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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.13 no.24 Barbacena jul./dez. 2021

 

ARTIGOS

 

A medicalização da infância na contemporaneidade: revisão integrativa

 

The medicalization of childhood in contemporary times: an integrative review

 

La medicalización de la infancia en la época contemporánea: una revisión integradora

 

 

Fulvia Cristina do Carmo AlvesI; Marileny Boechat Frauches BrandãoII; Arilton Januário Bacelar JúniorIII

IMestranda do Programa em Gestão Integrada do Território da Universidade do Vale do Rio Doce. Especialista em Gestão Estratégica de Recursos Humanos pela Unileste/MG. Docente e supervisora de estágio na Faculdade Única de Ipatinga/Minas Gerais
IIDra Odontopediatria pela Universidade Cruzeiro do Sul/SP. Especialista e Mestre em Odontopediatria pela Faculdade de odontologia da UFRJ. Docente da Universidade Vale do Rio Doce (UNIVALE) do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território
IIIDoutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Del Museo Social Argentino, USMA, Argentina. Mestre em Energia Nuclear e suas Aplicações pelo Instituto de Pesquisa Nuclear IPEN-USP. Coordenador do curso de Farmácia e docente nos cursos de Farmácia, Enfermagem e Psicologia na Faculdade Única de Ipatinga/MG

 

 


RESUMO

As crianças podem desenvolver transtornos mentais e de comportamento e o uso de psicofármacos é uma das possibilidades de tratamento para tais transtornos. Mas tem-se identificado, na contemporaneidade, um aumento na prescrição de psicofármacos muitas vezes para problemas não médicos. Esse fenômeno entende-se por medicalização. Este trabalho refere-se a um levantamento de artigos que abordam a medicalização infantil nos últimos 10 anos. Trata-se de um estudo de revisão integrativa, realizada na base de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no ano de 2019. Como critérios de refinamento de busca utilizou-se os descritores medicalização, educação e criança, artigos revisados por pares e publicados na língua portuguesa e inglesa. A amostra final constituiu-se de 12 artigos, sendo os que abordaram o assunto como tema principal identificado no título, leitura dos resumos e introdução desses. Após a leitura, os artigos foram organizados em um quadro analítico, identificando o referencial teórico adotado e como o tema se apresentava nos textos. O mapeamento possibilitou identificar problematizações sobre a infância, a hegemonia da visão biologicista sobre o comportamento humano, a influência da publicidade da indústria farmacêutica, a banalização e epidemia do diagnóstico infantil e como a medicalização se manifesta no contexto escolar. Também permitiu levantar reflexões sobre a relação entre a escola e a medicalização infantil. Conclui-se que há necessidade de estudos que investiguem a medicalização do ponto de vista das crianças e que estabeleça um diálogo entre o campo da Psicologia, Medicina e Educação.

Palavras-chave: Medicalização; Educação; Criança


ABSTRACT

Children can develop mental and behavioral disorders and the use of psychotropic drugs is one of the treatment possibilities for such disorders. However, it has been identified, nowadays, an increase in the prescription of psychotropic drugs, often for non-medical problems. This phenomenon is understood as medicalization. This work refers to a survey of articles that address child medicalization in the last 10 years. This is an integrative review study, carried out in the database of the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES), in 2019. As search refinement criteria, the descriptors medicalization, education and child were used, peer-reviewed articles published in Portuguese and English. The final sample consisted of 12 articles, which addressed the subject as the main theme identified in the title, reading of the abstracts and their introduction. After reading, the articles were organized in an analytical framework, identifying the theoretical framework adopted and how the theme was presented in the texts. The mapping made it possible to identify problematizations about childhood, hegemony of the biological view on human behavior, the influence of advertising by the pharmaceutical industry, the banalization and epidemic of child diagnosis and how medicalization is manifested in the school context. It also allowed for reflections on the relationship between school and child medicalization. It is concluded that there is a need for studies that investigate medicalization from the point of view of children, and that establish a dialogue between the fields of Psychology, Medicine and Education.

Keywords: Medication; Education; Child


RESUMEN

Los niños pueden desarrollar trastornos mentales y del comportamiento y el uso de psicofármacos es una de las posibilidades de tratamiento para dichos trastornos. Sin embargo, se ha identificado, en la actualidad, un aumento en la prescripción de psicofármacos muchas veces por problemas no médicos. Este fenómeno se entiende como medicalización. Este trabajo hace referencia a una encuesta de artículos que abordan la medicalización infantil en los últimos 10 años. Se trata de un estudio de revisión integradora, realizado en la base de datos de la Coordinación para el Perfeccionamiento del Personal de Educación Superior (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES), en 2019. Como criterios de refinamiento de búsqueda se utilizaron los descriptores medicalización, educación y niño, artículos revisados por pares publicados en portugués e inglés. La muestra final estuvo conformada por 12 artículos, que abordaron el tema como tema principal identificado en el título, lectura de los resúmenes y su introducción. Después de la lectura, los artículos se organizaron en un marco analítico, identificando el marco teórico adoptado y cómo se presentó el tema en los textos. El mapeo permitió identificar problematizaciones sobre la infancia, la hegemonía de la mirada biológica sobre el comportamiento humano, la influencia de la publicidad por parte de la industria farmacéutica, la banalización y epidemia del diagnóstico infantil y cómo se manifiesta la medicalización en el contexto escolar. También permitió reflexionar sobre la relación entre la escuela y la medicalización infantil. Se concluye que existe la necesidad de estudios que investiguen la medicalización desde el punto de vista de los niños, y que establezcan un diálogo entre los campos de la Psicología, la Medicina y la Educación.

