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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.11 no.21 Barbacena jul./dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Câncer de mama: a repercussão da mastectomia no psiquismo da mulher

 

Breast cancer: the impact of mastectomy on women's psyche

 

Cáncer de mama: la repercusión de la mastectomía en el psiquismo de la mujer

 

 

Carla Cristina Soares de Oliveira do ValeI; Isabela Campos DiasII; Kelly Milene MirandaIII

IGraduada pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora; Especialista em Psicologia Médica pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Pós-graduada em Saúde Coletiva pela UFJF; Mestre em Psicologia pela UFJF; Professora assistente na Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC/Barbacena).
II
Graduada pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Pós-graduanda em Saúde Mental pela Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC) e em Neuropsicologia pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC).
III
Graduada pela Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC); Pós-graduanda em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela Estácio Belo Horizonte.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O câncer de mama, por sua elevada incidência e mortalidade, é uma das doenças que mais causa sofrimento físico e psíquico. Se detectado precocemente, há altas chances de cura, entretanto, na maioria das vezes, ele é descoberto em estágios avançados, gerando tratamentos mutilantes à mulher, como a mastectomia radical ou parcial. Os efeitos que a mutilação promove não se resumem apenas a efeitos fisiológicos, mas também psicológicos. Extrair a mama em decorrência de uma enfermidade crônica acarreta na morte da feminilidade, por o seio ser o órgão associado ao prazer e à vida, além de possuir poder simbólico cultural e social. Levando em conta a representação simbólica das mamas, este estudo teve como objetivos fazer considerações sobre a repercussão da mastectomia no psiquismo da mulher entre o diagnóstico e a vida pós-cirúrgica e verificar as consequências do adoecimento a fim de contribuir de forma significativa para o seu bem-estar físico, social e psicológico. Para isso, aplicou-se uma entrevista individual, semiestruturada, em duas participantes que passaram por tal procedimento. Os resultados mostram que as repercussões psicológicas variam de acordo com a fase do adoecimento e da subjetividade de cada participante. Diante disso, fazem-se necessários acompanhamento e assistência prestada à paciente mastectomizada, com o intuito de minimizar os impactos ocasionados pela retirada da mama. Para tanto, a assistência deve ser voltada para a melhora da qualidade de vida em toda a sua amplitude.

Palavras-chave: neoplasias da mama; mastectomia; psicologia.


ABSTRACT

Breast cancer, because of its high incidence and mortality, is one of the diseases that cause physical and psychological distress. If early detected, there are high chances of cure. However, most of the time, it is discovered in advanced stages, generating mutilating treatments women, such as radical or partial mastectomy. The effects of mutilation promotes not only physiological damages, but also psychological ones. Removing the breast due to a chronic disease causes the death of femininity, because the breast is the organ associated with pleasure and life, as well as a cultural and social symbolic power. Considering the symbolic representation of the breasts, this study aimed to make considerations about the impact of mastectomy on the diagnosis woman's psyche surgical afterlife and to verify the consequences of illness in order to contribute significantly to the physical wellbeing, social and psychological of women. For this, we applied a semi-structured individual interviews with two participants who went through this procedure. The results showed that psychological repercussions vary according to the stage of illness and subjectivity of each participant. Given this, it is necessary to monitor and provide assistance to mastectomy patients in order to minimize the impacts caused by the removal of the breast. Therefore, assistance should be focused on improving quality of life in all its breadth. That said, the woman, in this new period, need emotional, professional and family support, within the understanding that goes far beyond the disease itself.

Keywords: breast neoplasms; mastectomy; psychology.


RESUMEN

El cáncer de mama, por su alta incidencia y mortalidad es una de las enfermedades que causan sufrimiento físico y mental. Si se detecta a tiempo hay altas posibilidades de cura, sin embargo, la mayoría de las veces se descubre en etapas avanzadas, generando tratamientos mutiladores a a la mujer, como la mastectomía radical o parcial. Los efectos que la mutilación promueve no esrestringido solo a efectos fisiológicos, sino también psicológicos. Retirar la mama debido a una enfermedad crónica causa la muerte de la feminidad, porque la mama es el órgano asociado al placer y la vida, además de poseer un poder simbólico cultural y social. Teniendo en cuenta la representación simbólica de los senos, este estudio tuvo como objetivo hacer consideraciones sobre el impacto de la mastectomía en la psique de la mujer entre el diagnóstico y la vida postoperatoria, y ver las consecuencias de la enfermedad con el fin de contribuir de manera significativa al bienestar físico, social y psicológico.. Para ello, se aplicó una entrevista individual, semi-estructurada en dos participantes que se sometieron a este procedimiento. Los resultados muestran que las repercusiones psicológicas varían según la fase de la enfermedad y la subjetividad de los participantes. Por lo tanto, se hace necesario el acompañamiento y la asistencia dada a la paciente mastectomizada, con el fin de minimizar los impactos causados por la extirpación de la mama. Y, por lo tanto, la asistencia debe centrarse en la mejora de la calidad de vida en toda su amplitud.

Palabras clave: neoplasias de mama; mastectomía; psicología.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Este artigo surgiu de reflexões feitas com base em um trabalho de conclusão do curso de Psicologia que pretendia estudar e entender as repercussões da mastectomia para o psiquismo da mulher. Logo, procurou-se compreender o significado do estigma câncer ao longo da história e a importância simbólica que a mama representa na vida das mulheres, por ser um órgão ligado à feminidade, sexualidade e fertilidade. Por meio dessa compreensão simbólica, a pesquisa buscou verificar as alterações psicológicas, físicas e sociais existentes na vida pós-cirúrgica.

