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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.11 no.21 Barbacena July./Dec. 2017

 

ARTIGOS

 

O sabiá e sua memória de elefante

 

The rufous-bellied thrush and its elephant memory

 

El tordo rufo y su memoria de elefante

 

 

Mayara Pacheco CoelhoI; Michelle de Almeida CézarII

IProfessora no Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL); Mestre em Psicologia, linha Processos Psicossociais e Socioeducativos, pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ); Graduada em Psicologia pela UFSJ.
II
Psicóloga; Mestre em Psicologia, linha Processos Psicossociais e Socioeducativos, pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ); Graduada em Psicologia pela UFSJ.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente ensaio traz a experiência de um imigrante tanzaniano, de 78 anos, em solo brasileiro há mais de 40 anos. A partir do relato oral, objetivou-se articular os conceitos de "memória" e "identidade" à história de vida do entrevistado. O método utilizado para a obtenção de informações foi uma entrevista aberta, devido à liberdade que confere ao entrevistado para discorrer sobre as questões levantadas. Sobre o relato do entrevistado, são tecidas considerações a respeito de sua religiosidade, do sentido do trabalho em sua vida, das questões políticas e econômicas de seu país de origem, das mudanças percebidas ao longo de sua estadia em solo brasileiro, além da maneira pela qual sua identidade se transformou, incorporando novos elementos ao longo dos anos.

Palavras-chave: memória; narração; imigrantes.


ABSTRACT

This paper brings the experience of a Tanzanian immigrant, at an advanced age, on Brazilian soil for over 40 years. Based on oral narrative, this study aimed to articulate his life story and the concepts of "memory" and "identity". The method used for obtaining information was an open interview, due to the freedom that it gives to the respondent to discuss the issues raised. About the respondent's report, reflections are made about his religiosity, the meaning of work in his life, his home country political and economic issues, perceived changes throughout his stay in Brazilian soil, and the way his identity was transformed by incorporating new elements over the years.

Keywords: memory; narration; immigrants.


RESUMEN

En este trabajo se lleva la experiencia del inmigrante de Tanzania, de 78 años, en suelo brasileño por más de 40 años. Desde la narración oral, este estudio tuvo como objetivo articular la historia de su vida y los conceptos "memoria" e "identidad". El método utilizado para la obtención de información fue una entrevista abierta, debido a la libertad que da a el entrevistado para hablar sobre los temas que se tratarán. Acerca el relato del entrevistado, se reflexiona sobre su religiosidad, el sentido del trabajo para su vida, los problemas políticos y económicos de su país de origen, la percepción de los cambios a lo largo de su estancia en suelo brasileño, además de la forma en que su identidad fue transformada por la incorporación de nuevos elementos a través de los años.

Palabras clave: memoria; narración; inmigrantes.


 

 

1 INTRODUÇÃO

O presente ensaio traz a experiência de um imigrante tanzaniano, em solo brasileiro há mais de 40 anos. O título foi escolhido devido às características da história de vida de nosso entrevistado, que já se encontra em idade avançada, e à sua relação com os conceitos de "memória" e "identidade". Buscou-se fazer uma analogia a partir de seu relato e de sua inserção nas culturas africana e brasileira.

O sabiá foi escolhido por ser um símbolo da fauna ornitológica brasileira. É um pássaro de pequeno porte, bastante comum na América do Sul e muito apreciado no Brasil. É referenciado no poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, e em obras de outros escritores brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e Patativa do Assaré; também aparece em trabalhos dos músicos Luiz Gonzaga, Milton Nascimento, Chico Buarque e Tom Jobim. Portanto, compõe a identidade nacional.

O elefante é um animal originário da África (e também da Ásia). Na cultura hindu, é referenciado como símbolo de sabedoria. É também associado à boa memória (memória de elefante) devido à sua capacidade de armazenar informações: a memória desses animais é responsável pela organização social da manada e auxilia na conservação da espécie, pois os elefantes são capazes de memorizar locais importantes, como onde conseguir suprimentos.

