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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.13 no.24 Barbacena jul./dez. 2021

 

ARTIGOS

 

O grupo do jornal no CAPS: uma visão prática das tecnologias de cuidado em saúde mental

 

The journal group at CAPS: a practical approach to mental health care technologies

 

El grupo del periódico en el CAPS: una visión práctica de las tecnologías de cuidado en salud mental

 

 

Guilherme Machado PaimI; Stephanie Zunino N. GuinsburgII; Miguel Ângelo Farias de LimaIII; Juliana Unis CastanIV

IGraduando do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estagiário do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
IIGraduanda do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Estagiária do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
IIITécnico de Enfermagem do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
IVMestre em Rehabilitation and Personel Services pela University of Maryland, EUA. Psicóloga do Hospital de Clínicas de Porto Alegre

 

 


RESUMO

Os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) são unidades de atendimento em saúde mental, compostas por equipe de trabalho multidisciplinar, que operam com a finalidade da reabilitação psicossocial dos seus usuários. As tecnologias leves de cuidado, proposta enfatizada pela Política Nacional de Humanização, referem-se ao potencial terapêutico das relações interpessoais e da comunicação. O presente trabalho traduz a experiência de uma oficina com um grupo de usuários de um CAPS pelo período de aproximadamente um ano. Através do relato de vivências profissionais, descrevendo desafios, conhecimentos e dificuldades, busca-se analisar como esta oficina articula-se com os dispositivos de relação como acolhimento, vínculo, corresponsabilização e autonomia, suas relações um com o outro, assim como os efeitos que produzem para os trabalhadores e usuários na relação de cuidado. Para além da uma inclusão única, busca-se a ampliação no modo de lidar com a saúde mental, permitindo múltiplas inclusões dos sujeitos que apontam outros modos de ser e conviver com a doença mental.

Palavras-chave: Saúde Mental; Cuidado em Saúde; Tecnologias de Cuidado; Acolhimento.


ABSTRACT

Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), brazilian Psychosocial Healthcare Centers, are mental health facilities for individuals with severe mental illnesses. It aims at psychosocial rehabilitation and it counts with a multidisciplinary team. The National Policy on Humanization (Política Nacional de Humanização) emphasizes the soft technology of care, which refers to the therapeutic component of relationships and communication. This study describes the experience of a therapeutic and working group carried out at CAPS for about a year. It considers hardships, challenges and knowledge of the professionals, aiming at articulate to the practice with theoretical concepts of soft technologies of care, such as bonding, co-responsibility and autonomy, its relations and impact on professionals and patients/clients. More than the inclusion of people with mental illness in society, the goal are changes in society in order to learn how to deal and include individuals with different ways of being and perceiving the world.

Keywords: Mental Health; Health Care; Technology of Care; User Embracement.


RESUMEN

Los Centros de Atención Psicosocial (CAPS) son unidades de atención en salud mental, compuestas por equipos de trabajo multidisciplinario, que operan con la finalidad de rehabilitación psicosocial de sus usuarios. Las tecnologías leves de cuidado, propuesta enfatizada por la Política Nacional de Humanización, se refieren al potencial terapéutico de las relaciones interpersonales y de la comunicación. El presente trabajo traduce la experiencia de un taller con un grupo de usuarios de un CAPS por el período de aproximadamente un año. A través del relato de vivencias profesionales, describiendo desafíos, conocimientos y dificultades, se analiza cómo este taller se articula con los dispositivos de relación como acogida, vínculo, corresponsabilización y autonomía, relaciones interpersonales, así como los efectos que producen para los trabajadores y los usuarios en la relación de cuidado. Más que la inclusión, se busca la ampliación para trabajar con la salud mental, permitiendo múltiples inclusiones de los sujetos que apuntan otros modos de ser y convivir con la enfermedad mental.

Palabras-clave: Salud Mental; Cuidado en Salud; Tecnologías de Cuidado; Acogimiento.


 

 

INTRODUÇÃO

As pessoas com transtornos mentais, na condição de usuárias dos serviços de saúde, têm vivenciado novas formas de atenção pautadas nas premissas de defesa da vida, na sua percepção de cidadãos pertencentes à comunidade e nas diferentes produções de sentidos de ser e estar no mundo que se apresentam nos tempos atuais (FERREIRA et al., 2017). Entretanto, tal movimento de transformação não cessa e coloca aos profissionais de saúde o desafio de ressignificar os processos de cuidado, criando maiores e mais efetivas modificações no contexto das pessoas com transtornos mentais, familiares e trabalhadores da área (SALLES e BARROS, 2013).

Em um país com profundas desigualdades sociais e econômicas como o Brasil, a ampliação e a acessibilidade aos serviços de saúde ainda está longe de alcançar o esperado. Enquanto, por um lado, os avanços animam, por outro surgem demandas que pedem novas respostas, impasses que persistem e até mesmo ameaças ao que foi construído em lutas históricas no campo da saúde. As mudanças ocorridas no modelo de atenção à saúde mental, pautadas nos princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira, têm como pontos fundamentais a ampliação e qualificação do cuidado prestado às pessoas com transtornos mentais e a constituição de uma rede de assistência ao processo hospitalar (MINOZZO et al., 2012). O cuidado cada vez mais tem se complexificado, levando em conta as diferentes formações de vida dos sujeitos e suas múltiplas conexões com o seu território, o que produz o desafio da formação de novas redes de cuidado em saúde mental em acordo com o modo de atenção psicossocial.

