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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.17 no.1 Porto Alegre jul. 2013

 

ARTIGOS

 

A vincularidade enquanto malha e seu esgarçamento ante o luto

 

The vincularity while mesh and its fraying before the mourning

 

 

Déa E. Berttran1; Isabel Cristina Gomes2, I

I Professora Titular do Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, IPUSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O cinema tem desempenhado papel importante como um aliado na tipificação de vivências que exemplificam a materialidade de teorias psicológicas e psicanalíticas. É com esse intuito que a película “Reencontrando a felicidade” foi utilizada enquanto mediação ao conceito de vincularidade entre casais, demonstrando a interface entre aspectos intrapsíquicos, intersubjetivos e geracionais, numa vivência traumática de perda parental, comprometendo também o conjugal. Vale ressaltar ainda que, dentro do modelo tradicional de família, conjugalidade e parentalidade encontram-se intrinsecamente ligadas. A perda de um filho, destituindo o casal parental, só permite a existência do casal conjugal, após a dissolução do mesmo, pelo respeito à vivência individual da dor e da elaboração do luto, seguindo o ritmo de cada um. É necessário quebrar a idealização inicial que os juntou para que um novo pacto os una.

Palavras-chave: Vincularidade, Perda parental, Relação amorosa, Conjugalidade.


ABSTRACT

The cinema has played an important role as an ally in the typification of experiences that exemplify the materiality of psychological and psychoanalytical theories. It is with this intention that the movie “Habbit Hole” was used as the mediation of vincularity between couples, demonstrating the interface between intrapsychic, interpsychic and generational aspects, in a traumatic experience of parental loss, also harming the couple. It is worth noting that, within the traditional model of family, conjugality and parenthood are intrinsically linked. The loss of a son, dismissing the parental couple, only allows the existence of the conjugal couple, after the dissolution of it, through the respect to the individual experience of pain and the elaboration of mourning, following the rhythm of each one. It is necessary to break the initial idealization that brought them together for a new pact with the same purpose.

Keywords: Vincularity, Parental loss, Loving relationship, Conjugality.


 

 

A dor que tece a trama: da perda do parental à retomada do conjugal

O cinema, criado pelos irmãos Lumière em 1895 com o objetivo do entretenimento (Braga, 2004), tem desempenhado um papel extremamente importante enquanto exemplificador de vivências por meio de personagens contextualizados em dada realidade. Ao captar o movimento fornecido pelo corpo dos atores frente a um roteiro concebido sob formato ficcional, em função de uma história a ser contada, os filmes sensibilizam a quem os assiste. Com isso, momentos da história da humanidade podem ser recriados, culturas diversas e restritas ao local em que existem podem ser retratadas e, assim, ter comungadas suas características peculiares, múltiplas existências podem demonstrar a gama infinita de possibilidades humanas de ser, pensar, agir, sentir.

Além dessas especificidades, o cinema também se presta enquanto instrumento pedagógico (Reia-Baptista, 1995); principalmente no caso da Psicologia e da Psicanálise, ele é um aliado na tipificação de situações da materialidade dessas teorias. É com esse intuito que se faz uso da película Reencontrando a felicidade, no original Habbit Hole, um drama americano dirigido por John Cameron Mitchell no ano de 2010, com Nicole Kidman e Aaron Eckhart como protagonistas, utilizada enquanto mediação ao conceito de vincularidade entre casais, demonstrando a interface entre aspectos intrapsíquicos, intersubjetivos e geracionais, numa vivência traumática de perda parental, comprometendo também o conjugal.

A análise do material contido no filme expõe situações reais experenciadas por muitos casais e famílias que sofrem com a perda de entes queridos, permeando os consultórios de todo terapeuta, seja ele de clínica individual ou familiar.

Nesse artigo, optamos por utilizar um material não clínico que nos permitisse maior leveza e criatividade nas análises, sem o evidente compromisso ético que o relato de caso exige, com o intuito de também contribuir com a psicoterapia psicanalítica de casais e/ou família.