A concepção da memória como produto de uma atividade meramente subjetiva foi superada pelo pensamento de Maurice Halbwachs (1990), para quem as lembranças são fruto de uma atividade de reconstrução do vivido. O trabalho da memória conta com o suporte de imagens e ideias, valores e afetos vinculados a grupos sociais junto aos quais o memorialista experimenta algum sentimento de pertença (FROCHTENGARTEN, 2005).

Coletar memórias é dar existência à fala. Como pesquisadores, é colocar nossa escuta mais genuína à disposição do outro a fim de captar suas reminiscências, seus anseios e silêncios. É entrar em contato (com-tato) com esse outro que se deixa conhecer. É permitir a ele rememorar e ressignificar sua experiência.

A noção de identidade rompe com as dicotomias entre indivíduo e sociedade, passado e presente, ciência e prática social. Essa noção está tão associada à ideia de memória quanto a memória está associada a noção de identidade. Da mesma forma que a identidade, a memória também não mais é pensada como um atributo estritamente individual. A noção de identidade rompe com as dicotomias entre indivíduo e sociedade, passado e presente, ciência e prática social. Essa noção está tão associada à ideia de memória quanto a memória está associada à noção de identidade. Da mesma forma que a identidade, a memória também não mais é pensada como um atributo estritamente individual, passando a ser considerada um elemento constitutivo do processo de construção de identidades coletivas (SANTOS, 2005).

A partir de tais considerações, e da história de vida oral de um imigrante africano de 78 anos, o presente ensaio busca identificar e relacionar os conceitos de "memória" (BOSI, 1994) e "identidade" (CIAMPA, 1989). Hoje, nosso entrevistado é um símbolo do comércio e do cotidiano de uma cidade no interior de Minas Gerais, sendo referenciado como parte da história e memória viva local.

 

2 REVISÃO DE LITERATURA

2.1 Memória e sociedade

A memória corresponde a um processo psicológico básico. É responsável pelo armazenamento e pela recuperação de experiências e informações. O conteúdo emocional e as percepções relacionadas a uma lembrança podem intervir ativamente na memória.

Em seu famoso livro Memória e sociedade: lembranças de velhos, Ecléa Bosi (1994) inicialmente se atém à etimologia do verbo "lembrar-se", do francês "se souvenir", que significa "vir de baixo" (sous-venir) ou "vir à tona aquilo que estava submerso".

A memória tem uma função decisiva no processo psicológico: ela permite a relação entre o presente e o passado. Por meio da memória, o passado vem à tona e se mistura com as impressões imediatas. "A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora" (BOSI, 1994, p. 47).

Em seu ensaio de teor narrativo, Bosi (1994) traz considerações de autores como Henri Bergson e Maurice Halbwachs. De acordo com a autora, Bergson afirma que a memória é uma força espiritual prévia. Para tanto, o chamado filósofo da intuição adota a fenomenologia da lembrança e o método introspectivo em seus trabalhos, propondo dois conceitos básicos: a subjetividade pura (espírito), ligada à memória; e a pura exterioridade (matéria), ligada à percepção.

Bergson propõe ainda a relação entre ação e memória. De forma generalizadora, o referido autor afirma que ambas se excluem mutuamente e coloca em oposição vida ativa e vida contemplativa. Essa oposição parece afetar a disponibilidade do narrador para enunciar fatos passados e a abertura para a evocação pura (BOSI, 1994).

Bosi (1994) afirma que no texto de Bergson não há relação entre os sujeitos que se lembram e as coisas lembradas; não há, portanto, um tratamento da memória como fenômeno social. Para preencher essa lacuna, Bosi (1994) se vale da teoria psicossocial de Halbwachs.

Halbwachs se atém aos quadros sociais da memória e leva em consideração as relações interpessoais e as instituições sociais na constituição dos sujeitos. Segundo Bosi (1994), Halbwachs propõe que, se lembramos de algo, é porque os outros nos fazem lembrar. Nossas memórias são assim provocadas. Lembrar não é reviver; mas repensar e reconstruir as experiências do passado com as imagens e ideias de hoje. Assim, memória é atividade, é trabalho.