Em nosso país, a Rede de Atenção Psicossocial à saúde mental (RAPS) é composta por ações e serviços, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), residências terapêuticas, ambulatórios, leitos de saúde mental em hospital geral, cooperativas de trabalho, entre outros. Na efetivação da Lei nº 10.216/2001, os CAPS tornaram-se um serviço essencial para o cumprimento desse modelo de assistência (BRASIL, 2004). Constituem-se enquanto unidades de atendimento em saúde mental, compostas por uma equipe de trabalho multidisciplinar, operando com a finalidade da reabilitação psicossocial dos seus usuários. Têm como sua função primordial a articulação entre os processos de atenção à saúde e as demandas da comunidade, buscando o entendimento do contexto de vida dos seus usuários e tendo como base a garantia da qualidade e do cuidado de forma integral no atendimento prestado.

Para tal, os CAPS realizam diferentes modalidades de atendimento com foco na autonomia dos usuários e no envolvimento da família no cuidado em saúde. Nos CAPS, as atividades ocorrem majoritariamente em grupo, tendo em vista que essa modalidade de cuidado proporciona um momento de troca entre os usuários, oferecendo o compartilhamento de ideias e questões de vida, através do fortalecimento do vínculo com as pessoas e com a instituição. Além disso, o atendimento grupal alinha-se às tendências mundiais da Reforma Psiquiátrica, primordialmente pelo nível de autonomia e segurança dada aos sujeitos. Deve ser levado em conta também que essa modalidade de trabalho encontra-se dentro da realidade dos serviços de saúde no país, nos quais muitas vezes a demanda excede a capacidade dos profissionais de realizar um acompanhamento individual com todos os usuários em tratamento. Sendo assim, o enquadre grupal configura-se como uma ferramenta para uma melhor tomada de ação no cuidado.

Na literatura, são encontrados diferentes modelos e teorias que embasam o trabalho com grupos a partir de diferentes olhares e objetivos. Autores como Wilfred Bion e Enrique Pichon-Rivière, no contexto da psicanálise, e Irvin D. Yalom, no campo da psiquiatria, ofereceram importantes contribuições para o desenvolvimento dessa prática, propondo a realização de metodologias de trabalho estruturadas como forma de manejar os grupos. Nossa experiência de trabalho - que aqui vai demonstrada - parte fundamentalmente da concepção de grupo operativo à luz da teoria de Pichon-Rivière.

De acordo com Pichon-Rivière (2009), a técnica de grupos operativos tem como base a promoção do processo de aprendizagem para os sujeitos envolvidos, pautando que estes tenham uma leitura crítica da realidade e estejam abertos para as inquietações que surgem no processo grupal. Desse modo, o grupo seria um instrumento de transformação a partir das relações que nele vão se estabelecendo, especialmente as que estão voltadas para a resolução de uma tarefa. Para Bastos (2010), a tarefa tem relação com o modo como cada integrante entende e se envolve com o grupo a partir de suas próprias necessidades, trabalhando no alcance de objetivos comuns. Embora a tarefa seja uma condição de existência do grupo operativo, ir além dela, envolvendo a comunicação, a problematização e a elaboração de questões de vida de cada integrante é o caminho para que essa técnica produza sujeitos protagonistas do seu processo de produção de saúde. Pereira (2013) acredita que o grupo operativo, enquanto técnica de intervenção, alinha-se com os atuais paradigmas em saúde e educação, pois coloca o sujeito no centro do seu processo de aprendizagem, ativo e protagonista na construção do conhecimento e de sentidos para as suas experiências.

Cabe destacar que, em nossa experiência, tomamos o referencial teórico-técnico de grupo operativo para pensar um espaço que envolve a elaboração de uma tarefa específica, bem como a vinculação dos membros do grupo. Operamos por base com a finalidade de aprendizagem da técnica pichoniana, adequada ao contexto do grupo no qual trabalhamos e suas demandas, o que nem sempre significa que ficamos retidos aos preceitos teóricos que regem essa abordagem. De modo geral, acreditamos que os grupos caracterizam-se por ser um espaço de escuta, onde a indagação, pontuação, problematização e espaço de fala dão a oportunidade para que seus membros pensem e elaborem suas próprias questões. Entendemos também que a técnica de grupos operativos subsidia os profissionais para pensar a promoção de saúde, possibilitando um trabalho com seus integrantes e suas respectivas dificuldades e conflitos, pressupondo um espaço em que figurem o pensar, o sentir e o agir.

Em conjunção ao enquadre grupal, trabalhamos aqui com o redimensionamento do conceito de humanização em saúde de acordo com a Política Nacional de Humanização (2008), partindo da valorização dos sujeitos envolvidos no processo de construção e produção de saúde. Nos encontros dos trabalhadores da saúde e usuários, colocam-se em jogo processos de afetamento mútuo, nos quais estão presentes as crenças, os valores, os saberes e as emoções de cada um. As relações que ali se produzem são intrínsecas às potencialidades dessas subjetividades: modos de sentir e vivenciar a sua realidade e compreender a do outro.

Com o objetivo de promoção do cuidado pautado na dignidade do ser humano, esse convívio não escapa ao surgimento das singularidades de cada sujeito. Por não haver um padrão estabelecido de relação para todos os seres humanos, abre-se espaço para as igualdades e diferenças, práticas integrativas que são, por vezes, produtoras de angústia e relações de poder de toda ordem. Para que o profissional de saúde realize um trabalho digno em sua essência - com respeito e eficiência diante das questões dos usuários - é crucial que se desenvolvam estratégias de valorização das relações de cuidado sujeito-sujeito. Daí advém a conversa e a escuta comprometidas eticamente, o compartilhar de ideias e situações, o afeto e o desejo expressos através de múltiplos sentimentos, comportamentos e atitudes.

