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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.14 no.25 Barbacena jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

O encontro entre psicologia e internações psiquiátricas: cuidado em saúde mental em unidade de urgência e emergência de hospital de ensino do interior do Rio Grande do Sul

 

The meeting between psychology and psychiatric hospitalizations: mental health care in urgent and emergency unit of teaching hospital in the interior of Rio Grande do Sul Brazilian state

 

El encuentro entre psicología e internativas psiquiátricas: cuidado en salud mental en unidad de urgencia y emergencia de hospital de enseñanza del interior de Rio Grande do Sul - Brasil

 

 

Luiza Franco DiasI; Karine PerezII; Éboni ReuterIII

IGraduada em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil
IIPsicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IIIGraduada em Fisioterapia pela Universidade de Santa Cruz do Sul

 

 


RESUMO

Pensando a Reforma Psiquiátrica e a proposta do cuidado prioritário em serviço extra-hospitalar, o estudo visa a analisar o perfil dos pacientes psiquiátricos que buscam atendimento em unidade de Urgência e Emergência de Hospital Geral. Utilizou-se o método misto, com aplicação de questionário, entrevista semiestruturada e observação participante na unidade hospitalar em que os dados foram coletados. Essa se deu nos meses de abril a agosto de 2018, utilizando a entrevista semiestruturada e os prontuários eletrônicos para construção dos dados. Observou-se a percepção dos pacientes em relação ao atendimento hospitalar e as medicações mais utilizadas nesse período. Concluiu-se que a psicologia durante a internação trabalha com pacientes e familiares sobre o acompanhamento na rede após alta. Percebeu-se também a necessidade de capacitar os profissionais de saúde para atender esse público-alvo, além das mudanças no espaço físico.

Palavras-chave: Saúde mental. Urgência. Emergência. Psicologia.


ABSTRACT

Thinking about the Psychiatric Reform and the proposal of priority care in an extra-hospital service, the study aims to analyze the profile of psychiatric patients who seek care in an Urgent and Emergency unit of a General Hospital. The mixed method was used, with application of a questionnaire, semi- structured interview and participant observation in the hospital unit where the data were collected. This took place from April to August 2018, using the semi-structured interview and electronic medical records to construct the data. The perception of patients in relation to hospital care and the most used medications during this period was observed. It was concluded that psychology during hospitalization works with patients and family members on the follow-up in the network after discharge. It was also noticed the need to train health professionals to serve this target audience, in addition to changes in the physical space.

Keywords: Mental health. Urgency. Emergency. Psychology.


RESUMEN

Pensando en la Reforma Psiquiátrica y la propuesta de atención prioritaria en un servicio extrahospitalario, el estudio tiene como objetivo analizar el perfil de los pacientes psiquiátricos que buscan atención en una unidad de Urgencias y Emergencias de un Hospital General. Se utilizó el método mixto, con aplicación de cuestionario, entrevista semiestructurada y observación participante en la unidad hospitalaria donde se recolectaron los datos. Esto ocurrió de abril a agosto de 2018, utilizando la entrevista semiestructurada y la historia clínica electrónica para construir los datos. Se observó la percepción de los pacientes en relación a la atención hospitalaria y los medicamentos más utilizados en este período. La psicología durante la hospitalización trabaja con pacientes y familiares en el seguimiento después del alta. También se percibió la necesidad de capacitar a los profesionales de la salud para atender a este público objetivo.

Palabras-clave: Salud mental. Urgencia. Emergencia. Psicologia.


 

 

Introdução

No Brasil, em meados de 1970, nasceu o movimento da Reforma Psiquiátrica, fortemente influenciado pelos pensamentos de Franco Basaglia, psiquiatra, precursor do movimento reformista na Itália. Desde então o movimento foi ganhando força e tem a devida importância na construção de um espaço para discutir saúde enquanto direito de todos, incluindo os sujeitos com adoecimento mental (PAIM, 2013).

Assim como o entendimento sobre a loucura mudou durante a história, a forma de ser acolhida e tratada também se alterou. Foi objeto de atendimento em diversos espaços, como nos leprosários, nas Santas Casas de Misericórdia e nos manicômios/hospícios (FOUCAULT, 1997). Posteriormente, com a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216 de 2001), passou a ser acolhida mediante serviço integrado em Rede de Atenção Psicossocial - RAPS, afastando o modelo manicomial e estabelecendo uma forma de atendimento extra-hospitalar.

Pontes e Fraga (1997) afirmam que a Reforma Psiquiátrica possuía o propósito de reverter a tendência hospitalocêntrica por meio de um novo modelo que implementaria um sistema de assistência extra-hospitalar e interdisciplinar. Além disso, proibiria a criação de novos hospitais psiquiátricos e o cadastro de novos leitos para internação psiquiátrica em Hospital Geral buscando, sobretudo, a redução progressiva desses espaços e a promoção da integração desses hospitais a outros serviços da rede de assistência à saúde. Com a implementação desse novo modelo assistencial, buscava garantir o atendimento integral e contínuo em saúde mental, levando em consideração a subjetividade, a condição humana, social, política e cultural da pessoa em sofrimento psíquico (BEZERRA, 1994).

De acordo com os ensinamentos de Pitta (1993), os pacientes em situação de crise, no Brasil, dificilmente tiveram prioridade nas políticas de saúde pública, sendo atendidos nos manicômios de forma improvisada e nos diversos serviços de saúde sem especialização, ou ainda, mediante abordagens não médicas. Nesse sentindo, segundo Sood e McStay (2009), as emergências psiquiátricas configuram-se como um atravessamento no Hospital Geral e representam 6% do total de pacientes que utilizam os serviços de emergências.