É de suma importância compartilhar lembranças, pois lembrar é trabalhar: não revivemos uma lembrança, nós a reconstruímos. Ampliada com imagens e ideias do hoje, a partir das experiências do passado, a revitalização da memória ganha status de trabalho (CHAUÍ, 1987 apud VIEIRA-SILVA; PAIVA; MIRANDA, 2005, p. 9).

A memória individual está atrelada à memória do grupo. A memória do grupo, por sua vez, está associada a uma esfera maior, que é a memória coletiva de cada sociedade. Outro elemento socializador da memória se refere à linguagem: as lembranças não são produtos individuais, são representações e símbolos pertencentes a um grupo (BOSI, 1994).

Nessa aproximação entre memória e história pública, Bosi (1994), apoiada na teoria de Halbwachs (1990, p. 53), afirma que "a lembrança é a sobrevivência do passado", sendo a história uma construção que, ao resgatar o passado (campo da memória), aponta para formas de explicação do presente e projeta o futuro.

Em seu trabalho, Bosi (1994) apresenta uma realidade duas vezes oprimida: uma, pela dependência social e outra, pela velhice. Com seus velhos narradores, Bosi não apenas coleta memórias, mas lhes dá existência e as apresenta às novas gerações. Para Chauí (1987 apud VIEIRA-SILVA; PAIVA; MIRANDA, 2005, p. 34), os mais velhos representam a "fonte da memória", ou seja, o lugar de origem de uma cultura a ser preservada, sendo o trabalho de reflexão essencial para que tais lembranças ganhem consistência. Assim, um trabalho sobre memória é o trabalho de uma vida.

2.2 Identidade: construção cultural

Identidade é definida por Ciampa (1989) a partir de quatro noções. A primeira noção se relaciona à diferença na igualdade. "O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos indivíduos identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente, com sua história, suas tradições, suas normas, seus interesses, etc." (CIAMPA, 1989, p. 64). Ou seja, falar em identidade é se reconhecer em outros elementos.

A segunda noção se refere aos grupos, uma vez que a identidade é constituída pelos diversos grupos em que estamos inseridos: "Vamos nos identificando e também nos diferenciando de acordo com os grupos sociais dos quais somos parte: brasileiro, igual a outros brasileiros, diferente dos estrangeiros [...], homem ou mulher" (CIAMPA, 1989, p. 65).

A atividade constitui a terceira noção de identidade apresentada por Ciampa (1989). Identidade está ligada ao fazer; a atividade é antes de tudo nomear. É pelo agir, pelo fazer, que alguém se torna algo, ou seja, nós somos nossas ações. Ao assumir uma função, o indivíduo é o que faz.

Nessa direção, Bock (1991) acrescenta a relação do trabalho com a sociedade:

Através da atividade, o homem produz o necessário para satisfazer suas necessidades. A atividade de cada indivíduo, ou seja, sua ação particular, é determinada e definida pela forma como a sociedade se organiza para o trabalho. Entendido como a transformação da natureza para a produção da existência humana, o trabalho só é possível em sociedade. E um processo pelo qual o homem estabelece, ao mesmo tempo, relação com a natureza e com os outros homens; essas relações determinam-se reciprocamente (BOCK, 1991, p. 89, grifo nosso).

Por último, Ciampa (1989) traz a ideia de metamorfose. A identidade se constitui num permanente processo de identificação. Esse processo, porém, é mutável. Assim como nossa identidade se altera ao longo da vida, nossos modelos também são substituídos (pais, professores, ídolos). Mesmo assim carregamos essas marcas em nós. O antigo permanece no novo.

Dizer que a identidade é vislumbrada a partir de seu caráter de metamorfose significa que ela nunca está acabada; é um fazer-se constante. É construção, projeto. É formada e transformada (COELHO, 2014).

Quando falamos em identidade de um grupo, essa identidade está além da soma matemática das partes envolvidas. Ela é construída no contato entre seus membros e também no contato com outros grupos. É, portanto, um processo dialético que traz em si as determinações sociais que o grupo pode manter e/ou transformar por meio de suas ações ou atividades (VIEIRA-SILVA, 2000).