O presente texto analisa de forma qualitativa os fragmentos de entrevistas realizadas com duas mulheres que passaram pelo procedimento de mastectomia e se encontram em processo de readaptação com o novo corpo. O estudo utiliza referenciais teóricos, como conceitos da psicologia hospitalar de Alfredo Simonetti a conceitos de Maria Helena Pereira Franco, sobre psico-oncologia. Além disso, retoma algumas acepções que vão desde a incidência do câncer de mama aos tratamentos disponíveis na atualidade, de Ana Maria de Almeida, Marli Villela Mamede, Marislei Sanches Panobianco, Maria Antonieta Spinoso Prado e Maria José de Clapis, destacando a mais temida: a mastectomia. Sendo assim, este artigo discute as consequências desse procedimento para a mulher, pois, embora seja essencial no tratamento do câncer de mama, ele gera sentimentos conflitantes na mulher que o vivencia (PERREIRA et al., 2006). A reflexão acerca do adoecimento dessas mulheres pode contribuir de maneira significativa para o seu bem-estar físico, social e psicológico, mostrando seus conflitos internos.

Para a análise dos dados obtidos por intermédio das entrevistas, optou-se em subdividir os relatos das entrevistadas em categorias: apoio familiar e conjugal; perdas e limitações; autopercepção após mastectomia; temor da recorrência; mecanismos de enfrentamento; e presença da morte no psiquismo.

No apoio familiar e conjugal, ressalta-se a situação vivenciada após o diagnóstico, que ocasiona a reorganização do cotidiano a fim de atender às demandas familiares. Com o passar do tempo, a situação vai sendo processada, enfrentada e elaborada (BERVIAN; GIRARDON-PERNINI, 2006). Em seguida, explanamos sobre as perdas e limitações, que envolvem desde a alopecia até questões laborais. Essas perdas provocam uma série de modificações na vida das pacientes, interferindo sobremaneira no modo como se sentem em relação a si mesmas e como veem a vida (COSTA; AZEVEDO, 2010).

Na autopercepção após a mastectomia, pontua-se que a mutilação afeta a concepção de mulher, provocando fragilidade e constrangimento por cicatrizes decorrentes do procedimento cirúrgico, evidenciando abalos sexuais. No temor da recorrência, salienta-se a lembrança do diagnóstico como uma constante na vida dessas mulheres, o que causa sentimentos de medo, angústia e ansiedade.

Nos mecanismos de enfrentamento, a contextualização foi feita com base nas fases de Elizabeth Kübler-Ross (1989) e do coping espiritual. Pelo fato de o câncer estar acompanhado de sofrimento, a mulher mastectomizada utiliza tais mecanismos a fim de minimizar, tolerar, aceitar e controlar a sobrecarga do diagnóstico. Por fim, na presença da morte no psiquismo, evidencia-se que em torno do diagnóstico do câncer de mama giram inúmeras fantasias e metáforas que o associam à morte.

As discussões e os apontamentos levantados nessas categorias mostram que a vivência de cada mulher mastectomizada varia de acordo com a sua subjetividade e sua história de vida. Dessa maneira, o estudo propôs-se a contribuir para a compreensão dos rumos terapêuticos vivenciados atualmente nessa área da oncologia.

 

2 MÉTODOS

Este estudo consiste em uma pesquisa qualitativa. Essa abordagem, na área de psicologia, tem representado um caminho alternativo à rigidez positivista, que se baseia no pressuposto de que o conhecimento sobre os indivíduos só é possível com a descrição da experiência humana tal como ela é vivida e definida pelas próprias pessoas (ALVES, 1992).

Foi realizada primeiramente uma pesquisa bibliográfica nas principais bases de dados nacionais e algumas internacionais, a fim de localizar o que já se pesquisou sobre o assunto e obter material consubstanciado que pudesse fundamentar esta investigação.

A coleta de dados ocorreu no período de julho de 2015, após avaliação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Presidente Antônio Carlos, de Barbacena, Minas Gerais, em 25 de junho de 2015, sob o parecer de número CAAE 49667815.9.0000.5156. Tal coleta aconteceu nas dependências da Universidade Presidente Antônio Carlos, na Clínica Escola Vera Tamm de Andrade. Utilizamos uma amostragem "por conveniência", em que os dados amostrais não estimam valores reais da população. Fizemos entrevistas semiestruturadas, gravadas e posteriormente analisadas, com duas participantes voluntárias que passaram pela cirurgia de mastectomia e estão em processo de readaptação com o novo corpo.

Joana1 tem 44 anos, é divorciada, tem segundo grau completo (atual ensino médio), é mãe de um filho de 16 anos, mora com a mãe e o filho. Ela descobriu o nódulo na mama esquerda, em julho de 2013, em um de seus exames de rotina, quando então começou o tratamento, submetendo-se à mastectomia em abril de 2014. Depois da retirada da mama, optou por não reconstituí-la.

Maria2 tem 60 anos, é divorciada, pós-graduada na área da educação, mãe de um filho de 28 anos, com quem mora. Ela descobriu o câncer de mama por intermédio de uma secreção em seu seio. O processo entre a descoberta e o procedimento de mastectomia durou em torno de nove meses. A cirurgia foi realizada no ano de 2004 e, na mesma operação, a paciente submeteu-se à reconstituição da mama.

Os dados obtidos nas entrevistas foram analisados e subdivididos em categorias correspondentes às falas das participantes, com o propósito de compreender os significados ocultos que permitissem inferências e interpretações apoiadas no referencial teórico (ALVES, 1991). Pretende-se, assim, apresentar as repercussões psicológicas e sociais das participantes e seus resultados obtidos, agrupando-os em categorias.

