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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.13 no.23 Barbacena jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Percepção dos usuários de um centro de atenção psicossocial sobre o cuidado em saúde mental

 

Perception of users of a psychosocial care center on mental health care

 

Percepción de los usuarios de un centro de atención psicosocial sobre el cuidado en salud mental

 

 

Lêda Antunes RochaI; Tharcísio Barbosa de Souza PratesII; Viviane dos Santos SouzaIII; Ricardo Otávio Maia GusmãoIV

IPsicóloga, Especialista em Saúde Mental na modalidade de residência pela UNIMONTES
IIAssistente Social, Especialista em Saúde Mental na modalidade de residência pela UNI-MONTES
IIIEnfermeira, Especialista em Saúde Mental na modalidade de residência pela UNIMONTES, Mestre em Enfermagem e Saúde pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
IVEnfermeiro, Prof. do Dpto de Enfermagem da UNIMONTES, Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ

 

 


RESUMO

A Reforma Psiquiátrica Brasileira teve seu início na década de 70, ganhando força a partir da constituição de 1988, onde cria-se o SUS e suas diretrizes. O movimento de reforma ocorreu de forma complexa e progressiva, sendo marcada por diversas conquistas, principalmente no que diz respeito à leis e decretos que põe fim ao modelo hospitalocêntrico e inaugura uma nova rede de cuidado. Levando em consideração esse processo histórico, este estudo tem por objetivo compreender a percepção dos usuários de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) sobre o cuidado em saúde mental a partir do novo modelo assistencial instituído pela Reforma Psiquiátrica. Trata-se de um estudo qualitativo descritivo, tendo como instrumento de coleta de dados a entrevista semiestruturada com pacientes egressos de hospitais psiquiátricos e que no momento da pesquisa eram atendidos pelo CAPS II da cidade de Montes Claros-MG, utilizou-se a técnica de Análise de Conteúdo para análise dos dados. Os resultados levaram a três categorias: O cuidado em saúde mental sob o olhar dos usuários; A clínica no contexto de mudança do modelo de atenção em saúde mental; O cenário da reabilitação psicossocial entre o vivido e o ideal. Foi possível concluir que os pacientes perceberam mudanças relacionadas a um modo mais humanizado de cuidar.

Palavras-chave: Percepção, Saúde Mental, Sistemas de apoio psicossocial, Serviços de Saúde Mental


ABSTRACT

The Brazilian Psychiatric Reform began in the 70s, gained strength from the 1988 constitution, where SUS and its guidelines were created. The reform movement took place in a complex and progressive way, marked by several achievements, mainly with regard to laws and decrees, which not only puts an end to the hospital-centered model, but also inaugurates a new care network. Taking this historical process into account, this study aims to understand the perception of users of a Psychosocial Care Center (CAPS) about mental health care in the city of Montes Claros-MG from the new model of care established by the Psychiatric Reform . This is a qualitative descriptive study, using the semi-structured interview with CAPS II patients from the city of Montes Claros-MG as a research tool, for data analysis using the Content Analysis technique. The results led to three categories: Mental health care under the eyes of users; The clinic in the context of changing the mental health care model; The psychosocial rehabilitation scenario between the lived and the ideal. It was possible to conclude that the patients noticed changes related to a more humanized way of caring.

Keywords: Perception, Mental Health, Psychosocial Support Systems, Mental Health Services.


RESUMEN

La Reforma Psiquiátrica Brasileña se inició en los años 70, se fortaleció a partir de la constitución de 1988, donde se creó el SUS y sus directrices. El movimiento de reforma se desarrolló de manera compleja y progresiva, marcada por varios logros, principalmente en lo que respecta a leyes y decretos, que no solo pone fin al modelo centrado en el hospital, sino que también inaugura una nueva red asistencial. Teniendo en cuenta este proceso histórico, este estudio tiene como objetivo comprender la percepción de los usuarios de un Centro de Atención Psicosocial (CAPS) sobre la atención en salud mental en la ciudad de Montes Claros-MG a partir del nuevo modelo de atención establecido por la Reforma Psiquiátrica. . Se trata de un estudio descriptivo cualitativo, utilizando como herramienta de investigación la entrevista semiestructurada a pacientes CAPS II de la ciudad de Montes Claros-MG, para el análisis de datos mediante la técnica de Análisis de Contenido. Los resultados llevaron a tres categorías: atención de la salud mental bajo la mirada de los usuarios; La clínica en el contexto del cambio de modelo de atención en salud mental; El escenario de rehabilitación psicosocial entre lo vivido y lo ideal. Se pudo concluir que los pacientes notaron cambios relacionados con una forma de cuidar más humanizada.

Palabras-clave: Percepción, Salud Mental, Sistemas de apoyo psicosocial, Servicios de Salud Mental


 

 

Introdução

A produção do cuidado em saúde mental no Brasil vem passando por diversas transformações nas últimas décadas, principalmente devido ao movimento de reforma psiquiátrica, iniciado no Brasil no final da década de 1970. Tal movimento foi fortemente influenciado pela reforma psiquiátrica italiana liderada por Franco Bassaglia, sendo o modelo instituído no contexto brasileiro inspirado nas prerrogativas Italianas. O movimento de reforma psiquiátrica propõe que a assistência para com as pessoas portadoras de transtorno mental, que antes era meramente de exclusão e isolamento social, ocorra de forma humanizada e inclusiva, proporcionando maior autonomia ao paciente e garantindo seus direitos à cidadania (BASSAGLIA,2005).

Amarante (1995) explica que no âmbito do modelo assistencial, esta trajetória é marcada pela eclosão de novas modalidades de atenção, que passaram a representar uma alternativa real ao modelo psiquiátrico tradicional. Sendo assim, surge a necessidade da criação de serviços que irão substituir as instituições psiquiátricas de longa permanência, fazendo com que o cuidado do paciente portador de transtorno mental seja produzido no próprio território onde vive.

