses gestores, é nesse movimento de avaliação que será possível consolidar o matriciamento: "Poder ver onde estamos, para onde estamos indo e o que fizemos, senão vai ser instituído um dispositivo que vem para quebrar certa hierarquia, mas acaba ficando hierarquizada e engessada no protocolo" (gestor CAPS B).

Destaca-se nessa proposta a imprescindibilidade de análise constante desse trabalho, que busca, assim como outras estratégias importantes voltadas à promoção à saúde e à desinstitucionalização do cuidado, a consolidação daqueles princípios trazidos pelo SUS, difíceis de se efetivar no cotidiano das práticas, por toda a lógica existente de compartimentalização e pouca sociabilidade, mas possível de acontecer por conta da invenção, do compromisso e da articulação dos atores da saúde — usuários, profissionais de saúde e gestores. Como bem ressalta o gestor CAPS C: "O matriciamento é uma invenção a cada ato que se faz", o que reafirma a importância desses momentos de reflexão das práticas e das integrações e parcerias diversas no trato com a complexidade da vida em seu movimento.

Nesse contexto, defendemos que, independentemente de esse matriciamento ser acionado pela atenção básica aos CAPS, ele precisa estar com a Atenção Básica também provocando a construção de outro olhar sobre os sujeitos e sobre a práxis em saúde, pela invenção de possibilidades mais efetivas de integralidade da atenção. Trata-se de uma clínica artesanal que tenta escapar à perspectiva protocolar, na medida em que se abre a invenções mediante essas relações com cada sujeito em suas particularidades e em seu entorno.

Onocko-Campos (2003) igualmente pontua a necessidade de uma análise crítica sistemática da perspectiva matricial, tendo em vista que, assim como qualquer arranjo que se institucionaliza, o matriciamento pode ser capturado pela lógica tradicional. Como um trabalho para a desinstitucionalização, o matriciamento em saúde mental deve se dispor também à crítica, ao conflito, à reinvenção de ações de cuidado, para a desconstrução de realidades excludentes consolidadas e a invenção de outras realidades de respeito e valorização das diferenças.

Nessa perspectivas de mudanças de paradigma no modo de operar no setor da saúde, conforme trazido pelo coordenador municipal da área técnica de saúde mental 2, faz-se importante garantir o suporte formativo também aos matriciadores, que estão se formando igualmente em serviço, por meio dessas relações propostas pelo matriciamento. Assim, outras proposições trazidas pelos gestores deste estudo se tornam mais viáveis, como, por exemplo, a ideia de ampliação do matriciamento para outros serviços da rede, para além da Atenção Básica:

Dar um apoio aos profissionais que não estão diretamente vinculados à saúde mental, para que eles não demandem, tantas vezes, o especialista e algum tipo de intervenção que reforce a tese da segregação. São casos que a internação compulsória foi solicitada sem uma conversa com alguém da saúde, por exemplo, que poderia orientar melhor como seria um pedido deste, para que ela não ficasse quase que uma situação em definitivo. Então, tem que poder conceitualmente dizer para aqueles que não conhecem a proposta dele poder entender, acionar e solicitar [gestor CAPS C].

Interessante pensar nessa possibilidade de ampliação do processo formativo em saúde mental, trabalhando o olhar de outros serviços da rede de cuidado para a questão da saúde mental, incorporando-os na efetivação de políticas públicas, por exemplo, mais pertinentes à promoção à saúde e à luta por mudanças cotidianas pela desinstitucionalização.

Por fim, o coordenador municipal da área técnica de saúde mental 2 agrega à proposta desse matriciamento em saúde mental, ampliar também os olhares sobre as pessoas em sofrimento psíquico para a sua saúde de modo geral, como presente na fala: "Penso que o matriciamento poderia ajudar em incluir na prática de CAPS e de unidade, tipo uma investigação da saúde do usuário, estar vendo se ele é hipertenso, diabético, se está tratando. Têm tido muitas mortes por problemas metabólicos".