A partir dos movimentos sociais em prol da saúde mental, foi possível garantir assistência aos pacientes com sofrimento psíquico por meio de uma atenção centrada na comunidade e na reinserção familiar e social (AMARANTE, 1996). Buscando desmistificar os estigmas da loucura dentro dos espaços de atenção à saúde, os profissionais e a sociedade precisam estar abertos à construção de novas formas de saber fazer em saúde mental (AMARANTE, 2000).

Para fins estratégicos de atendimento integral e longitudinal em saúde mental, inseriam- se os hospitais gerais como meio de oferta de cuidados emergentes no momento da crise. E, a fim de garantir suporte adequado nesses locais, seria imprescindível uma estrutura tanto na unidade de pronto atendimento quanto nos leitos destinados à internação psiquiátrica (LUCCHESI e MALIKI, 2009)

No Brasil, os hospitais gerais passaram a disponibilizar leitos para saúde mental somente a partir dos anos de 1960, sendo que os hospitais psiquiátricos e o modelo de atenção manicomial ainda foram mantidos por décadas. Entretanto, nos anos de 1970, surgiram críticas sociais a tais dispositivos, suscitando a necessidade de novas estratégias governamentais que apostassem em outras formas de cuidado, as quais deveriam garantir o direito das pessoas com transtorno mental e sua reinserção social (PINHO, 2010; AMARANTE, 2011).

Segundo Pitta (2011), os hospitais gerais continuam a exercer um papel central no suporte à rede de atenção no momento de crise devido à dificuldade de acesso aos CAPS III, que funcionam em tempo integral, mas que não possuem leitos disponíveis. A maior dificuldade para o atendimento em saúde mental no Brasil não é a ausência de leitos, mas de vagas, o que significa ter que garantir leitos no território, por meio de hospitais gerais e CAPS com atendimento integral, utilizando-se da capilaridade para solucionar os casos de crise.

O presente trabalho foi pensado a partir da vivência no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde (ênfase em intensivismo, urgência e emergência), problematizando a atenção em Saúde Mental no Hospital Geral. A elaboração e execução deste projeto de pesquisa é um requisito para a conclusão da especialização.

Diante do exposto, este trabalho busca mapear o processo de acolhimento a pacientes psiquiátricos em unidade de Urgência e emergência de Hospital Geral, analisando o perfil desse público-alvo e os possíveis (des)encontros no atendimento que possam resultar na falta de adesão aos serviços substitutivos de saúde mental e em reinternações hospitalares.

 

Método

Tipo de pesquisa

Com a intenção de investigar o cuidado em saúde mental que surge do encontro entre a psicologia e pacientes psiquiátricos no contexto de Urgência e Emergência, esta pesquisa fundamenta-se em uma metodologia mista. Essa abordagem utiliza-se de duas formas de inquérito: quantitativo e qualitativo, visando à caracterização da amostra e à análise aprofundada de suas complexidades. Como afirmam Shaffer e Serlin (2004):

Os métodos qualitativos e quantitativos são, em última análise, métodos para garantir a apresentação de uma amostra adequada. Ambos constituem tentativas para projectar um conjunto finito de informação para uma população mais ampla: uma população de indivíduos no caso do típico inquérito quantitativo, ou uma colecção de observações na análise qualitativa. [...] O objectivo em qualquer análise é adequar a técnica à inferência, a afirmação à comprovação. As questões que se colocam a um investigador são sempre: Que questões merecem ser levantadas nesta situação? Que dados poderão lançar luz sobre estas questões? E que métodos analíticos poderão garantir afirmações, baseadas em dados, sobre aquelas questões? Responder a estas questões é uma tarefa que envolve necessariamente uma profunda compreensão das potencialidades e limites de uma variedade de técnicas quantitativas e qualitativas (p. 23).

Em face dessa característica foi possível identificar o perfil dos pacientes psiquiátricos por meio de questionário e entrevista semiestruturada, além da ambiência e a prestação de serviços, através da observação participante do fluxo de atendimento e dos processos de trabalho. Os dados da entrevista foram registrados em ficha de coleta e as demais anotações relativas à ambiência e processos de trabalho, registradas em diário de campo.

A construção de uma observação participante se dá na intervenção direta entre pesquisador ea pesquisa, permanecendo oinvestigadoremconstante observação da ambiência e sendo ele o próprio instrumento de pesquisa. Ademais, a observação participante vai além da descrição de determinada situação ou ambiente, possibilitando analisar os sentidos e a dinâmica das relações que se constituem naquele espaço. Nesta, consideram-se os contextos sociais e culturais; a interação entre os sujeitos e entre o sujeito e o espaço investigado (CORREIA, 2009). Nesse sentido, permaneceu-se no espaço da Emergência também com o objetivo de vislumbrar a atenção em saúde mental e as redes de cuidado que se tecem ao acolher pacientes psiquiátricos no Hospital Geral.

Participantes

Os participantes foram escolhidos por conveniência, mediante análise prévia de prontuários registrados em sistema eletrônico, considerando os diagnósticos e o quadro clínico atual. Levou-se em consideração os seguintes critérios de inclusão: homens e mulheres entre 18 e 65 anos de idade; hospitalizados na unidade de Urgência e Emergência para atendimento psiquiátrico; estáveis clinicamente (lúcidos e aptos a responder a entrevista). Foram excluídos do estudo sujeitos que se mostraram em estado de torpor, sonolência ou extrema agitação psicomotora. Os pacientes foram entrevistados no espaço da Urgência e Emergência, à beira do leito ou, em alguns casos, quando o paciente era transferido para unidade de internação SUS (no andar).

