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Mental

versión impresa ISSN 1679-4427versión On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.11 no.21 Barbacena jul./dic. 2017

 

ARTIGOS

 

As análises de Hannah Arendt acerca dos campos de concentração e suas relações com o "holocausto brasileiro"

 

Analyses of Hannah Arendt about the concentration camps and its relations with the "brazilian holocaust"

 

Los Análisis de Hannah Arendt sobre los campos de concentración y sus relaciones con el "holocausto brasileño"

 

 

Jéssica Tatiane FelizardoI; José Luiz de OliveiraII

IGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
II
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Docente do Departamento de Filosofia e Métodos da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo centra-se na reflexão arendtiana acerca dos campos de concentração e suas relações com o "Holocausto Brasileiro". A pensadora Hannah Arendt buscou compreender os apelos da história política de seu tempo, marcada pelos totalitarismos nazista e stalinista e pelos acontecimentos que a eles se seguiram. Sua obra apresenta-se como de grande alcance e possui inúmeras repercussões nos dias de hoje. Em sua reflexão, a autora salienta que os campos de concentração são considerados a concretização do regime totalitário, no qual o objetivo é a consumação e o domínio total sobre o outro. A jornalista Daniela Arbex resgata a história da loucura e afirma, em sua obra Holocausto Brasileiro (2013), que Basaglia, um dos teóricos renomados da psiquiatria, lutou severamente para acabar com os manicômios e garantir a liberdade dos doentes mentais, tendo estado, inclusive, no Hospital Psiquiátrico Colônia, em Barbacena. Por essa razão, em seu relato, observamos que o teórico comparou a situação do Hospital à de um campo de concentração nazista. Percebemos que, diante do Hospital Psiquiátrico e dos campos nazistas, os seres humanos eram maltratados, desumanizados e degradados. Pessoas passavam a ser identificadas por números. Portanto, são essas afirmações que sustentam o objetivo do nosso trabalho, qual seja o de estabelecer paralelos entre os internos do Colônia e os judeus dos campos de concentração nazistas.

Palavras-chave: barbárie; holocausto; hospital psiquiátrico.


ABSTRACT

This paper aims to focus on Hannah Arendt's reflections on the concentration camps and their relations with the "Brazilian Holocaust". Arendt tried to understand the demands of the political history of her time, marked by the Nazis and Stalinist totalitarianisms and by the subsequent happenings. Her work presents itself with a great reach and has uncountable repercussions nowadays. In her reflection, the author emphasizes that the concentration camps are considered the achievement of the totalitarians regimes, in which the objective is the consolidation and the total domination over the other. The journalist Daniela Arbex recovers the history of madness in her book, Holocausto Brasileiro (2013). She stated that Basaglia, a well-known theorist of psychiatry, fought severely to put an end to the asylums and to guarantee the freedom of mentally ill people. Moreover, he has already been in the Colônia Psychiatric Hospital, in Barbacena. Because of this, in his report, we observe a comparison between the hospital's situation and the Nazis concentration camp. We realize that vis-à-vis the Psychiatric Hospital and the Nazis concentration camps, human beings used to be ill-treated, de-humanized and degraded. People became identified by numbers. Thus, these statements sustain the aim of this research, which is determining parallels between the patients of Colônia and the Jews from the Nazis concentration camps.

Keywords: barbarism; holocaust; psychiatric hospital.