Tal proposta ressalta que, assim como estamos trabalhando pela inclusão da saúde mental no processo de cuidado em saúde, não podemos perder de vista que igualmente essas pessoas em sofrimento psíquico têm um corpo que necessita também ser visto e cuidado. Isso deve ser destacado, principalmente, ao considerarmos, no caso daqueles que fazem uso de psicofármacos, os efeitos dessas medicações para aquele corpo que vivencia tal situação de fragilidades psíquicas.

 

4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Este estudo analisou as concepções trazidas pela gestão sobre o matriciamento, bem como as dificuldades enfrentadas, os avanços e as mudanças alcançadas, assim como as propostas de fortalecimento dessa prática na visão do gestor. Apostávamos que existiriam diferenças importantes entre os entendimentos dos gestores entrevistados de serviços diferentes, contudo, pudemos apreender que tais percepções, trazidas pelos gestores de US, de CAPS e os coordenadores municipais da área técnica de saúde mental, se assemelham em grande parte.

Nessas discussões foram trazidas importantes mudanças alcançadas pelo trabalho matricial, que busca primordialmente a produção de outra cultura no setor da saúde e sujeitos mais inventivos, participativos, ativos, críticos e solidários, ao contrário de uma perspectiva tradicional, corporativista e alienante do profissional em relação ao resultado de seu trabalho.

Foi apontada pela gestão a possibilidade, alcançada pelo matriciamento em saúde mental, de certa aproximação entre US e CAPS, CAPS e território e entre os próprios CAPS, bem como a ampliação do cuidado aos casos mais complexos de sofrimento psíquico, com a consequente redução do número de internações psiquiátricas de moradores do município. Trata-se de avanços importantes para o setor, especialmente para a saúde mental, que vai ao encontro daquela outra cultura organizacional, pontuada por Campos (1998), de estímulo ao compromisso das equipes com a produção de saúde, favorável às realizações pessoais e profissionais desses trabalhadores.

Todavia, chama a atenção o fato de que todos os entraves trazidos pela gestão ao fortalecimento da proposta do matriciamento indicam a dificuldade de efetivação de encontros pautados na troca e na construção de parcerias efetivas para a promoção à saúde: algumas unidades não funcionam na lógica da ESF, as quais não conseguem garantir as reuniões das equipes para a integração do cuidado; há limitações de transporte para locomoção dos profissionais de um serviço a outro para efetivação do encontro; existe dificuldade de conciliação de agendas entre os serviços para discussão conjunta; falta encontro entre os matriciadores; há dificuldades relacionais entre os envolvidos (que os distanciam); existem equívocos de demanda ao matriciamento por dificuldade de alinhar entendimentos, entre outros.

Mas, afinal, por que é tão difícil garantir e manter esses momentos de encontro produtivo? Há que se problematizar tais questões, tendo em vista, principalmente, que esses momentos de encontro estão assegurados pelas políticas que instituem a Atenção Básica e os CAPS, as quais preveem esses momentos de discussão da clínica. No mais, a própria lei regulamentadora do SUS garante tal integração entre profissionais e serviços, ao destacar em seus princípios a intersetorialidade e a integralidade da atenção, que não se sustentam sem essas possibilidades de encontros produtivos. Contudo, mesmo assim as dificuldades de manter esses encontros persistem.

Nesse sentido, questionamo-nos também até que ponto conseguimos efetivar aquele compartilhamento das decisões para a aproximação das necessidades da população, de modo que cada ator da saúde se aproprie de seu papel de gestão na vida e no trabalho. Até que ponto estamos nos aproximando da gestão interativa proposta pelo matriciamento, possibilitada pela junção daqueles vários atores, para fazer funcionar o sistema em toda a sua potencialidade, por um objetivo comum? Até que ponto estamos efetivamente fazendo acontecer um trabalho articulado? Até que ponto tem se apostado no público?