A partir da condição de cuidado relacionada a recursos humanos cunhou-se, no campo da saúde, a noção de tecnologias de cuidado ou de relação. Nesse cenário, entende-se por tecnologia um conjunto de conhecimentos sistematizados e aplicados pelo profissional no seu trabalho, estando estes permeados pela reflexão e análise da sua experiência profissional e humana, visando à construção de procedimentos de intervenção nos processos de saúde e doença (MERHY, 1997). Desse modo, a tecnologia não está limitada ao equipamento ou ao moderno e novo, mas à discussão da eficácia de determinados saberes e práticas, operando como tecnologias de relações e de encontros para além dos saberes tecnológicos estruturados.

De acordo com Merhy (2002), as tecnologias envolvidas no trabalho em saúde podem ser classificadas como: leves, que se referem às relações interpessoais e de comunicação, como o acolhimento e a produção de vínculos; leve-duras, os saberes estruturados do trabalho em saúde, como a clínica médica e a epidemiologia e duras, em referência aos equipamentos tecnológicos, normas e estruturas organizacionais. Na dinâmica do trabalho em saúde, busca-se como ideal a inter-relação entre essas diferentes categorias tecnológicas. Contudo, muitas vezes observamos uma prevalência da lógica do trabalho estruturado que tem como base os equipamentos e saberes fixos, importantes, mas que deixam pouca margem para a construção do cuidado aberto à presença de um trabalho vivo, existente a partir do relacionamento entre os sujeitos nos espaços de saúde. Em especial aqui, abordamos as tecnologias leves inseridas nas relações de produção de vínculo, acolhimento, corresponsabilização e autonomia, direcionadas às estratégias de atendimento e resolução das reais necessidades de saúde dos usuários.

O presente escrito traduz uma experiência de trabalho com um grupo de usuários de um CAPS II pelo período de aproximadamente um ano. Objetivamos relatar nossas vivências profissionais, descrevendo desafios, conhecimentos e dificuldades que surgiram nesse espaço. Desta forma, pretendemos apresentar nosso modelo de trabalho para fomentar e incentivar novas e inovadoras intervenções na promoção do cuidado em saúde mental e reabilitação psicossocial. Destacamos aqui algumas das experiências que consideramos mais marcantes no trabalho desenvolvido, por meio da realização de um relato livre, buscando suas articulações com a literatura de cuidado à saúde e outras práticas e intervenções encontradas no que se refere ao trabalho com grupos em Centros de Atenção Psicossocial. Não utilizamos categorias de análise para a estruturação e sistematização desta experiência relatada, deixando com que as vivências e reflexões acerca do trabalho realizado norteassem nossa narrativa.

 

1. Método

Buscamos descrever e discutir aqui as experiências de trabalho no Grupo do Jornal, uma oficina multiprofissional realizada em um CAPS II, localizado na região sul do Brasil. O CAPS está classificado como de tipo II pois, de acordo com a Portaria 336/GM de 2002, do Ministério da Saúde, apresenta uma abrangência de território que atende de 70.000 a 200.000 habitantes (BRASIL, 2004). Presta atendimento a adultos com transtornos mentais severos e persistentes, encaminhados pela rede de saúde. Funciona no período diurno, estando associado a um hospital de alta complexidade que oferece suporte e subsídio às atividades e ao funcionamento geral do local. A equipe de trabalho é constituída por profissionais graduados e em formação de diferentes áreas, tais como Serviço Social, Educação Física, Enfermagem, Medicina, Pedagogia, Psicologia e Terapia Ocupacional. Como preconizado pelas Portarias 224/92, de 2001, e 336/GM, de 2002 (BRASIL, 2004), a assistência prestada aos usuários no CAPS se dá por meio de atendimentos individuais e grupais.

O Grupo do Jornal é uma atividade que ocorre semanalmente, com duração de duas horas, que tem por finalidade produzir o jornal do CAPS. Participam do grupo em média 18 usuários, entre 20 e 60 anos, de ambos os sexos, que apresentam como principais transtornos o Transtorno Afetivo Bipolar e as esquizofrenias. Os usuários que participam desta atividade são indicados a partir de reuniões da equipe geral do CAPS, considerando capacidades mínimas de atenção e concentração e interesse por escrever, pesquisar e discutir temas gerais. A consideração desses critérios se faz importante em virtude da dinâmica das atividades propostas no grupo. Destaca-se que a indicação de participação no grupo não avalia o grau de instrução escolar ou a capacidade intelectual dos usuários, mas sim a sua possibilidade de inserção no grupo e aproveitamento das atividades, estando estas em associação ao seu plano terapêutico. Participam do grupo, na posição de facilitadores, a psicóloga contratada do serviço, dois acadêmicos de Psicologia e um técnico de Enfermagem. O objetivo dessa atividade coaduna-se com os propósitos gerais do próprio CAPS que são: incentivar a autonomia, o protagonismo e a corresponsabilidade dos usuários por meio de um ambiente que estimule os processos de fortalecimento de vínculos e a elucidação de outros modos de se fazer sujeito para além da doença mental.