RESUMEN

Ese artículo se centra en la reflexión arendtiana sobre los campos de concentración y sus relaciones con el "holocausto brasileño". La pensadora Hannah Arendt buscó comprender los ruegos de la historia política de su tiempo, marcada por los totalitarismos nazista y stalinista y por los acontecimientos que a ellos se siguieron. Su obra se presenta como de grande alcance y posee innumerables repercusiones en los días de hoy. En su reflexión, la autora destaca que los campos de concentración son considerados la concretización del régimen totalitario, en lo cual el objetivo es la consumación y el dominio total sobre el otro. La periodista Daniela Arbex rescata la historia de la locura y afirma, en su obra Holocausto Brasileiro (2013), que Basaglia, uno de los teóricos renombrados de la psiquiatría, luchó severamente para poner fin a los manicomios y garantizar la libertad de los enfermos mentales; estuvo, además, en el Hospital Psiquiátrico Colonia, en Barbacena. Por esa razón, en su relato, observamos que el teórico comparó la situación del hospital a la de un campo de concentración nazista. Percibimos que, ante el Hospital Psiquiátrico y los campos nazistas, los seres humanos eran maltratados, deshumanizados y degradados. Personas pasaban a ser identificadas por números. Por lo tanto, son esas afirmaciones que sustentan el objetivo de nuestro trabajo, es decir, establecer paralelos entre los internos del Colonia y los judíos de los campos de concentración nazistas.

Palabras clave: barbarie; holocausto; hospital psiquiátrico.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Hannah Arendt se apresenta como uma das pensadoras contemporâneas mais influentes no campo da Filosofia Política. Objetivamos, com este trabalho, abordar algumas situações pelas quais os judeus passaram nos campos de concentração e explicitar suas semelhanças com as situações vivenciadas pelos internos do Hospital Psiquiátrico Colônia, em Barbacena, visando a levantar alguns elementos semelhantes entre ambos.

Trata-se, em um primeiro momento, de abordar, na perspectiva arendtiana, o conceito de campos de concentração, que, para a autora, constitui-se como uma das características relevantes do sistema totalitário.

Em um segundo momento, demonstraremos o traço histórico do maior Hospital Psiquiátrico do Brasil, conhecido como "Colônia", localizado na cidade mineira de Barbacena, e relatado por Daniela Arbex1. A jornalista resgata parte da história da loucura no Brasil, bem como todo o processo de desumanização ocorrido no interior da instituição psiquiátrica.

Em um terceiro momento, ressaltaremos alguns elementos vivenciados pelos judeus nos campos de concentração, comparando-os com a vida dos internos do Colônia. Nessa perspectiva, trilharemos um caminho baseado nas teorias arendtianas e traçaremos pontos de referência ao tema proposto na obra Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex.

 

2 NOTAS SOBRE OS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO SEGUNDO O PENSAMENTO ARENDTIANO

Hannah Arendt explicita, em Origens do Totalitarismo (1989), que uma das características fundamentais e predominantes do governo totalitário é a instituição de campos de concentração, nos quais ocorre a degradação total da identidade humana. Segundo as análises dos campos de concentração, os ditos inferiores (judeus) foram obrigados a passar pelos piores atos desumanos sob a dominação daqueles que permaneciam no poder2 absoluto, os considerados superiores (soldados nazistas).

Podemos dizer, no entanto, que os campos de concentração não foram inventados pelos movimentos totalitários. Eles tiveram início na Guerra dos Bôeres, no século XX, e continuaram a ser usados na África do Sul e na Índia, para aquelas pessoas consideradas indesejáveis (ARENDT, 1989, p. 491).

Os campos de concentração3 eram usados, inicialmente, para condenar suspeitos que não podiam ganhar a causa em um julgamento comum. Um dos fundamentos mencionados pelos soldados nazistas era de que nos campos de concentração "tudo era permitido". Assim, as piores barbáries eram toleradas na experiência do totalitarismo nazista.

Para compreendermos os campos de concentração, é de extrema importância fundamentarmos o totalitarismo e seus horrores predominantes. Os indivíduos que passaram por alguma experiência nos campos tiveram como características predominantes a aniquilação e a perda de sua identidade. Isto é, nesse ambiente, alcançaram um contato com o verdadeiro inferno. "[...] O verdadeiro horror dos campos de concentração e de extermínio reside no fato de que os internos, mesmo que consigam manter-se vivos, ficam mais isolados do mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o horror compele ao esquecimento" (ARENDT, 1989, p. 493).