Em 2002, com a realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, foram afirmados como princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB): a extinção dos hospitais psiquiátricos e a construção de uma rede assistencial pautada pelo respeito à cidadania. Como resultado do processo de luta antimanicomial houve uma ampliação dos princípios da RPB, e atualmente reflete-se sobre os seguintes princípios, além dos já citados: o respeito à singularidade; a crítica ao tecnicismo; o rigor do pensamento teórico; a inserção na cultura; a interlocução constante com os movimentos sociais; a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS); a perspectiva da intersetorialidade e a luta pela transformação social.

Nessa perspectiva, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) surgem como serviços substitutivos ao modelo anterior, com o objetivo de diminuir progressivamente os leitos psiquiátricos e se qualificar para a responsabilização pelo tratamento das pessoas com transtorno mental severo e persistente. Os CAPS foram regulamentados pela Portaria N° 336 de 19 de fevereiro de 2002, passando a integrar a rede de serviços do SUS (BRASIL, 2002).

Com os serviços substitutivos já em funcionamento, é preciso criar estratégias para a promoção da autonomia e emancipação para os usuários destes serviços, levando em consideração o seu desejo no tratamento e as características socioculturais do local onde vive. Nesse processo, é preciso pensar a Reabilitação Psicossocial também como uma estratégia de cuidado em saúde mental para que o paciente volte a desempenhar funções sociais e exercer sua cidadania. A Reabilitação Psicossocial tem a função de capacitar o indivíduo para gerenciar sua vida, restituindo o poder contratual do usuário com vistas a ampliar a sua autonomia (KINOSHITA, 1996).

Para Yasui e Costa-Rosa (2008), faz-se premente ampliar a perspectiva da Reabilitação Psicossocial com a construção da noção de Estratégia de Atenção Psicossocial (EAPS). Os autores falam da necessidade de compreender o Centro de Atenção Psicossocial como uma estratégia de transformação da assistência, responsável pela organização de uma ampla rede de cuidados em Saúde Mental, e que não se esgota em sua implantação como um serviço de saúde. Para os autores, a "EAPS é uma lógica que perpassa e transcende as instituições enquanto estabelecimentos, tornando-as dispositivos referenciados na ação sobre a demanda social do território (YASUI & COSTA ROSA, 2008, p.36).

Em Montes Claros-MG, município onde a presente pesquisa foi desenvolvida, o processo de Reforma Psiquiátrica se deu de forma gradativa, até a década de 80 não havia política de saúde mental instituída, havendo no município dois hospitais psiquiátricos, um público e um privado. Em 1985 é traçado um plano operativo para estruturação do programa integrado de saúde mental no município de Montes Claros, a iniciativa foi motivada principalmente pela precariedade dos serviços ofertados, havia uma hegemonia do modelo asilar e cronificador, o que se agravava com o crescimento populacional da cidade. Esse plano destacava a importância de um cuidado mais amplo e descentralizado em diferentes níveis de complexidade: atenção primária, secundária e terciária (MONTES CLAROS, 1985).

As mudanças mais significativas ocorreram a partir de 1996, quando foi inaugurado um novo serviço de saúde mental no município: uma Policlínica, que contava com uma equipe multiprofissional composta por psicólogos, assistentes sociais, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, psiquiatras, enfermeiros, dentre outros profissionais de nível médio, para prestar apoio aos casos de saúde mental (MENDONÇA, 2009).

A transição do ambulatório para o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ocorreu no ano de 2001, com a substituição da Policlínica pelo CAPS, sendo que em 2012 o hospital psiquiátrico da cidade foi fechado definitivamente, um marco na história da reforma psiquiátrica no interior do estado de Minas Gerais.

Diante do complexo processo de mudança no modelo de atenção em saúde mental proposto pelo movimento de Reforma Psiquiátrica Brasileira, e considerando que existem atualmente nos serviços substitutivos (CAPS) muitos pacientes que vivenciaram a internação de longa permanência em Hospital Psiquiátrico, sendo, portanto, testemunhas vivas dessa transição do modelo de atenção, definimos a seguinte questão de pesquisa: Qual a percepção dos usuários quanto ao cuidado ofertado pelos serviços substitutivos no município de Montes Claros, Minas Gerais?

Para responder ao problema de pesquisa, delimitou-se como objetivo geral: Compreender a percepção dos usuários de um CAPS sobre a produção do cuidado em saúde mental no município de Montes Claros - MG. E como objetivos específicos: 1) Desvelar os avanços e/ou limitações no processo de mudança no modelo de atenção em saúde mental em Montes Claros - MG, a partir das percepções dos usuários; 2) Verificar se o cuidado em saúde mental, sob o olhar dos usuários, estaria alinhado ao que propõe as diretrizes da reforma psiquiátrica.

O presente estudo busca contribuir para o fomento de discussões entre os técnicos que atuam nos serviços, levando a uma consequente repercussão na prática clínica.

 

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo descritivo que visa descrever a percepção das pessoas em sofrimento psíquico. Neste sentido, a abordagem qualitativa torna-se apropriada a estudos que buscam descrever relações, crenças, percepções e opiniões, as quais apresentam-se como resultado das interpretações que as pessoas fazem a respeito da forma como vivem, sentem e pensam.

O presente estudo foi realizado no município de Montes Claros- Minas Gerais, tomando como contexto da pesquisa o CAPS II. Atualmente, o município possui uma população estimada em 402.027 de pessoas, conta com uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), composta por um CAPS II, um CAPSi, um CAPS AD, um Serviço Residencial Terapêutico (SRT), uma Unidade de Acolhimento (UA), dois Hospitais Gerais com leitos de saúde mental, além de serviços ambulatoriais de psiquiatria e psicologia, e de equipes de Apoio Matricial que dão suporte técnico e pedagógico para o acompanhamento dos casos de saúde mental na Atenção Primária.