 

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

O câncer de mama e a mastectomia estão associados a várias crenças, simbologias e estigmas. Eles trazem consigo rupturas de rotina, de expectativas, de sonhos e de perspectivas que antes eram tidas como possíveis, mas passam a ser reorganizadas. Tais rupturas puderam ser constatadas nos relatos das participantes.

Para subsidiar a análise dos relatos, utilizaram-se como referencial teórico para a categoria apoio familiar e conjugal Ferreira et al. (2011) e Almeida (2006), pois esses autores afirmam que o apoio familiar e conjugal é de suma importância para o enfrentamento do diagnóstico e da sexualidade. Na categoria perdas e limitações, cita-se Simonetti (2011), que ressalta a diminuição das atividades laborativas como causa de tensão, pelo fato de o trabalho, em muitos casos, tornar-se a fuga dos problemas pessoais. Para a categoria autopercepção após mastectomia, Almeida et al. (2001) enfatizam que a imagem corporal constitui um fator indispensável para o desenvolvimento da autoimagem. Observaram-se a preocupação e o medo que as participantes têm em relação à recorrência da doença, sentimentos que, segundo Pinho et al. (2007), seriam uma constante na vida de mulheres com câncer de mama.

Na categoria mecanismos de enfrentamento, usaram-se os pressupostos de Kübler-Ross (1989) e Simonetti (2011) no que diz respeito às cinco fases do luto, além de Liberato (2008), que salienta a questão do coping espiritual como outra estratégia de enfrentamento que conforta e ameniza o sofrimento da enfermidade. Por fim, na categoria presença da morte no psiquismo, Guerra (1998 apud VALE, 2014) traz a questão da morte como algo decorrente de aspectos filosóficos e sociais.

3.1 Apoio familiar e conjugal

Uma relação familiar saudável pode ajudar a mulher mastectomizada a criar um ambiente favorável para enfrentar o câncer de mama de maneira menos sofrida. É uma fase delicada, e qualquer demonstração de cuidado e de atenção vinda dos filhos e do companheiro só tende a beneficiá-la.

No caso das entrevistas nesta pesquisa, observou-se que a preocupação central das participantes e de suas famílias, depois do diagnóstico, foi a sobrevivência: "Então, quando minha mãe ficou sabendo, ela só rezava para eu viver. Parecia que ela tinha medo que eu morresse. Ela não falava, mas eu via a preocupação na cara dela, né?" (Joana). "Meu filho ficou muito preocupado comigo, era muita atenção. [Risos.] Acho que ele achou que eu fosse morrer. Natural, normal, foi um susto. Agora entendo" (Maria). O adoecimento rompeu todas as expectativas e certezas do futuro. Para a família, essa é uma das questões mais angustiantes, pois revela sentimentos despertados pelo conflito entre vida e morte.

Após a preocupação da família com a sobrevivência, começa a preocupação com o tratamento, com a questão financeira e com os gastos decorrentes do adoecimento.

Nos históricos, é possível perceber que logo em seguida surge a preocupação com a mastectomia e sua desfiguração. Ao notar que falta um órgão no corpo da mulher/mãe, a família apresenta reações de cuidado e/ou de vergonha. "Meu filho ficou meio assim, né? Quando me viu sem peito. Ficou meio coisa... [Pausa.] Achei muito estranho, ele não queria que os colegas dele não me visse[m], só falou isso, mas eu não sei... Se... Né... Ele ficou triste, ficou com vergonha" (Joana).

Viu-se que o filho se demonstrou envergonhado pela nova condição, evitando expor a mãe diante de seus amigos. Pode-se afirmar que ele deparou com uma mãe diferente do conhecido. A nova imagem corporal acarretou mudanças na imagem que se tinha antes.

Outro fator observado na entrevista com Maria e relevante para o enfrentamento do câncer de mama é o apoio conjugal, mesmo a entrevistada não apresentando relação estável:

Tem esse lado também, assim, como mulher, que, por exemplo, meu ex-namorado tinha uma delicadeza muito grande comigo, em casa [...] ele tinha os defeitos dele, mas ele tinha uma delicadeza muito grande... E, para gente, mulher, isso conta muito, né. Para você estar íntima com um homem, quem passou é muito delicado! A menos que seja um companheiro dela já, a menos que seja um marido, a menos que seja um noivo... Pararara. Alguém, mas de fora vir para sua vida desse jeito... Ainda é meio complicado (Maria).

Na fala, é possível perceber que ela teve a compreensão do seu então namorado, sentiu-se mais segura, conseguindo lidar melhor com a situação, confirmando que, quando a mulher tem o apoio do companheiro e a aceitação do novo corpo, ela enfrenta com mais facilidade suas limitações, não ocorrendo rupturas na sua vida sexual (FERREIRA et al., 2011). Porém, na fala de Maria, notou-se também que, após o término do tal namoro, houve dificuldades em relacionar-se intimamente com um novo companheiro, que desconhecesse seu corpo. Por não ter mais um relacionamento estável, ela se deparou com o medo de ser rejeitada.

Já Joana afirmou que não tem nenhum companheiro. Isso é um alívio para ela, pois, assim, não é cobrada a fazer reconstituição mamária: "Eu sou sozinha, graças a Deus [risos]. Acho que não tenho mais paciência, tempo... Não me imagino mais, não. Já tô com 44 anos... [risos]" (Joana). Para ela, expor a sua deformidade é algo considerado doloroso, por isso, evita relacionamentos, dando justificativas relacionadas à idade, como se ela perdesse a feminilidade e não fosse capaz de excitar-se novamente. Joana relata essa circunstância com risos, o que possivelmente demonstra sua forma de defesa diante da impossibilidade e descrença em envolver-se com outro homem. Ela trata o fato como piada, sendo o riso o representante de uma possível negação.