 

As evidências do drama são anunciadas

Neste filme tem-se um casal de faixa etária acima dos trinta anos, inserido no padrão tradicional americano: uma linda casa com um aprazível jardim, vizinhos com quem convive, a esposa desempenha as funções de mãe e dona de casa, o marido é o provedor do casal. Vale ressaltar que esta esposa apresenta-se como uma ex-executiva em função de num passado recente ter optado pela maternidade.

As origens de Holwie, o marido, não aparecem somente as da esposa, Becca, que possui mãe e irmã, mas são informações que se constroem aos poucos, cenas isoladas que, contudo, irão dimensionar exatamente o perfil da dinâmica psíquica do casal e de suas relações com os demais.

O clima emocional de silêncio se impõe já em sua primeira cena: Becca, a esposa, está plantando flores em seu jardim, aparente calma que se traduz em sorriso facial, interrompida pela vizinha que a convida para um almoço no dia seguinte. Becca lamenta ter outro compromisso, enquanto observa a senhora pisar na flor que acabara de plantar. Após sua saída e desculpas, ela olha desanimada para as pétalas espezinhadas.

A cena seguinte completa a primeira: Becca faz o almoço enquanto olha pela janela a vizinha a realizar o seu, com convidados e clima de festa, antes de fechar a cortina à entrada de Holwie, seu marido. Ela lhe explica sobre o convite, diz que não queria ir e por isso desculpou-se. Ele argumenta que provavelmente a vizinha só está querendo agradá-la, ela faz que entende, ele se aproxima dela de forma mais carinhosa, ela o dispensa dizendo estar com a panela quente. Ele não insiste, simplesmente sai.

O que se tem, então, é um casal com defesas psíquicas acionadas, ou seja, algo abalou o vínculo amoroso que tinham, embora exista uma estrutura aparente a manter os papeis maritais.

Becca sugere estar no controle, chega a socorrer a irmã em apuros, envolvida em uma briga de bar, a lhe aconselhar a ser mais madura, mas se fecha ao observar, de longe, o marido olhar, pelo celular, um vídeo, entretido na saudade que as imagens e os sons da risada de uma criança nele despertam. Ela a princípio imobiliza-se, depois engole em seco e vai embora sem se fazer notar.

Os dois momentos seguintes expõem indiretamente o trauma do casal: Holwie é inquirido por um amigo se já pensou em ter outro filho e, à noite, ele e Becca vão a um grupo de autoajuda integrado por pais que perderam seus filhos. Ali se percebe o tamanho da angústia dela, pois Becca não resiste ao ouvir o depoimento de um casal dizendo que Deus havia necessitado de um anjo ao seu lado, por isso levara a sua filhinha, interrompe-o a perguntar por que, então, Ele não criou um anjo. Mais tarde, revelará a intensidade de sua revolta ao dizer que, se Ele existe, é um canalha sádico.

 

Cenas que compõem os tristes quadros da perda

O desenrolar da trama vai informando, aqui e ali, sobre o que aconteceu: eles tinham um cachorro comprado por Holwie, chamado Taz que, um dia, estando o portão para a rua destrancado, correu atrás de um esquilo, atravessando a rua. Danny, o filho de quatro anos, correu atrás do cão e, assim, foi atropelado por um jovem estudante do ensino médio, prestes a entrar na faculdade, Jason. Se Holwie havia destrancado o portão, Becca, por sua vez, havia ido atender ao telefone, ou seja, não houve nada a impedir o trágico acontecimento. Como consequência, Taz é enviado para a casa da mãe de Becca e o silêncio impera na casa do casal.

Tentam tocar a vida, Becca aceita frequentar o grupo de autoajuda a pedido de Holwie, mas a sucessão de cenas mostra que ela está sob forte repressão, a qualquer momento rompendo seu aparente equilíbrio em atitudes que denotam justamente o contrário, a falta de controle.

A mãe é uma presença doce, solidária, que tenta fazer com que a filha, Becca, perceba a necessidade de se apoiar em algo para conseguir sobreviver à perda. Conta, para isso, com a sua própria experiência de vida, já que também passou pela morte de Arthur, seu filho de trinta anos que morrera por overdose. Através da comunidade religiosa conseguiu forças para superar a dor. Mas Becca se irrita muito pela comparação que a mãe faz entre um drogado e seu filho ainda criança.