A amostra foi composta por 10 participantes, os quais foram entrevistados no período entre abril a agosto do ano de 2018 em unidade de Urgência e Emergência de Hospital de Ensino. Utilizou-se, na coleta de dados, de questionário, entrevista semiestruturada, análise de prontuário eletrônico hospitalar e observação participante de campo. Os dados quantitativos foram analisados por meio do programa estatístico SPSS (Statistical Package for Social Sciences) e os qualitativos embasados na literatura de referência em saúde mental. A análise desses dados de natureza qualitativa e quantitativa permitiu delinear o perfil dos pacientes com sofrimento psíquico que buscam a unidade de Urgência e Emergência do Hospital de Ensino, bem como as nuances que se constroem no processo de atendimento ao paciente psiquiátrico.

Considerações éticas

O projeto foi submetido e devidamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa - CEP, via Plataforma Brasil da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC (Nº 2.505.514), uma vez que atingiu todos os requisitos éticos em pesquisa realizada com seres humanos, conforme exigido pela Resolução CNS 466/2012. Os participantes do estudo assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, do qual constaram os objetivos da pesquisa e a indicação de garantia da privacidade.

 

Resultados e Discussão

A amostra foi composta por 10 indivíduos, sendo sete do sexo feminino, com média de idade de 43,4 ± 15,7 anos. Houve predomínio do estado civil solteiro (n=5), visto que dentre as respostas, obtiveram-se três marcações como casado, cinco como solteiro e duas como divorciado. Quanto à atuação profissional, a maioria eram agricultores (n=3) e aposentados (n=2), sendo que os demais elencaram o total de uma ocupação para cada uma das seguintes marcações: dona de casa, padeiro, artista plástico, desempregado e pintor.

Quanto à escolaridade, observou-se que três possuíam ensino superior incompleto, quatro possuíam o ensino médio completo e três possuíam ensino fundamental e médio incompletos.

Constatou-se que, em relação à rede de apoio familiar, oito possuíam apoio de suas famílias e os outros dois não. Deste modo, demonstra-se maior representatividade quanto ao suporte familiar adequado.

Em relação à internação fechada, percebeu-se que seis dos participantes da pesquisa já haviam sido hospitalizados em Unidades Psiquiátricas de outros hospitais gerais. Ao passo que quatro não haviam passado por nenhuma experiência prévia.

Ademais, no que diz respeito às internações anteriores em Hospital Geral, notou-se que oito já tinham vivenciado uma ou mais internações hospitalares decorrentes de alterações emocionais ou físicas.

Por fim, observou-se que todos os participantes da pesquisa tiveram contato, em algum momento de sua vida, com a Rede de Atenção Psicossocial - RAPS.

O uso de psicofármacos e a contenção química

Constatou-se, por meio da entrevista semiestruturada, que as medicações mais utilizadas nos pacientes psiquiátricos dentro do período de hospitalização foram as seguintes: Carbonato de Lítio, Risperidona, Lorazepan, Haloperidol, Quetiapina, Prometazina. Esses oito medicamentos são da família dos sedativos e antipsicóticos, sendo utilizados frente a quadros de agitação psicomotora, surtos psicóticos, que incluem delírios e/ou alucinações (CORDIOLI, 2015).

Por meio do estudo, foi possível perceber que o atendimento ao paciente psiquiátrico no Hospital Geral se difere do modelo asilar, manicomial e também dos hospitais com unidade de internação psiquiátrica. Bem como, observou-se que a medicação acompanha a história da loucura e esteve presente em diversos cenários ao longo da história.

Percebeu-se a crescente produção de psicofármacos e o incentivo da indústria farmacêutica em fornecer medicamentos com menos efeitos colaterais e melhor adaptação à rotina dos pacientes. Observou-se, na Emergência, a dificuldade de os participantes conseguirem se comunicar devido à sonolência e à confusão espaço-temporal. À medida que passavam os efeitos sedativos e se iniciava com a terapêutica adequada prescrita pelo médico psiquiatra, os pacientes queixavam-se de tais sintomas e demonstravam maior resistência à medicação.

O conceito de corpos dóceis aparece pela primeira vez nos escritos de Michel Foucault, no livro Vigiar e Punir. Nele, Foucault afirma que "é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado" (FOUCAULT, 1987, p. 126). É possível pensar que os métodos de contenção em saúde mental, por mais que tenham se modificado ao longo da história, buscam ainda docilizar os corpos, tornando-os mais suscetíveis aos diferentes tipos de manejo clínico. Nesse sentindo, Foucault também afirma que "o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe" (1975, p. 119). De acordo com Foucault (1987) disciplinar dá origem a corpos submissos e moldáveis, corpos dóceis.

Durante a hospitalização, o paciente que adentra por questões psiquiátricas perde a sua capacidade de decisão e é submetido, muitas vezes sem a sua aprovação, a medicações que acarretam alterações cognitivas e emocionais.

De acordo com a percepção dos pacientes, a medicação é vista, na maior parte das vezes, de forma negativa. Na fala dos participantes foi possível perceber tais observações:

"Embota, dá medo de consumir álcool" (Participante 1).

"Quase me mataram na cama da emergência, a medicação me fez mal, tive insuficiência respiratória e cardíaca" (Participante 2).

Estas falas apontam para outro problema: devido à experiência negativa do uso de uma medicação mais severa no período de hospitalização, os pacientes apresentam resistência em aderir ao tratamento medicamentoso após a alta. Na pesquisa constatou-se essa evidência a partir da análise pregressa do abandono ao tratamento em serviço especializado e o número de internações fechadas e em Hospital Geral ocasionadas para rever medicação ou em face de crise por ausência do uso da mesma.