A edição do jornal é bimestral. O modelo final de apresentação do jornal é constituído por seis páginas que comportam diferentes seções, tais como: Poemas, Gastronomia, Cinema, Entrevista, Notícias, entre outras. As seções possuem estruturas diferentes, que exigem capacidades e habilidades diversas. Como exemplo, o trabalho na seção de Poemas estimula a criatividade relacionada a questões estéticas e artísticas dos usuários, enquanto a seção de Cinema estimula a atenção e a capacidade de compreensão das mensagens dos filmes pela construção de uma resenha crítica sobre os mesmos. As seções não apresentam estruturas definitivas, podendo mudar de uma edição para outra. Tal fato estimula a criação de edições diversificadas, pautadas pela inovação dos conteúdos do jornal e pelos interesses e ideias dos usuários. Apesar disso, é pouco frequente a mudança das seções, o que produz uma identidade ao periódico sem que ele se constitua em algo fechado e esvaziado de oportunidades de criação.

De forma geral, a estruturação da oficina se dá através de três momentos: um primeiro momento coletivo, um segundo desenvolvido em pequenos grupos e um terceiro em que se retorna à organização inicial. O primeiro momento tem por objetivo a organização das equipes e do trabalho a ser realizado. Para isso, é retomado o que já foi desenvolvido até então e o que ainda precisa ser feito para aquela edição que está sendo desenvolvida. Isto auxilia na capacidade de organização e planejamento dos usuários, visto que todos mantêm uma visão do processo a ser realizado para a produção da presente edição. Além disso, essa etapa também serve como um espaço inicial de discussão para qualquer questão que os usuários desejem abordar relacionadas à construção do periódico ou mesmo a alguma situação de vida que os incite a falar. O segundo momento, no qual os usuários são divididos em dois ou três grupos, tem por finalidade o trabalho específico nas seções do jornal. Estes pequenos grupos são chamados de equipes pelo seu caráter de equipes de trabalho. Os usuários são divididos de acordo com o número de participantes presentes e do interesse destes nas diferentes seções trabalhadas no dia. Cada equipe possui um profissional facilitador que auxilia na realização das atividades, tanto no que se refere aos aspectos operacionais, quanto na promoção de comunicação de experiências e relações dos usuários. Ao final, o grupo geral é reunido novamente para compartilhar o que foi trabalhado no dia, visando à troca de experiências e ao estabelecimento de um consenso quanto ao que irá constar da edição do jornal.

Em algumas ocasiões, em virtude das dinâmicas de trabalho do dia, ocorrem exceções a essa organização. Como exemplo, no primeiro encontro de uma nova edição realizamos uma votação com o grupo para escolher o filme que iríamos assistir e a música que seria objeto de uma paródia. Em ocasiões assim, os usuários permanecem no grande grupo durante todo o encontro. Eles sugerem suas preferências, que por sua vez são elencadas e escritas em um quadro para que todos possam visualizá-las. Após, os facilitadores projetam os trailers dos filmes e reproduzem trechos das músicas selecionadas para que todos os usuários possam conhecer e votar. A exibição do filme escolhido ocorre em um único encontro para todos os usuários. A paródia da música, por sua vez, é trabalhada alternando dinâmicas gerais e em grupos, visando à elaboração da letra, sendo esta divisão realizada para que cada grupo trabalhe em uma estrofe da composição que, no fim, é unida e organizada de modo coletivo. O momento coletivo também é realizado quando se escuta e se canta a música, buscando conhecer seu ritmo e melodia.

Com o término do trabalho nas seções, o material editado passa pela revisão de todo o grupo, momento no qual são realizados os ajustes finais para a conclusão da edição. Após isso, o jornal é enviado à gráfica do hospital para sua impressão. Os custos da impressão são assumidos pelo hospital. São impressos 100 exemplares, que são distribuídos entre os usuários, sendo eles estimulados a distribuírem os jornais em suas comunidades e famílias.

 

2. Resultados e Discussão

No horizonte da importância dos vínculos e dos processos de tecnologias de relações no cuidado em saúde, destacamos, nesse exercício, as tecnologias leves, entendendo que estas são primordiais para a produção do cuidado articulado com a integralidade e a humanização da assistência à saúde. Conforme aponta Jorge et al. (2011), tais tecnologias podem configurar-se através de dispositivos de relação como o acolhimento, o vínculo, a corresponsabilização e a autonomia, diretamente implicados um no outro. Partimos então desses quatros dispositivos relacionais na análise de como eles se constroem e aparecem no Grupo do Jornal, bem como que efeitos produzem para os trabalhadores e usuários na relação de cuidado.

Iniciamos pelo acolhimento, partindo do entendimento da importância desse dispositivo na sua inter-relação ao transversalizar todo o processo terapêutico, desde a entrada do usuário no serviço. No âmbito da Política Nacional de Humanização, o acolhimento é entendido enquanto um processo componente das práticas de produção e promoção de saúde, implicando na responsabilização do trabalhador/equipe pelo usuário, desde sua chegada ao serviço até a sua saída (BRASIL, 2010). Para a consecução disso, o movimento de consideração das preocupações e angústias dos usuários por intermédio de uma escuta qualificada é necessário, visando em especial à análise da demanda em questão e à garantia da atenção integral, resolutiva e responsável. O acolhimento é, então, estabelecido por um tratamento pautado no respeito e no diálogo, objetivando também o estabelecimento de um elo de confiança entre trabalhadores de saúde, usuários e família (JORGE et al., 2011). Como visto, o acolhimento representa a interação entre trabalhador de saúde e usuário e não se configura como um atendimento específico, mas como uma postura ativa que deve estar presente durante todo processo do cuidado.