Na definição de Hannah Arendt (1989, p. 496), compreendemos que os campos podem ser definidos a partir de três características, nomeadas como Limbo, Purgatório e Inferno:

Ao limbo correspondem aquelas formas relativamente benignas, que já foram populares mesmo em países não totalitários, destinados a afastar da sociedade todo tipo de elementos indesejáveis – os refugiados, os apátridas, os marginais e os desempregados; os campos de pessoas deslocadas, por exemplo, que continuaram a existir mesmo depois da guerra, nada mais são do que campos para os que se tornaram supérfluos e importunos. O purgatório é representado pelos campos de trabalho da União Soviética, onde o abandono alia-se ao trabalho forçado e desordenado. O inferno, no sentido mais liberal, é representado por aquele tipo de campo que os nazistas aperfeiçoaram e onde toda a vida era organizada, completa e sistematicamente, de modo a causar o maior tormento possível.

Segundo a autora, o que essas três definições têm em comum são as massas humanas, compostas de indivíduos que eram tratados como se não existissem mais. Ou seja, "[...] como se o que sucedesse com elas não pudesse interessar a ninguém, como se já estivessem mortas e algum espírito mau, tomado de alguma loucura, brincasse de suspendê-las por certo tempo entre a vida e a morte, antes de admiti-las na paz eterna" (ARENDT, 1989, p. 496).

Existiam critérios para o envio das pessoas aos campos. Na Alemanha, eram os "[...] criminosos, os políticos, os elementos antissociais, os infratores religiosos e os judeus, cada um com sua insígnia diferente" (ARENDT, 1989, p. 500). O que se via em comum nesses critérios era a destruição do corpo humano e dos direitos do homem, ocorrendo, por fim, a dominação total. De acordo com Arendt (1989, p. 500):

O fim do sistema arbitrário é destruir os direitos civis de toda a população, que se vê, afinal, tão fora da lei em seu próprio país como os apátridas e os refugiados. A destruição dos direitos de um homem, a morte da sua pessoa jurídica, é a condição primordial para que seja inteiramente dominado. E isso não se aplica apenas àquelas categorias especiais, como os criminosos, os oponentes políticos, os judeus, os homossexuais (com os quais se fizeram as primeiras experiências), mas a qualquer habitante do Estado totalitário. O livre consentimento é um obstáculo ao domínio total, como é livre a oposição. A prisão arbitrária que escolhe pessoas inocentes destrói a validade do livre consentimento, da mesma forma como a tortura em contraposição à morte – destrói a possibilidade da oposição.

Quando se adentrava nos campos de concentração, eram deixados para trás os sonhos, os planos, os objetivos. Enfim, o sujeito era obrigado a esquecer as vidas privada e pública. Em locais como esses, o que se notava era a vida e a morte em contraposição. Os corpos eram marcados e chamados a esquecer os espaços públicos e a liberdade pessoal. O terror adentrava a alma dos que eram levados para esses espaços e, assim, começava a fazer parte do seu dia a dia.

O terror também é visto como um instrumento do regime nazista. Ao lançá-lo sobre o indivíduo, o regime acaba por afastar a pessoa de sua vida social, isto é, dos outros que o cercam, fazendo aniquilar a pluralidade que o finda. José Luiz de Oliveira (2012, p. 169), interpretando o pensamento arendtiano, faz o seguinte comentário:

O terror totalitário faz com que todos se tornem Um-só-Homem, isto é, a investida desse instrumento de governo é no sentido de transformar a todos em uma humanidade única. É diante disso, que o terror constitui-se como um elemento de suporte do regime totalitário que destrói o espaço da pluralidade entre os homens.

Evidenciamos que aqueles que eram deportados para os campos se distanciavam da liberdade, da pluralidade e, obviamente, da política. Para Arendt, o homem só consegue alcançar a liberdade por meio do contato com "outros". É pela pluralidade que há liberdade, sendo alcançada na política mediante o pensamento no plural constituído por outros "eus", entre atos e palavras (ARENDT, 1997, p. 17). Nos campos de concentração, o que ocorria era o isolamento, a solidão e o distanciamento da liberdade em relação à política.