Palabras-clave: Medicalización; Educación; Niños


 

 

INTRODUÇÃO

O tema em estudo refere-se a uma compreensão dos fenômenos históricos, sociais, políticos e econômicos que fomentam a medicalização infantil manifestada na contemporaneidade e a implicação desta na vida da criança, podendo afetar seu desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial.

Entende-se por medicalização um processo que transforma questões não médicas em problemas médicos (BRAGHINI, 2016). Problemas de comportamento de diferentes ordens são apresentados como doenças, transtornos, distúrbios que camuflam questões políticas, sociais, culturais e afetivas que afligem a vida das pessoas. Questões coletivas são tomadas como individuais; problemas sociais e políticos se tornam biológicos. Nesse processo, a criança e sua família são responsabilizadas por tais problemas, enquanto governos, autoridades e profissionais de saúde e educação são eximidos de suas responsabilidades (BRASIL, 2015).

Moysés (2001) aborda que as problemáticas relacionadas à infância têm sido compreendidas pelos discursos e práticas do saber médico e transformadas, muitas vezes, em psicopatologia. Segundo o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2012), os psicofármacos estão sendo classificados como o principal recurso de tratamento disponibilizado pela psiquiatria na contemporaneidade.

A medicalização infantil é um tema contemporâneo e é relevante estudá-lo pois, segundo o Ministério da Saúde, houve um crescimento de 775% no consumo de psicofármacos1 em 10 anos, especialmente o metilfenidato2. O Brasil tem ocupado o 2º maior mercado do mundo no uso desse tipo de medicamento, conforme o Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos (BRASIL, 2015). O CFP (2012) relata que o metilfenidato subiu de 70.000 caixas vendidas em 2000 para 2.000.000 de caixas em 2010.

O Brasil tem preconizado um alto consumo de psicofármacos em uma escala mundial e os mais consumidos no país são: Clonazepam, Diazepam e Midazolam (BRASIL, 2019).

Este artigo foi escrito a partir de uma análise de estudos acadêmicos realizados sobre a medicalização infantil no Brasil por meio de um mapa da produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento. Torna-se de fundamental importância conhecer a produção acadêmica e as evidências teóricas disponíveis na literatura sobre o universo infantil no que tange à patologização de certos comportamentos tidos como naturais e esperados para essa fase do ciclo vital. A partir dessa perspectiva, ocorre a medicalização da infância e os comportamentos das crianças são entendidos pela sociedade como problemáticos e, assim, tratados como doença.

O mapeamento dos artigos possibilitou identificar temáticas subjacentes ao tema norteador central como: conceito e história de infância; hegemonia da visão biologicista sobre o comportamento humano; a influência da publicidade da indústria farmacêutica; a epidemia e a banalização do diagnóstico infantil, como também permitiu levantar reflexões sobre a relação entre a Escola e a medicalização da infância. Todos esses elementos são compreendidos como impulsionadores da medicalização infantil na contemporaneidade.

 

1. Metodologia

Para aprofundar a temática sobre medicalização infantil foi realizada uma revisão integrativa, que permitiu a síntese e a análise do conhecimento científico produzido sobre o tema investigado nos últimos 10 anos. Essa revisão refere-se ao mapeamento e discussão da produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento (FERREIRA, 2002).

Para elaboração deste trabalho, as seguintes etapas foram percorridas: estabelecimento da hipótese e objetivos; estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão de artigos; definição das informações a serem extraídas dos artigos selecionados; análise, discussão e apresentação dos resultados.

Para a seleção dos artigos, utilizou-se a base de dados dos periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sendo estabelecidas as palavras-chave: medicalização, educação e criança. A busca foi realizada pelo acesso on-line om os critérios de refinamento de periódicos revisados por pares e com recorte temporal, publicações compreendidas entre 2009 a 2019, estando esses artigos em língua portuguesa e língua inglesa. O resumo e a introdução foram lidos com a finalidade de identificar a temática referida e organizados em um quadro-mapa. Esse instrumento contemplou os seguintes itens: título, ano de publicação, autores, objetivos, problema de pesquisa, hipótese, metodologia, referencial teórico e síntese das conclusões.

 

2. Resultados

Dos 61 artigos pré-selecionados, foram utilizados filtros excludentes para refinar a seleção inicial, tais como: saúde pública, educação, saúde mental, psicologia, medicalização e criança. A amostra final foi constituída por 12 artigos (Quadro 1).

Nos artigos selecionados sobre medicalização foram encontrados elementos que corroboram a compreensão desse fenômeno, como: visão interdisciplinar, arcabouço teórico, metodologia de pesquisa utilizada nas pesquisas e as lacunas encontradas.

O mapeamento dos artigos possibilitou identificar problematizações acerca da temática central, que foi organizada nas seguintes categorias: infância; hegemonia da visão biologicista sobre o comportamento humano; a influência da publicidade da indústria farmacêutica; a banalização e epidemia do diagnóstico infantil e como a medicalização se manifesta no contexto escolar.