Pichon-Riviére (2007) estabelece a Teoria do Vínculo, que é a estrutura dinâmica, envolvendo sujeito e objeto, tendo como fundamento a comunicação. A noção de vínculo, em Pichon-Riviére, aborda a relação entre o social e a configuração de mundo interno do sujeito.

Mouffe (1999 apud AZERÊDO, 2007, p. 91) propõe que a afirmação da diferença é uma condição que rege a constituição de toda identidade. A partir da determinação de um outro, é possível reconhecer um exterior e compreender o surgimento do antagonismo. Como propõe Azerêdo (2007), não falamos em identidades fixas; o que deve ser permanente quando falamos em identidade é sua desconstrução.

Para Hall (1998), as identidades modernas estão sendo "descentradas", isto é, deslocadas ou fragmentadas (HALL, 1998, p. 8). A descentração ou deslocamento do sujeito, proposta por Hall (1998), se refere a mudanças na identidade pessoal; perde-se o sentido de estabilidade. Esse movimento é advindo das mudanças na própria sociedade no final do século XX e início do século XXI. Fragmentam-se classe, gênero, sexualidade, etnia, raça, nacionalidade, o que, consequentemente, afeta nossa identidade.

Devemos pensar na construção das identidades como uma construção cultural, em toda a sua complexidade, dentro de uma perspectiva sócio-histórica. Devemos pensar em "identidades que não são unificadas ao redor de um 'eu' coerente [...] e em sujeitos que assumem identidades diferentes em diferentes momentos" (HALL, 1998, p. 13, grifo nosso).

Compreender a identidade significa compreender a história pessoal e social e ir além do observável. É buscar, além das circunstâncias e do aparente, o que engendra o indivíduo e sua relação com os outros. Essa tarefa implica pensar o outro como constitutivo de si próprio e como espelho onde eu me reconheço diferente.

 

3 MÉTODO

Para a realização deste ensaio, utilizou-se a coleta de informações a partir de métodos de entrevista – técnica muito importante, principalmente quando se trata de coletar dados subjetivos acerca do entrevistado. Os tipos de entrevista mais utilizados em Ciências Sociais são: a entrevista estruturada, a semiestruturada, a aberta, a entrevista com grupos focais, a história de vida e a entrevista projetiva (BONI; QUARESMA, 2005).

Segundo Boni e Quaresma (2005), para se realizar uma boa pesquisa é necessário escolher os sujeitos a serem investigados. Quando o pesquisador tem a oportunidade de escolher seu objeto de estudo, há maior aproximação entre ele e o sujeito/objeto pesquisado. E, de acordo com Spindola e Santos (2003), essa escolha é decorrente de interesses e circunstâncias socialmente condicionadas.

É preciso salientar a importância de esses sujeitos serem, na medida do possível, conhecidos do pesquisador ou apresentados por pessoas próximas de ambos. De forma que, quando existe certa familiaridade ou proximidade entre pesquisador e pesquisado, as pessoas ficam mais à vontade e se sentem mais seguras para contribuir com a investigação (BONI; QUARESMA, 2005).

Para a confecção do presente trabalho, priorizou-se o uso da entrevista aberta, que atende a finalidades exploratórias, sendo muito utilizada no detalhamento de questões e na formulação mais precisa dos conceitos relacionados. Esse tipo de entrevista permite ao entrevistado total liberdade para discorrer sobre as questões a serem levantadas, de forma que o clima da entrevista se pareça com uma conversa informal (BONI; QUARESMA, 2005).

A entrevista realizada consistiu em compreender questões acerca das memórias do entrevistado – as quais estão completamente imbricadas: na memória coletiva do período de independência dos países africanos; na sua participação como trabalhador imigrante; e na construção de sua identidade, perpassada pelos costumes de seu país de origem e pelos costumes brasileiros.

Tal entrevista apoiou-se na possibilidade de questionar o entrevistado sobre sua história, permitindo a construção do relato com poucas intervenções do entrevistador. As intervenções objetivaram clarificar algumas partes do relato, principalmente em relação à pronúncia do entrevistado, que às vezes dificulta a compreensão, mas também como forma de instigá-lo a trazer novos elementos.