Os sujeitos desta pesquisa foram as pessoas com transtorno mental que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: estarem estáveis e apresentarem condições de comunicação efetiva no momento da pesquisa, sendo os pacientes indicados pelos profissionais que atuam no serviço; residirem no município de Montes Claros - MG; possuírem história de internação em hospital psiquiátrico; serem usuários do CAPS II há mais de dois anos; consentirem com a participação voluntária na pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Como critérios de exclusão foram definidos: casos de transtorno mental grave e persistente que estavam em crise ou surto psicótico no momento da coleta de dados, sendo contraindicados pela equipe; pacientes com diagnóstico de retardo mental e doenças neurológicas. Após a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, foram selecionados oito pacientes para realização das entrevistas, os quais participaram da pesquisa de forma voluntária.

Atendendo aos aspectos éticos e legais em pesquisa com seres humanos, todos os sujeitos da pesquisa foram devidamente informados sobre a natureza da pesquisa, sua justificativa, objetivos e procedimentos deste estudo, sendo sua participação consentida voluntariamente através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Para atender aos objetivos propostos, foi utilizada como estratégia de coleta de dados a entrevista semiestruturada, esta foi realizada no CAPS II ou em outros locais sugeridos pelos sujeitos da pesquisa. A entrevista seguiu o rumo de uma conversa informal, detendo-se nas questões relativas aos fatores e relações existentes nos serviços de saúde mental da RAPS de Montes Claros que constituem formas de cuidado. As entrevistas foram realizadas nos meses de novembro e dezembro de 2017, foram gravadas e posteriormente transcritas, sendo guiadas por temas norteadores a partir de um roteiro semiestruturado.

A análise dos dados obtidos nas entrevistas foi realizada por meio da técnica de Análise de Conteúdo segundo Minayo, tal análise busca o conhecimento, a explicação ou conceituação de conteúdos inaparentes (MINAYO, 2001). Conceitua-se, portanto, como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que visam, através de procedimentos sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens, obter indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção dessas mensagens. Trata-se de uma descrição analítica do conteúdo, tendo por finalidade a interpretação do mesmo (RODRIGUES, 1999). O percurso metodológico descrito possibilitou uma melhor compreensão das vivências e experiências perceptivas dos sujeitos da pesquisa acerca do objeto de estudo. O projeto de pesquisa foi submetido à apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), sendo aprovado conforme Parecer Consubstanciado n° 2.342.005.

 

Resultados e Discussão

A partir da análise do conteúdo das narrativas foi possível delimitar três categorias que refletem a forma como os usuários percebem o cuidado destinado a eles. Emergiram as seguintes categorias: O cuidado em saúde mental sob o olhar dos usuários; A clínica no contexto de mudança do modelo de atenção em saúde mental; O cenário da reabilitação psicossocial entre o vivido e o ideal. Tais categorias revelam a peculiaridade e singularidade do olhar dos usuários sobre o cuidado, além de expressar a forma como vivenciaram as mudanças das práticas durante a transição do modelo de atenção em saúde mental.

Categoria 1: O Cuidado em Saúde Mental sob o Olhar dos Usuários

Ao longo da história, o cuidado assume um sentido de necessidade existencial para o ser humano, seja quando recebido, seja como autocuidado, ou mesmo quando direcionado aos recursos necessários à manutenção da vida. Portanto, para além de um simples ato, o cuidado "representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro"(BOFF,1999, p.33).

Nesse sentido, a produção do cuidado expressa-se em ações concretas que demonstram a preocupação e a atenção que os profissionais têm para com as necessidades singulares de cada usuário do serviço de saúde, que por consequência gera sentimentos de valorização pessoal, satisfação, melhoria da autoestima e de resgate da dignidade, como pode ser verificado nas seguintes falas dos participantes deste estudo.

"Cuidado é tratar bem, é do jeito que vocês fazem mesmo, se preocupar. " (E1)

"O cuidado é igual mesmo vocês fizeram hoje, procurar saber da gente né." (E2)

"O cuidado eu acho que é um dos primeiros fatores, assim, de atenção, porque nós somos fragilizados. Então o cuidado é essencial! O manejo né, que fala, então se não tem aquele manejo a gente acaba sentindo a diferença." (E3)

"Cuidado também é um bom atendimento, pra gente ficar satisfeito." (E5)

"Cuidado pra mim é tudo! É ser educada, tratar com educação." (E6)

Observa-se, portanto, a necessidade de que os profissionais de saúde mental assumam uma postura acolhedora, educada, cordial, de abertura, de implicação, de responsabilização e de envolvimento afetivo na abordagem dos usuários para acolher suas demandas reais de cuidado, favorecendo a construção do vínculo e conquistando a confiança e o respeito dos pacientes, o que contribuirá para o processo de transferência e o manejo adequado de cada caso. Assim, faz-se necessário considerar as conexões relacionais que envolvem o contexto do cuidado e os atores envolvidos e entendê-las como produtoras de vida (FERREIRA et al., 2016).

"Igual aqui mesmo [no CAPS] toda hora o pessoal pergunta: Você está bem? Você está bem? Eu acho que isso é um fator de cuidado, porque volta e meia a gente não tá bem. Eu identifico como cuidado a atenção, a atenção que o pessoal tem com a gente, aquela preocupação de perguntar: como é que você está hoje, você está bem? Você vê que a pessoa foi muito atenciosa contigo, então ela tem o cuidado com você, com sua saúde." (E3)

Para Grandesso (2000), esta perspectiva de cuidado implica o reconhecimento de que os profissionais de saúde mental não detêm um conhecimento absoluto e/ou "acesso privilegiado às pretensas verdades das vidas das pessoas e seus dilemas, necessitando ser informados por elas"(p.280). A autora reflete sobre a necessidade de considerar que o sujeito que sofre é o maior especialista em sua experiência, logo, ninguém melhor que ele mesmo para ensinar os possíveis caminhos para a construção do cuidado em saúde mental.