No Grupo do Jornal, o acolhimento é compreendido através de ações que possibilitam a convivência, a mediação de diálogos e as trocas sociais. Entendemos que um primeiro movimento de acolhimento na atividade se dá na quebra das concepções de ação ou diferenciação pela lógica do cuidador/cuidado. Não fica explícito que os membros da equipe são autoridades às quais os usuários tenham que obedecer, mas que no grupo todos os seus membros estão preparados para assumir a organização da tarefa e o protagonismo. Para tal, buscamos desde o início da edição do jornal escutar os usuários, ouvir suas sugestões e desejos, tanto em relação à estrutura do jornal quanto ao seu conteúdo. Comumente, as sugestões são destacadas no primeiro momento coletivo e o próprio grupo pensa o acréscimo de tais propostas além de sua viabilidade. A importância desse momento se faz, pois, no processo de adoecer. É frequente que os usuários deixem de lado ou desacreditem em seus potenciais, sobretudo o de protagonizar sua própria vida, atribuindo aos outros, permanentemente, os mais básicos cuidados, dando espaço à diminuição da sua capacidade de agir.

O acolhimento é trabalhado quando conseguimos estimular o protagonismo e a responsabilidade em prol do objetivo de alcançar a melhora da saúde mental, mostrando às pessoas que há nelas capacidades de organização e execução de trabalhos. A utilização do computador é elucidativa nesse ponto, tendo em vista que esta é uma ferramenta importante no processo de trabalho, onde armazenamos o modelo do jornal e também no qual registramos o que vamos trabalhando ao longo das semanas. Sendo assim, a digitação é um passo importante de nossa metodologia de trabalho, despertando ao mesmo tempo interesse e receio por parte dos usuários. Interesse na medida em que o uso do computador é um fenômeno relativamente recente, não acessível a toda a parcela da população, mas de igual modo um eletroeletrônico que todos já viram e ouviram falar. Receia ao passo que demanda, como pré-condição de uso, o conhecimento dos seus diversos componentes, provocando nos usuários o desafio de lidar com algo novo e aprender a utilizar objetos diferentes. Também há entusiasmo por parte dos usuários que já realizaram cursos de informática ou que utilizam o computador com frequência e gostam de digitar e demonstrar uma habilidade aprendida.

Nesse jogo de desejo e medo, buscamos oferecer àqueles usuários que demonstram maior resistência, a compreensão do erro enquanto componente do processo e da possibilidade de poderem se experimentar, além de incentivar aqueles que já possuem conhecimento da técnica treinarem cada vez mais. O retorno positivo por parte dos usuários que se permitem digitar se dá pelo desejo de realizar novamente a ação nas semanas seguintes, muitas vezes optando por atividades que tenham a digitação como condição. Contudo, não fazemos com que o uso do computador seja uma diretriz para todos, respeitando o desejo de cada um e sabendo que, por vezes, a resistência do usuário não conseguirá ser ultrapassada naquele momento ou mesmo de que esta não é uma atividade que lhe desperta interesse.

É condição também primordial de um processo de acolhimento o entendimento de que os serviços lidam com pessoas e não mais com doenças (AMARANTE, 2007). A importância desta concepção permeia o trabalho tanto na relação dos profissionais da equipe com os usuários quanto na interação usuário-usuário. Por parte da equipe, existem a disponibilidade e a flexibilidade, atentas às necessidades apresentadas pelos usuários, sendo sensíveis aos desafios que emergem ao longo do processo. Partir dessa noção - sob o viés do acolhimento - é entender as dificuldades e entraves no tratamento do usuário enquanto inseridas dentro de um contexto de vida, considerando ainda sua história de vida, vontades, preferências e temores. Nesse sentido, as trocas culturais que ocorrem no grupo, especialmente através das escolhas de música, filme, receita, entre outras, representam a possibilidade de entrar em contato com o mundo do outro e perceber esse mesmo horizonte pelo olhar da diferença.

O exercício do papel de facilitador também diz respeito a, por vezes, intervir de forma diretiva na atividade, estimulando a experimentação de situações novas para os usuários que costumam manter uma postura passiva frente à elucidação de suas preferências ou que situam sempre suas escolhas nas mesmas opções. A escolha do filme é um momento que exemplifica essas situações, pois muitas vezes os usuários escolhem produções antigas, conhecidas por todos e que possuem um valor emocional para eles; ou filmes de ação e aventura, deixando de lado opções que envolvem filmes atuais que trazem interessantes mensagens de reflexão diferenciadas por destacarem temáticas de maior discussão na contemporaneidade presentes em suas vidas e que produzem sofrimento, como o preconceito e a discriminação. Desse modo, a equipe de profissionais visa a um equilíbrio, fazendo com que em um mês o grupo trabalhe a partir de um filme de ação, como As Crônicas de Nárnia e, em outro momento, com uma produção que permita o reconhecimento dos usuários na história, como na exibição do filme Extraordinário. Mesmo entendendo que os dois filmes possuem mensagens em potencial, acreditamos que o segundo relaciona aspectos mais presentes na vida dos usuários, como estigmas sociais, diferenciação e exclusão.