A interferência reduzida contribuiu em grande parte para a liberdade do entrevistado em guiar o entrevistador pelo campo fértil de suas memórias. A interação entre pesquisador e informante permite que o entrevistado, por meio do relato, transmita suas experiências. Esse tipo de entrevista, chamado "história de vida", retrata todo o conjunto da experiência em questão (MINAYO, 1993).

Assim, esse método se interessa pelo que o entrevistado tem a dizer sobre si. Segundo Spindola e Santos (2003), por esse motivo o nosso olhar estará voltado para aquilo que ele (o entrevistado) acha importante ser relatado, sendo que, a partir da história de vida, o cotidiano das pessoas é retratado.

A história de vida se insere no amplo campo da história oral e, embora seja o pesquisador quem escolhe o tema a ser pesquisado, seu foco de análise e seu roteiro, é o narrador quem dirige sua história (QUEIROZ, 1988 apud PAULILO, 1999, p. 4).

É a partir da história oral que se tem a possibilidade de apreender a cultura "do lado de dentro", pois há uma interseção entre o que o indivíduo traz dentro de si e tudo aquilo que está à sua volta (CAMARGO, 1984 apud PAULILO, 1999, p. 4). Dessa forma, a história de vida é considerada um instrumento privilegiado para a análise e a interpretação e incorpora experiências subjetivas mescladas aos contextos sociais, fornecendo base para o entendimento tanto do componente histórico dos fenômenos individuais quanto do componente individual dos fenômenos históricos (PAULILO, 1999).

A partir da pergunta norteadora "Como foi sua vinda ao Brasil?", e do relato oral de sua história de vida, T. T. (como o entrevistado será chamado neste ensaio) traz elementos repletos de significação a cada frase completada.

 

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nascido em 1938, na Tanzânia, T. T. é conhecido no Brasil por seu apelido, que em sua língua natal significa "titio". Vindo de uma família muito grande, ele viu seu país conquistar a independência da Coroa Inglesa no ano de 1961.

Em seu discurso, é possível verificar o movimento de uma nação na construção de sua identidade nacional. A Tanzânia foi formada a partir da união entre os territórios Tanganhica e Zanzibar, colônias primeiro da Alemanha, entre os anos de 1880 e 1919, e depois da Inglaterra, até 1961.

Esse período da independência, segundo T. T., foi muito festivo e muito bonito. Ele relata a troca da bandeira inglesa pela bandeira da Tanzânia e a posse do primeiro presidente da República da Tanzânia.

Nessa parte de seu relato, é possível identificar como a memória individual está carregada da memória coletiva, na qual, segundo Halbwachs (1990), a identificação e o sentimento de pertença a um grupo atuam como fatores determinantes da fundamentação da memória, assim como do processo de construção da identidade.

T. T. se refere ao primeiro governo após a independência como um período de muitas mudanças, pois o presidente Julius Nyerere implantara no país uma política denominada "Socialismo Africano"1, na qual, segundo T. T., a população viu seus bens serem confiscados aos poucos. Os primeiros a serem atingidos foram os fazendeiros, depois os doutores, e assim sucessivamente, até a medida alcançar toda a população. Sua família, que possuía 50 imóveis, além de uma fazenda e uma fábrica de óleo de girassol, ficou com apenas três imóveis e um comércio.

Nessa época se tornou comum as pessoas saírem do país em busca de melhores condições de vida. E ele, como um filho "bagunceiro" (segundo T. T., ser visto como "bagunceiro" advém do fato de se desentender com a família), ouviu sua mãe dizer: "Você vai embora". E ele respondeu: "Eu não vou, eu não gosto de luxo, se me dá mandioca pra comer, não preciso de carne. Não quero carro, televisão. Não quero luxo". Mas sua mãe e seu irmão continuaram a insistir para que ele fizesse como os outros irmãos que deixaram o país, até que ele acatou a sugestão.