Ferreira et al. (2016), alerta para a necessidade de que os serviços de saúde mental consigam produzir cuidados para além do sofrimento psíquico, se ocupando com a produção de vida das pessoas, para tanto os profissionais dos CAPS precisam territorializar o mundo vivido de seus usuários. Para Alves (2006), é importante considerar que os sujeitos "desenvolvem maneiras peculiares de estar no mundo e de vivenciarem seus sofrimentos" (p.54), estabelecendo conexões com suas experiências de adoecimento que se sustentam no campo relacional.

Os processos de cuidado que considerem a necessidade de acesso ao mundo vivido dos usuários dos serviços de saúde mental tem na escuta terapêutica uma importante e significativa ferramenta de produção de cuidado, devido seu potencial para apreender a forma como vivenciam suas experiências de sofrimento, sua subjetivação, sua forma peculiar de interpretação das relações que o afetam, sua posição no mundo, sua forma de lidar com as adversidades, sua realidade psíquica, enfim, seu modo de vida e de funcionamento.

Nas falas abaixo podemos verificar, sob o olhar dos usuários, a relevância da escuta, e do diálogo como instrumentos de intervenção e de produção do cuidado:

"Aqui no CAPS [os profissionais] conversa comigo. Essas conversas deixa eu bem, com a cabeça boa, sem conversa fica ruim, fica devagar a cabeça." (E1)

"Tem os psicólogos que chamam muita a gente para conversar, a conversa é bastante importante, você dialogar, porque as vezes você está oprimido e não tem ninguém para falar, as vezes você está triste e não tem ninguém para ter um feedback, para conversar contigo, olha hoje eu estou mal, alguém que possa te entender. " (E3)

"Aqui no CAPS tem a psicóloga que é muito boa, [cita o nome da psicóloga], ela conversa comigo, ela é minha psicóloga, sabe, ela conversa com a gente, conversa com os pacientes dela. E é muito bom ser ouvida!" (E4)

"Aqui [no CAPS] todo mundo conversa com a gente, [...] um bom cuidado é isso! [...] Aqui as pessoas param pra conversar com a gente, pra poder escutar a gente, a pessoa para qualquer coisa que está fazendo pra poder falar com a gente, se a gente tiver precisando de uma coisa eles vai lá e ouve o que a gente tá falando." (E8)

A utilização da escuta como instrumento terapêutico foi iniciada por Freud, no século XIX, o tratamento funcionaria como um invólucro dentro do qual o paciente pode se revelar, examinar eventos traumáticos e identificar comportamentos inadequados através da escuta do terapeuta. Escutar é uma atitude ativa, ou seja, dinâmica, que exprime esforço para compreender a significação do que é dito, incluindo identificações com a pessoa e com o contexto. Logo, escutar é um instrumento essencial para compreensão do outro, por ser uma atitude positiva de interesse e respeito, o que a caracteriza como terapêutica (DO NASCIMENTO, 2020).

Escutar é mais amplo que simplesmente ouvir, representa um gesto de comprometimento genuíno para com o outro. Na escuta colocamo-nos a disposição do outro, através de uma postura ativa de participação e de compartilhamento do vivido, diferentemente de ouvir, que é apenas a constatação de algo através do sistema auditivo. Ou seja, escutamos com o corpo em sua inteireza, num processo mental mais sofisticado que o ouvir, pois demanda mais energia e disciplina (DURAES, 2007).

A escuta terapêutica justifica-se pela necessidade que toda pessoa tem de se comunicar, de compartilhar seus sentimentos, ideias, expectativas e situações. O sofrimento é sempre uma experiência psíquica, independentemente de sua causa. Daí a importância da escuta, pois enquanto se expressa, a pessoa pode escutar a si mesma e elaborar sua situação de maneira a visualizar escapes, além disso os profissionais podem obter informações necessárias à complementação e diagnóstico da doença, além de planejar e efetivar os procedimentos terapêuticos que melhor a ajudarão. Não praticar a escuta significa ignorar a pessoa que sofre em sua totalidade e as consequências dessa atitude pode adquirir dimensões indescritíveis (DO NASCIMENTO, 2020).

Na fala que se segue, o participante do estudo alerta para o risco da não escuta, ou de maior valorização da escuta de outros atores envolvidos no processo de adoecimento, a exemplo da família, em detrimento da escuta do próprio sujeito que sofre:

"[Cuidado] seria conhecer os problemas das pessoas, dentro da família, se elas estão sendo talvez mal compreendidas dentro da família, então o cuidado seria conhecer não só o que a família tá dizendo que é, mas a realidade mesmo da pessoa, conhecer o que ela tá falando, dar atenção ao que ela tá falando, por que geralmente os médicos não dão atenção no que ela tá falando, releva o tempo todo o que o paciente tá falando, em prol do que a família falou que era. Entendeu? Não dá atenção. (E7)

Assim, a importância da escuta é visível na medida em que ela transcende a clínica ressaltando a necessidade de se dedicar inteiramente ao usuário do serviço. A escuta terapêutica também auxilia a instituição como um todo no seu funcionamento para que ela e sua equipe desempenhem da melhor forma possível a tarefa do cuidado integral da saúde de seus usuários (MESQUITA, 2014).

Uma escuta qualificada pode ser construída como um processo transparente, através de uma rede de conversação onde o profissional pode fornecer explicações, de maneira que o paciente possa entender, e dispor de tempo suficiente para esclarecer todas as suas dúvidas. O contato quase diário que os pacientes estabelecem com as equipes dos serviços de saúde pode garantir melhor qualidade na escuta e no diálogo. Assim, uma equipe de saúde preparada possui condições de oferecer um ambiente favorável para que o usuário expresse seus sentimentos em relação à experiência que está vivendo. Neste caso, o preparo das equipes seria o diferencial (DO NASCIMENTO, 2020).