Tudo isso requer o encontro produtivo, obstaculizado por uma sociedade regulada pela lógica capitalista, a qual incentiva a fabricação de um sujeito competitivo e individualista em detrimento de princípios solidários (ONOCKO-CAMPOS; GAMA, 2008). Pode-se dizer, assim, que são muitas as barreiras ao encontro efetivo e produtivo, uma vez que também esse estar com o outro muitas vezes ameaça o poder daqueles que centralizam ações e saberes, ou, ainda, expõe cada um que se dispõe ao trabalho conjunto a ter seus conhecimentos e práticas questionados pelas diferentes visões de mundo ali presentes. Por outro lado, somente esse fazer interativo possibilita o cuidado integral, efetivamente produtor de saúde, já que entendemos saúde como um amplo espectro de fatores ligados à vida, em que um único saber e prática jamais conseguirão assegurá-la.

Por tudo isso, salientamos mais uma vez a importância de essas práticas matriciais serem colocadas constantemente em análise, corroborando as preocupações de Onocko-Campos e Gama (2008, p. 417) de que as "políticas públicas de saúde podem facilmente se converter em aparato de poder servindo para a reprodução de condições do interesse do capital e controle sobre o modo de vida da população", em detrimento das inter-relações e interações pretendidas à produção de saúde que buscamos, por meio também da lógica matricial.

 

REFERÊNCIAS

AMARANTE, P. Manicômio e loucura no final do século e do milênio. In: FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R.; COSTA, E. S. (Org.). Fim de século: ainda manicômios? São Paulo: IPUSP, 1999.         [ Links ]

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: 70, 1988.         [ Links ]

BERTUSSI, D. C. O apoio matricial rizomático e a produção de coletivos na gestão municipal em saúde. 2010. Tese (Doutorado em Ciências) – Programa de Pós-Graduação em Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.         [ Links ]

BIRMAN, J. A cidadania tresloucada: notas introdutórias sobre a cidadania dos doentes mentais. In: BEZERRA JÚNIOR, B.; AMARANTE, P. (Orgs.). Psiquiatria sem hospício: contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992.         [ Links ]

BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde mental e atenção básica: o vínculo e o diálogo necessários. Brasília: Ministério da Saúde, 2003.         [ Links ]

______. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: equipe de referência e apoio matricial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. (Série B. Textos Básicos de Saúde).         [ Links ]

______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Portaria Ministerial n.º 648, de 28 de março de 2006: aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, 2006. Brasília, 2006. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pacto_saude_v4_4ed.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2015.         [ Links ]

______. Ministério da Saúde . Portaria nº 154, de 24 de Janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF. Brasília: Ministério da Saúde, 2008.         [ Links ]

______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. HumanizaSUS: gestão participativa e cogestão. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. (Série B. Textos Básicos de Saúde).         [ Links ]

CAMPOS, G. W. S. O anti-Taylor: sobre a invenção de um método para co-governar instituições de saúde produzindo liberdade e compromisso. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 863-870, 1998. doi: 10.1590/S0102-311X1998000400029.         [ Links ]

CAMPOS, G. W. S; CUNHA, G. T.; FIGUEIREDO, M. D. Práxis e formação Paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec, 2013.         [ Links ]

CAMPOS, G. W. S; GUTIÉRREZ, A. C.; GUERRERO, A. V. P.; CUNHA, G. T. Reflexões sobre a Atenção Básica e a estratégia de saúde da família. In: CAMPOS, G. W. S.; GUERRERO, A. V. P. (Orgs.). Manual de práticas de Atenção Básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Hucitec, 2008. p. 132-153.         [ Links ]

DIMENSTEIN, M.; SEVERO, A. K.; BRITO, M.; PIMENTA, A. L.; MEDEIROS, V.; BEZERRA, E. O apoio matricial em unidades de Saúde da Família: experimentando inovações em saúde mental. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 63-74, 2009. doi: 10.1590/S0104-12902009000100007.         [ Links ]

FIGUEIREDO, M. D. Saúde Mental na Atenção Básica: um estudo hermenêuticonarrativo sobre o apoio matricial na rede SUS-Campinas (SP). Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.         [ Links ]

FIGUEIREDO, M. D; FURLAN, P. G. O subjetivo e o sócio-cultural na co-produção de saúde e autonomia. In: CAMPOS, G. W. S.; GUERREIRO, A. V. P. (Orgs.). Manual de Práticas de Atenção Básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Hucitec, 2008. p. 154-178.         [ Links ]