Holwie tem mais recursos para o enfrentamento à dor, tem seu trabalho, joga squash com o amigo, sofre, mas consegue se alimentar da memória afetiva que tem da relação com o filho. Becca, por sua vez, ao ter uma atitude afirmativa, arrumar-se e ir para a cidade visitar ex-companheiros de trabalho, percebe que está fora de cenário, que eles nem trabalham mais lá, que não tem mais função. A relação que mantém é com sua mãe e irmã, sendo que esta última está grávida de um músico que conheceu há semanas, atitude que para a conservadora Becca é como se fosse algo imerecido e com o qual tem dificuldade de lidar, pois a coloca frente a sentimentos e atitudes ambivalentes: como não consegue elaborar a morte do filho, retira os desenhos de Danny pregados na geladeira, mas quer dar suas roupas à irmã grávida, presente que é recusado, já que esta ultima acha estranho visualizar seu filho com as roupas do sobrinho morto. A situação se complica ainda mais com a possibilidade de ser menina, o que gera mais um momento de conflito familiar, fazendo com que Becca doe todos os pertences do garoto. Sua rejeição ao impulso de vida é flagrante ao se afastar de Holwie, quando este a procura sexualmente e, mais ainda, posteriormente, quando entende que ele gostaria de ter outro filho.

É o fim do sonho partilhado. Cada um deles seguirá o seu próprio caminho de elaboração da perda, não como um casal, mas como duas pessoas vivendo experiências sem comungá-las, sem solidariedade nem entendimento das diferenças singulares que, em momentos angustiantes, sobrepõem-se à comunhão do casal.

 

A perda do filho: da culpa ao luto

Há mais de noventa anos Freud já assinalava ser a perda de um objeto amoroso uma “excelente oportunidade para que a ambivalência nas relações amorosas se faça efetiva e manifesta” (Freud, 1917/1974, p. 283). Ou seja: as relações afetivas são passivas às interferências da maneira de ser, e de amar, de cada um – e ama-se do jeito que se aprendeu, já que a identificação é a mais primitiva forma de aprendizagem humana.

A motivação vincular entre Beca e Howie não é explicitada, somente situada, pois se conheceram na faculdade, provável idílio juvenil que se concretizou na maturidade do casamento e sua natural consequência, filhos, seguindo o modelo tradicional de família. Porém um dado se faz ressaltar, a de que Beca abdicou de sua profissão para ser mãe e dona de casa, situação que pressupõe certo tipo de escolha e perda, ou pelo menos a suspensão de atividades para a qual havia se preparado, inclusive ao ingressar na universidade.

A ambivalência da mulher que deseja ser mãe e possuir carreira profissional (Rocha-Coutinho, 2005) é sentimento que habita várias gerações, não só porque a natureza impõe limites ainda hoje inexoráveis, na medida em que a maternidade biológica tem certo período de validade, como o mercado de trabalho, muitas vezes, também prioriza a juventude.

Acredita-se, assim, que ter este filho, para Becca, esteve envolto numa escolha difícil pelo que se pode concluir de sua ida ao local em que trabalhava. Gosto de exclusão provavelmente absorvido pelo prazer da maternidade e suas infinitas tarefas. Entretanto, todo esse mecanismo de buscar no filho e no casamento a satisfação pela possível perda profissional é rompido com a morte da criança.

Becca não se mostra preenchida por memórias afetivas nutridoras de sua relação com o filho, ao contrário, seus sentimentos são conflituosos, como se a energia do amor que tinha se voltasse contra si própria, na autorrecriminação que não encontra alívio tal é sua insatisfação consigo mesma e com a realidade que se impôs; impedindo-a de elaborar o luto e seguir adiante com sua vida.