Os dados revelaram que as participantes, no que se refere aos relacionamentos amorosos, associam a sexualidade ao aspecto genital e durante as relações sexuais se sentem inibidas e tendem a ocultar a mama mutilada. Tal conflito é resolvido quando a mulher mastectomizada se torna capaz de aceitar e reconhecer sua nova imagem corporal (ALMEIDA, 2006).

3.2 Perdas e limitações

O adoecer e o tratamento fizeram com que as participantes perdessem algo além da mama, tal como o cabelo, a feminilidade, a autoestima e o trabalho. A queda do cabelo é vivenciada pelas participantes como um dos momentos mais significativos do tratamento. Essa perda mostra a doença concreta, o que se observou nos relatos:

Olha, assim, né, fácil não é não, a queda de cabelo. Quando vai caindo o cabelo e você vai vendo, e você passa a mão e vai caindo um tanto, vai saindo um monte, fácil não é, não! A gente sente frio, sente muito frio na cabeça. Eu falava assim: Nossa, que coisa ruim esse frio. Sentia frio, aí colocava o lenço (Joana).

Ele era aneladinho... Eu gostava dele, foi difícil acostumar, ficar careca. Quando começou a cair meu cabelo, eu fiquei desesperada, danei a chorar, fiquei feia, literalmente, eu fiquei muito feia. As pessoas olhavam para mim com dó, e não gosto disso (Maria).

Para as entrevistadas, os cuidados com os cabelos sempre estiveram em evidência, e percebeu-se que essa preocupação se tornou maior quando eles começaram a cair, mostrando os sinais clínicos do tratamento, desencadeando um sentimento de tristeza e até de reclusão, o que acarretou abalo em seus estados emocionais.

Outro aspecto citado por uma das participantes durante a entrevista foi a perda da feminilidade e da autoestima, estigmas que a levaram a conviver com sentimentos negativos e preconceitos nutridos por ela mesma: "Foi um baque, me vi assim sem graça. Não queria nem me olhar no espelho, para não assustar [risos], e foi assim por um bom tempo. Modifiquei meu guarda-roupa, mas não adiantou. Eu estava sem graça, muito sem graça..." (Joana). Notou-se sua dificuldade em lidar com o próprio corpo no período pós-mastectomia. O primeiro contato com seu corpo operado gerou sentimento de estranheza e sofrimento, o que a impediu de se identificar, evitando não se deparar com a nova imagem refletida no espelho.

Diferentemente de Joana, Maria não relatou questões ligadas à feminilidade nem à autoestima como um fator relevante, possivelmente pelo fato de a participante ter passado pelo processo de reconstrução mamária e apresentar-se com autoestima elevada. Viu-se a autoestima de Maria por meio da vaidade apresentada durante a entrevista — roupas e maquiagem.

Outro fator observado foi o abandono das atividades laborais em decorrência das limitações da mastectomia, mais uma perda relevante salientada pelas pacientes entrevistadas:

Uai! Assim, [eu] ficava na merenda, na faxina, o serviço lá era esse. É pesado, e eu não posso mais! Aí eles me aposentaram. Mas, na hora que eles me falaram lá que eu tinha aposentado, eu abri a boca para chorar... Não queria aposentar agora por causa disso. Mas, só depois, cê vai vendo, também, que o certo é aquilo mesmo... Porque eu não consigo fazer mais o que eu fazia antes, eu não consigo mais fazer, né?! Tipo assim, né, forçar o braço! (Joana).

Então, assim, como eu vou trabalhar? Fiz fisioterapia, mas..., ãn, eu ficava pensando, como é que eu vou fazer, né? Porque ainda doía, até hoje dói! Não posso fazer muita força... E para mim, eu, assim, eu até abuso, eu não posso pegar peso. Mas sinto tanta falta de uma sala de aula... (Maria).

Nesses trechos foi possível perceber o lugar de destaque que o trabalho ocupava na vida das participantes, seja pelo fato de ser um meio de sobrevivência, seja pelo tempo de vida dedicado a ele, ou pelo fato de ser um meio de realização não apenas profissional, mas também pessoal. Pelo trabalho, as participantes dialogavam com o seu meio social e, após a aposentadoria forçada, elas tiveram suas rotinas interrompidas e a identidade fragmentada.

A esse respeito, vale ressaltar a cultura de valorização do trabalho e o limite colocado por doenças em relação à produtividade da pessoa, temporária ou permanente. Além disso, o trabalho também exerce sua função de fuga dos problemas pessoais. Portanto, quando a doença limita o trabalho, ela pode estar levando a pessoa a encarar problemas que ela gostaria de evitar (SIMONETTI, 2011).

3.3 Autopercepção após a mastectomia

A representação corporal desempenha papel importante na construção da autopercepção da mulher mastectomizada. Sua relação com o próprio corpo é um elemento constitutivo e essencial da subjetividade (ALMEIDA et al., 2001).

Os relatos referentes a essa categoria dizem a respeito às dificuldades encontradas pelas entrevistadas em aceitar seu novo corpo, no pós-mastectomia. Evidenciou-se o quão difícil foi deparar-se com essa nova realidade:

Uma sensação estranha... Minha cabeça após a cirurgia ficou estranha. Até então a ficha não tinha caído. Fui com a intenção, né, de me curar. Mas, pra curar, tinha que tirar o peito. Eu acordei, me vi sem o peito, complicado, para uma mulher se vê só com um peito, complicado... Agora não quero fazer reconstituição, o meu já foi perdido (Joana).