O escritor judeu italiano Primo Levi (1919-1987) foi deportado para Auschwitz, no início de 1944, com mais de 600 italianos. Ele tinha apenas 24 anos e era recém-formado em Química. A vida do intelectual foi marcada pela experiência de prisioneiro em Auschwitz-Monowitz 547. Ele relatou o período em que passou em um campo de extermínio: são espaços nos quais foi realizada a desumanização total do outro. Por isso, ressalta:

[...] Vivemos durante meses ou mesmo anos num nível animalesco: nossos dias tinham sido assolados, desde a madrugada até a noite, pela fome, pelo cansaço, pelo frio, pelo medo, e o espaço para pensar, para raciocinar, para ter afeto, tinha sido anulado. Suportávamos a sujeira, a promiscuidade e a destituição, sofrendo com elas muito menos do que sofreríamos na vida normal, porque nosso metro moral havia mudado. Além disso, todos roubávamos: na cozinha, na fábrica, no campo, roubávamos 'dos outros', da contraparte, mas era furto do mesmo modo; alguns (poucos) se rebaixaram até o ponto de roubar o pão do próprio companheiro. Esquecemos não só nosso país e nossa cultura, mas a família, o passado, o futuro que nos havíamos proposto, porque, como animais, estávamos restritos ao momento presente (LEVI, 1998, p. 42).

Concluímos, a partir da interpretação arendtiana, que os campos de concentração eram locais de extermínio total do ser humano, nos quais o horror e a crueldade se faziam presentes a todo momento. Considerando o que Arendt ressalta sobre os campos de concentração, inserimos os relatos de Daniela Arbex sobre o Hospital Colônia, uma vez que esse Hospital possui características que fundamentam o que ocorreu em um campo de concentração, que tem por referência degradar os seres humanos. Comentando Arendt, André Duarte (2000, p. 47-48) afirma que o objetivo do campo de concentração "[...] foi justamente o de reduzir o homem ao seu mínimo denominador comum natural, privando-o de seus direitos políticos, deportando- o e encarcerando-o em laboratórios infernais, para então simplesmente dizimá-lo".

 

3 RELATOS DO HOSPITAL COLÔNIA DE BARBACENA

O Hospital Colônia, localizado na cidade mineira de Barbacena, é considerado um dos mais antigos e maiores hospitais psiquiátricos do Brasil. Foi entre os muros do Colônia que muitos pacientes vivenciaram uma das maiores barbáries da história da loucura. Os pacientes, ou melhor, as "pessoas", ao chegarem ao local e passarem pelas grades e muros, tinham suas identidades, histórias e sonhos confiscados. A partir daí, era tirado desses seres humanos o direito de viver uma vida plena e digna.

Aqueles que eram encaminhados para o Colônia não possuíam um diagnóstico ponderado que justificasse sua presença naquele ambiente. Alguns que lá se encontravam eram considerados rejeitados, incômodos ou diferentes pela sociedade. Sobre isso, comenta Daniela Arbex (2013, p. 14):

Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças.

Os pacientes chegavam à Estação Bias Fortes em um tipo de trem conhecido como "trem de doido", conforme salienta Guimarães Rosa em "Grande Sertão: Veredas"4. Essa estação revelava o caminho para a morte no Colônia. As pessoas que não chegavam de trem eram enviadas para o Hospital em ônibus ou viaturas policiais. Antes de o Colônia ser aberto, os anormais, considerados loucos pela sociedade, eram encaminhados para instituições como cadeias públicas ou Santas Casas de Misericórdia (ARBEX, 2013). A autora salienta que o Hospital foi construído como consolo por Barbacena ter perdido a disputa para Belo Horizonte para ser a capital de Minas Gerais. A construção do Colônia atendeu a interesses políticos. Um dos pacientes internados foi Antônio Gomes da Silva5. Sua internação se deu por um motivo banal, considerado suficiente para que fosse levado à instituição. Eis o relato de Antônio, ao ser entrevistado por Arbex (2013, p. 32):

Não sei por que me prenderam. Cada um fala uma coisa. Mas, depois que perdi meu emprego, tudo se descontrolou. Da cadeia, me mandaram para o hospital, onde eu ficava pelado, embora houvesse muita roupa na lavandeira. Vinha tudo num caminhão, mas acho que eles queriam economizar. No começo, incomodava ficar nu, mas com o tempo a gente se acostumava. Se existe inferno, o Colônia era esse lugar.