Perder um filho é se ver confrontado com a subversão da hierarquia clássica do ciclo biológico - a morte do gerado acontecer antes daquele que o gerou (Bromberg, 1997). Geralmente a interrupção no curso linear da vida demanda angústias inomináveis, deixando o ser humano à deriva, esperando, confuso, o que estará reservado para si. Diante de um vazio de elucidações, o medo é inevitável e paralisante (Bittencourt, Quintana & Velho, 2011). Como o filme claramente elucida, a morte de um filho é sempre encarada pelos pais como uma perda precoce, o que dirá quando ela ocorre em tenra infância, agravando nesse caso o sentimento parental de culpa e fracasso frente à fantasia do amor superprotetor que cura e protege a criança de todos os males, o que vem a se constituir em fator de risco acentuado para a possibilidade da vivência de um luto de difícil resolução, predisposto a cristalizar os sentimentos de perda, de culpa, de desistência (Bromberg, 1997; Freitas, 2000).

A temática da morte, no geral, é sempre envolta por sentimentos angustiantes e remete o ser humano a várias indagações, na medida em que comprova sua finitude e a dificuldade em aceitar essa condição. Alguns indivíduos buscam consolo na religião, na vasta literatura de autoajuda, nos grupos de apoio comunitários (Rebelo, 2005) e na própria família. Esta, para sua resiliência frente à morte de um dos seus, pode solicitar a ajuda de um terapeuta ou apoio social de amigos ou outros familiares (Greef, Vansteenwegen & Herbiest, 2011). Contudo, em todos a vivência do processo de luto é necessária.

O luto ocorre quando a pessoa, desestruturada pela perda, recolhe-se no si mesmo e nega o impulso de vida, por certo tempo, até conseguir metabolizar este sofrimento e voltar a se abrir para novas possibilidades de investimento amoroso. Por vezes, ao encontrar terreno fértil naquele que não se desenvolveu emocionalmente, sob condições amenas e supridoras de suas necessidades, desencadeia estados melancólicos. Neste último caso, a autoestima se vê comprometida e a culpabilização ganha espaço, gerando uma recusa em prosseguir e permanecendo a cristalização da negação da vida. É o trauma que, por sua intensidade de emoções, desestabiliza a tal ponto o ser que o sente que a consequência é a tentativa de ausentar-se do fato, negá-lo, fazer de conta que nunca existiu, violência psíquica que requer tempo para ser aceita, compreendida, indexada à personalidade como experiência de vida (Ruíz-Correa, 2008).

Para Becca, perdido o sonho de ser mãe, encerra-se também o sonho de ser dona de casa e esposa – como lidar com o marido, ser desejante que se apresenta em movimento, enquanto ela cada vez mais se cristaliza em sua dor? Frente a uma parentalidade destruída, o conjugal torna-se destituído, principalmente pelo vértice de uma esposa melancólica.

Howie busca refúgio no trabalho, alimentado pelo papel de provedor de uma família traumatizada, mas ainda assim esperançoso por um recomeço. A identidade profissional, de homem ainda sedutor, desvinculando sexualidade e conjugalidade de parentalidade, permite-lhe encontrar um caminho para elaboração do luto. Esse processo passa pelas etapas de se permitir viver a perda, sentir a falta e a saudade do filho, recordar momentos bons, mantendo viva a lembrança doída por meio da presença de fotos e filmes, que a esposa quer aniquilar, tentando negar a existência do menino, como defesa para evitar o seu sofrimento.

Dessa forma, o marido procura lidar com a dor enfrentando-a, dividindo-a com amigos, no grupo terapêutico, buscando soluções saudáveis para o trauma vivido, privilegiando a relação interpessoal. Sem autorrecriminações, aceita os limites do inaceitável. É aqui que suas condições intrapsíquicas se distinguem notadamente da esposa. Não se trata de empreender nesse momento uma discussão acerca do amor diferenciado entre pai e mãe e seus filhos, e nos parece que também não é a tônica do filme. Mas sim, pontuar a influência dos modelos geracionais e características individuais que podem ser facilitadores ou não para a elaboração de um processo de luto.