"Olhar para o espelho e vê que meu seio está diferente do outro me incomodou, mesmo fazendo a reconstituição. Ajudou, mas as sequelas ficam, né? São marcas e estão evidentes" (Maria).

Percebeu-se que Joana se sentiu fragilizada; a mutilação afetou a sua concepção de mulher. Para ela, o seio representava algo além de físico, um poder simbólico. Maria demonstrou constrangimento por olhar-se no espelho e ver as marcas decorrentes da mastectomia, o que contribuiu para que ela realizasse o procedimento de reconstituição. Entretanto a paciente ressalta que as sequelas físicas são amenizadas após a reconstituição, mas as sequelas psicológicas ainda permanecem.

Os relatos evidenciaram que a doença provocou uma série de modificações em suas vidas, interferindo sobremaneira no modo como se sentem em relação a si mesmas e como veem a vida, fazendo com que mudassem suas percepções de vida: "Então, depois da doença, comecei fazer tudo direitinho, tudo direitinho... Hoje, acho que estou bem melhor que antes, cuido mais de mim. Só que, pensando bem, não sei se to [sic] fazendo tudo certo. Às vezes, fico insegura, fico triste e preocupada, mas é assim mesmo" (Joana). "Depois do câncer, preocupei mais com as questões alimentares, saí do sedentarismo, comecei terapia, que por sinal adoro... Às vezes, acho que vou deixar minha terapeuta doida, não paro de falar [risos]" (Maria).

No relato de Joana, observou-se que ela começou a se cuidar mais, mudando suas atitudes e comportamentos voltados para a promoção de saúde. Notou-se também que ela se preocupou apenas com questões físicas, deixando de lado os aspectos emocionais e sociais. Já Maria desenvolveu hábitos saudáveis relacionados a questões alimentares, à atividade física e, além disso, preocupou-se com a melhora dos aspectos emocionais, procurando um suporte psicológico para amenizar as sequelas do seu adoecimento.

Para Maria, o estabelecimento de novos propósitos na vida foi resultado dos ajustamentos psicossociais trazidos pelo diagnóstico. Ao aprender e reconhecer que essa patologia pode alterar sua vida diária, ela estabeleceu novas formas produtivas e saudáveis para o futuro.

As reações das participantes perante a mutilação também se associam às suas subjetividades, sendo determinadas pela maneira como vivem e convivem com seus corpos desde a infância. O processo de elaboração vivido pelas participantes diante da doença e da perda da mama é semelhante ao processo de elaboração de luto (ALMEIDA et al., 2001).

O medo da recorrência do câncer de mama é uma experiência compartilhada por todas as mulheres, especialmente as entrevistadas neste estudo, por ser uma constante em suas vidas, sendo capaz de acometer qualquer uma, a qualquer instante (PINHO et al., 2007). Essa possibilidade de recorrência da doença foi ressaltada nos dados, quando as pacientes procuraram compreender o processo de adoecimento e tentaram dar significado a ele: "Então, é, que... Porque eu acho que o problema foi que eu, que eu fiquei muito tempo sem fazer alguns exames, mas olha só, a mamografia estava em dia... Vê se pode isso?" (Joana).

Eu estava passando por um momento muito... De separação, que é delicado. Meu filho com problemas, a escola sobrecarregada... Então, foi tudo muito complicado! Foi... Foram coisas... E eu... Não conseguia sair, eu não conseguia sair! Então, eu acho... Que foi um tantão de coisas muito difíceis... Muito difíceis... E que... Meu corpo não suportou, cabeça não deu, e ele falou para mim muito sério, e veio tudo assim... (Maria).

Joana explicou o aparecimento da doença como decorrente de uma condição interna ao organismo, o que deixa transparecer a possibilidade de sua volta. Ao levantar a hipótese da gênese da doença como uma condição biológica, transfere sua responsabilização, direcionando sua culpa para algo orgânico, como forma de enfrentamento.

Maria atribuiu a causalidade da doença como sobrecarga de fatores emocionais e sociais e deixou transparecer sentimentos de culpa, oriundos da falta de cuidados próprios. Ela se difere da primeira entrevistada ao assumir a responsabilização de sua doença, sentindo-se culpada por essa somatização: "É como se eu tivesse cumprido uma pena que foi sentenciada, entendeu? E, eu acho, que é assim... Você está pagando por uma coisa que você cometeu. De fato, sim, né! Porque eu fiz isso comigo, tirando a hereditariedade lá, eu fiz isso comigo... Eu fiz isso comigo".

A preocupação com a recorrência, na busca por compreender a etiologia da doença, foi explicitada pelas participantes quando relembraram experiências negativas anteriores ou conceitos sobre ela. Ambas demonstraram sinais de preocupação com a possibilidade da volta da doença, retomando conceitos baseados nas experiências vividas:

Peço a Deus todos os dias pra mim ignorar [pausa], pra não deixar que tudo volte. Pra não deixar que isso.... Vai crescendo dentro de mim alguma coisa que não deve mais. Então, assim, eu fico procurando me resguardar... Ah... Para evitar, porque eu não sei o que tá lá na frente para mim, né? Então, tenho medo, né. Aparece uma pintinha e eu já fico preocupada. Apareci um carocinho eu já fico preocupada, eu já fico preocupada. Então, eu tenho um pouco mais, de cuidado comigo (Maria).