Muitos dos funcionários do Hospital viviam sob "ordens" de um superior6, tendo de cumprir as tarefas sem que tivessem nenhum preparo ou curso de especialização. O poder dos superiores sobre os pacientes era nítido. Humilhar, maltratar, levar para a morte, dar choques e desumanizar eram tarefas daqueles que se encontravam na direção do Hospital. Depreendemos que estar no Colônia era como viver no próprio inferno. Muitos dos internos não sabiam o porquê de estarem ali.

Trata-se de um ambiente de caráter infernal, porque, nas noites geladas da Serra da Mantiqueira, os internos eram deixados ao ar livre, sem cobertor, e ficavam totalmente expostos, "nus" ou cobertos por trapos (ARBEX, 2013). A maioria dos pacientes não resistia e acabava falecendo por causa do frio, da fome e dos eletrochoques. Alguns corpos foram vendidos para as faculdades de Medicina do país. Havia o comércio explícito de corpos e cadáveres. O fotógrafo Luiz Alfredo, que trabalhava para a revista O Cruzeiro, depois de pisar no Colônia, desabafou com o chefe: "[...] Aquilo é um assassinato em massa" (ARBEX, 2013, capa).

Na segunda metade do século XX, Franco Basaglia, psiquiatra italiano, iniciou uma radical crítica e transformação do saber no que tange ao tratamento e às instituições psiquiátricas. Esse movimento começou na Itália7, mas teve repercussões em todo o mundo, particularmente no Brasil. Basaglia esteve no Colônia e pôde afirmar que, naquele local, aconteciam a barbárie e a degradação do doente mental, visto que o Hospital apresentava as mesmas características dos campos nazistas.

Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios que também visitou o Colônia, declarou numa coletiva de imprensa: 'Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa' (ARBEX, 2013, capa).

Aliado a essa luta, nasceu o movimento da Reforma Psiquiátrica8, que mais do que denunciar os manicômios como instituições de violências, propõe a construção de uma rede de serviços e estratégias territoriais e comunitárias profundamente solidárias, inclusivas e libertárias.

 

4 ELEMENTOS DE APROXIMAÇÃO DOS JUDEUS COM O SOFRIMENTO DOS INTERNOS DO COLÔNIA

Como foi mencionado no primeiro item, a primeira coisa que acontece quando se adentra em um campo de concentração é o confisco da identidade: o nome do indivíduo é integralmente apagado e ele passa a ser chamado por um número. Depois, suas roupas, objetos pessoais, tudo o que lhe pertence é retirado. De alguns, são retirados a vida, a alma, o sorriso, a dignidade e o desejo de viver.

No Colônia, Arbex (2013) relata que não foi diferente: os internos chegavam a Barbacena e, logo que pisavam no Colônia, perdiam a esperança de viver novamente no espaço público. O que se via na instituição era tortura, fome, morte, sofrimento, dor, estupro e muito mais. Desse modo, salienta Arbex (2013, p. 28):

Os deserdados sociais chegavam a Barbacena de vários cantos do Brasil. Eles abarrotavam os vagões de carga de maneira idêntica aos judeus levados, durante a Segunda Guerra Mundial, para os campos de concentração nazistas de Auschwitz. A expressão 'trem de doido' surgiu ali. Criada pelo escritor Guimarães Rosa, ela foi incorporada ao vocabulário dos mineiros para definir algo positivo, mas, à época, marcava o início de uma viagem sem volta ao inferno.

Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo (1989), pontua algumas características relevantes do que ocorreu com os judeus nos campos de concentração. Para ela, nos campos, "[...] a desvairada fabricação em massa de cadáveres é precedida pela preparação, histórica e politicamente inteligível, de cadáveres vivos" (ARENDT, 1989, p. 498).