Em se tratando de Becca observamos um mecanismo de maior complexidade, não só pela questão delicada que é sugerida entre a escolha por construir uma família e o abandono profissional, mas, ela ainda tem que lidar com a inveja suscitada pela gravidez da irmã, retomando o ciúme fraterno de forma bastante intensa e a própria contraposição entre vida e morte; bem como a identificação com a mãe que também perdeu um filho. Alguém que, afinal, pode entender sua dor, aspecto intergeracional que se repete: ambas vivenciam o filho morto, o legado do sofrimento e seu acolhimento, na possibilidade do compreensível, é partilhado. Entretanto, devido à imaturidade da irmã e a drogadição do irmão, pelo grau de severidade consigo mesma, sentindo-se sob controle brutal de uma crítica que não a permite pedir ajuda, assumir a fragilidade, e que a impede de chorar, gritar, esvair seus sentimentos pelo acontecido e irrecuperável, pressupõe-se que tenha sido a primogênita que talvez tivesse sido forçada a se desenvolver precocemente para ajudar a mãe casada com um marido que, em sua opinião, tal qual Deus, era um canalha sádico.

Já Holwie aparece como alguém sem história anterior, mas que, pelos recursos psicológicos que demonstra ter, provavelmente foi gestado e tratado por pais que propiciaram que suportasse a desilusão maior, a de perder um filho e, mesmo assim, ser ainda capaz de se iludir e desejar novamente ser pai.

 

O vinculo conjugal: esgarçamento e reparação

A relação amorosa que se consolida em sua oficialização por meio do casamento cria um campo em comum entre dois seres singulares, composto não só por sentimentos manifestos, como também os latentes, aqui entendidos enquanto comunhão de pactos também inconscientes (Kaës, 2011). Com isso, cria-se o interjogo entre os espaços intra e interpsíquicos, acrescidos das heranças geracionais de cada um dos parceiros. Dessa forma, um é o propiciador do desejo do outro e, em via dupla, o elemento impeditivo para que este mesmo desejo possa se realizar.

O vínculo conjugal funda-se nas alianças psíquicas, em oposição à força dos vínculos biológicos, e define-se por determinadas características em que acordos conscientes e inconscientes são demandados. Requer um projeto de vida em comum que no modelo tradicional associa-se à construção de uma família monogâmica, contratos de fidelidade, ênfase na relação afetiva etc. (Berenstein & Puget, 1993).

Em continuidade, o espaço psíquico do casal compreende certa complexidade, pois se liga a sentimentos de pertencimento de várias ordens: ao grupo familiar de origem de cada um e os modelos fusionais de relação mãe/bebê, por exemplo; as vivências de interdição edípicas (relações triangulares) e, por último, a evolução para o se relacionar nos grupos sociais mais amplos, direcionando as experiências pessoais de cada cônjuge antes de se constituir como par. Nota-se, então, que estamos frente a uma configuração muito diferente daquela que exprime apenas a soma de duas pessoas (Donnamaria & Terzis, 2009).

No filme, Becca e Holwie podem ser compreendidos como duas unidades com aspectos subjetivos que são herdeiros de uma linhagem anterior que os precede, como apontado anteriormente. Becca parece preencher um vazio deixado por sua família de origem (observa-se com que sarcasmo ela se dirige ao próprio pai), idealizando a família que constrói, simbolicamente representada na casa bem mobiliada que habita, cuidando primorosamente do jardim e dos demais afazeres domésticos. Holwie, por sua vez, parece repetir o modelo de marido e pai provedor segundo o que recebeu em seu legado.

Ambos, após serem atravessados pela perda do filho, com ressonâncias dessa morte repercutindo em suas instâncias intra e interpsíquicas, vivem desorganizações de várias ordens atingindo brutalmente a manutenção do laço conjugal. É como se a parentalidade, para esse casal, sobrepujasse a conjugalidade, e, a perspectiva de voltar a ser apenas casal fosse ato traidor à inépcia que sentiam pelo acidente ocorrido.