A lembrança do diagnóstico inicial gera em Maria o medo de uma provável recidiva da doença, acarretando sentimentos de angústia e ansiedade e fazendo com que ela procure cuidados médicos por qualquer sintoma similar ao vivenciado, além de atender com rigor às solicitações de exames periódicos.

Nesse contexto, encontrar uma causalidade para o câncer de mama pode ter uma importante implicação, em longo prazo, na vida das pacientes, por ocorrer a busca de significados acerca da doença, o que pode tornar as mulheres aptas a conhecer melhor sua situação. Dessa forma, a atribuição causal pode ser um fator relevante, por determinar os tipos de estratégia de enfrentamento que serão adotados (ALMEIDA et al., 2001).

3.4 Mecanismos de enfrentamento

Nos dados obtidos neste estudo, foi possível verificar que as entrevistadas dispuseram de mecanismos para enfrentar suas patologias. Observaram-se a presença das fases descritas por Kübler-Ross (1989) e a presença do coping espiritua.

3.4.1 Fases de Kübler-Ross

A psiquiatra norte-americana Elizabeth Kübler-Ross dedicou-se ao estudo dos mecanismos de enfrentamento em pacientes oncológicos terminais, evidenciando a existência de cinco fases de enfrentamento possíveis, categorizando-as em: fase de negação ou isolamento, fase de raiva ou revolta, fase de barganha, fase de depressão e fase de aceitação ou enfrentamento. Elas não são obrigatórias, não se sucedem pela mesma ordem e podem coincidir. A pesquisadora chegou também à conclusão de que nem todos os pacientes enfrentam todas as fases identificadas, embora experimentem, em geral, pelo menos duas delas (KÜBLER-ROSS, 1989).

As fases descritas por Kübler-Ross (1989) foram claramente percebidas nas falas das participantes entrevistadas.

No relato de Joana, notou-se, conforme Simonetti (2011), que na posição de negação ela agiu como se a doença simplesmente não existisse ou minimizou sua gravidade e adiou as providências e os cuidados necessários.

Eu vejo como se eu não tivesse nada, como se não fosse nada, nada, nada. Tipo assim, sabe, como se eu não tivesse nada, como se fosse uma gripe, aí a gripe acabou. Não pensei: Nossa, foi grave! [...] Eu não fiquei pensando na doença, para mim não estava doente [...]. E com o médico eu falava isso. E não tenho nada, doutor Frederico, eu não tenho nada [...] (Joana).

Conforme o relato, ela agiu como se a doença não existisse ou fosse uma mera gripe, característica da posição de negação. A negação é a única possibilidade imediata diante da doença, pela qual a paciente nega inconscientemente sua patologia como modo de se proteger da verdade (SIMONETTI, 2011).

Em relação a Maria, a fase da negação não foi evidente em seus relatos, mas não se pode afirmar que ela não tenha passado por essa fase, já que realizou apenas uma entrevista com duração de 50 minutos.

Outra fase observada nas entrevistas foi a revolta, momento em que o paciente enxerga a doença e se enche de uma revolta que pode ser dirigida para qualquer lado: contra a doença, contra a equipe de enfermagem, contra si mesmo ou contra a família. Essa fase geralmente se inicia como frustração por perder a rotina, a liberdade e a autonomia, além da capacidade física (SIMONETTI, 2011).

Joana demonstrou-se revoltada pelas limitações decorrentes da cirurgia: "Nossa, foi um baque pra mim, né! Eu estava bem no serviço, quando vê, adoeci, né. Saí de licença, ficar em casa, adoeceu, né! Foi uma mudança, né, muito... Se você vê, bem drástica... Eu fiquei com raiva, revoltada... Não queria ficar em casa". Em função da rotina reformulada, ocorre uma mudança brusca em seus hábitos de vida e ela perde o controle de sua própria vida, surgindo sentimentos de raiva e pensamentos de injustiça, conforme destaca Simonetti (2011).

Maria dirigiu sua raiva e revolta para seus familiares, especialmente ao ex-marido. Ela agia impulsivamente, como maneira de descarregar a tensão acumulada, para, assim, solucionar seu problema: "A sorte dele [ex-marido] é o meu filho. Porque, se não fosse pelo meu filho..., acho que matava [risos]... Que, mas na hora da raiva, é complicado, né...". Maria exterioriza sua raiva, projetando-a em um ambiente externo.

A depressão foi outra fase presente nas entrevistas. Esse momento é marcado pela desesperança, o paciente não acredita que pode ser curado ou uma possível cura não mais lhe interessa, e ele perde o sentido pela vida. Na posição de depressão, a tendência é para a inatividade. O indivíduo fica sem ação, apresenta impotência. É o momento em que ele recolhe a libido investida nos objetos para investir no próprio ego (SIMONETTI, 2011): "Eu queria desistir...! Depois de uns dias, eu não queria sair de casa, eu não tinha mais nada para fazer, eu perdi o sentido... Era tão ruim tudo! Acho que eu não queria era estar ali... Eu não queria!" (Joana). "Eu fiquei muito mal. De imediato, ao saber da cirurgia, eu fiquei sem chão. Era sério o que eu tinha, muito sério, achei que não teria cura... Eu não queria mais viver, eu só pensava em meu filho. Eu já não tinha forças... Quase entrei em depressão, só chorava" (Maria).

Outra fase percebida nas entrevistas foi a barganha, em que o paciente busca realizar algum tipo de acordo para que as coisas voltem a ser como antes. Começase uma tentativa desesperada de negociação com a emoção, ou com quem achar ser o culpado de sua patologia (KÜBLER-ROSS, 1989). Promessas e pactos são comuns nessa situação, como presente nas falas: "Sempre tive fé. Conversei com Deus, para Ele me ajudar, falei assim: Olha, não me abandona, não! Vou ser uma boa filha. Todo dia pergunto para Ele até onde isso vai" (Joana).

