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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.12 no.22 Barbacena jan./jun. 2018

 

RESENHA

 

Neurociência do abuso de drogas na adolescência

 

 

Felipe Augusto Carbonário

Graduação em Psicologia, Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). Mestre em Psicologia, UFSJ; Especialista em Saúde Pública, Dependência Química pela PUC-MG e Neuroeducação pela UNESA.

Endereço para correspondência

 

 

Resenha de: MICHELI, D.; ANDRADE, A. L. M.; SILVA, E. A. S.; SOUZA-FORMIGONI, M. L. O. Neurociências do abuso de drogas na adolescência: o que sabemos? São Paulo: Atheneu, 2014. 177 pp.

 

O estudo das Neurociências tem ganhado um grande campo de investigação no que tange ao uso abusivo de álcool e outras drogas. Porém, nota-se que ainda há muitos fenômenos a serem investigados. A adolescência, em particular, é um desses campos ainda pouco explorados pelos pesquisadores da área. Os editores Denise de Micheli, Eroy Silva, Maria Lúcia Formigoni e André Monezi Andrade reuniram com maestria renomados autores na obra Neurociências do abuso de drogas na adolescência: o que sabemos?, trazendo várias informações pertinentes sobre o desenvolvimento neural do adolescente e as transformações psicobiológicas advindas do uso de drogas nessa faixa etária, bem como os prejuízos para o funcionamento global desse desenvolvimento.

A obra é dividida em duas partes: a primeira contempla as transformações psicobiológicas na adolescência de forma geral, fazendo referência ao uso de drogas em certos momentos; a segunda apresenta textos que caracterizam o uso de drogas por adolescentes pela vertente psicobiológica e os mais variados efeitos e alterações neurológicas pertinentes ao seu desenvolvimento saudável. Ambas as partes contemplam o adolescente em sua vivência biopsicossocial, contextualizando-o à medida que se discute cada componente.

Na primeira parte do livro, a leitura que se faz sobre o fenômeno da adolescência é ampla e a discussão é realizada em vários âmbitos pelos autores dos capítulos. Conceitualmente, esse período configura-se como uma etapa na qual o indivíduo expõe-se a mudanças físicas, emocionais e sociais que trazem amplas modificações ao desenvolvimento neurológico, desde as mielinizações até as partes estruturais anatômicas. Tais mudanças influenciam diretamente no ser adolescente, formatando seu comportamento, suas emoções e sua subjetividade. Essa evolução, e até mesmo a mudança da autoimagem, permite ao adolescente abandonar a insegurança da infância, bem como o medo de enfrentar a fase adulta, cultivando, portanto, um misto de emoções em desenvolvimento no eixo hipotalâmico, especificamente na amídala. No sistema límbico ocorrerão grandes transformações, principalmente em termos emocionais, causadas pela produção de neurotransmissores que, em desequilíbrio, pode alterar o humor. Tais mudanças internas, associadas a aspectos ambientais variados, sugerem a exposição do adolescente a fatores de risco, dentre eles o uso de drogas. As mudanças comportamentais peculiares observadas nos adolescentes decorrem de transformações intensas que acontecem em diversas regiões cerebrais. Sendo assim, podemos perceber que, devido a fatores culturais e hormonais e à falta de maturação cerebral, os adolescentes apresentam reações às situações estressoras às quais estão sujeitos nesse período.