Além disso, verificou-se que metade dos pacientes hospitalizados já faziam uso de medicações no seu cotidiano, sendo tais medicamentos mantidos durante a internação, incorporando-se junto a outros fármacos como novas possibilidades terapêuticas. Observou- se que alguns participantes da pesquisa haviam recebido atendimento na Atenção Primária, sendo a medicação prescrita por médico generalista sem especialidade em Psiquiatria, de modo que o receituário era renovado sem acompanhamento adequado dos sintomas.

A contenção química é muito utilizada na chegada do paciente à Emergência, principalmente em casos de surto psicótico, em que o manejo exclusivamente verbal não é suficiente para controlar a agressividade ou outras alterações emocionais e comportamentais apresentadas pelos pacientes. Na realidade da Emergência percebe-se que o paciente psiquiátrico demanda constante atenção da equipe de saúde e altera a rotina desse espaço, uma vez que apresenta suas particularidades no atendimento.

Bergk et al. (2011) afirmam que o atendimento no momento da crise a pacientes com comportamento de violência autodirigida e alo dirigida constitui-se em um grande desafio aos profissionais da saúde. Essa situação traz consigo questionamentos éticos e filosóficos, mediando liberdade e a necessidade de contenção para reduzir ou evitar danos físicos. Verifica-se que a medicação é necessária e auxilia na estabilização do paciente, principalmente no período de crise. Entretanto, cabe ressaltar que a terapêutica precisa ser discutida com o paciente, tornando-o parte desse processo, garantindo-lhe informações e priorizando outras estratégias de manejo (verbal) antes da contenção química.

Ambiência e possibilidades de cuidado

Os serviços de Urgência e Emergência psiquiátrica devem atentar para alguns critérios relevantes ao atendimento. Entre eles podem ser citados: estabilizar o quadro clínico mediante o controle dos sintomas; reconhecer patologias e alterações orgânicas que podem ter desencadeado as alterações mentais; estabelecer hipóteses para o diagnóstico e, por fim, encaminhar o paciente para a continuidade do cuidado na rede especializada (QUEVEDO, SCHMITT e KAPCZINSKI, 2008; TOWNSEND, 2002).

Em relação à unidade em que foi realizada a coleta de dados da pesquisa, o espaço físico se constitui da seguinte forma:

1. Sala de acolhimento que conta com uma enfermeira, a qual é responsável pela realização do contato inicial de triagem e classificação de risco com os pacientes.

2. Sala Vermelha (emergência) que possui três leitos, mais um extra disposto no hall. Os profissionais que realizam atendimento nesse espaço são dois técnicos de enfermagem e um enfermeiro. Essa sala é destinada ao paciente crítico que chega pela entrada da Emergência, geralmente pelo SAMU, que fica nesse local até ser estabilizado. Em relação ao público alvo desta sala, percebe-se a internação de pacientes que chegam em surto psicótico, com tentativa de suicídio consumada, em abstinência ou abuso de drogas.

3. Sala laranja (muita urgência) que conta com seis leitos para estabilização e observação por dois técnicos de enfermagem mais um enfermeiro que também assessora a sala vermelha. O tempo de atendimento varia, o paciente pode ficar internado nesta sala ou ser transferido para internação no andar ou UTI.

4. Sala amarela (urgência) que é composta por oito leitos mais dois extras. Conta com dois técnicos de enfermagem de referência, sendo que um circula entre a sala verde e amarela. O tempo de atendimento é variável, podendo levar a hospitalizações mais prolongadas, e ainda havendo a possibilidade de internar nesse espaço, aguardando vaga para leito em andar do SUS.

5. Sala verde (pouca urgência) que consiste basicamente em um espaço para administrar medicação e os pacientes ficarem em observação. Nesta sala encontra-se casos de ideação suicida, tentativas não consumadas e pacientes em surto psiquiátrico que aguardam avaliação do psiquiatra ou estão em acompanhamento para rever a medicação. Possui um técnico em enfermagem de referência. Não dispõe de leitos, apenas de poltronas (em média 15 lugares). Em alguns casos, os pacientes ficam aguardando internação ou vaga na sala amarela.

6. Sala do isolamento que dispõe de um leito para isolamento social ou de contato, vislumbrando a necessidade para separar o paciente do contato com os demais devido a questões orgânicas, epidemiológicas ou que consubstancie prejuízo no contato social. De acordo com a gravidade do quadro, esse espaço possibilita o acompanhamento contínuo de familiar ou responsável. Além disso, a sala é monitorada por enfermeira e técnico de enfermagem também responsáveis pelos pacientes da sala laranja.

Com relação à ambiência da Unidade de Urgência e Emergência, deve-se ressaltar a importância da segurança no espaço físico. Esse deve considerar as exigências relativas ao atendimento psiquiátrico, sendo consubstanciadas na construção de um local que não ofereça riscos ao paciente ou a terceiros, especialmente no período de crise. Devendo ser retirados, então, objetos perigosos, diminuindo estímulos sensoriais, garantindo acesso a todos os serviços de diagnóstico e aos profissionais especializados (QUEVEDO et al., 2008; TOWNSEND, 2002).

Conforme Foster e King (1994) e Oyewumi et al. (1994), podem ser observados, no contexto das emergências, casos de comportamento violento, surto psicótico, tentativa de suicídio, risco de homicídio, entre outros. Por sua vez, as urgências são situações que envolvem menores riscos, como comportamento bizarro, agitação aguda, ideação suicida, crises de pânico, distúrbios situacionais e ansiedade leve ou moderada.