Todos os artigos selecionados que abordam a temática central (medicalização infantil), são de diferentes áreas do conhecimento científico como: Psicologia, Educação, Medicina, Sociologia e Saúde Pública, o que pode evidenciar uma abordagem inter e transdisciplinar para o estudo do tema. Paul (2011) reporta a importância da abordagem plural para a compreensão de fenômenos contemporâneos, enfatizando que a inter e a transdisciplinaridade pressupõem a troca e cooperação de saberes, perfazendo um diálogo produtivo com uma visão integrativa. Um novo espírito científico propõe a necessidade de comunicação entre as ciências a fim de facilitar a compreensão da realidade complexa. É preciso observar simultaneamente a unidade e o diverso, sem hierarquizar saberes, percebendo a unidade humana em meio às diversidades individuais e culturais. Para compreender a medicalização infantil é mister considerá-la enquanto um problema complexo e paradoxal, tornando-se necessário um olhar amplo e global do ser humano.

O segundo ponto observado nos artigos selecionados refere-se ao arcabouço teórico predominante. Identificou-se que a maioria dos trabalhos acadêmico-científicos concentram seus estudos nas obras de Michel Foucault, que discute a emergência do biocapital e da bioeconomia como facetas da biopolítica enquanto táticas de normalização das condutas sociais. A biopolítica é considerada uma estratégia de vigilância (governo da vida e das condutas), regulando os corpos e a subjetividade. Trata-se de uma relação de poder intervindo na função deixar viver e deixar morrer. O conceito de medicalização sustentado por ele é a prática hegemônica biomédica de explicar o modo de ser, de viver, de sentir e agir em detrimento de outros aspectos que também compõem a promoção da saúde. Foucault aborda a bioeconomia ao debater a articulação entre medicalização e as indústrias farmacêuticas "(...) na criação e na organização de novas patologias, punições e tratamentos" (GALINDO et al, 2016 p. 352).

Outro referencial teórico relevante foi Ivan Illich, na obra "A expropriação da saúde nêmesis da medicina" (1975), que descreve a criação da cultura medicalizada em uma dimensão sociopolítica e critica a sociedade industrial e as tecnologias médicas como ameaças à saúde provocadas pela medicina moderna.

Peter Conrad, com o livro "Medicalização e controle social" (1992), foi outro autor referenciado nos artigos. Ele enfatiza o deslocamento de comportamentos que antes não eram pertinentes ao campo de intervenção médica para essa área. Ou seja, aquilo que não é necessariamente um problema médico passa a ser entendido como se fosse. Esse autor faz uma crítica relacionando à medicalização executada pelo poder médico.

Foram identificados também os estudos do filósofo Zygmunt Bauman, com referência às obras: "Modernidade Líquida" (1998) e "Mal-estar da pós-modernidade" (2004), as quais trazem reflexões sobre a fluidez das relações humanas na contemporaneidade, resultando em um mundo vivido como incerto e incontrolável. Os autores, ao citarem Bauman, destacaram a volatilidade como cenário de uma sociedade que se utiliza da medicalização para delinear o certo e controlar o ser humano. A medicalização tem emergido na cultura contemporânea do imediatismo que tende a se remeter às questões exclusivamente de ordem orgânica.

Um destaque nacional encontra-se em Renata Guarido (2007) e Collares e Moysés (1994, 2013), que apresentam estudos sobre a medicalização do sofrimento psíquico e os seus efeitos no contexto escolar. As autoras indagam sobre os efeitos da medicalização na esfera escolar, onde há uma análise das mudanças no tratamento do sofrimento psíquico na história recente, o que corrobora uma padronização de sintomas trazida pelas edições sequenciais do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM).

O terceiro ponto observado refere-se à análise da metodologia que os pesquisadores utilizaram em suas produções acadêmico-científicas, destacando que a pesquisa qualitativa foi predominantemente utilizada. Segundo Minayo (2002, p. 22), a pesquisa qualitativa trabalha "com o universo dos significados das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas".

E, por fim, o quarto ponto destaca a identificação de uma lacuna no mapeamento dos artigos selecionados. Consta-se a ausência de produções científico-acadêmicas que abordam a perspectiva da criança em relação à medicalização infantil. Não se observou nenhum trabalho que traz a percepção e compreensão do fenômeno da patologização do comportamento humano e a medicalização pelo olhar da própria criança que faz o uso do psicofármaco.

 

3. Discussão

3.1. Infância: conceito e história

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2008), considera-se criança a pessoa do nascimento até os 12 anos de idade incompletos. No entanto, mais do que uma marca de idade cronológica, a infância é uma das fases do ciclo vital caracterizada por constantes transformações. Transformações essas ocasionadas por variáveis internas ao ser humano (biológico), como também pelas variáveis externas (ambiente social, cultural, educação etc.).

A criança é um ser biopsicossocial, um ser de potencial e de possibilidades, um ser ativo e inserido em uma rede de interação. Segundo Aguiar (2015), a criança é uma unidade indivisível que se constrói a partir das relações humanas, ou seja, ela é essencialmente relacional; cresce e se desenvolve ao longo do tempo na e a partir da relação com os outros. O ser humano, do nascimento até a morte, transforma-se como pessoa e transforma o seu contexto sociocultural.

(...) uma vez que o ser humano é relacional e encontra-se em relação por toda a sua vida, a possibilidade de transformação acompanha-o também neste percurso. (...) o homem é um ser de potencialidades que podem ser atualizadas a qualquer momento da vida (AGUIAR, 2015, p. 30).

A criança é também um ser complexo, ou seja, para compreendê-la é fundamental ir além de suas características isoladas, sendo necessário vincular fatores emocionais, cognitivos, orgânicos, comportamentais, sociais, históricos, culturais e geográficos. Tais fatores mantêm uma relação de interdependência, influenciando o modo de ser de cada indivíduo (AGUIAR, 2015).