Para os usuários do Centro de Atenção Psicossocial que participaram deste estudo, o CAPS apresenta-se como um espaço terapêutico privilegiado para a produção do cuidado em saúde mental, como podemos observar nas seguintes falas.

"Bom, cuidado é que aqui [no CAPS] eles cuidam muito bem da gente, sabe." (E4)

"Eu não tenho nada que queixar daqui [do CAPS], todo mundo me trata bem, e eu respondo que o cuidado depende deles, dos profissionais, de minha esposa e dos profissionais do CAPS." (E6)

Aqui no CAPS é mais cuidado pra mim do que nos outros lugar. (E8)

Contudo, apesar do CAPS se destacar como um serviço especializado de referência em saúde mental, faz-se necessário que o serviço assuma a missão e o compromisso de produzir o cuidado de forma compartilhada com os outros serviços de saúde, instituições, cuidadores e familiares, para garantir a integralidade e continuidade do cuidado, e propiciar a ampliação de recursos, acessibilidade, sociabilidade, atendimento às necessidades humanas básicas (como higiene e alimentação), além de favorecer a construção e o fortalecimento de vínculos afetivos fora do CAPS.

"Cuidado é ir visitar. " (E1)

"Igual lá em casa mesmo, não estava dando certo minha mãe cuidar de mim, aí me tirou e me pôs no asilo. Então eu estou vivendo no asilo. Aí lá corre tudo bem, porque eu me sinto assim, elas lá em casa não podem me olhar, então eu tenho que procurar viver com as de cá [profissionais do asilo]. Lá mesmo eu vejo elas dar o banho na gente, troca a roupa todo dia, dá a sandália [...], dá o alimento pra gente, lá tem as cozinheiras, as faxineiras, lá tem estadistas." (E2)

"Minha filha que cuida de mim, até banho ela dá em mim." (E5)

"Bom, quando a gente tá bem, tudo bem. Mas quando a gente tá mal, aí eles cuidam da gente, manda para o hospital quando não dá conta de cuidar aqui [no CAPS], sabe." (E4)

"Cuidado? Eu acho que cuidado é quando a esposa trata bem, dá alimentação e roupa." (E6)

Segundo Ferreira (2016), os CAPS precisam assumir a responsabilidade e o desafio de propiciar a efetivação da desinstitucionalização do cuidado em saúde mental, sem imprimir o sobrenome do serviço na identidade de seus usuários. Serem reconhecidos simplesmente como pessoas, João ou Maria, esposo(a), filho(a), mãe ou pai, e não unicamente como usuário do CAPS, garantindo a continuidade do cuidado fora dos muros do serviço.

Contudo, as equipes dos CAPS devem atentar para que o cuidado na família, demais serviços de saúde e instituições não reproduzam a lógica manicomial de objetificação dos sujeitos, gerando dependência e alienação, mas ao contrário disso, possam gerar maior autonomia no cuidado de si, maior nível de independência possível e maior liberdade para as pessoas em sofrimento psíquico.

Categoria 2: A Clínica no Contexto de Mudança do Modelo de Atenção em Saúde Mental

Discutir as questões relativas à saúde mental exige um esforço em ultrapassar as problematizações meramente políticas, é preciso considerar toda política instituída, bem como os avanços que ocorreram nas últimas décadas com relação as formas de tratamento dos portadores de sofrimento mental. No entanto, a clínica do cotidiano dos serviços é o que materializa todo movimento preconizado pela reforma, colocando a prova a real extinção dos manicômios, ou da cultura manicomial. Se antes a hegemonia era da disciplina e da ordem, agora parece haver um movimento em direção ao controle, onde os corpos são controlados ao ar livre (DELEUZE, 1992).

A saúde mental não é mais domínio único da psiquiatria, é resultado de uma certa reorganização da psiquiatria, entraram em cena outros saberes, outros serviços, outras formas de cuidado que diluíram não só o conhecimento, mas principalmente a consistência do poder centrado em uma única categoria (BARRETO, 2010). Se de um lado tem-se políticas públicas, serviços e um grande aparato de conhecimento, na outra ponta está o sujeito/paciente, receptáculo de intervenções, objeto de investigação, alvo de certa normatização.

Amarante (1995), destaca a importância dos serviços substitutivos para que o sujeito portador de sofrimento mental seja tratado não como doente, mas como cidadão. No que se refere ao tratamento ofertado pelos hospitais psiquiátricos antes da consolidação do processo de Reforma, houve, na fala dos entrevistados, uma predominância de insatisfação com o tratamento ofertado. Como se observa nas falas abaixo:

"No hospital psiquiátrico era desumano, era bem truculento, era bem truculento lá, os enfermeiros eram rudes, sem educação, eles não tinham aquele cuidado, aquela atenção com a gente, então para eles tanto faz, até se rolasse uma briga lá dentro eles nem estavam aí. Eles não tinham aquela atenção com a gente. E lá era bem difícil." (E3)

"Eu acho que nos hospitais psiquiátricos que eu já passei era horrível, ás vezes as pessoas entravam caminhando e saiam no caixão. Eu vi muita gente morrer! Eles maltratavam, tratavam mal. Lá a gente não podia dar trabalho, se desse trabalho eles marcavam a gente e eu acho que a maioria das pessoas que saíram de lá foram por causa disso, de maus tratos, por causa de maus tratos". (E4)