No que tange à percepção dos participantes da pesquisa, evidenciou-se, por meio das falas, algumas críticas ao espaço de atendimento, cujas opiniões são transcritas a seguir:

"Excelente o atendimento, o espaço é que é pequeno, poderia ter mais espaço, um lugar, uma sala para atendimento" (Participante 2);

"Muita dor e muito barulho, tinha realizado um procedimento e fiquei deitada nas cadeiras (Participante 3);

"Bom, mas não se recebe informação suficiente sobre o atendimento" (Participante 4);

"A equipe é tranquila, mas a queixa é em relação ao espaço físico" (Participante 6);

"Fui muito bem atendida. Mas acho ruim homens e mulheres juntos, deveria ser separado" (Participante 8).

Observou-se, por meio da fala de um participante, a cristalização do imaginário da loucura. Historicamente, os leprosários e locais destinados a tratar doenças contagiosas foram o primeiro espaço para acolher a doença mental, sendo aqueles que eram marginalizados e considerados loucos depositados à margem da sociedade (FOUCAULT, 1997).

O participante 10 ao se referir à internação, no leito de isolamento, mencionou o seguinte:

"Achei bom, só não gostei do quarto do isolamento, porque isolamento é para quem tem doença, aquela tuberculose por exemplo".

Botega e Dalgalarrondo (1997) expõem que se houvesse a redução do estigma da doença mental, o sujeito internado no hospital passaria a ser percebido como um dos demais pacientes adoentados. Contudo, estando nos hospitais psiquiátricos tradicionais, no sentido oposto, reforçariam tal estigma.

Percebeu-se que 80% dos pacientes mantinham vínculos familiares e sociais funcionais, estando vinculados a uma rotina com trabalho, família, amigos e responsabilidades. Cada vez mais, o paciente que chegasse à Emergência com uma crise psiquiátrica, não representaria um paciente cronificado pela doença mental, sendo este momento essencial para alinhavar a continuidade do cuidado na extra-hospitalar na rede a fim de evitar novas hospitalizações. De acordo com Sá et al. (2008), o período da crise se estabelece como um estado de desequilíbrio emocional em que o sujeito se encontra incapacitado de fazer uso de seus recursos de enfrentamento. Qualquer pessoa com sofrimento psíquico poderá, em algum momento de sua vida, passar por situações de crise, seja decorrente de questões biológicas ou psicológicas como, por exemplo, a vivência do processo de luto.

Atendimento com a equipe multiprofissional

No Hospital Geral objetiva-se que o paciente psiquiátrico seja atendido pela equipe multiprofissional. Ainda que alguns profissionais apresentem dificuldades em manejar o contato com esse público-alvo, o atendimento integral garante uma assistência para além do discurso centrado no modelo biomédico.

Segundo Schilcoski e Barbarini (2010), o preconceito dos profissionais que atuam nesses serviços é fator que interfere na prática psiquiátrica do Hospital Geral, desrespeitando o ideal de que os organismos devem fortalecer a observância e o cumprimento dos direitos humanos e a responsabilidade que implica empreender ao atendimento à saúde mental. Com relação à prevalência da Psiquiatria neste contexto, Fortes e Infante (1986, p. 274) apontam que a presença do psiquiatra no Hospital Geral "traz em si o grande ponto positivo do rompimento do asilo, não só no sentido do espaço físico, mas também do isolamento da psiquiatria do restante da medicina".

De acordo com Pereira (2009), a mudança na lógica do atendimento em saúde mental depende da atuação dos profissionais e gestores, sendo eles protagonistas que possibilitam a melhoria no tratamento das pessoas com sofrimentos psíquicos no âmbito do Hospital Geral, pois aliam a prática médica às demais especialidades multiprofissionais com o intuito de afirmar a inexistência de estigmas ou, então, minimizá-los.

Como já referido, os momentos críticos são permeados pela instabilidade do paciente e, desse modo, é necessário que o profissional de saúde se apresente de forma clara, esclarecendo os objetivos do atendimento, transmitindo confiança e segurança, sem exercer quaisquer juízos de valor (BULECHEK, BUTCHER e DOCHTERMAN, 2010; QUEVEDO et al., 2008; TOWNSEND, 2002). Durante a pesquisa, observou-se o estranhamento e a pouca identificação de alguns profissionais em trabalhar com a saúde mental. Entretanto, grande parte da equipe cumpria os objetivos antimanicomiais, atendendo de forma respeitosa e compreendendo que o paciente é singular, tendo o direito de ser tratado de forma integral e humanizada como qualquer outro paciente.

Segundo Moreno et al. (2003), o profissional que trabalha nas situações de urgência e emergência psiquiátricas deve possuir agilidade, flexibilidade, conduta ativa e direta a fim de ser resolutivo quanto aos problemas que possam surgir nesse lugar, muitas vezes inóspito. Além de preocupar-se com o processo de adaptação à internação hospitalar, é preciso que o profissional esteja disponível para as demandas imediatas dos pacientes, utilizando todos os recursos hábeis para a solução, em tempo, das suas necessidades.

De acordo com Pitta (1993) existem variadas dimensões para qualificar os serviços, pensando em diferentes formas de melhorar a implementação de leitos psiquiátricos em Hospital Geral. Inicialmente, ela ressalta que poderíamos começar tratando sobre a qualidade em termos sociais, que seria medida em razão da acessibilidade à prestação do serviço. No segundo ponto, ela ressalta a qualidade em termos econômicos e técnicos, que permitiriam garantir a correta aplicação do conhecimento, recursos humanos e materiais disponíveis.

Apesar do contato da equipe multiprofissional com o paciente psiquiátrico e do espaço possível para as intervenções terapêuticas da Psicologia e do Serviço Social, percebe-se ainda a centralidade nas condutas do médico psiquiatra. Quanto a isso, é possível sentir a falta de espaço para discutir o plano terapêutico do paciente após a alta, bem como trocar conhecimento com relação ao desenvolvimento do quadro clínico.