No que diz respeito à interação usuário-usuário, observa-se a postura de acolhimento através do cuidado de uns para com outros, assim como no respeito aos posicionamentos e preferências quando estas são declaradas. Cabe destacar que trabalhamos com um grupo heterogêneo, que tem como base o trabalho com diferentes sujeitos e visões de mundo. Neste ponto, a participação crescente dos usuários nos encontros também é considerada um registro de aproveitamento da atividade, do estabelecimento de relações e vínculos. O momento de entrada de novos integrantes no grupo é elucidativo nesse sentido pois, na relação de usuários novos e antigos, observamos a forma receptiva com que aqueles são recebidos e como os usuários já membros do grupo se apresentam e explicam o que é o Grupo do Jornal, sua organização e produção de conteúdos. No processo de trabalho também é possível observar movimentos dessa ordem, como quando acontece o surgimento de uma situação difícil e ela produz o auxílio ao usuário que demonstra alguma dificuldade. Através disto, podemos ver o crescente respeito pela diferença e a capacidade de reconhecimento no outro.

Destacamos ainda o acolhimento que ocorre entre os membros da equipe, que conseguem buscar apoio e continência um no outro. Este aspecto aparece quando, por exemplo, um profissional tem dificuldades no manejo com o grupo ou com algum usuário em específico, e consegue, na supervisão e nos momentos em que a equipe se reúne, expressar e trabalhar seus sentimentos, buscando compreender e produzir outros modos de trabalho. Esta postura entre os colegas proporciona um ambiente de aceitação e escuta, propício para o desenvolvimento das próprias tecnologias leves de cuidado, gerando o crescimento pessoal e profissional. Acreditamos que situações no próprio grupo, em que um membro da equipe tem dúvidas e recorre a outro para ajudá-lo são significativas também para os usuários, pois desmistificam a visão que alguns possam ter do profissional enquanto detentor de todo o conhecimento. Neste sentido, o estabelecimento de confiança no profissional é diferente de dotá-lo de um saber inacessível e grandioso, que pode provocar nos próprios usuários sentimentos de incapacidade, dependência e menos valia. Em nosso entender, a compreensão de que somos iguais enquanto humanos, mas diferentes em nossas posições e funções dentro do grupo, é uma condição do cuidado humanizado.

Tão importante quanto à relação de acolhimento é a constituição do vínculo em nossa experiência. Podemos entender o vínculo enquanto uma produção afetiva que tem um sentido estabelecido através do encontro entre trabalhadores de saúde e usuários do serviço, em que o ser sujeito de cada um compõe intenções, necessidades e sentimentos dentro de uma relação ética e de respeitabilidade com o outro (BRASIL, 2010). Tal concepção vincular geralmente está pautada na confiança, na disponibilidade e no processo de comunicação franca e compreensível que se estabelece entre os atores. Nesse sentido, Jorge et al. (2011) ressalta que o cuidado não deve estar centralizado nem no trabalhador e seu fazer, tampouco no usuário e seu desejo e direito, mas na interação entre ambos.

Na relação de produção do vínculo, este pode ganhar diversas formas de expressão, que dependem dos laços que são construídos. No que diz respeito ao usuário, este encontro representa sentidos que englobam tanto o profissional da saúde quanto a instituição de modo geral. Tais sentidos podem encontrar significação nos sentimentos de confiança, amizade, união, simpatia. Entretanto, o vínculo não deve ser entendido apenas como pautado por uma ligação baseada em aspectos ditos positivos, pois movimentos como a dependência, raiva, irritação e ressentimento também são compreendidos enquanto vínculo, tendo em vista que são construídos dentro do cuidado em saúde e podem por vezes possuir função terapêutica. A dimensão da contribuição e da eficácia desses diversos sentimentos na promoção de saúde não é dada de antemão. No entanto, conforme Campos e Amaral (2007), esse tipo de relação amplia as possibilidades das ações de saúde, favorecendo a participação e a conexão com o usuário. Observamos a constituição de movimentos de vinculação em nosso grupo através da relação de confiança e compromisso estabelecida entre os profissionais da equipe e os usuários, o que possibilita um movimento inicial preponderante para o trabalho em saúde. O vínculo construído no horizonte da relação terapêutica se forma pela percepção das necessidades e dificuldades de cada usuário, trabalhando diferentes ações de auxílio. Percebemos um vínculo de cooperação entre usuários e equipe por meio de trocas que se estabelecem a partir do reconhecimento no outro, como quando um membro necessita de ajuda para escrever um poema ou na construção da paródia. Tal situação evidencia a valorização do saber do outro, o que trabalhamos que não seja entendido como um não-saber daquele que pede ajuda, mas como campo possível de aprendizado, assim como o colega de atividade que dispõe de seu tempo e motivação para ajudar e se sente valorizado na transmissão do seu saber.

Tendo a compreensão que os processos de vínculo carregam afetividades e sentimentos, o questionamento quanto à ausência de algum membro do grupo, ou mesmo a explicação do porquê não estar presente na atividade pode ser tomado enquanto um respeito e uma preocupação com o grupo e com as pessoas. Evidentemente, o vínculo construído no grupo é também um reflexo das relações que se estabelecem no próprio CAPS. Sendo assim, não existe uma relação que inicia e termina durante a atividade, mas uma ligação que é potencializada pelas tarefas realizadas e pelas dinâmicas que ocorrem ali e disparam sentidos diversos que se somam a outros construídos previamente.