Como destino, ele tinha cinco opções: Índia, Canadá, Inglaterra, Paquistão e Brasil. Por já ter um irmão solteiro no Brasil (ele diz que "onde tem casado não vai dar certo"), escolheu o país. T. T. conta o episódio em que o responsável por preencher seus documentos zombou dele por não falar bem o inglês e ainda por cima não saber nada sobre o país que escolheu. Ele diz que, naquela época, não sabia nada sobre o Brasil.

Em 25 de março de 1971, ele deixa a Tanzânia e vem ao Brasil para viver com seu irmão, que residia na cidade de São João del-Rei, MG. T. T. também fala sobre como foi sua chegada ao Rio de Janeiro e do taxista que o ajudou a chegar em Minas Gerais. O taxista o colocou em um ônibus para Belo Horizonte, e ele, sem saber falar "bom dia", como diz, se viu longe de seu destino. Com um pouco de dificuldade, um dia após o esperado, chegou à pensão onde o irmão morava.

Esse foi um período muito difícil, segundo ele, por ter deixado a "nossa Tanzânia" e se mudado para um país desconhecido. T. T. negou durante algum tempo que tinha vindo para ficar: dizia que viera a passeio. Negou-se, também, de início, a aprender o português.

A partir de seu relato, além de se observar a negação de uma nova cultura, uma vez que essa cultura ainda não constituía sua identidade, T. T. revela também o sentimento de pertença à sua origem, quando se nega a deixar seu país, a aprender uma nova língua e quando se refere à Tanzânia como a "nossa Tanzânia".

Já no primeiro dia em São João del-Rei, na casa do irmão, T. T. teve uma briga com o irmão, que queria que ele arrumasse seus documentos. Ele se viu então nesse impasse: arrumar os documentos para ficar de vez no Brasil ou voltar para seu país de origem?

T. T. decidiu correr atrás de seus documentos para poder se estabelecer no Brasil e não ter problemas com a Justiça. Foi ao Rio de Janeiro arrumar os documentos com um amigo de sua família. Contudo, esse amigo desapareceu com os documentos durante sete anos, e ele se viu impossibilitado de abrir a loja que tanto queria.

Dessa forma, passou a trabalhar como vendedor ambulante. Conseguiu umas peças com um comerciante da cidade, como toalhas e colchas, e saiu com um balaio nas costas pelas cidades da região: Tiradentes, Lagoa Dourada, Nazareno, São Sebastião da Vitória e Dores de Campos, na tentativa de ganhar a vida.

Entretanto, além de não falar uma palavra em português, o que muito dificultava suas vendas, ele percebeu que estava carregando muito peso e que tais mercadorias eram muito difíceis de ser vendidas. Por isso, passou a vender produtos variados e fáceis de serem carregados, como esmaltes, maquiagem, bijuteria, cordas de varal e correias de chinelo.

Em seu primeiro dia como vendedor, bateu a dez portas e só conseguiu vender um anel. Nesse dia, caiu uma forte chuva em Tiradentes, fazendo-o voltar desanimado para casa. No segundo dia, na cidade de Nazareno, ele bateu a 70 portas e conseguiu vender uma única pulseira de relógio.

T. T. conta muitos episódios desse início tão conturbado. Um deles aconteceu em Tiradentes, quando, em um momento de distração, uma mulher roubou uma corda de varal. Ele foi atrás dela e arrebentou o varal de sua casa. Seu irmão, mais experiente, lhe advertiu que assim não conseguiria conquistar sua freguesia, e que ainda poderia arrumar problemas com a polícia; além disso, ser estrangeiro complicaria muito sua situação.

Através de seu relato, T. T. nos mostra como ter um trabalho é essencial em sua vida e fator constituinte de sua identidade. Um fato que comprova isso é ele continuar a trabalhar mesmo em idade avançada e querer postergar ainda mais sua aposentadoria. T. T. é comerciante e, por meio de sua atividade, constrói um traço muito significativo de sua identidade, assim como propõe Ciampa (1989).