Ademais, Rinaldi e Bursztyn (2008) discorrem sobre a centralidade do discurso médico que permanece em relevo no âmbito dos serviços substitutivos, com a prática voltada para o atendimento ambulatorial em saúde mental, distante do trabalho interdisciplinar e da atenção psicossocial, denunciando o quanto os outros profissionais sentem dificuldade em assumir a última palavra sem o olhar do psiquiatra que atua no serviço.

O papel da Psicologia

Na Emergência, o contato do psicólogo com os pacientes psiquiátricos se dá por meio de busca ativa em prontuário físico ou eletrônico, ou também pela solicitação local ou por sistema informatizado por médicos, enfermeiros e outros profissionais da equipe multidisciplinar. O médico responsável pela Emergência recebe o paciente que chega no momento da crise ou com risco de morte (caso de tentativa de suicídio), a partir da sala de emergência. Já os pacientes que passam pela classificação de risco e são recebidos por meio de triagem, são assistidos pelos médicos plantonistas do pronto atendimento. Sendo que, em um segundo momento, é acionada a avaliação do especialista (psiquiatra), da Psicologia e, em alguns casos, também do Serviço Social.

Angerami-Camon (1984) e Romano (1990), ao tratar sobre a atuação do psicólogo no pronto socorro, ressaltam que cabe a ele a função de lidar com as dificuldades que emergem nesse espaço, considerando a dificuldade do setting de atendimento, uma vez que serão poucas as unidades que terão um local próprio para realizar as intervenções.

Uma das dificuldades encontradas no atendimento psicológico a pacientes psiquiátricos no contexto de emergência surge a partir da instabilidade do quadro clínico que se encontra sob uma nova terapêutica medicamentosa. Assim, é preciso reconhecer o momento adequado para realizar o atendimento, levando em consideração a importância no contato com os familiares e com o restante da equipe da unidade, que também está responsável pela assistência ao sujeito em questão.

Entre os pacientes entrevistados, observaram-se diagnósticos de transtorno de humor bipolar, crise conversiva, epilepsia, depressão, esquizofrenia, dependência química e casos de ideação e tentativa de suicídio. Todos eles tiveram contato com a rede de atenção psicossocial ao longo de sua história, mas a maioria não havia estabelecido vínculo efetivo, no tratamento psicológico (seja na rede pública ou privada). Devido à grande demanda, característica dos serviços de Emergência, as internações psiquiátricas têm início e fim no contexto desse espaço, mesmo que em alguns casos o paciente possa sair da sala de observação e ser internado na sala amarela, que deverá dar conta de sua terapêutica.

Nesse sentido, o psicólogo precisa se adequar aos fluxos desta unidade e da rotina da mesma, levando em consideração a dinâmica dos outros profissionais de saúde, respeitando demais condutas e planejando em conjunto a continuidade do tratamento extra-hospitalar. Isto exige atentar-se para as previsões de alta e apresentar conhecimento dos serviços oferecidos pela rede assistencial. Existem diversos dispositivos propostos a partir da Reforma Psiquiátrica, como os CAPS, as Residências Terapêuticas, bem como outros serviços da atenção básica.

No contato com os pacientes da Urgência e Emergência, o psicólogo configura-se como peça chave na equipe multiprofissional, interagindo com os demais profissionais com o intuito de acolher as angústias da equipe, intervir com o paciente e com os familiares, lidando com os sentimentos desadaptativos e as reações ambivalentes diante da hospitalização (SÁ et al., 2008).

A RAPS e os cuidados extra-hospitalares

Franco (2006) ressalta que a atenção à saúde se constrói em rede, mediante a articulação dos serviços em diferentes níveis de assistência, entre as próprias equipes de saúde, nas trocas de saberes entre os profissionais e por meio das práticas que respeitem a subjetividade, referindo-se à noção de imanência e de interdependência do cuidado. As redes se constituem no âmago dos processos de trabalho e estão intimamente conectadas, sendo que o trabalho só existe a partir da delimitação do sentido em torno de seu objeto de cuidado.

Para que haja produção de cuidado em saúde mental baseando-se na escuta ativa, na construção de vínculo e responsabilização pelo acolhimento, deve haver, segundo Dimenstein et al. (2010) o enfrentamento das adversidades relativas ao funcionamento da rede e dos respectivos serviços substitutivos.

Faz-se necessária a compreensão de que o período em que o paciente psiquiátrico se encontra hospitalizado representa uma marca na sua história, uma ruptura de sua rotina. No entanto, há um período anterior a esse momento e haverá, após a alta, um período posterior, de acompanhamento no serviço especializado.

Na construção desta pesquisa foi possível observar, na prática, o papel do Hospital Geral e dos profissionais de saúde no acolhimento e encaminhamento para a rede dos pacientes com demandas psiquiátricas. É preciso valorizar o contato com os outros serviços de saúde em que o paciente estava em acompanhamento ou que será direcionado. Ademais, também é preciso fazer constar que a maior parte dos participantes da pesquisa possuíam vínculo em algum serviço da rede. Percebeu-se que esse contato prévio era centrado basicamente no tratamento medicamentoso realizado por psiquiatra em Centro de Atenção Psicossocial ou por clínico geral nas unidades básicas na atenção primária em saúde.

Durante o período de hospitalização, é de característica do atendimento psicológico realizar contato com o serviço que assiste o paciente, objetivando a discussão do caso, a compreensão do contexto social e a percepção dos profissionais da rede em relação à adesão ao tratamento. Esse contato é estabelecido no início do atendimento, sendo mantido quando necessário ao longo do processo. Contudo, o mais importante é comunicar o serviço frente a alta do paciente, apresentando sugestões com relação ao plano terapêutico e garantindo que a referenciação fora efetiva.