Para Papalia e Feldman (2013), a criança é também contextual, pois está atravessada por vários elementos territoriais dos quais faz parte. Elementos esses que afetam sua relação consigo mesma, com o outro e com o mundo, formando uma teia de forças e de influências.

No entanto, historicamente, a visão de infância nem sempre foi assim. Por muitos séculos a criança foi ignorada. A organização social e política da sociedade medieval não abria espaço para a manifestação do sentimento de infância. Naquele período, não eram exigidas quaisquer preparações ou qualificações dos adultos que lidavam com as crianças. "A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato" (ARIÈS, 1981, p.10).

Aguiar (2015) aponta que até o século XVIII não havia uma preocupação particular com as crianças por parte da sociedade. Elas eram inseridas nas atividades desempenhadas pelos adultos. Até aquele século, as crianças eram vistas como integrantes do mundo dos adultos; não havia reconhecimento de sua singularidade e suas necessidades em relação à saúde, educação, lazer e cuidados especiais não eram levadas em consideração.

Com o advento do capitalismo, a criança adquire novo valor e importância; percebe-se que ela é uma riqueza econômica em potencial - o trabalhador do futuro. Devido ao início da escolarização, a criança se separa do mundo do adulto para que ela se prepare para o futuro. A partir daí, surge a necessidade de cuidar mais da criança e de educá-la. Esse fenômeno é chamado de sentimento da infância, pois a família percebe a criança como fraca, inocente e carente; inicia-se uma relação afetiva e constitutiva (AGUIAR, 2015, p. 17).

A visão de infância, na atualidade, não é um fenômeno universal e único. Sofre mudanças e variações no que tange os aspectos históricos e culturais. As crianças têm participação ativa no mundo, possuem seus próprios pontos de vista e agem de forma própria e intencional nos tempos e espaços por meio das relações que estabelecem com seus pares e com os adultos (BORBA e LOPES, 2013). Dessa maneira, é importante sublinhar que, independentemente da perspectiva do adulto, a criança e a sua cultura devem ser estudadas em si mesmas.

Ampliando a compreensão da infância, é necessário caminhar por, pelo menos, três espaços nos quais a criança se relaciona: o familiar, o escolar e o social. Espaços esses que formam uma rede indissociável.

A família é parte integrante da construção do eu (identidade) da criança. O forte vínculo existente entre família e criança aponta para a necessidade mais essencial ao longo do desenvolvimento infantil que é a de ser confirmada pelo outro. Tal necessidade emerge como sendo fundamental para estabelecer a maneira como a criança poderá interagir com o mundo, pois é dentro do contexto familiar e da forte dependência desse âmbito que as introjeções são realizadas, e atender ou não a tal necessidade revelará as características da criança frente ao mundo e ao tipo de funcionamento que terá, a saber: saudável ou não (AGUIAR, 2015).

De acordo com Moysés (2001), no contexto escolar a criança se mostra, se relaciona e constrói redes de relacionamento. O ambiente escolar é um território vivo, de interação e de relações e, consequentemente, intenso e dinâmico, potencializado pela criança e sua bagagem sociocultural.

No espaço social, a criança influencia o meio em que vive e, como ressonância, recebe influências desse meio, estabelecendo relações de troca. Essa interação não se interrompe e a criança, apesar de ser influenciada e modificada a todo instante, também pode influenciar e transformar seu meio. A criança desempenha um papel ativo na sociedade, capaz de transformar o mundo, o outro e também a si mesma (PAPALIA; FELDMAN, 2013).

A ideia de que a criança tem o poder de transformar seu meio não se afina com a perspectiva de criança frágil, imponente e à mercê das forças que parece se encontrar profundamente enraizado em nossa cultura. Porém, se observarmos as crianças desde o nascimento, verificamos que elas sempre exercem seu poder criador e transformador (AGUIAR, 2015, p. 32).

O processo de interação da criança com o meio se dá de forma singular, pois ela "se constrói com base nas relações que estabelece, nas experiências pelas quais passa e nas circunstâncias com as quais precisa lidar, sua configuração final a cada momento é única" (AGUIAR, 2015, p. 32). Considera-se a criança um ser singular (particular), mesmo apresentando aspectos comuns em cada faixa etária, ou seja, apresentando regularidades, aquilo que se espera que ela manifeste em cada novo ciclo de vida. Isto não invalida a possibilidade do atravessamento de elementos dos mais diversos contextos e de transformações fundamentais para o desenvolvimento da singularidade, sua especificidade (FELDMAN; PAPALIA, 2013).

3.2. O retorno ao biologicismo

O sofrimento psíquico deve ser compreendido com uma complexidade de processos subjetivos do ser humano. No entanto, na atualidade, há um entendimento do transtorno de comportamento e de aprendizagem pelo viés biológico, exclusivamente, denunciando uma configuração positivista e conferindo um efeito de verdade científica à concepção de que a única explicação válida para qualquer tipo de desconforto psíquico é a descrição fisicalista, em que a vida psíquica do homem é reduzida à sua estrutura biológica (FERRAZA; ROCHA, 2011).

Segundo o CFP (2012), a medicação psicotrópica tem sido vista pela sociedade como a única ou a principal forma de tratamento para questões ligadas ao não aprender e ao comportamento tido como problemático na infância. Há uma ampliação e extensão do poder médico minando as possibilidades das pessoas de lidarem com os sofrimentos e perdas decorrentes da própria vida, transformando as dores em doenças.