A mudança do modelo de atenção ocorre no sentido de reparar danos causados aos pacientes que por tantos anos tiveram direitos básicos violados, como destaca Oliveira ( 2012), em um primeiro momento foi possível observar uma certa restituição da cidadania quando busca-se reparar a dívida social com os pacientes que estiveram internados em instituições de longa permanência, sendo o movimento de desinstitucionalização dos "loucos" o que proporcionaria uma devolução de autonomia aos mesmos, ou seja, abolir os manicômios e hospitais psiquiátricos repercute diretamente na forma como a sociedade trata os portadores de sofrimento mental. No entanto, é preciso questionar se o processo de extinção dos manicômios foi suficiente para fazer cessar as práticas segregacionistas e higienistas. Nesse sentido, nas falas dos entrevistados foi destaque o caráter mais humano do cuidado ofertado pelos serviços substitutivos, como verifica-se nos trechos abaixo:

"Aqui no CAPS é bom, é outra coisa. Aqui é bom que dá festa, refrigerante, até pa-netone. Os profissionais tratam bem, todo mundo tratam bem, os médicos também. Aqui conversa comigo." (E1)

"Aqui no CAPS, eu gosto daqui. No CAPS é mil vezes melhor que o Hospital. Eu dei graças a Deus que [o hospital psiquiátrico] fechou! Aqui no CAPS a gente chega de manhã e sai a tarde, sai na hora do almoço, sai aqui na hora que a gente quer. " (E4)

"Às vezes eu fico pensando que o que tem de bom em vocês [profissionais do CAPS] é o tratamento, vocês tratam a gente com diferença de outras pessoas, o tratamento aqui é completamente bom para todos, trata cada um conforme sua necessidade." (E6)

A última fala destaca a mudança com relação a postura dos profissionais que trabalham nos serviços, sendo que, o desafio pós-reforma tem sido justamente tratar cada um conforme sua necessidade, privilegiando as singularidades. Em saúde mental nada se sabe, cada caso é único, não há parâmetros gerais, por mais que os manuais diagnósticos tracem linhas gerais sobre o que seja um ou outro transtorno, é sempre no caso a caso que algo pode ser feito. Esse parece ser o primeiro desafio, privilegiar a singularidade, como preconiza o Ministério da Saúde (2007).

O desafio é tecer uma clínica a partir do um, o que subverte a lógica positivista, a escuta atenta de cada sujeito parece ser o caminho, o sujeito não é um todo, mas sim um efeito, o sujeito se aliena e se separa do Outro pontualmente, nada o completa, o sujeito é uma abertura, uma abertura ao Outro (FIGUEIREDO, 2005).

A Reforma é o próprio contexto em que a clínica acontece, é um meio e não o fim. O processo de Reforma privilegiou a clínica, e diante disso não há como recuar. As mudanças ocorreram de tal forma que mesmo dentro de instituições fechadas, como Hospitais Gerais, os pacientes observam mudanças quanto ao cuidado, como expressa uma das pacientes entrevistadas:

"Eu tive várias internações. Mas no Hospital [Geral] é bem diferente! A diferença é que eles dão atenção pra gente, sabe. Eles dão muita atenção pra gente, não tem maus tratos. Mesmo sendo hospital é diferente o tratamento." (E4)

Em um cenário de tantas mudanças é preciso problematizar também as permanências, Silva (2012) questiona o papel dos serviços substitutivos: "ainda que tocados pelos ideais da reforma psiquiátrica, as equipes dos serviços de saúde mental podem reproduzir a institucionalização e afirmar a instituição total, de modo que os desejos de manicômio atravessem o tecido social e estão presentes no cotidiano das práticas" (p.149). O que nos faz pensar no processo de Reforma como algo contínuo, demandando um fazer sempre crítico e questionador quanto às próprias condutas.

Michel Foucault (2002), ressalta o perigo que paira sobre as instituições de saúde, assim como prisões, escolas e exército, os hospitais e afins também se prestam a mecanismos de controle e biopoder. Dentro dessa lógica, reafirma que "a vigilância médica das doenças é aí solidária de toda uma série de outros controles: militar sobre os desertores, fiscal sobre as mercadorias, administrativo sobre os remédios, as rações, os desaparecimentos, as curas, as mortes" (p. 141). Assim, verifica-se que a mudança de modelo não assegura mudanças de práticas, sendo presente nos serviços substitutivos velhos hábitos, ou ainda, dificuldades para avançar em direção a Reabilitação Psicossocial, como demonstra a fala a seguir:

"Aqui no CAPS eu não faço nada não, antes quando eu vinha pra cá eu fazia um tape-tinho, uma coisa assim, mas hoje eu não mexo com nada mais não. Hoje elas tratam de mim [no CAPS] aqui como você está vendo, elas marcam os dias sabe, aí a gente vai vindo, quanto mais a gente vim e elas verem a gente bem, aí elas vão dando até alta, sabe como é que é. Dá alta assim se a gente tá um mês bem, aí elas passam assim pra gente continuar assim de 8 em 8 dias, aí passa para de 15 em 15 dias, vai mudando, é isso." (E2)

É preciso considerar que no Centro de Atenção Psicossocial- CAPS, deve haver diversos sujeitos em tratamento, as abordagens são direcionadas não só ao paciente, mas incorpora também familiares, escola e rede social (PERICO, 2014). Nesse sentido, é importante destacar a função do Projeto Terapêutico Singular, um plano de cuidado traçado pelo paciente em conjunto com um profissional de referência, buscando não só remissão de sintomas, mas principalmente o reestabelecimento da vida. O Ministério da Saúde (2007) propõe que o Projeto Terapêutico Singular "pode ser feito para grupos ou famílias e não só para indivíduos, além de frisar que o projeto busca a singularidade (a diferença) como elemento central de articulação" (p.40), ou seja, deve envolver estratégias como oficinas terapêuticas, grupos operativos e visitas domiciliares, o que confere à clínica seu caráter ampliado.