O domínio total ao qual foram submetidos os judeus levados para os campos tinha a mera função de torná-los seres com uma nova identidade. Isto é, os nazistas pretendiam fabricar uma nova espécie humana que não existisse, a ponto de relacioná-la com outras espécies animais, o que findaria em uma humanização com a mesma identidade. Na perspectiva do Hospital Colônia, essa identificação de humanização também é aparente. Eram transformados em "animais-humanos"9. A respeito da degradação do ser humano nos campos, Arendt (1989, p. 449) salienta:

Os campos destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres humanos, mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente controladas, da própria espontaneidade como expressão da conduta humana e da transformação da personalidade humana numa simples coisa, em algo que nem mesmo os animas são.

Em seus relatos, Arbex (2013, p. 14) assevera que "[...] homens, mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violentados".

Segundo Arendt (1989), uma das perdas que os judeus tiveram nos campos foi o desejo de viver. Isso ocorreu pelo fato de eles terem tido contato com aquilo que a pensadora chama de "inferno atroz". Os campos eram considerados o verdadeiro inferno na Terra: "[...] as pessoas perdem o desejo de viver e a experiência que tivemos com o inferno atroz dos campos totalitários fez-nos compreender demasiado bem que essas condições são possíveis" (ARENDT, 1989, p. 492).

No Colônia, os internos também perderam o desejo de viver, a ponto de não acreditarem que sairiam daquele local ou que alguém viesse resgatá-los. Alguns apenas esperavam pela morte, já que não existia motivo para querer viver naquela promiscuidade. A vida, para muitos, ficou do portão para fora do Hospital. Nas palavras de Arbex (2013, p. 14):

Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias, os eletrochoque eram tantos e tão fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, dezesseis pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo e também de invisibilidade.

O que ocorre é que o horror e a crueldade cometidos nos campos de concentração são semelhantes ao acontecido no "Colônia". Os judeus e os internos que conseguiram sair vivos dessa catástrofe vão carregar por toda a vida as sequelas da tragédia ocorrida nesses dois locais. Salienta Arendt (1989, p. 493) que, no caso dos judeus, esses "[...] estão mais isolados do mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o horror compele ao esquecimento".

Essa observação pode ser estendida aos internos do Colônia. Depois de toda a experiência no Hospital, é impossível viver sem esquecer os maus-tratos, a falta de olhar, o sofrimento, as imagens de crueldade e as perdas de muitos companheiros no campo. Nos campos de concentração e no Hospital Colônia, os corpos eram forjados, aniquilados e torturados como forma de punição. Arendt ressalta (1989, p. 494):

O trabalho forçado como punição é limitado no tempo e na intensidade. O preso retém os direitos sobre o próprio corpo; não é torturado de forma absoluta nem dominado de modo absoluto. O banimento apenas transfere o banido de uma parte do mundo para a outra, também habitada por seres humanos; não o exclui inteiramente do mundo dos homens.

Arendt (1989, p. 495) faz um paralelo entre os judeus e os escravos, reforçando que os judeus deportados para os campos de concentração não tinham preço algum, enquanto os escravos tinham certo preço definido e, como propriedade, um valor. Os judeus, a qualquer momento, poderiam ser substituídos por não terem um valor e nem um proprietário, como os escravos. Não se sabia a quem os judeus pertenciam. Isso fazia deles seres supérfluos. Enfim, a morte deduzia sua própria inexistência. Sobre isso, Arendt (1989, p. 503) nos diz:

Os campos de concentração, tornando anônima a própria morte e tornando impossível saber se um prisioneiro está vivo ou morto, roubaram da morte o significado de desfecho de uma vida realizada. Em certo sentido, roubaram a própria morte do indivíduo, provando que, doravante, nada – nem a morte – lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o fato de que ele jamais havia existido.

De acordo com Arendt, nos campos de concentração, havia uma produção de cadáveres em massa. Nas palavras de Arendt (1989), "no mundo concentracionário, mata-se um homem tão impessoalmente como se mata um mosquito. Uma pessoa pode morrer em decorrência de tortura ou de fome sistemática, ou porque o campo está super-povoado e há necessidades de liquidar o material humano supérfluo" (p. 493-494). A partir disso, havia uma expatriação dos elementos indesejados. Depreendemos que o Hospital Psiquiátrico "[...] tornou-se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoolistas, negros, pobres, pessoas sem documento e todos os indesejados, inclusive os chamados insanos" (ARBEX, 2013, p. 26).