Nas entrevistas semiestruturadas, questionou-se aos participantes a respeito da percepção do atendimento na RAPS. Dentre algumas respostas observou-se a aceitação ao serviço, valorizando o bom acolhimento e as relações que se constroem a partir da inserção nesse espaço.

Há que se considerar as seguintes falas:

"Na UPA fui atendida rapidamente, logo viram o que eu poderia comer" (Participante 7); "Gosto muito do atendimento no CAPS, Dr. A. sempre foi muito paciente, sempre me ouviu" (Participante 5).

É possível notar a importância dada para a relação entre o usuário e o profissional de saúde. A escuta ativa e o acolhimento empático garantem uma concepção positiva do serviço, facilitando, por conseguinte, uma melhor adesão ao tratamento. Em contrapartida, outra fala também aponta críticas ao serviço:

"Gostava porque conversava, mas não falava tudo por falta de segurança em falar com a psicóloga. E as consultas eram a cada 15 dias" (Participante 10);

"Bom, gosto da Oficina, das pessoas. Tem almoço. Não gosto da pressão para tomar medicação" (Participante 4);

"Muito bom, ajudou muito. Depois as médicas trocaram a medicação e só iam renovando as receitas" (Participante 6);

"Adoro os grupos. Fazemos churrasco, conversamos. Fiz amigos." (Participante 9);

"No posto tinha uma psicóloga. Era muito bom" (Participante 8);

"Foi bom. As pessoas reclamam de barriga cheia. Em São Paulo tu espera um dia pra ser atendido! (Participante 7);

"100%, tu chega e é bem recebido. Querem conversar contigo. Oferecem até bolachinha" (Participante 2).

Já em relação à rede, verificou-se que, devido à grande demanda para atendimento psicológico individual nos CAPS, alguns pacientes acabam por não realizar acompanhamento semanal, o que seria o ideal após o período da crise e da hospitalização.

A continuidade do cuidado na rede é a garantia de assistência integral e longitudinal ao paciente, considerando suas singularidades e o contexto familiar. Além disso, a família ocupa um importante papel, sendo trabalhado, durante a hospitalização, a possibilidade de participar de grupos para familiares realizados no Centros de Atenção Psicossocial, que auxiliam no manejo com o paciente hospitalizado e dão orientações sobre o tratamento.

A corresponsabilização dos familiares durante o período de hospitalização fortalece a efetividade de adesão ao tratamento e a vinculação aos serviços especializados. Na pesquisa, a possibilidade de escuta aos familiares e as orientações com relação ao prognóstico e continuidade do cuidado foi tida como positiva por parte dos profissionais envolvidos no processo de assistência.

A rede de assistência à saúde consolida a existência de um espaço de direito às pessoas com sofrimento psíquico, possibilitando não só o atendimento em saúde, como também a intersetorialidade a partir da articulação com os demais setores civis. Sendo mais um contraponto ao modelo manicomial, que centraliza a atenção a essas pessoas em um espaço restrito (QUINDERÉ e JORGE, 2010).

Ao falar da intersetorialidade, Pitta (1993) afirma ser impossível não discorrer sobre a reabilitação psicossocial, outro conceito fundamental para edificação da Reforma Psiquiátrica, que pode ser definido enquanto atuação estratégica que busca reinserir o sujeito à sociedade, conferindo-lhe cidadania plena. Ainda, segundo a autora, a reabilitação psicossocial permite ao sujeito a obtenção de maior autonomia dentro de sua comunidade.

Observou-se, na construção da pesquisa, que o movimento de comunicar também à unidade básica de referência do paciente possibilita o acompanhamento na comunidade. Esse processo propicia visitas domiciliares, acompanhamento das famílias e se o paciente está realizando tratamento em serviço especializado adequado. Com isso, a rede dá continuidade à sua comunicação, uma vez que, por meio do matriciamento, a atenção básica e o serviço especializado abrem espaço para discussão dos casos.

Pitta (2011) afirma que deve ser enfatizado a capacitação do acolhimento à saúde mental na atenção básica, sobretudo no tocante aos profissionais e no fomento de recursos humanos para apoio matricial, fazendo com que esse matriciamento assegure o amplo cuidado garantido através da comunicação entre as equipes de Núcleo de Apoio à Saúde da Família, CAPS, da Rede de Urgência e Emergência e dos leitos de retaguarda em hospitais gerais.

Cardoso et al. (2012) ressalta o papel dos CAPS enquanto dispositivos estratégicos destinados ao atendimento extra-hospitalar em saúde mental; entretanto, existem outras funções realizadas nesse serviço para a promoção do cuidado. Nesse sentido, o matriciamento atinge a atenção básica de média e alta complexidade, sendo também responsáveis no período de internação por corroborar com a discussão de casos de pacientes hospitalizados. Por meio do apoio matricial são fornecidas orientações em relação à conduta e a supervisão de casos mais complexos. Além do mais, conforme Zeferino et al. (2012), os casos que necessitam de internação hospitalar precisam ser analisados de forma substancial pela equipe interdisciplinar, recorrendo aos serviços fechados em último caso, apenas quando a rede comunitária não puder mais suprir as necessidades do sujeito.

Um dos pontos levantados na entrevista foi a opinião dos pacientes em relação às internações fechadas realizadas em hospitais com unidades de internações psiquiátricas (duração média de um mês). Nas falas dos pacientes, nota-se o repúdio a esta experiência, revelando várias falhas que vão de encontro ao que é proposto pela Reforma Psiquiátrica.