Na segunda parte do livro, é abordada, em especificidade, a dependência química no âmbito psicobiológico na adolescência e seus desdobramentos nas alterações de evolução psicopatológica. Inicialmente, há uma introdução densa sobre a definição de dependência química de maneira ampla, enfatizando o circuito de recompensa mesolimbocortical. São discutidos os receptores químicos de transmissão sináptica e a forma como as drogas simulam uma resposta biológica ao organismo. Para isso, são detalhadas as propriedades dos receptores, como saturabilidade, especificidade e reversibilidade. Retoma-se, então, a discussão sobre os neurotransmissores, numa vertente limitada à função e à localização neural, apresentando, assim, os neurotransmissores aminoácidos. São aprofundados ainda os estudos clínicos que resultaram nos modelos animais de dependência química para a melhor compreensão do sistema de recompensa mesolimbocortical. Com isso, o capítulo inicial da segunda parte elucida termos básicos hoje comumente utilizados na abordagem da dependência química: aquisição, manutenção, uso abusivo, abstinência e recaída. Após essa exposição dos estágios, é demonstrada a função dos processos de aprendizagem (condicionamento clássico e instrumental) e da memória no processo de dependência química. A partir de uma perspectiva clínica, são apresentados os estágios neurais da dependência e do consumo de drogas, como o uso inicial, o uso abusivo, a abstinência e a recaída, do ponto de vista dos mecanismos envolvidos.

Após essa complexa introdução sobre o fenômeno da dependência química, é exposto de forma peculiar o funcionamento do sistema de recompensa no cérebro dos adolescentes. Nessa fase específica, verifica-se que, devido à própria imaturidade neural, os adolescentes têm mais atitudes impulsivas do que os adultos. Isso se deve ao próprio processo evolutivo, o que possibilita gerar um comportamento mal adaptativo como o consumo de drogas. Há também alterações neurais no córtex pré-frontal, com aumento de inervações colinérgicas e da densidade de ligações dos transportadores de dopamina, grande reforçador do sistema de recompensa. Estudos desenvolvidos pelos autores mostraram que ratos adolescentes apresentam menor motivação para buscar droga do que ratos adultos. Isso porque, em relação aos ratos adolescentes, os ratos adultos apresentam maior ativação em regiões específicas que têm papel crítico na inibição de respostas. Outros estudos também constataram que, no início da adolescência, os ratos tendem a apresentar alto risco de desenvolver abuso de álcool quando os efeitos são experimentados em meios sociais ou de interação. O mesmo acontece com adolescentes humanos, quando expostos a situações de interação social. Constatou-se também, nos experimentos animais, que ratos adolescentes expostos ao etanol são mais propensos a apresentar distúrbios cognitivos, como disfunções da memória e da aprendizagem. Assim, a partir dos próprios modelos animais, verificam-se os variados fatores de risco associados ao consumo de drogas durante os estágios de desenvolvimento humano e seus efeitos em longo prazo. A partir desses dados, os autores sugerem a possibilidade do desenvolvimento de políticas para impedir ou restringir o acesso ao consumo de álcool na adolescência.

A partir de comportamentos motivacionais, há um capítulo dedicado à explicação e à descrição de um modelo de sistema neural, conhecido como Modelo Tricíclico. Tal modelo, no comportamento motivado do adolescente, está baseado na organização do sistema neural. Três redes neurais interagem e codificam padrões de respostas comportamentais a um estímulo. Essas redes baseiam-se na recompensa, na emoção e na função regulatória. O modelo de sistemas neurais triádico oferece bases para o estudo de respostas comportamentais típicas dos adolescentes. Tal modelo mostra que o desequilíbrio funcional entre o módulo de recompensa e o módulo de controle pode resultar no uso persistente de drogas pelos adolescentes. Foram demonstrados ainda, nesse capítulo, estudos com resultados sobre tarefas-teste de recompensa e tarefas de tomada de decisão que diferenciaram o desenvolvimento neural e atitudes comparadas entre adolescentes e adultos.

Ao abordarem os exames de neuroimagem, os autores referem que seu uso clínico para diagnóstico, tratamento e prevenção é muito recente, porém as pesquisas na área permitiram mostrar que tanto o início quanto o consumo de drogas por adolescentes estão associados com danos cognitivos e neurobiológicos. Tais estudos demonstraram prejuízos na memória de trabalho em adolescentes usuários de álcool e maconha, e diferentes resultados foram encontrados em estudos experimentais com situações de aprendizagem verbal, revelando danos neurobiológicos.