De acordo com Arbex (2013), é possível perceber a deficiência do diagnóstico clínico sobre os pacientes internados no Colônia. O Hospital Psiquiátrico passou a ser considerado um depósito humano de pessoas que fugiam do padrão social empregado da época. Na descrição de Arbex, Maria de Jesus, interna do Colônia, era uma das pessoas que estiveram no local em 1911. O motivo de sua internação era a tristeza que apresentava como sintoma.

A experiência nos campos de concentração torna o ser humano uma espécie de dejeto, de modo que sua liberdade moral e sua conduta de ser gente são extintas, de modo a destruir sua individualidade. Sobre isso, Arendt (1989, p. 506) afirma:

Porque destruir a individualidade é destruir a espontaneidade, a capacidade do homem de iniciar algo novo com os seus próprios recursos, algo que não possa ser explicado à base de reação ao ambiente e aos fatos. Morta a individualidade, nada resta senão horríveis marionetes com rostos de homem, todas com o mesmo comportamento do cão de Pavlov, todas reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte.

Tal terror, cometido contra essas pessoas levadas para os campos de concentração e para o Hospital Psiquiátrico Colônia, leva-nos à reflexão: onde estão os direitos humanos desses seres? Por que tanta crueldade? Por que tal acontecimento? Nessa perspectiva, Hannah Arendt nos aponta a experiência do ocorrido com os judeus nos campos, a partir da qual podemos traçar paralelos com a realidade vivida pelos internos do Colônia. A pensadora comenta: "Por sua vez, isso só pôde acontecer porque os Direitos do Homem, apenas formulados mas nunca filosoficamente estabelecidos, apenas proclamados mas nunca politicamente garantidos, perderam, em sua forma tradicional, toda a validade" (ARENDT, 1989, p. 498).

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presença de seres humanos nos campos de concentração, ou no Hospital Psiquiátrico Colônia, é suficiente para afetar drasticamente sua psique. Notamos que, em instituições como essas, o indivíduo não será humanizado em hipótese alguma. São ações que levam o indivíduo a destruir sua própria psique, a ponto de não querer mais viver. A desumanização total do ser humano, nesses dois locais mencionados, faz-nos acreditar nas palavras de Hannah Arendt: "os campos de concentração e de extermínio dos regimes totalitários servem como laboratórios onde se demonstra a crença fundamental do totalitarismo de que tudo é possível" (ARENDT, 1989, p. 488).

A perda do direito, do respeito, da dignidade, da educação, da ética, enfim, do status de gente é relevante quando se analisa a semelhança entre o que ocorreu nos campos de concentração e a experiência do Hospital Psiquiátrico Colônia.

 

REFERÊNCIAS

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São João del-Rei, MG.
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Artigo recebido em: 15/08/2016.
Aprovado para publicação em: 01/02/2017.

 