Fiz uma promessa. Se eu ficasse curada, iria deixar meu cabelo crescer para doar para quem tivesse passando pela mesma situação que eu. Promessa é dívida, ele cresce depois, ele cresce depois de novo... [...] Sabia que Ele [Deus] não iria me abandonar. Comecei a frequentar mais as missas e fiz duas promessas. Graças a Deus, deu tudo certo. Paguei uma [promessa] até no ano passado (Maria).

É evidente a fase da barganha voltada a Deus como uma tentativa de adiamento da patologia, prometendo mudanças de comportamento, a troca de uma possível cura e a imposição de meta, além de um prêmio oferecido a Deus: deixar o cabelo crescer para doá-lo, como símbolo de vitória e agradecimento.

A fase de aceitação ou enfrentamento foi a mais observada durante as entrevistas. Segundo Simonetti (2011), o enfrentamento é um adeus às ilusões, é o encontro com o real.

O pensamento na posição de enfrentamento caracteriza-se pela sua amplitude. É bastante inclusivo e não nega aspectos da realidade nem da doença, enfrenta a situação com consciência das suas possibilidades e limitações (SIMONETTI, 2011). Observou-se na fala de Joana: "Acho que tá bom assim! [A falta do seio] Não me incomoda. Tem blusa que eu usava e não uso mais. Olha, nem percebi tanto. Eu não acho que aparece tanto com esses sutiãs, eles são especiais. Eu não incomodo com isso, não, sinceramente" (Joana). Ao ser questionada sobre a possibilidade da reconstrução mamária, ela ainda demonstrou aceitação com seu corpo atual e salientou que buscou soluções realistas para o seu problema, por exemplo, mudando seu vestuário, especialmente o sutiã.

O enfrentamento também é uma posição de fluidez emocional. Oscila entre luto e luta, e todas as emoções se fazem presentes. Foi possível verificar isso na fala de Maria:

Até hoje eu me considero assim; alegre, mesmo tendo passado por todos os momentos ruins, porque a gente fica, depois da doença, a gente não fica igual aos outros... Às vezes, eu acho até que melhor do que os outros [risos]. Eu não gosto muito de falar isso, não, mas eu acho que melhor do que os outros [risos], sem pretensão nenhuma, entendeu? Mas, melhor, mas ao mesmo tempo mais frágil. Também, né... Então, não é... A gente vem... A gente vem... A gente vem rindo, até agora eu tenho vindo, e sem perder isso aqui, que você está vendo, esse humor que eu acho que é fundamental, sem perder a fé que é fundamental, e... Sem deixar que as pessoas pensem que eu ainda sou uma pessoa que engoli um algodão há 15 anos atrás.

Maria começou a entender a doença não como uma sentença de morte, mas como uma consequência de vida. Ela vivencia momentos de angústia, tristeza, felicidade, alegria, mas tudo passa, dando lugar a outros sentimentos, como o de conformismo. Notou-se que a participante aprendeu a desfrutar o prazer das pequenas coisas e tudo o que faz está carregado de muita intensidade.

3.4.2 Coping espiritual como estratégia de enfrentamento

A espiritualidade como estratégia de coping torna-se um recurso importante no tratamento oncológico. Essa categoria reflete a busca de conforto espiritual que aproxima as entrevistadas da fé em Deus, sendo Ele quem as acompanha e consola durante todos os momentos, pois para elas é o único capaz de promover o alívio do sofrimento e a cura da enfermidade (LIBERATO, 2008).

As seguintes verbalizações das participantes representam os aspectos positivos da espiritualidade: "Foi tudo rápido, graças a Deus. Eu entreguei para Deus, rezei, rezei, rezei, pedi a Deus e confiei. Eu conversava com Ele todas as noites e pedia" (Joana). Joana referiu-se a Deus como alguém capaz de oferecer zelo diante de sua doença. Seu relacionamento religioso foi visto como uma fonte de apoio emocional primária. Seu diálogo com Deus tinha por intuito a obtenção de uma possível cura, o que diminuiria as emoções negativas como raiva, tristeza e ansiedade.

Maria afirmou que, apesar de nunca ter sido apegada a Deus, ao receber o diagnóstico, como o de câncer de mama, buscou um alicerce religioso para suportar tal sofrimento. Sua proximidade com Deus trouxe conformismo, além de uma reflexão espiritual sobre questões de significados e propósito de vida: "Então, é, nunca fui muito apegada a Deus e a gente nessa hora, a gente torna, porque a gente precisa, você precisa. Foi Ele que me ajudou".

Esses relatos demonstram que o amparo espiritual foi significativo para as participantes, gerou sentimentos como força e coragem para superar os obstáculos, confiança, apoio e consolo para enfrentar os momentos difíceis.

3.5 A presença da morte no psiquismo

Entre os sentimentos expressados pelas participantes, o medo da morte foi abordado com ênfase durante as entrevistas. Ao receberem o diagnóstico de câncer de mama, o futuro tornou-se indeterminado, acarretando rupturas significativas em seus cotidianos.

Visto que o câncer tem o estigma de uma doença fatal e assustadora, observou- -se nos seguintes relatos que o próprio nome vem carregado de temor e incertezas:

Eu falei com a doutora M., quando descobri, que... Eu ia morrer. Aí ela disse: Não. Disse que eu não precisava pensar nisso, porque, assim... Eu temo morrer, quando falou de câncer eu falei... Assim, eu vou morrer. Logo eu pensei nisso, eu me preocupei com isso. Aí, parei de fazer umas coisas, fiquei com medo de complicar meu quadro (Joana).