IGLESIAS, A.; AVELLAR, L. Z. As contribuições dos psicólogos para o matriciamento em saúde mental. Psicologia, Ciência e Profissão, v. 36, n. 2, p. 364-379, 2016a. DOI: 10.1590/1982-3703001372014         [ Links ]

______. Matrix support in mental health: the experience in Vitória, Espírito Santo. Journal of Health Psychology, v. 21, n. 3, p. 346-355, 2016b.         [ Links ]

IGLESIAS, A.; AVELLAR, L. Z.; DALBELLO-ARAÚJO, M. Apoio matricial: uma estratégia de formação para a promoção à saúde e a desinstitucionalização do cuidado em saúde mental. Vitória, [2015c?]. (no prelo).         [ Links ]

LIMA JÚNIOR, J. M.; MELO, S. C. F.; BRAGA, L. A. V.; DIAS, M. D. Saúde mental e saúde da família: implicações, limites e possibilidades. Caderno de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 229-33, 2010.         [ Links ]

KINOSHITA, R. T. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: PITTA, Ana Maria Fernandes (Org.). Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 55-59.         [ Links ]

MELO, V. M. Uma experiência baseada no apoio matricial em saúde mental: estratégia para um atendimento integral. 103 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2009.         [ Links ]

NASCIMENTO, D. D. G.; OLIVEIRA, M. A. C. Reflexões sobre as competências profissionais para o processo de trabalho nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 34, n. 1, p. 92-96, 2010.         [ Links ]

NICÁCIO, M. F. S. Utopia da realidade: contribuições da desinstitucionalização para a invenção de serviços de saúde mental. 2003. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas de Campinas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.         [ Links ]

NORONHA, J. C.; LIMA, L. D.; MACHADO, C. V. A gestão do Sistema Único de Saúde: características e tendências. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde no Brasil: contribuições para a Agenda de Prioridades de Pesquisa. Brasília, 2004. p. 41-94.         [ Links ]

OLIVEIRA, G. N. Devir apoiador: uma cartografia da função apoio. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas de Campinas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.         [ Links ]

ONOCKO-CAMPOS, R. A gestão: espaço de intervenção, análise e especificidades técnicas. In: CAMPOS, G. W. S. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003. p. 122-149.         [ Links ]

ONOCKO-CAMPOS, R.; GAMA, C. Saúde mental na Atenção Básica. In: CAMPOS, G. W. S.; Guerrero, A. V. P. Manual de práticas de Atenção Básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Hucitec, 2008. p. 210-236.         [ Links ]

SCÓZ, T. M. X.; FENILI, R. M. Como desenvolver projetos de atenção à saúde mental no Programa de Saúde da Família. Revista Eletrônica de Enfermagem, Goiânia, v. 5, n. 2, p. 61-67, 2003.         [ Links ]

SILVA, B. F. S. Integralidade na gestão em saúde? A voz dos gestores. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012.         [ Links ]

SOUZA, A. C. Em tempos de PSF: novos rumos para atenção em saúde mental? 2004. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2004.         [ Links ]

STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO/Ministério da Saúde, 2002. 726p.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondênciaI
Avenida Fernando Ferrari, s/n.º,
Campus Goiabeiras, CEMUNI VI, sala 3 –
Vitória, ES.
CEP: 29075-910.
E-mail: leiglesias@gmail.com

Endereço para correspondênciaII
Avenida Fernando Ferrari, s/n.º,
Campus Goiabeiras, CEMUNI VI, sala 7 –
Vitória, ES.
CEP: 29075-910.
E-mail: luzianeavellar@yahoo.com.br

Artigo recebido em: 03/08/2016.
Aprovado para publicação em: 20/10/2016.

 

 

1 Refere-se a todos os profissionais de saúde que têm sua formação voltada à discussão psicossocial, para além dos psicólogos e psiquiatras, assistentes sociais, terapeutas em geral, como, por exemplo, terapeutas ocupacionais, musicoterapeutas, arteterapeutas, psicanalistas, dentre outros.

Creative Commons License