O retraimento de Becca é previsto, assim como a vontade de fugir e esquecer-se da dor nos braços de outra mulher, desejo passageiro de Holwie, já que o luto é momento de crise e, assim o sendo, período em que se pode ter comportamentos não usuais, mas o sofrimento do casal é maior por não conseguirem estabelecer contato, falarem sobre o que sentem, perderem a cumplicidade e respeitarem-se em seus processos singulares. E é esse fato, o da falta de fluidez e flexibilidade na comunicação entre ele e ela, que os predispõem a apresentar maiores empecilhos à superação e elaboração do trauma que carregam (Bromberg, 1997). Ele precisa de um grupo de autoajuda, ela necessita cuidar das flores e se encontrar com o causador de toda a desgraça, mesmo que sem possível culpabilização. O marido busca por novamente poder sonhar e voltar ao ritmo normal de vida, a esposa tem sentimentos que precisam ser destilados sob forma imperativa.

A relação entre eles, assim, se esfria. O contato com o mundo externo, principalmente para Becca, revela-se invasor a quem ela precisa se defender. Holwie a crítica em sua dificuldade de superação dos conflitos e ela se vê lançada na solidão da vitimização que, por assim o ser, coloca-o em posição complementar oposta, a de algoz.

Há possibilidade de reparação? De cada um? Do vínculo conjugal?

A recuperação de ambos se indivualiza sob a égide da sugestão da venda da casa. Casa, esta, contendo as representações (Eiguer, 2004) de continência psíquica (intra e inter) associando-se à idealização da família feliz que, tragicamente desfeita, não tem mais sentido ser mantida.

Ao chegar à casa certa noite, um grande embate acontece quando Holwie nota que Becca havia apagado o vídeo de seu filho em seu celular. Ela nega, diz que não sabia lidar com o aparelho, ele havia insistido para ela utilizá-lo para chamar dado serviço. Ele desabafa, aos gritos, dizendo sentir que ela quer se livrar da presença do filho, que retirou seus desenhos, apagou o vídeo, mandou o cachorro para a casa da mãe. Becca articula que os desenhos estão guardados no porão, a salvo. Ele continua a falar que é como se ele tivesse culpa por ter um dia comprado o cachorro, ela diz que não existem culpados, porque também não estava lá. Ele diz que sente a falta de Taz, o cão, e que era melhor, mesmo, venderem a casa. Ambos sucumbem ao idealizado e perdido.

Entretanto, o diálogo se instala no casal. A conversa é carregada de acusações, contudo se escutam e se reconhecem na dor. Uma dor impossível ainda de gerar aproximação no par conjugal, mas começa a libertá-los da culpa parental.

Becca reencontra no trânsito, casualmente, o jovem que atropelou Danny e isso suscita nela uma curiosidade doentia em saber como ele está seguindo a vida. Na manhã seguinte, consegue ter um momento de relaxamento com sua mãe, conversam sobre o fato desta comparar o filho falecido com o neto morto, porém superam a desavença e conseguem rir juntas, a partir de um caso que a mãe conta de uma amiga absolutamente inconveniente que queria ajudá-la e ao seu luto. A memória partilhada cria identificação entre as duas, mostrando que algo já está a se processar em Becca, abrindo-a para novas perspectivas de sentimentos.

Cena seguinte, Holwie passeia com Taz, seu cão que retornou e, ao repreendê-lo e chegar a machucá-lo por sua intrepidez, tem seu momento de se soltar em lágrimas. É o cão, a quem chama de 'amigo', que contém a sua dor, nele chora abraçado tanto pela morte do filho como pelo fim do sonho.

O filme se encerra com o casal sentado no jardim de mãos dadas olhando o horizonte, após um diálogo em que haviam combinado comprar um presente para o aniversario da filhinha de um casal de amigos; ou seja, a retomada do conjugal só foi possível pela reparação parental, e na medida em que, individualmente, elaboraram a culpa por não terem conseguido evitar a morte do filho.

 

Considerações finais

Dentro do modelo tradicional de família, conjugalidade e parentalidade encontram-se intrinsecamente ligadas. Nessa medida, traumas e/ou conflitos vividos em uma área, consequentemente, comprometerão o pleno exercício da outra.

O laço conjugal, construído na intersecção dos espaços intra, inter e geracional, caracteriza-se por exercer várias funções, dentre elas a de preencher vazios primitivos de cada um dos cônjuges que, buscam no outro e na família que constituem, de forma ideal, o que não obtiveram em etapas precoces de seus desenvolvimentos, se retroalimentando em vínculos complementares.