Nesse cenário, a medicalização se instaura e se perpetua. Entende-se medicalização como um processo que transforma questões não médicas em problemas médicos. As problemáticas relacionadas à infância têm sido compreendidas pelos discursos e práticas do saber médico e transformadas em psicopatologia. Os psicofármacos estão sendo tratados como o principal recurso disponibilizado pela psiquiatria na contemporaneidade (BRAGHINI, 2016).

O fenômeno da medicalização envolve toda a sociedade, porém, estudos apontam que esse fenômeno aparece de forma mais evidente a um determinado público: crianças em idade escolar, adolescentes e adultos em privação de liberdade, usuários que necessitam de atenção à saúde mental e pessoas com mais de 60 anos (BRASIL, 2019). Esta revisão se reporta a um recorte no universo da medicalização para este primeiro público: crianças em idade escolar.

A medicalização não é necessariamente um fenômeno recente. Ao contrário disso, desde o século XVIII, com o nascimento dos conglomerados urbanos na França, surgiu a necessidade de práticas higienistas (uma medicina urbana), marcando-se a emergência da medicalização que vem se inserindo progressivamente na sociedade. O objetivo era normalizar socialmente o país por meio da medicalização, para unificação do corpo urbano (FOUCAULT, 2017).

A medicalização origina-se, dentre vários fatores, de uma hegemonia do biologicismo; "(...) um biologismo extremo que não dá qualquer valor à complexidade dos processos subjetivos do ser humano" (CFP, 2012, p. 17). Qualquer comportamento que destoa da normalidade apregoada pela sociedade tende a ser patologizado. E essa psicopatologização da existência "conferiu-se um oportuno efeito de verdade científica à concepção de que a única explicação válida para qualquer tipo de desconforto psíquico é a descrição fisicalista, sob a qual a vida psíquica do homem é reduzida a sua estrutura biológica" (COLLARES; MOYSÉS, 1994, p. 26).

A medicalização da infância pode resultar em várias consequências para a vida da criança em todas as suas dimensões: familiar, escolar e social, podendo afetá-la diretamente até a vida adulta. A medicalização aborta os incômodos, silencia os questionamentos e paralisa os movimentos por mudanças, o que representa a limitação de possibilidades para a construção de um futuro diferente (CFP, 2012).

Moysés (2001) fala que um dos efeitos da medicalização é o apagamento da subjetividade, e o sujeito passa a ser um objeto inerte, menos que um corpo biológico, um corpo sem vida. Assim, o medicamento vem sendo visto e usado como um dispositivo regulador sobre o que a sociedade contemporânea tem delineado como o normal e o patológico.

O propósito deste trabalho não é criticar todo o tratamento medicamentoso, mas discutir o uso abusivo do psicofármaco e a visão limitante e restrita que patologiza o comportamento infantil.

Vale ressaltar que existe um movimento por parte do Ministério da Saúde e de vários conselhos de profissionais da saúde para discutir, refletir e propor ações que visam a informar e conscientizar os diversos segmentos da sociedade sobre os impactos da medicalização infantil. Existem várias práticas para combater a medicalização, práticas de promoção de saúde, de maneira a ofertar o cuidado integral e multidisciplinar para além da prescrição medicamentosa, mas que considere o acesso a outras formas de tratamento. E isso inicia-se necessariamente pela mudança na cultura social. O Ministério da Saúde realiza campanhas de cunho educativo, informativo e regulatório a fim de conscientizar a concepção do uso racional de medicamentos. Entende-se por uso racional de medicamentos a situação em que os pacientes recebem "medicamentos adequados às suas necessidades clínicas, em doses que atendam às suas necessidades individuais, por um período de tempo adequado e ao menor custo para eles e sua comunidade" (BRASIL, 2019, p. 13).

O uso racional de medicamentos está entre os objetivos e diretrizes da Política Nacional de Medicamentos e da Política Nacional de Assistência Farmacêutica. Essa temática vem ganhando expressão ao longo dos últimos anos tanto na agenda nacional, quanto na internacional. Nesse sentido, se reforça a importância da oferta de informação sobre medicamentos que seja independente, sem conflitos de interesse e pautada na imparcialidade como subsídio para a promoção do uso racional de medicamentos em todas as esferas do governo e da sociedade civil (BRASIL, 2019, p. 6).

Outra estratégia importante de combate à medicalização é o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade3 que tem caráter político e de atuação permanente, constituindo-se a partir da qualidade da articulação de seus participantes e suas decisões serão tomadas, preferencialmente, por consenso. É composto por entidades, movimentos e pessoas que têm interesse no tema e afinidade com os objetivos do Fórum. Fundamenta-se nos seguintes princípios: contra os processos de medicalização da vida; defesa das pessoas que vivenciam processos de medicalização; defesa dos direitos humanos; defesa do Estatuto da Criança e Adolescente; direito à educação pública, gratuita, democrática, laica, de qualidade e socialmente referenciada para todos; direito à saúde e defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e seus princípios; respeito à diversidade e à singularidade, em especial, nos processos de aprendizagem; valorização da compreensão do fenômeno medicalização em abordagem interdisciplinar e valorização da participação popular.

3.3. A indústria farmacêutica

Os artigos analisados sustentam que a medicalização responde a um interesse econômico da indústria farmacêutica. Brandt e Carvalho (2012) afirmam que a medicalização torna-se um objeto de consumo rápido e de resultado a curto prazo, um parceiro conectável e desconectável ao alcance das mãos. O remédio, nesses casos, constitui-se um dispositivo de prazer efêmero, fabricado e comercializado em larga escala.