Na verdade, no câncer, a gente deixa a morte na beiradinha [risos], a gente deixa na beiradinha.... Não tá fazendo gol ainda [risos]. A gente não quer chutar pra gol ainda, não... sabe? Eu não quero chutar para gol ainda. Então, ela tá ali, batendo na porta toda hora, mas... (Maria).

Nos relatos foi possível verificar a associação do câncer com a morte, o que abalou psicológica e socialmente a vida das entrevistadas. Para elas, a morte é vista como a fase final de um ciclo e pensar nisso provoca uma reflexão sobre suas próprias vidas e suas crenças.

Cada uma das pacientes enfrentou a questão da morte do seu jeito, de acordo com suas histórias de vida e suas subjetividades. A não aceitação da morte é decorrente de fatores pessoais e, sobretudo, sociais, além de filosóficos, pois o que se teme não é a morte, e sim o morrer (GUERRA, 1998 apud VALE, 2014).

 

4 CONCLUSÃO

O desenvolvimento desta pesquisa permitiu uma breve explanação sobre o câncer de mama e a repercussão da mastectomia no psiquismo da mulher, além de uma análise das alterações físicas, emocionais e sociais de uma mutilação.

Em decorrência dos mitos e tabus que a sociedade criou no tocante ao câncer, aqui, especialmente, o de mama, a relação social de uma mulher com esse diagnóstico se torna conturbada, sobretudo quando ela se submete à mastectomia. Embora seja um procedimento eficaz no tratamento da doença, a mastectomia acarreta sentimentos conflitantes na vida de quem se submete a ela.

O seio é um símbolo de valor, um órgão associado à feminidade, ao prazer, à fertilidade e à saúde. Por conseguinte, trata-se de um órgão insubstituível, e sua retirada ocasiona limitação estética e funcional de repercussões físicas e psíquicas. A sociedade atual cultua o corpo feminino perfeito e erótico, sendo as mamas o símbolo de identificação da mulher. Esse culto evidencia a existência de preconceitos no que se refere à imagem da mulher mastectomizada, por parte delas mesmas e da sociedade. Portanto, após a mastectomia, a paciente vivencia um afastamento social em virtude dos padrões de beleza impostos pela sociedade.

Considerar esses aspectos psíquicos nas propostas de atenção à mulher mastectomizada é mais do que necessário, torna-se indispensável. Essa reflexão justifica a existência e a necessidade de pesquisas e estudos como este, que visam conhecer e compreender o impacto desse procedimento cirúrgico no psiquismo da mulher.

As entrevistas aqui analisadas possibilitaram a compreensão de uma alteração marcante na vida dessas pacientes. A mulher, ao descobrir-se com câncer de mama, vivencia uma nova trajetória, em que a perda do seio gera sentimentos de inferioridade, baixa autoestima, comprometimento da sua autoimagem, preconceito social, limitações físicas, além da perda da sexualidade e feminidade.

A convivência com esses sentimentos negativos significou para as duas mulheres observadas nesta pesquisa a constante incerteza sobre o futuro e a possibilidade da recorrência da doença. Foi possível perceber a constância do sofrimento na trajetória de busca pela cura e suas relações com a percepção que elas tinham de si mesmas como portadoras de câncer e como mulheres mutiladas.

As repercussões da mastectomia na vida das participantes acarretaram vários mecanismos de enfrentamento que variaram desde as fases de Kübler-Ross até o coping espiritual, alterando conforme o contexto em que elas se encontravam. Apesar das semelhanças, cada paciente vivenciou seu adoecer de forma subjetiva, singular e dinâmica, em uma experiência vasta e distinta, envolvendo implicações no seu cotidiano e nas relações de convívio com seus familiares.

Por intermédio da pesquisa, foi possível pensar sobre o estigma que a sociedade e as próprias pacientes têm em relação à doença. Portanto, é preciso uma nova reflexão acerca do papel do profissional da área da saúde, especialmente do psicólogo, envolvido com o tratamento e a reabilitação do câncer de mama. É com base na perspectiva da integralidade e da humanização do cuidado em saúde e de um olhar menos fragmentado e estigmatizante da mastectomia que o psicólogo se insere no cuidado a essa mulher e à sua família. Por meio da escuta e do acolhimento, torna-se possível acessar as singularidades que marcam a vida de cada uma. Sendo assim, o psicólogo assume importante papel, em que considera o sujeito como um todo, e não apenas a doença, dando voz à subjetividade da mulher mastectomizada, a fim de minimizar o nível de angústia desse momento e buscar melhor qualidade de vida futura, tendo em vista a repercussão que esses episódios emocionais podem gerar após a doença.

Espera-se que esta pesquisa desperte nos profissionais da saúde a reflexão acerca dessa problemática, com o propósito de ampliar os estudos e a prática do cuidado das dores decorrentes do processo desse adoecimento. Assim, esta reflexão pode funcionar como subsídio para futuras pesquisas que visam a contribuir também com o delineamento de novas práticas de intervenções psicológicas voltadas para mulheres mastectomizadas. Práticas essas baseadas em um olhar mais amplo de modo a contemplar as vivências, os significados e as experiências dessas mulheres.

 

REFERÊNCIAS

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Artigo recebido em: 15/08/2016.
Aprovado para publicação em: 01/02/2017.

 

 

1Nome fictício para resguardar o anonimato da entrevistada.
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Nome fictício para resguardar o anonimato da entrevistada.

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