Tudo caminha bem até que um trauma, uma crise, uma perda grave questione os mandamentos do pacto inconsciente que os uniu, aflorando fragilidades até então encobertas, negadas e recalcadas. A perda de um filho, destituindo o casal parental, só permite a existência do casal conjugal após a dissolução do mesmo pelo respeito à vivência individual da dor e da elaboração do luto, seguindo o ritmo de cada um. É necessário quebrar a idealização inicial que os juntou para que um novo pacto os una.

Qual o papel do terapeuta de casal frente a esse tipo de demanda? Como criar um espaço de continência para que cada um possa trazer à tona o sofrimento, a des(ilusão) advinda da percepção do outro enquanto diferente e, ainda assim, a possibilidade de se descobrirem e transformarem a forma de se relacionar?

Essa é uma tarefa árdua, quando o casal chega ao consultório dilacerado, desesperançoso, enfrentando uma forte crise causada por uma dor real. Geralmente, a negação e a culpabilização são os mecanismos de defesa mais usados para se lidar com as situações traumáticas, como os apresentados pelos personagens do filme. Entretanto, a dor real ou a perda concreta é apenas um catalizador de todas as dores negadas ou recalcadas até então, em contexto individual ou a dois. Cabe ao terapeuta, portanto, ajudá-los na elucidação e posterior elaboração dos traumas e/ou lutos, permitindo com isso a instauração de uma nova relação.

Para isso, temos que enfrentar um paradoxo: na medida em que todo ser humano tem uma tendência instintiva de evitação à dor, as psicoterapias psicanalíticas em geral, e especificamente a de casal, por estarem os dois parceiros presentes, colocaria em questão essa máxima, já que é uma intervenção terapêutica que exige o contato com a dor real e suas derivações inconscientes. Talvez, por isso, a película tenha escolhido como alternativas de tratamento o grupo de apoio comunitário, sem desconsiderar que é um formato terapêutico muito utilizado na cultura americana, e a própria família extensa, no caso a da esposa. Mas, assim, deixa exposta a fragilidade do vínculo conjugal para lidar com a perda parental.

A psicoterapia pode se configurar em medida saudável na busca do reajustamento que a vida impinge ao casal, a fim de que tenham o espaço acolhedor adequado para suas falas sofridas, para que possam sentir raiva, desespero, ansiedade suprema, porém com o apoio profissional de alguém pronto a dar continência a essa explosão afetiva, de amor e de rancor. Um profissional que, por sua vez, também já tenha elaborado suas próprias perdas, a fim de se constituir em porto seguro e, ao mesmo tempo, favorecer que esta mãe e este pai se sintam livres para projetar perspectivas no horizonte de suas vidas (Freitas, 2000).

Becca e Holwie, personagens comuns com uma dor incomum; aquela que faz cessar o futuro dos pais, a possibilidade de se renovarem junto ao desenvolvimento dos filhos e a se sentirem germinando através das gerações. Legado e pertencimento que se estabelecem quando um casal inicia uma família, levando muitos cônjuges a se perderem nos meandros desse trauma e da revolta que pede um alento, outra possibilidade de saída além da angústia. Muitas famílias se enredam em acusações estéreis, catarses emocionais que explodem sem serem canalizadas para uma compreensão de todas essas emoções, que podem ser melhor elaboradas no espaço terapêutico comum a toda a família, ou seja, na psicoterapia familiar.

É ainda função da(s) psicoterapia(s), nesses casos, a retomada do ciclo familiar que, após a morte, pode gerar um novo nascimento; a consciência da limitação que o morrer impõe à existência e a aceitação da impotência ante fato tão devastador; o reposicionamento da pessoa em sua trajetória de vida e o reajustamento a um novo presente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Déa E. Berttran
E-mail: deaeberttran@gmail.com

Recebido em: 06/10/2012
Revisado em: 31/01/2013
Aceito em: 29/04/2013

 

1 Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, IPUSP.
2 Professora Titular do Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, IPUSP.