Ao entender o vínculo também a partir de expressões de hostilidade, negação e chistes, estamos diante de situações que produzem no grupo desafios de manejo. Nesse sentido, é também importante a percepção por parte da equipe da relação de cada usuário com a atividade, com os colegas e com os profissionais, assim como a valorização do espaço, visando especialmente a que estes não participem de um espaço que não lhes traga efeitos terapêuticos. O vínculo também se mostra um desafio quando aparece ao longo dos encontros a dependência de alguns usuários direcionada a um profissional específico, participando apenas das atividades em que aquele profissional coordena. Desta forma, o usuário se limita, dificultando a interação e a troca com outros membros do grupo, não se experienciando em diferentes âmbitos, produzindo um impacto negativo na sua autonomia e responsabilização. O papel do facilitador é intervir de forma diretiva, possibilitando e incentivando que os usuários participem de diferentes atividades em diferentes grupos para que, consequentemente, possam nutrir novos vínculos. Sendo assim, a maior aproximação que se estabelece entre aqueles que participam do grupo permite um novo olhar para as questões de cada um, de maneira mais ampla e integral, considerando múltiplos aspectos que interferem no processo de saúde e doença, bem como na busca de outras estratégias de cuidado.

Por ser composto de residentes multidisciplinares e acadêmicos de Psicologia, em alguns momentos ocorre no grupo a troca de profissionais destas funções. Mesmo com a permanência dos profissionais da equipe contratada de trabalho do CAPS, os usuários expressam suas posições quanto a estas saídas, deixando entender que são, por vezes, sentidas por eles como um abandono. A saída é trabalhada antecipadamente, discutida e conversada, momento em que os usuários podem se expressar e justamente apresentar essas posições, o que acreditamos ser um processo significativo para eles e para os profissionais que estão saindo, assim como um cuidado pautado na relação que se construiu.

A partir das demandas que vão surgindo nesses momentos, fica evidente que o abandono em questão não remete apenas a esse momento, mas a uma constituição de vida dessas pessoas que, em grande parte das histórias, tiveram seus laços familiares e sociais reduzidos. Intentamos neste cenário a produção de outros significados quanto a essa saída dos profissionais, não negando o distanciamento diário que ela produz, mas pensando outros atravessamentos que se fazem presentes, como a própria estruturação do serviço, a explicação quanto ao processo de formação profissional e a valorização das relações que foram construídas durante o tempo de convivência e que não serão apagadas na memória de cada um.

Quando buscamos a melhoria do cuidado em saúde, objetivamos também o favorecimento de situações que produzam significados aos sentimentos que foram construídos nos espaços de saúde ao longo do tempo. Ao ter no horizonte essa concepção, estamos trabalhando com o desenvolvimento de processos relacionados à corresponsabilização e à autonomia dos diferentes sujeitos. Partindo da ideia de implicação intrínseca dos dispositivos de relação, tomamos como impossível pensar uma relação de vínculo sem as bases de um processo de acolhimento, assim como é impensável o desenvolvimento da autonomia e da corresponsabilização fora destes modos de relação com o sujeito. Por sua vez, não constituímos verdadeiras ações de autonomia sem implicar o sujeito na sua responsabilidade consigo e com a vida, bem como não é possível a mesma responsabilização sem movimentos de liberdade e emancipação realizados por ele próprio. Portanto, quando falamos de um destes dispositivos de relação, remetemos também à sua interconexão com os demais.

A incorporação dos saberes de cada pessoa, seus modos de ser, agir e sentir, tem como desafio o fato de nos voltarmos para suas capacidades e a melhoria nos diferentes aspectos de sua vida, produzindo a ampliação de suas condições de existência a partir das suas possibilidades de realizar escolhas. Para Torre e Amarante (2001), esse caminho de saída da condição institucionalizada de assujeitamento do sujeito marcado pelo diagnóstico até sua transformação em usuário do sistema de saúde, produtor de cidadania para si e para o mundo, é uma questão fundamental, pois atravessa também a emancipação e muda a natureza do ato terapêutico que passa a produzir autonomia e processos de responsabilização ante a vida.

De acordo com o que apregoa a Política Nacional de Humanização (2008), compreende-se tanto a corresponsabilização quanto a autonomia como uma valorização do protagonismo dos diferentes sujeitos envolvidos no cuidado em saúde. No que diz respeito à primeira, toma-se a ideia de relação desses diferentes sujeitos, usuários, familiares e trabalhadores em um espaço onde se coloca em jogo um movimento de corresponsabilização de uns para com os outros. É um movimento de parceria que visa à melhoria da qualidade de vida do portador de transtorno mental, o que acontece de forma multilateral (JORGE et al., 2011). Desenvolve-se a partir da identificação das necessidades e desejos individuais que se conectam entre si, buscando uma consonância entre estes e a realidade social. Com relação à autonomia, ainda no plano da Política Nacional de Humanização (2008), temos a concepção dos indivíduos não apenas capazes de tomar decisões e fazer escolhas que consideram melhores para si e sua saúde, mas também o desenvolvimento da capacidade de saber que ele pode fazer, ou ao menos se permitir fazer, vencendo resistências e medos a partir de um encorajamento para lidar com os desafios inerentes à vida. A importância da autonomia se funda primordialmente na ampliação de atuação do sujeito sobre si mesmo e a consequente expansão desse movimento para o mundo, avançando sobre suas limitações e incapacidades, fomentando especialmente o aumento da autoestima.