Segundo o CFP (2012 p.5), "... a indústria farmacêutica é a segunda em faturamento no mundo, perdendo apenas para a indústria bélica". Corroborando essa afirmação, o Boletim de Farmacoepidemiologia do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados - SNGPC afirma que para o tratamento farmacológico do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) a medicação mais prescrita tem sido o metilfenidato.

Para Coser (2010), a ação da indústria farmacêutica, por meio das estratégias da publicidade psicofarmacológica, é criar necessidades para o aumento da prescrição do psicofármaco e, consequentemente, o seu uso. A indústria farmacêutica busca atrair o consumidor e convencê-lo, trazendo a mensagem que seus produtos são os mais eficientes e eficazes, potencializando esses efeitos para objetivos que vão além da promoção de saúde. O resultado, focado na visão mercadológica, tem sido o desenvolvimento e o surgimento de um número excedente de psicofármacos no mercado.

Para Galindo et al. (2016), a indústria farmacêutica controla e domina o processo de saúde-doença, o que relaciona a articulação da medicalização com o trabalho das indústrias biotecnológicas e farmacêuticas culmina na criação e na organização de novas patologias, punições e tratamentos.

Existe um raciocínio de custo e benefício na gestão da medicalização, sustentado pela indústria farmacêutica que, por meio de ações de marketing, tem investido no mercado da saúde, defendendo a ideia de que os medicamentos estabilizam sentimentos, humores, pensamentos e ações e, dessa forma, condicionam a conduta da sociedade. As pessoas buscam a solução de problemas pela via medicamentosa e os meios de comunicação fortalecem a ideia de que utilizar medicamento é bom, saudável e necessário. Importante salientar que a indústria farmacêutica tem um investimento alto em marketing (BRASIL, 2019, p. 13).

Dessa forma, a indústria farmacêutica, a fim de impulsionar e movimentar as atividades da bioeconomia, mostra-se com discursos sobre um futuro imune e livre de patologias, pregando a expectativa do aumento da longevidade e a ideologia do bem-estar imediato (FERREIRA, 2015).

3.4. A questão do diagnóstico

Nos artigos selecionados, a questão do diagnóstico aparece de forma crítica em relação à epidemia e à banalização dessa prática. Como exemplo, destaca-se o TDAH, que é considerado o transtorno mais estudado e medicalizado na infância (BRAGHINI, 2016; BRANT e CARVALHO, 2012; FERRAZA e ROCHA, 2011).

Embora muito se fale sobre os supostos transtornos como no caso do TDAH, os modelos diagnósticos apresentados são precários e insatisfatórios, por se basearem em questionário, de caráter opinativo, preenchidos por professores ou respondidos pelos pais, denominado SNAP - IV, quando são voltadas para crianças e adolescentes, cujas questões foram extraídas do Manual de Diagnóstico e Estatística - IV Edição (DSM-IV) da Associação Americana de Psiquiátrica. As questões postas para diagnosticar o TDAH são pontuais, destacam aspectos que ressaltam que determinados comportamentos, como os de organização, são sinônimos de atenção, simplificando os aspectos sociais, históricos e culturais que constituem os comportamentos humanos em seus diversos contextos e situações, e que comparecem de forma distinta em diversas faixas etárias, aspecto não considerado no questionário (CFP, 2012 p. 11).

O diagnóstico psicológico é uma das atribuições do psicólogo na prática clínica, conferidas pelo CFP, inscritas no Código de Ética.

Atua na área específica da saúde, colaborando para a compreensão dos processos intra e interpessoais, utilizando enfoque preventivo ou curativo, isoladamente ou em equipe multiprofissional em instituições formais e informais. Realiza pesquisa, diagnóstico, acompanhamento psicológico e intervenção psicoterápica individual ou em grupo, através de diferentes abordagens teóricas. (...) Realiza avaliação e diagnóstico psicológicos de entrevistas, observação, testes e dinâmica de grupo, com vistas à prevenção e tratamento de problemas psíquicos (CFP, 2008)

De acordo com Trinca (1984), a palavra diagnóstico tem origem grega διαγνωστικός (diagnõstikós), que significa discernimento, faculdade de conhecer, de ver através de. Trata-se do estudo aprofundado da personalidade de um indivíduo ou grupo e é realizado para conhecer determinado fenômeno ou realidade por meio de um conjunto de procedimentos teóricos, técnicos e metodológicos. É um tipo de avaliação psicológica, com propósitos clínicos que envolvem princípios teóricos e técnicos, por meio das técnicas de investigação: entrevista e observações clínicas, testes psicológicos, técnicas projetivas, jogos, desenhos, histórias, o ato de brincar etc. A escolha das estratégias e dos instrumentos a serem utilizados pode ser realizada em coerência com o referencial teórico, o objetivo e a finalidade (TRINCA, 1984).

O diagnóstico psicológico é um processo que configura uma situação com papéis bem definidos entre o psicólogo e o paciente, com uma limitada duração de tempo, para conseguir uma descrição e compreensão acentuada da personalidade do paciente e/ou do grupo familiar. É uma avaliação que abrange tanto os aspectos passados, presentes (diagnóstico) como os futuros (prognósticos) dessa personalidade, podendo auxiliar na identificação prévia dos possíveis transtornos que o paciente apresenta para que, assim, o psicoterapeuta consiga formular hipóteses diagnósticas mais precisas relacionadas às demandas levantadas (CUNHA, 2007).