Categoria 3: O Cenário da Reabilitação Psicossocial entre o Vivido e o Ideal

Concomitante com o processo de desinstitucionalização no Brasil, objetivo principal da RPB, surge também a necessidade de se planejar a chamada Reabilitação Psicossocial, destes que viveram durante algum período internados em hospitais psiquiátricos. Dessa forma, os serviços responsáveis pelo cuidado em saúde mental, passam a ser também responsáveis pelo ordenamento e operacionalização desse recurso de inserir ou reinserir o sujeito de volta à vida social participativa.

A noção de Reabilitação Psicossocial pode ser compreendida de diversas formas, porém, para além de simples conceituação, tal noção passa a se tornar também um compromisso ético, que deve ser aplicada a partir de estratégias que necessitam implicar a política nacional de saúde mental e o processo de trabalho e de organização dos serviços de saúde.

Para Saraceno (1996) a "reabilitação psicossocial passa a ser entendida a partir da ideia de reconstrução do exercício pleno da cidadania e da contratualidade social em seus três cenários: casa, trabalho e rede social" (p.08). Assim, percebe-se a importância de se pensar estratégias nos serviços substitutivos, e demais serviços que englobam a RAPS, que favoreçam o processo de Reabilitação. Planejar formas de intervenção e cuidado que possam propiciar autonomia e empoderamento para os sujeitos com histórico de exclusão em hospitais psiquiátricos poderá garantir um nível maior de sociabilidade e participação na vida comunitária. Dessa forma, os serviços denominados substitutivos, precisam incluir nos Projetos Terapêuticos Singulares de cada paciente propostas que deverão ter como objetivo alcançar a inserção deste sujeito nos três cenários.

Nos CAPS, é realizada oficinas e atividades com o intuito de propiciar aos usuários do serviço maior autonomia e consequentemente promover relações sociais, tanto nas instituições de tratamento, quanto no território em que vivem. Augusto Bisneto (2007, p.193), afirma que "nas atividades de lazer, artesanato, grupos e arte, os usuários conseguem obter um certo grau de autonomia para atuar como 'sujeito' nessas relações sociais".

Porém, é possível perceber a baixa adesão dos pacientes às oficinas que são oferecidas nos serviços, sendo que para eles o principal não é a oficina em si, ou o produto desta, mas a rede de relações que são construídas no desenvolvimento das atividades que o CAPS oferta.

"Bom, eu converso com os colegas, sabe, os outros pacientes, isso ajuda muito também. Além de conversar com os profissionais eu também converso com os pacientes. Tem uns [paciente] que ajudam e outros não. Eles não dão conselhos não, a gente só conversa, e só a conversa já ajuda." (E4)

Percebe-se que as oficinas que são oferecidas, são pouco atrativas ou pouco terapêuticas. Isso ocorre principalmente pela falta de recursos materiais e humanos destinados para esse fim. Essa ineficácia, ou inexistência, das oficinas terapêuticas nos serviços de saúde mental, acrescida do descaso sócio-político e desrespeitoso aos direitos básicos de quem busca tratamento, finda num processo histórico de desconstrução da lógica assistencial e da invisibilidade de quem é portador de sofrimento mental.

É válido destacar a importância que os espaços de escuta, diálogo, interação e sociabilidade produzidos nas oficinas terapêuticas tem para o tratamento diário de cada usuário dos serviços. As redes sociais construídas entre os próprios pacientes, ou juntamente com os profissionais dos serviços de saúde mental, favorecem a construção de vínculos significativos e efetivamente terapêuticos. O que nos faz cogitar, inclusive, a possibilidade da implantação de oficinas que tem o diálogo como principal atributo.

É necessário refletir também que, para além dos Centros de Atenção Psicossocial, o processo de Reabilitação Psicossocial deve principalmente se estender à vida cotidiana do indivíduo. Conforme percebe-se nas entrevistas, nem sempre os pacientes tem acesso à outras atividades fora dos CAPS, por fatores que incluem a falta de recursos financeiros, preconceito e escassez de suporte familiar para acompanhar os usuários em atividades no território:

"Lá no meu bairro é perigoso, só vou no mercado sul e no CAPS. Gostaria de conhecer outros lugares na cidade, os bairros, Ibituruna, já fui lá uma vez. O pessoal aqui do CAPS me levou para assistir filme no cinema, é muito bom assistir filme no cinema, alta definição. Não vou porque não tenho condições, nem a condução, nem o dinheiro para comprar ingresso." (E1)

"Eu só fico mesmo é no asilo, eu não saio nem no portão, nem no portão eu num saio! A família, depois que eles me pôs no asilo eles foi lá umas duas vezes, depois não foi mais não, eles não foi mais não." (E2)

"Tem lugar nenhum que eu vou, eu num dou bem com os vizinho, cada um na sua, entendeu [...], porque eu sou muito discriminada, entendeu?" (E5)

"Eu não saio de casa [...]. Eu não saí pra outro lugar além do Caps, eu fico trancado em casa, não saio pra lugar nenhum. Eu gostaria de sair de casa, gostaria de dar uma volta, fazer uma caminhada. Eu gostaria que vocês conversassem com a minha esposa para ela dar mais liberdade pra mim, porque eu estou me sentindo um escravo da maneira que ela está me tratando. E ela não abre a porta pra mim sair pra rua, dar uma caminhada, nem nada. Mas é eles lá, não é só ela não, meus filhos falam: 'Ô pai a gente não pode te soltar, o senhor não pode sair sozinho, tem que ser acompanhado, [...] isso é para o seu bem! O senhor não está em condição de sair sozinho, porque o senhor se perde aí e nós fica sem saber o que fazer '" (E6)

Por outro lado, podemos perceber também, alguns pacientes que têm acesso à alguns locais, como cinema, praças, por já ter alcançado certa autonomia ou mesmo pelo cuidado de familiares que perceberam a importância de acessar tais serviços para o tratamento do paciente:

"Bom, eu frequento o Shopping, eu gosto, eu vou com minha madrinha. Eu gosto de ir no cinema, eu vou de vez em quando. Eu gosto também de ficar vendo as lojas. Eu não pago o cinema não, tem a carteirinha da AdeMoc, aí com a carteirinha não paga não. Eu não visito ninguém não. Mas eu viajo, gosto de viajar. " (E4)

"Eu vou no cinema, lá é legalzinho, dá uma sensação de bem-estar [...]. Assim, a gente tem a carteirinha, eles cumprem tudo certinho sobre a lei municipal que garante [o acesso]." (E3)

"Eu estudo, faço um curso na Divina Providência, que é uma entidade filantrópica. Já é o terceiro curso que faço lá. [...] Estou no Conservatório [escola de música] também, eu estudei alguns anos, desde menina, depois eu sair, depois entrei algumas vezes e acabava saindo por influência da minha irmã que falava que eu não estava bem, aí ela implicava e eu acabava saindo. Quando eu voltei o ano passado ela acabou implicando, mas a psicóloga indicou para eu voltar para o Conservatório. Eu falei: Oh, eu vou fazer, eu vou passar essa tribulação." (E7)

O processo de Reabilitação Psicossocial é algo que ainda está em construção conjuntamente com a evolução da Reforma Psiquiátrica. É necessário que haja mais investimentos em políticas públicas voltadas à saúde mental, dentro e fora dos Centros de Atenção Psicossociais. Construir e efetivar oficinas terapêuticas e de sociabilidade em espaços de cuidado em saúde mental, deixou de ser uma forma de ocupação e entretenimento, e passou a ser um método eficaz para que pacientes, historicamente excluídos, possam conviver naturalmente em espaços públicos e poder potencializar autonomia para os usuários, no entanto, há ainda muitos entraves.

Segundo pesquisa realizada por Onocko-Campos (2019) o subfinanciamento da saúde mental pelo SUS e a escassez de investimentos e transparência de dados por parte do Ministério da Saúde acentuou problemas já enfrentados pelos serviços substitutivos. Tem-se ainda a portaria n° 3.588, de 21 de dezembro de 2017, que legitima o financiamento público de comunidades terapêuticas, restabelecendo práticas combatidas pela reforma psiquiátrica, como o isolamento e medidas asilares (BRASIL, 2017).

Para evitar erros passados, é necessário proporcionar o cuidado a partir das necessidades de cada sujeito, lançar mão de estratégias como oficinas terapêuticas e de geração de renda, serviço de Acompanhamento Terapêutico (AT), inserção em Centros de Convivência e outros espaços sociais são imprescindíveis para alcançar o que propõe a Reforma Psiquiátrica.

 

Considerações Finais

Passado o fervor da Reforma Psiquiátrica, os desafios da prática em saúde mental parecem ter ganhado nova conotação. Se antes, soltar os loucos parecia a maior das conquistas, hoje, propiciar aos portadores de sofrimento mental certa autonomia fora da instituição soa como enorme desafio. Nesse contexto, é necessário verificar como os usuários percebem o cuidado do qual são alvo. Portanto, este trabalho mostrou-se relevante, já que escutar dos pacientes e suas impressões quanto ao tratamento ofertado foi também uma tentativa de reforçar o lugar de protagonistas que estes devem ocupar.

A partir dos dados coletados foi possível constatar que os pacientes perceberam as mudanças advindas do movimento de Reforma, mudanças estas relacionadas a um modo mais humanizado de cuidar, destacando principalmente a postura de escuta que os profissionais passaram a sustentar. Interessante notar que a criação e expansão de políticas públicas voltadas para um cuidado regionalizado e intersetorial gerou impactos também na clínica cotidiana, na forma como os diversos atores se posicionam diante da demanda de tratamento que chega aos serviços. Muitos pacientes destacaram a escuta como forma de cuidado, o que segundo os entrevistados só passa a ocorrer de fato após o processo de reforma.

Se por um lado tem-se os avanços alcançados via Reforma, tem-se também grandes desafios. A que, ou a quem, se destina a Escuta? O que fazer com as demandas? O que ofertar? Essas são algumas das questões que frequentemente surgem nos serviços de saúde mental, resultado da precariedade e falta de recursos que se encontram atualmente nos serviços substitutivos. A escuta, tão importante para operacionalização do Projeto Terapêutico Singular, assim como para direcionar intervenções e guiar a clínica, muitas vezes parece sem sentido, já que não há muito o que ofertar. No entanto, limitar as possibilidades de intervenção a ofertas e demandas é reduzir a clínica a um assistencialismo que nada produz.

Nota-se, que poucos pacientes falaram sobre atividades e oficinas realizadas no CAPS, há ainda um ranço ambulatorial na lógica de funcionamento do CAPS, não há investimento por parte dos gestores, o que gera uma certa apatia nos trabalhadores culminando na estagnação do processo de mudança. Nas falas dos entrevistados ficou evidente a importância da convivência em outros espaços que não seja apenas nos serviços de saúde.

O trabalho em saúde mental sempre foi sustentado por certa militância, um desejo feroz dos diversos profissionais envolvidos com a causa, buscando destacar a importância e necessidade de um tratamento digno e humanizado aos portadores de sofrimento psíquico. Após o alcance de grande parte das reinvindicações de 30 anos atrás, as políticas públicas estão instituídas, mas surgem novos questionamentos e inquietações em relação ao nosso papel diante do não cumprimento das leis e portarias que norteiam a produção do cuidado em saúde mental no Brasil. A reflexão a partir de um posicionamento ético, por parte dos profissionais, pode dar pistas de como posicionar-se em tempos tão difíceis. A escuta dos pacientes é imprescindível, mas informa-los sobre seus direitos e formas de reivindicá-los também parece urgente. A mobilização e participação social parece ser o caminho para que o controle sobre os sujeitos não se cristalize e seja possível seguir avançando, sem perder de vista a clínica.

 

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