Diante dessa perspectiva, pensamos o trabalho da corresponsabilização e da autonomia a partir de atividades que minimizam os efeitos de paralisação dos usuários quanto às tarefas, além de pensar práticas que permitem o exercício de superação de eventuais dificuldades que se apresentam. Em uma analogia ao cuidado em saúde, busca-se que os usuários incorporem o grupo e a atividade como seus, no sentido de construírem juntos e não apenas de desfrutar de algo que foi preparado para eles. Da mesma forma que se espera que os usuários possam entender e construir seu tratamento e seu processo de saúde-doença, espera-se que eles construam a atividade, a qual mistura-se com processos de saúde e de formação de identidade.

No grupo, a corresponsabilização e a autonomia são trabalhadas através de tarefas estruturadas e flexíveis, interação que auxilia na organização dos usuários. Um ambiente previsível e estruturado facilita a organização interna, ao mesmo tempo em que o caráter flexível das atividades possibilita inovar e criar. Quando, em uma posição mais passiva, os usuários solicitam para saírem mais cedo da atividade ou para não participarem em determinado dia, os facilitadores não respondem permitindo ou negando, mas buscam auxiliar os usuários a compreenderem de onde vem este desejo/necessidade e que tomem suas decisões considerando consequências e impacto. Da mesma forma, ao perceberem que a contribuição deles é importante e decisiva para o andamento do processo, entram em contato com o conceito de responsabilidade e o impacto deste na forma de ser e se portar no mundo.

Da mesma forma, a autonomia estimulada ao se evitar um papel passivo e apenas receptivo nas atividades se retroalimenta ao passo que a autoestima e autoeficácia desenvolvem-se conforme os usuários sentem-se seguros e fortes para assumirem liderança e iniciativa. Ao vencerem resistências e dificuldades, os usuários se percebem como capazes e valiosos para o grupo - e para si mesmos, fortalecendo o senso de identidade pautada na autoestima e autovalorização. Ao se permitirem errar e aprender com o erro, desenvolvem flexibilidade mental e defesas mais adaptativas para lidar com frustrações e conflitos do ambiente. O jornal, produto final e concreto, é motivo de orgulho do que foi produzido, do processo de produção e do processo pessoal de implicação na tarefa e de autodesenvolvimento. Marca cada conquista e evolução dos usuários. É através do jornal que os usuários se expressam, se tornam capazes de lidar com suas angústias e inseguranças, trocam experiências, impactando e possibilitando mudanças em suas vidas.

 

Considerações Finais

Acreditamos que este estudo possibilitou-nos uma compreensão dos efeitos que decorrem da realização do Grupo do Jornal, suas multiplicidades de sentido e formas de fazê-lo, tal qual a incidência destes fatores nas diferentes formas de habitar e viver o CAPS pelos usuários, famílias e profissionais. Na efetivação do trabalho com as tecnologias e dispositivos voltados à melhoria do cuidado em saúde, refletir acerca da nossa prática nos permite perceber nossas possibilidades e limites, reflexos do cotidiano do próprio CAPS e de demais serviços de saúde que lidam com pessoas, respeitando-as e tomando suas vivências enquanto potência de vida. Nesse sentido, nossa escrita também permitiu que pudéssemos elaborar o que estávamos produzindo com o grupo, pensar novas práticas, outros olhares e articular de que modo nosso fazer atravessa outras experiências no campo da saúde mental e como é atravessado por elas.

As ferramentas relacionais envolvidas em nosso processo de trabalho são inseparáveis das demandas e necessidades dos serviços de saúde. Ao mesmo tempo, não podem ser tomadas como iguais em todos os espaços, tendo em vista as singularidades presentes na história de cada sujeito e seu contexto. Entretanto, não podemos negar a importância da organização do trabalho e sua consecução com resolutividade. A dimensão da constituição do cuidado e da promoção de saúde deste na vida das pessoas está, pois, atravessada por essas ferramentas relacionais de produção de acolhimento, vínculo e compromisso.

Em nossa prática, tentamos explorar o que cada um pode oferecer de melhor para o grupo, respeitando sua individualidade, levando em conta e intentando extrair o máximo de suas potencialidades. Fundamental nesse trabalho é a consideração dos sujeitos múltiplos, além do seu diagnóstico, visão que postula uma nova compreensão por parte de todos que compõem o cuidado em saúde mental, na teoria e na prática.

Buscando a produção de saúde a partir de novas visões dos sujeitos, o CAPS tem um papel fundamental na reinserção e ocupação de ambientes sociais, não só de indivíduos com transtornos mentais, mas de toda a sociedade que ainda pauta a doença mental através de preconceitos e formas de estigmatização. O próprio entendimento do CAPS enquanto recurso auxiliar à hospitalização, pautado apenas na lógica da doença, precisa ser questionado, tendo em vista que, seguindo essa visão, esses espaços e as atividades que neles ocorrem podem ser tomados como passatempo e recreação, sem a efetiva produção de um cuidado resolutivo e comprometido com a vida dos usuários. Dessa forma, não estamos buscando apenas a inclusão dessas pessoas na sociedade, mas a própria ampliação da sociedade para lidar com a saúde mental, permitindo múltiplas inclusões dos sujeitos que apontam outros modos de ser e conviver com a doença mental.

Acreditamos que os grupos no CAPS se constituem enquanto uma ferramenta potencializadora de ações nesse sentido e, por isso, devem ter seu trabalho guiado por processos de cuidados reflexivos, que atendam às demandas dos usuários mas possam também produzir novos olhares acerca destas pessoas quanto à sua vida. Visamos aqui à discussão da nossa experiência, compreendendo que este exercício pode servir como inspiração para a produção de novas práticas, bem como o surgimento de outras dinâmicas de trabalho no cuidado à saúde mental.

 

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