Os artigos indicam que, na atualidade, existe uma proliferação de diagnósticos; muitos deles têm aprisionado e rotulado a criança, ao invés de libertá-la e ajudá-la, indicando o melhor e mais eficaz tratamento ao caso específico e, assim, contribuir para a melhora da qualidade de vida da criança. Torna-se necessário lançar um olhar mais atento a essa prática, sendo importante uma análise crítica em relação aos diagnósticos realizados com pouco rigor técnico e ético, muitas vezes, por meio de instrumentos não validados cientificamente e que mantêm um caráter mais opinativo e tendencioso como discutido anteriormente. A epidemia de diagnósticos pode promover uma visão mais restrita e limitante do comportamento humano e de sua subjetividade. As lentes de avaliação utilizadas em muitas situações são baseadas em um rígido padrão normativo social (FERREIRA, 2015).

De acordo com Garcia, Borges e Antoneli (2014), a medicalização tem emergido na cultura do imediatismo, que busca resposta e alívio para o sofrer, rapidamente. O consumo de psicofármacos mostra-se desenfreado, uma vez que não se compra apenas produtos e serviços, mas compram-se também modelos de personalidades e de relacionamentos.

A busca pelo retorno da produtividade e do desempenho alimenta o desejo pela solução rápida e prática de problemas de comportamento e cognitivos, desembocando no consumo abusivo do psicofármaco, desconsiderando os riscos desses medicamentos. Tal prática pode trazer prejuízos físicos e psíquicos para a vida da criança (LIMA; VIEIRA, 2014).

Conforme salientado por Garcia, Borges e Antoneli (2014), a infância tem sido capturada pelos diagnósticos de transtornos de aprendizagem e de comportamento. Muitas vezes, essas classificações são realizadas de forma reducionista com ações de cunho político, social, psicológico e educativo para o campo das ações biologizantes e assim, medicalizantes. É em uma concepção limitante da criança que se faz presente a medicalização, pois se torna uma maneira mais rápida de resolução, uma tentativa de simplificar para se obter o controle da situação de forma muito mais fácil do que refletir sobre a questão. Nesse prisma, a criança é percebida apenas como um organismo biológico e não como um ser complexo, um ser biopsicossocial, inserido no coletivo, numa sociedade que influencia a formação da subjetividade.

Collares e Moysés (1994) afirmam que, em muitos casos, o diagnóstico realizado é centrado exclusivamente na criança, chegando, no máximo, até sua família, mas sem muita profundidade. A crítica recai nos profissionais que fazem o diagnóstico, mas não investigam, não buscam conhecer com mais propriedade os demais aspectos da vida da criança e as relações sociais nas quais ela está inserida. Diagnósticos equivocados ou precipitados fomentam a prescrição psicofarmacológica, acarretando prejuízos à saúde mental da criança.

A proposta deste trabalho não é criticar a prática do diagnóstico, até porque é fundamental diagnosticar a partir de uma análise detalhada do que o sujeito diz, de suas produções e de sua história, abordando a pessoa de forma contextualizada e abarcando os aspectos biopsicossociais. Diagnosticar vai além de simplesmente rotular; envolve um processo que se constrói ao longo do tempo e que pode ter variações, porque todos os indivíduos passam por transformações, em se tratando principalmente de crianças e adolescentes (CFP, 2012, p.18).

É central levar em conta as vicissitudes da constituição subjetiva e a trajetória complexa que supõe a infância e a adolescência, bem como o papel do contexto. Assim sendo, existem estruturações e reestruturações sucessivas que vão determinando um percurso em que se sucedem mudanças, progressões e retrocessos. As aquisições vão se dando em um tempo que não é estritamente cronológico. É por isso que os diagnósticos apresentados como rótulos podem ser claramente nocivos para o desenvolvimento psíquico de uma criança, fazendo com que esta tenha um "transtorno" para a vida toda (CFP, 2012 p. 18).

3.5. A medicalização no contexto escolar

Quando a família da criança e a escola estão frente a uma situação vista como problemática, buscam uma nomeação e classificação do comportamento desviante, a fim de ter uma resposta para saber o que é e como lidar com tal criança/situação. Muitos pais e professores, ao perceberem em seus filhos e alunos comportamentos indesejados por eles ou diferentes do esperado, como timidez ou agitação, desatenção, dificuldades para aprender, desinteresse pelos estudos ou dificuldade no relacionamento interpessoal, recorrem à medicina em busca de uma cura imediata e assim encontram na medicação uma solução que proporciona o resultado desejado (COLLARES; MOYSÉS, 2013).

Em muitas situações, é no território escolar que certos comportamentos da criança e o seu desempenho escolar são enxergados como problemáticos. É na escola que a criança é observada e, muitas vezes, identificada como uma criança atípica. O professor informa aos responsáveis pela criança que ela se mostra diferente do esperado, e que é necessária uma ajuda médica (MOYSÉS, 2001).

Essa prática acalma a angústia dos professores, não só por transferir responsabilidades, mas principalmente porque desloca o eixo de preocupações do coletivo para o particular. O que deveria ser objeto de reflexão e mudança - o processo pedagógico - fica mascarado, ocultado pelo diagnosticar e tratar singularizados, uma vez que o "mal" está sempre localizado no aluno. E o fim do processo é a culpabilização da vítima e a persistência de um sistema educacional perverso, com alta eficiência ideológica (COLLARES; MOYSÉS, 1994, p.30).