T. T. conta que seus primeiros seis meses de trabalho foram de muita dificuldade, mas que com o passar do tempo as vendas foram melhorando. Depois de sete anos, seu amigo reapareceu e ele conseguiu arrumar os documentos. Decidiu, então, comprar um ponto no comércio de São João del-Rei. T. T. conta que, no início, as pessoas não entravam em sua loja, mesmo os antigos fregueses da venda porta a porta. Assim, ele trabalhava de segunda a sexta na loja e, aos finais de semana, continuava a visitar as cidades da região com seu balaio. T. T. acrescenta também que, antes de abrir a loja, voltou à Tanzânia e ficou lá por um ano.

T. T. conta que chegou a namorar uma moça brasileira. Pensou em se casar com ela para poder ficar no Brasil, mas não o fez porque não queria entrar em outra igreja para isso. Quanto a essa situação, ele diz que pensava nos filhos que teriam: eles não seriam muçulmanos como ele.

Um ponto forte como elemento constituinte de sua identidade é a questão religiosa, mostrada claramente nessa parte do relato. Por essa questão ser tão marcante em sua vida, sua estadia no Brasil ganhou novos rumos. Os rituais religiosos são fatores presentes no cotidiano de T. T., que mantém viva a tradição das orações islâmicas ao amanhecer. Contudo, passou a frequentar igrejas católicas, tão presentes no cotidiano são-joanense, por respeitar e querer estar próximo à palavra de Deus. Ele demonstra ter grande respeito pela palavra dos sacerdotes e insiste para que aqueles à sua volta procurem Deus e uma religião.

Quando falamos em identidade, é necessário ter em mente que esse conceito não deve ser visto como uma estrutura rígida. Para isso, o diálogo com Ciampa (1989) se torna indispensável, uma vez que esse autor propõe uma visão sobre identidade a partir do conceito de metamorfose, ou seja, a constituição da identidade se dá num processo dinâmico e dialético com a sociedade (CIAMPA, 1989).

A partir de seu relato, nosso entrevistado mostra que, por meio das relações sociais estabelecidas no novo país, os elementos constituintes de sua identidade vão se transformando a ponto de o novo já não lhe causar tanta estranheza; o novo já não é novo, é elemento apropriado constituinte de sua identidade.

T. T. decidiu então morar sozinho e, mais uma vez, brigou com o irmão. Nessa época, eles já possuíam duas casas; assim, cada um ficou com uma. T. T. diz que não achava justo, sendo mais novo, ter uma loja enquanto o irmão, mais velho, ainda era vendedor ambulante. Essa diferença entre as posses de ambos se deu, segundo T. T., devido a características pessoais de seu irmão, que só trabalhava quando realmente precisava de dinheiro — diferentemente dele, que diz: "Eu trabalho porque gosto". Ele propôs, então, ao irmão que trabalhasse com ele na loja, mas a parceria não deu certo. Nessa parte do relato, T. T. preferiu não dar continuidade à questão, iniciando um novo assunto. Vale lembrar que, segundo Pollak (1989), os discursos de silêncio, de alusões e metáforas são moldados pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos.

T. T. conseguiu nacionalidade brasileira há cerca de 20 anos. Durante todo esse tempo no Brasil, foi a seu país de origem cinco vezes. Ele conta que se desentendeu com a família em todas as ocasiões. Contudo, expressa vontade de trazer os irmãos que ainda estão na Tanzânia para morar no Brasil (atualmente são três irmãos vivos). Em seu relato, ele aponta as dificuldades enfrentadas por seu país de origem. Ainda hoje, a Tanzânia é vista como um país subdesenvolvido, com baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), no qual a possibilidade de se ter boa qualidade de vida é bastante escassa.

T. T. se considera brasileiro e diz que se sente um visitante em seu país de origem. É interessante notar que ele é um imigrante que carrega em si uma brasilidade inventada. É uma representação do sincretismo cultural. A permanência no Brasil por tantos anos e o fato de se considerar brasileiro pode ser explicada a partir da relação de pertença a um grupo através do vínculo. Pichon-Rivière (2007) compreende vínculo como a maneira pela qual o indivíduo se relaciona com a coletividade, e defende que todas as relações sociais são permeadas pela forma como os indivíduos compreendem e atuam no jogo de atribuições de papéis sociais.