Dentre algumas vivências, destacam-se:

"Pelotas era um pesadelo. Com Haldol na veia, a maioria das vezes não me sentia bem tratada. Rio Grande foi um horror porque não davam cigarros para fumar, mas fiz amizade com outros pacientes" (Participante 6);

"Estava sempre dopada. Pelotas e Rio Grande eram lugares horríveis: tomava banho gelado, trancavam os quartos durante o dia e era preciso ficar o dia todo de pé ou sentada em bancos de madeira" (Participante 4).

Ampliando o mapa de cuidado local, foi possível observar críticas a alguns locais de referência para internações fechadas, denunciando na fala dos pacientes um serviço que não institui o que é proposto no atendimento de saúde mental. Nesse sentido, o investimento em oficinas terapêuticas e outros recursos como arteterapia, grupos e um atendimento menos estigmatizado ainda foi percebido como superficial. A internação pontual na Emergência e em leitos de Hospital Geral se dava em curto prazo e representava uma contrapartida às internações fechadas para acolher o momento da crise.

Assim sendo, o Hospital Geral tem seu papel marcado para qualificação da RAPS, disponibilizando leitos psiquiátricos.Através da oferta de serviços de emergência psiquiátrica, a porta de entrada do Hospital Geral se constitui como um dispositivo importante de cuidado no momento da crise. Em suma, o Hospital Geral mostra-se importante para articulação entre atenção primária, os serviços de emergência e a atenção especializada. Garantindo, por meio de serviços de diferentes complexidades, a facilidade de acesso a exames laboratoriais e de imagem importantes no cuidado integral às pessoas com transtornos mentais graves e, assim, auxilia na minimização do estigma e do preconceito contra estes indivíduos.

Foi possível observar com o estudo não apenas a situação atual da internação, mas redes de cuidado que se constituem a partir desse momento. Entender o fluxo de encaminhamento para os serviços especializados e acompanhar os casos referenciados resulta na aproximação do Hospital Geral a outros espaços de cuidado em saúde mental e, por sua vez, tal relação aprimora o cuidado longitudinal.

Quanto às limitações em realizar o estudo, admite-se a exclusão do atendimento a pacientes atendidos por convênios e particulares, o que poderia alterar a caracterização da amostra e revelar outras percepções em relação ao atendimento hospitalar e extra-hospitalar. O atendimento direcionado aos pacientes do Sistema Único de Saúde é característica do Programa de Residência Multiprofissional de Saúde.

 

Considerações Finais

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise do atendimento a pacientes psiquiátricos no contexto de urgência e emergência, pensando no serviço prestado por Hospital Geral que não possui unidade específica para internações psiquiátricas, dispondo apenas de dois leitos para esse contexto de hospitalização. Ao mapear o perfil desse público alvo, verificou-se que a grande maioria percebe positivamente o serviço ofertado nesse espaço, mas ainda há críticas com relação à ambiência, denotando a dificuldade também para os profissionais de saúde em trabalhar com uma grande demanda e pouco tempo ou espaço.

Percebeu-se também, através dos questionários, que todos os pacientes passaram em algum momento pela RAPS, mesmo aqueles que buscaram acompanhamento especializado na rede privada. No cenário atual, a assistência à saúde mental cumpre o seu papel mesmo com alguns (des)encontros, pois nota-se a dificuldade dos pacientes em aderirem ao tratamento. Além disso, muitos deles recusam-se a participar dos grupos terapêuticos, solicitando acompanhamento individual o que, somado à extensa lista de espera, resulta em atendimentos quinzenais ou mensais.

Observou-se que, apesar da mudança na ótica de atendimento a pacientes psiquiátricos nos serviços de saúde, inclusive o papel do Hospital Geral, ainda se utiliza da contenção química/medicamentosa como forma prioritária no manejo desses pacientes. Tal situação precisa ser revista, principalmente pela equipe médica, considerando outras terapêuticas e sendo a equipe capacitada para o manejo verbal e situacional em situação de crise psiquiátrica.

Dada a importância de discutir-se sobre o atendimento à saúde mental e seus dispositivos, o trabalho buscou mapear o serviço ofertado não só no hospital, mas também na RAPS, pensando no cuidado longitudinal e na importância dos pacientes se sentirem inseridos nos serviços. Já com relação à percepção dos pacientes, foi possível refletir sobre o cenário dos dispositivos psiquiátricos ao longo da história, denunciando algumas semelhanças baseadas no modelo arcaico (manicomial) e que se encontram enraizadas no imaginário e na cultura social.

O cuidado em saúde mental ainda é centralizado nos CAPS, utilizando-se da hospitalização para as urgências psiquiátricas. Com o crescente número de pacientes com demanda em saúde mental atendidos nas emergências psiquiátricas, é necessário que se aprimore o fluxo de atendimento e se invista na capacitação da equipe. Ressalta-se que, neste escopo de atendimento, o trabalho humano é muito mais importante do que o material técnico-científico e, por isso, a humanização é política que atravessa esse espaço e se mostra fundamental para um cuidado de qualidade.

Foi surpreendente observar que grande parte dos entrevistados recebiam apoio familiar ainda que o manejo necessitasse ser trabalhado. Nesse sentido, cabe enfatizar que o apoio familiar se mostrou como facilitador à adesão ao tratamento, mas requer que os profissionais de saúde trabalhem sobre a continuidade após alta hospitalar, corresponsabilizando familiares e pacientes.

Conclui-se que é preciso pensar o período de hospitalização na emergência enquanto um momento de resgate do sujeito para que haja não só auxilio em atravessar a crise, mas que se reflita sobre a continuidade do cuidado, pensando nos dispositivos que poderão acompanhá-lo. Nota-se ainda a riqueza da inserção da Psicologia no contexto das emergências psiquiátricas, sendo um novo conhecimento nesse espaço que desafia o fazer da Psicologia e suscita novas terapêuticas.

 

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