Estas autoras salientam que a educação vem sendo invadida pelo efeito da medicalização em uma grande escala, enfatizando o fracasso escolar como elemento essencial desse processo. A aprendizagem e a não aprendizagem têm sido compreendidas somente no aspecto individual, ou seja, como se fossem inerentes ao aluno, ou um elemento característico e localizado em seu cérebro e que o professor não tem acesso e, por isso, sobre ele não tem responsabilidade.

A psicopatologização da infância tem atravessado os espaços escolares. O território escolar foi uma variável constante nos artigos pesquisados. Nesses artigos, a escola se apresenta como reforçadora das doenças do não aprender e é apontada como uma das maiores encaminhadoras de crianças para avaliação médica/psicológica nos serviços de saúde. Ao reforçar as doenças, muitas vezes excluem os alunos, utilizando um discurso maquiado de inclusão (BRAGHINI, 2016).

Muitas vezes, a escola tem criado instâncias de diagnóstico e de avaliação de alunos que apresentam dificuldades no processo de escolarização ou que têm problemas de comportamento, desconsiderando outros elementos que podem estar incidindo sobre a vida da criança como, por exemplo, o próprio sistema educacional. Medicalizar o fracasso escolar é limitar a questão a uma esfera médica (SANCHES; AMARANTE, 2014.

Grande parte das experiências cotidianas de comportamento de crianças no contexto educacional é traduzida como prováveis transtornos psiquiátricos. Giusti (2016) afirma que, na escola, a disciplina é vista como um dispositivo de poder e a medicalização é uma forma de disciplinar a criança que se destoa do ser normal, tornando um instrumento disciplinador. Ferreira (2015) e Sanches e Amarante (2014) enfatizam que a medicalização de crianças é o resultado de uma relação de poder, seja da escola ou dos profissionais de saúde.

Então, torna-se de fundamental importância uma revisão do sistema educacional, a fim de proporcionar uma melhoria da qualidade da Escola, deslocando o foco da atenção para a patologia, o que a criança não consegue aprender e as suas limitações, e ampliando o olhar para o sujeito, enxergando-o dentro de suas potencialidades. É necessário observar atentamente essa questão e não somente a patologia. Dessa forma, busca-se alcançar uma atuação entre escola, sociedade e família (CFP, 2012).

 

Considerações Finais

A medicalização da infância acarreta prejuízo para a vida da criança, que carrega o estigma de doente e apaga a sua singularidade e seu modo de ser e de pertencer à vida. A medicalização da infância tende a colocar a criança em uma posição passiva e em uma condição estática e determinante, representando um estreitamento de suas possibilidades e potencialidades.

Por se tratar de uma temática complexa, dinâmica e contemporânea que envolve a sociedade em suas múltiplas facetas, o estudo da medicalização de crianças e a manifestação desse fenômeno no contexto escolar deve ser mais aprofundado e discutido nas pesquisas científicas. Há que se considerar a necessidade de implementação de mais políticas públicas e o fortalecimento das existentes, possibilitando a promoção e a proteção da saúde mental das crianças, além do estabelecimento de uma conexão dialógica entre os profissionais de saúde, educação e família para melhor comunicação e compreensão do infantil. É preciso buscar ampliar a visão sobre o processo saúde/doença e o desenvolvimento de uma clínica ampliada, favorecendo um olhar para além da doença e respeitando e valorizando a subjetividade da criança.

Pesquisas e discussões dessa temática possibilitarão a compreensão do fenômeno da medicalização em crianças e os possíveis impactos no processo de ensino-aprendizagem, bem como a possível interferência na dinâmica familiar da criança, alimentando o estigma e rótulo dos alunos laudados, que podem se posicionar, muitas vezes, como passivos diante de um diagnóstico, talvez realizado de forma superficial e limitada.

É fundamental pesquisar o fenômeno da medicalização, dando voz à criança que assim faz o uso do psicofármaco, pois assim poderá conhecer como tem afetado a sua vida e os reflexos que podem ter em seus mais diversos contextos sociais.

Acredita-se na necessidade de democratizar o debate a respeito da medicalização da infância e ampliá-lo para os vários segmentos da sociedade e para o contexto educacional, incentivando a escola a promover a inclusão e ser, de fato, um espaço acolhedor e de respeito a todos os alunos.

Por fim, esta pesquisa poderá fomentar discussões que auxiliarão no debate de políticas públicas. Poderá, ainda, subsidiar as reflexões sobre as novas concepções de ser humano e de sociedade, com o propósito de incentivar ações de acolhimento, fortalecimento das famílias e desmitificar os benefícios da medicalização.

 

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1 Os psicofármacos são agentes químicos que atuam sobre o sistema nervoso central e estão em condições de alterar diversos processos mentais, gerando alterações na conduta, na percepção e na consciência (CORDIOLI, 2015).
2 Substância química utilizada como fármaco, estimulante leve do sistema nervoso central, com mecanismo de ação ainda não bem elucidado, estruturalmente relacionado com as anfetaminas (CORDIOLI, 2015).
3 O caráter do Fórum é político e de atuação permanente, constituindo-se a partir da qualidade da articulação de seus participantes e suas decisões serão tomadas, preferencialmente por consenso. É composto por entidades, movimentos e pessoas que tenham interesse no tema e afinidade com os objetivos do Fórum. Fonte: MANIFESTO do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. São Paulo, 2010. Disponível em: http://medicalizacao.org.br/manifesto-doforum-sobre-medicalizacao-da-educacao-e-da-sociedade/. Acesso em: 24 out. 2019.

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