1Daniela Arbex é uma das jornalistas brasileiras mais premiadas de sua geração. Repórter especial do jornal Tribuna de Minas, de Juiz de Fora, há 18 anos, ela tem no currículo mais de 20 prêmios nacionais e internacionais. Entre eles, três prêmios Esso — o mais recente recebido em 2012 com a série "Holocausto Brasileiro" —, dois prêmios Vladimir Herzog (menção honrosa), o Knight International Journalism Award, entregue nos Estados Unidos (2010), e o prêmio IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina e Caribe (Transparência Internacional e Instituto Prensa y Sociedad), recebido por ela em 2009, quando foi a vencedora, e em 2012 (menção honrosa). Em 2002, foi premiada na Europa com o Natali Prize (menção honrosa) (ARBEX, 2013, Subcapa).
2O filósofo Michel Foucault, em Vigiar e punir (2013a), menciona um estudo baseado no monitoramento do poder, ao qual ele se contrapõe, uma vez que desumaniza o humano e objetiva rebaixar o outro. Nesse sentido, não temos nenhum poder sobre o outro. Quando Foucault explicita as relações de poder, ele cita a experiência que os indivíduos fazem do exercício de sua liberdade, relatando que, quando não existe tal consciência, não existe relação de poder. É pertinente ressaltarmos que a noção antiga de poder era ligada à manipulação de um indivíduo sobre o outro. Esse tipo de poder, na perspectiva de poder para Foucault, não existe, pois, para ele, o poder está nas relações humanas.
3Os campos de concentração são vistos por Arendt como algo do mal, não nos sentidos religioso e moral, mas do ponto de vista da análise política. É possível perceber esse mal, que Arendt salientou durante o interrogatório ocorrido em Jerusalém, para o qual foi enviada pela revista The New Yorker, com o objetivo de cobrir o julgamento de Eichmann, que atuou na condição de oficial nazista do sistema totalitário. O ex-agente oficial era um homem normal, pai de família, e não apresentava sinal de nenhuma doença psicológica; entretanto, cometeu atos catastróficos. Eichmann levou milhares de judeus para a morte. Ele era responsável pelo transporte de judeus por meio de vagões para os campos de concentração. A pensadora analisa que esse "mal" está relacionado à sua "incapacidade de pensar", pois é o que ela irá chamar de "banalidade do mal". Ela notava também que Eichmann era tomado pelos seus clichês. Em suma, ele era um homem burocrata do Nazismo; isto é, cumpria nitidamente as ordens que lhe eram prescritas (SOUKI, 1998, p. 18).
4O poeta Guimarães Rosa (1978) escreveu um conto intitulado "Sorôco, sua mãe, sua filha", voltado, em especial, para esse fato marcante da história de Barbacena. Sobre isso, salienta o escritor de "Grande Sertão: Veredas": "A hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe".
5Com vinte e cinco anos, foi encaminhado para o hospital; o que se sabe é que o desemprego o levou ao encontro com o álcool e isso influenciou no descontrole dos negócios" (ARBEX, 2013, p. 32).
6A reflexão do filósofo francês demonstra que o poder era concebido como uma força de certos indivíduos, grupos ou instituições. No entanto, as ações de poder eram admitidas como estilo piramidal. No final, aquele que comandava apresentava-se em um degrau acima, enquanto os outros se encontravam na parte mais baixa. Em sua tese de doutorado, intitulada A História da Loucura na Idade Clássica (2013b), Foucault trata do tema da loucura, considerando o rosto, os gestos e as atitudes. Para o filósofo, essas características da loucura sempre foram reconhecidas, mas o modo de "tratar" e lidar com elas passou por transformações. Isso ocorre porque, no século XVIII, o louco era tratado de forma desumana, de maneira que os mais violentos eram presos a correntes, eletrocutados, e aqueles que eram considerados loucos não tinham espaço para se defender.
7No século XVIII, Philippe Pinel, considerado o pai da Psiquiatria, propôs uma nova forma de tratamento dos loucos, libertando-os das correntes e transferindo-os aos manicômios, segundo ele, destinados aos doentes mentais. No século XIX, o tratamento do doente mental incluía medidas físicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias, bem como sangrias e eletrochoques. O tratamento nos manicômios, defendido por Pinel, baseia-se principalmente na reeducação dos alienados, no respeito às normas e no desencorajamento das condutas inconvenientes. Para o autor, nada justifica os maus-tratos e a desumanização da pessoa com diagnóstico mental. No entanto, com o passar do tempo, o tratamento moral de Pinel foi se modificando e esvaziou-se das ideias originais do método. O que permanece são ideias corretivas do comportamento e dos hábitos dos doentes, porém como recursos de imposição da ordem e da disciplina institucional.
8No Brasil, tal movimento iniciou-se no final da década de 1970 com a mobilização dos profissionais da saúde mental e dos familiares de pacientes com transtornos mentais. Esse movimento se inscreve no contexto de redemocratização do país e na mobilização político-social.
9Esse termo é referente ao indivíduo que passa pelo processo de desumanização, a ponto de ser tratado como objeto sem utilidade.

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