Alguns capítulos da segunda parte do livro dedicam-se ao estudo de danos neurobiológicos, como os neurológicos e cognitivos. Para os autores, o uso de substâncias prejudica a crítica do adolescente, já alterada pelos processos emocionais naturais. Quanto mais cedo inicia-se o uso de drogas, maior o risco de dependência, de transtornos mentais associados e de comportamentos alterados em decorrência do consumo. Isso é justificado pela plasticidade neural, que, quando estimulada, provoca um rearranjo sináptico, alterando a receptação de neurotransmissores. O uso crônico de qualquer substância tende a danificar algum segmento neurológico ou cognitivo, como sono, percepção, autocontrole, tomada de decisão, fala, entre tantos outros, ilustrados pelos autores a partir de cada substância. Assim, o campo da reabilitação tende a trabalhar no âmbito da Neuropsicologia, em interface com a psicoterapia e as orientações aos familiares.

Outro dano abordado no livro é relacionado às alterações do sono e sua relação com o uso de drogas por adolescentes, tema de grande complexidade. Segundo os autores, a hipótese de que queixas e distúrbios de sono predispõem os adolescentes ao uso de drogas não apresenta base neurobiológica sólida, sendo elucidada apenas por fatores ambientais e comportamentais. O sono diminui com o avançar da idade. O cronotipo da adolescência é o padrão vespertino. Verificou-se que grande parte dos adolescentes usuários de drogas tem cronotipo matutino. Os principais efeitos agudos das drogas sobre o sono dependem da característica de cada substância. Assim, para manter o sono saudável, é importante desenvolver o que os autores chamam de “higiene do sono”, uma série de hábitos, comportamentos e condições ambientais que contribuirão para sua boa qualidade.

Para finalizarmos a representação dos danos ora mostrada em dois capítulos, apresentaremos a relação dos danos causados pelo uso de drogas com o Transtorno do Humor e o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Devido às grandes mudanças que ocorrem naturalmente na adolescência, é possível que os transtornos bipolares instalem-se de modo mais gradual em adolescentes do que em adultos. Os autores citam a literatura, que apresenta dados que apontam para a possibilidade da relação entre o uso de drogas por pessoas com transtornos de humor e a busca pela experimentação de sensações proporcionadas pelas modificações mentais causadas pelas drogas e pelo álcool. Estudos de vários autores demonstram a prevalência de comorbidades diferenciadas, com impacto para o consumo de álcool e outras drogas entre jovens diagnosticados com transtorno bipolar, apresentando maior risco para o suicídio, para a gravidez indesejada, para abortos e problemas legais.

Já em relação ao TDAH, diversos estudos citados correlacionam diretamente o transtorno com o uso de substâncias na infância, na adolescência e na vida adulta. Pensa-se que, pela disfuncionalidade social significativa, impulsividade e pouco controle inibitório, as pessoas com TDAH podem apresentar baixo rendimento escolar, serem discriminadas e punidas pelos pais, o que gera uma repetida oportunidade de busca de alívio dos sintomas e de sensação de bem-estar por meio da droga.

Assim, vimos que as drogas trazem os efeitos mais deletérios para o desenvolvimento saudável do adolescente. O livro, de forma integral, traz conceitos de adolescência em variados aspectos e âmbitos e proporciona ao leitor uma visão global do ser em desenvolvimento e de sua relação com as drogas. Os editores reuniram diversos autores que trazem grandes contribuições para quem se interessa pelo assunto e quer aprofundar seu conhecimento e contribuir cientificamente com ele. Parafraseando Rubem Alves, os conhecimentos contidos neste livro são sementes plantadas à espera de quem cuide delas para se tornarem um belo jardim! Assim esperamos o desenvolvimento e o crescimento científico nessa área.

 

Endereço para correspondência
E-mail: felipecarb@yahoo.com.br

Artigo recebido em: 22/08/2016.
Aprovado para publicação em: 05/11/2016.

 

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