T. T. cita como uma das principais mudanças que percebeu em seu período como imigrante a transformação do comércio desde que chegou ao país: as "lojas dos turcos" eram enormes, e os "turcos" eram realmente imponentes em suas construções. Mas, segundo ele, hoje o Brasil está sob o domínio da China, pois, além de ter muitas lojas de chineses e coreanos, grande parte dos produtos que entram no país é de origem oriental.

T. T. mantém sua loja há 40 anos no mesmo endereço, mas ainda faz visitas com seu balaio a três cidades: Ritápolis, Lagoa Dourada e Coronel Xavier Chaves. Ele diz adorar essas cidades. Seu princípio de vida é: "Deus ajude", tanto as pessoas que o ajudam quanto aquelas que lhe negam um favor; e assim vai vivendo.

T. T. faz parte da memória viva da tricentenária São João del-Rei. Tal reconhecimento veio no ano de 2009, quando ele fez parte das personalidades que compuseram o Calendário 2009: gente da nossa terra – o patrimônio vivo de São João del-Rei, um projeto da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. Sua descrição no calendário foi: "figura emblemática do calçadão, com sua eclética lojinha de vestuário".

Em 2016, participou do revezamento da Tocha Olímpica na cidade. Pode-se dizer que, com seu jeito simples e excêntrico, T. T. conquistou um lugar de honra no Calçadão (local onde se situa sua loja), na história da cidade e no coração do povo são-joanense.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na simplicidade do relato oral de sua história de vida, o personagem aqui retratado encanta pela riqueza de seu discurso. A partir de uma indagação simples, sobre como foi sua vinda ao Brasil, T. T. nos traz inúmeros elementos acerca de política, relações familiares conturbadas, o sentido do trabalho em sua vida, sua religiosidade e seus princípios de vida.

Nosso intuito, além de trabalhar conceitos indissociáveis, foi compartilhar a troca cultural e mostrar como toda identidade é incompleta; é um fazer-se constante a partir de pequenos fragmentos compartilhados com aqueles que nos cercam.

A partir do relato de T. T., é possível identificar a relação estreita entre memória e ação, tão evidenciada na obra de Bosi (1994). Durante a entrevista, ficou evidente que sua memória flui espontaneamente. T. T. se recorda da "nossa Tanzânia" com certo saudosismo; com prazer de suas aventuras em solo brasileiro e orgulho por ter superado tantas adversidades. Esse fluxo é interrompido quando ele silencia; isso ocorre apenas quando relata problemas com o irmão que mora no Brasil. Nessas ocasiões, ele decide mudar de assunto.

Assim como em Bosi (1994), a narrativa de T. T. tem um movimento peculiar de ensino, conselho e sabedoria na transmissão aos mais jovens. Nosso narrador deixa claro seu propósito de vida e seu lema ("Deus ajude") e ainda adverte aos mais jovens da importância do sagrado, mais uma vez evidenciando a importância da religião e da espiritualidade em sua vida.

Também foi possível notar, durante o processo de análise, que as rememorações não obscurecem sua atividade no presente nem seus planos para o futuro. Pelo contrário, são combustíveis que o impulsionam a continuar com suas tarefas cotidianas e com o sentido que atribuiu ao seu dia a dia: o trabalho. Sua fala evidencia que só temos acesso ao passado; o futuro é projeto.

As imagens da vida de T. T. não são apenas rememorações. Sua loja é conhecida pelos inúmeros registros fotográficos afixados nas paredes ou guardados em caixas de recordações. Ele guarda as fotografias como verdadeiros tesouros, e as mostra com entusiasmo e júbilo aos clientes, amigos e visitantes. São recortes de uma vida. De uma longa vida preenchida incessantemente por memórias e histórias.

 

REFERÊNCIAS

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Jardim Santa Luiza, Limeira, SP.
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CEP: 36400-000.
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Artigo recebido em: 15/08/2016.
Aprovado para publicação em: 01/02/2017.

 

 

1Nyerere permaneceu no poder até 1985, e o governo com base socialista se estendeu por mais dez anos, aproximadamente. Apenas em 1995 realizaram-se as primeiras eleições democráticas no país.

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