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Pensando familias

versión impresa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.18 no.1 Porto Alegre jun. 2014

 

ARTIGOS

 

O processo de luto no contexto do API-ES: aproximando as narrativas

 

Bereavement in the API-ES context: aproaching narratives

 

 

Alzira da Penha Costa Davel1, I; Daniela Reis e Silva2, I

I Apoio a Perdas Irreparáveis - API-ES

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar reflexões sobre a contribuição de um grupo de suporte ao luto para o desdobramento do processo de enlutamento de pais3. O API-ES (Apoio a Perdas Irreparáveis) é um grupo de suporte social ao luto e reúne-se mensalmente sob a coordenação de uma psicóloga, congregando participantes enlutados por diversos tipos de perdas (de pais, irmãos, filhos e outros parentes, em geral) com causas variadas (aborto, doença, acidente automobilístico, suicídio, assassinato, entre outras).Foram observados relatos de pais e mães que perderam filhos, no período entre junho de 2007 e junho 2011. Articulando pressupostos de algumas Teorias do Luto e da Teoria Narrativa foram selecionados relatos que revelaram sentimentos e pensamentos relacionados às suas perdas, a si mesmos, ao suporte social e ao grupo, bem como ressonâncias decorrentes das experiências vivenciadas no percurso do luto de uma das autoras.

Palavras-chave: Luto, Teoria narrativa, Compartilhamento, Grupo de apoio, Ressonância.


ABSTRACT

This article aims to present reflections on the input of a grief support group for the unfolding process of bereaved parents. The API-ES (Irreparable Losses Support Group) is a social support group for bereavement and meets monthly under the supervision of a psychologist, gathering participants bereaved by different kinds of losses (parents, siblings, children and other relatives in general) of several causes (abortion, disease, car accident, suicide, murder, among others). Reports of fathers and mothers who lost their children in the period between June 2007 and June 2011 were observed. Articulating assumptions of some Theories of Grief and Narrative Theory there were selected reports that revealed feelings and thoughts related to their own losses, to themselves, to social support and to the group as well as resonances arising from experiences in the path of mourning of one of the authors.

Keywords: Bereavement, Narrative theory, Sharing, Support group, Resonance.


 

 

Este trabalho propõe-se a refletir, a partir do viés das práticas narrativas, sobre o desdobramento do processo de luto em enlutados participantes do API - Apoio a Perdas Irreparáveis, uma rede de apoio ao luto, e sua contribuição para este processo.

Essa rede teve início em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1997, por iniciativa do casal Eduardo e Gláucia Tavares, médico e psicóloga, respectivamente, após a perda de uma filha em acidente automobilístico (Tavares, 2001). Compartilhando sua experiência com outros pais que também perderam seus filhos, reuniam-se em suas próprias residências. Aos poucos as reuniões foram se ampliando, abarcando ao longo desses anos mais de 400 famílias, estendendo-se por diferentes cidades de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo. Em cada cidade, o grupo tomou uma forma diferente, sendo coordenado por enlutados e/ou por profissionais especialistas em luto. Em Vitória, Espírito Santo, a rede teve início no ano de 2005, coordenado por uma psicóloga especialista em luto, em conjunto com um casal que havia perdido sua única filha, mobilizando inicialmente enlutados próximos aos mesmos. O grupo consolidou-se ao longo dos anos, tornando-se referência, conquistando a cessão de uma sala em uma universidade particular que acolheu a proposta, reunindo-se mensalmente, já tendo recebido em torno de 80 famílias.

O interesse por desenvolver este tema, deve-se ao fato de que uma das autoras do presente trabalho participou ativamente da implantação do API em Vitória, desde as primeiras reuniões. Assim, ao longo do curso de Pós-Graduação em Intervenção Sistêmica com Famílias, a interlocução entre as autoras permitiu perceber que a iniciativa do API em acolher pessoas enlutadas por diferentes tipos de perda, proporciona resultados que se encaixam em alguns pressupostos da Teoria Narrativa.

Desse modo, a participação ativa de uma das autoras no grupo, no período de junho de 2007 a junho de 2011, proporcionou ressonâncias amplamente discutidas a partir do interesse em compreender o processo de luto facilitado por esta rede de apoio, formada em torno de cada enlutado.

Trata-se de um espaço de compartilhamento de emoções, sentimentos e experiências a partir de uma perda, com reuniões mensais abertas, não havendo obrigatoriedade de participação em todas as reuniões, sem conotação religiosa, no qual as pessoas podem expressar seus sentimentos em relação às suas perdas e como lidam com elas. Cada reunião tem duração aproximada de três horas, e cada participante é convidado a falar sobre a perda, seguindo ou não um tema, de acordo com a decisão da coordenação. É um trabalho voluntário e não há qualquer custo para os participantes.

O grupo recebe enlutados, por diferentes tipos de perda (abortos, doenças agudas e crônicas, acidentes de naturezas diversas, suicídios, assassinatos), principalmente por morte de filhos, estendendo-se a pais, irmãos, cônjuges e outros vínculos afetivos. Inicialmente grande parte dos participantes foi convidada por sua coordenadora, passando a receber outros enlutados por intermédio de outros participantes, de profissionais da área de saúde e leigos que passaram a conhecer o trabalho do API e, esporádica e mais recentemente, da imprensa.

Como não há restrição para a participação, o grupo é frequentado por pessoas com idades variadas, incluindo adolescentes em algumas ocasiões (muitas vezes vão acompanhar seus pais e/ou avós), e de profissões diversas, sendo a maioria com nível superior completo. Também são variadas as idades de quem morreu – de bebês a idosos.

Para fins deste estudo, a ênfase será dada ao luto dos pais e sua correlação com as narrativas, em função de ressonâncias que se estabelecem com a história de uma das autoras, enfatizando a singularidade da relação entre pais e filhos. Conforme ressalta Silva (2009, p. 97), a perda de um filho é um tipo de perda “que deixa os pais ainda mais vulneráveis, por considerarem como uma falha em sua função básica de proteção”.

É importante destacar que a condição de participante do API de uma das autoras é considerada uma fonte de riqueza para a construção deste trabalho, sendo levada em consideração como um colorido especial nas tintas das narrativas escolhidas.

Ao chegar ao API, como é comum nos enlutados recentes, esta encontrava-se em um estado de fragilidade e desorganização emocional, estando mais voltada para seu próprio processo individual. No decorrer dos dois anos consecutivos, já em condições emocionais, consideradas por ela razoáveis (sic) passou a perceber sensíveis diferenças nos relatos dos participantes, de um encontro a outro, iniciando reflexões importantes acerca do luto de todos os pais participantes, e que agora articula à Teoria Narrativa, incluindo o movimento do grupo.

 

Perda e luto

Estudos de várias áreas do conhecimento têm apresentado diferentes fundamentações teóricas relacionadas ao enfrentamento de perdas. A psicologia dá enfoque às relações familiares, principalmente na infância, como alicerces que fazem do indivíduo um ser forte para enfrentar e ser capaz de superar determinadas crises. Em contrapartida, a sociologia evidencia a influência do contexto sociocultural e dos costumes que, somados, constroem a capacidade do indivíduo para enfrentar dificuldades. Por sua vez, a biologia prima por uma visão na qual cada ser humano é dotado de um potencial genético que o faz ser mais resistente do que outros. De outro modo, a teologia prioriza a questão do transcendente, no âmbito da subjetividade, com uma compreensão de que o sofrimento tem influência para se alcançar a espiritualidade.

São muitas as adversidades que os indivíduos podem atravessar durante seu ciclo vital: além das transições das etapas esperadas, a perda de um emprego, mudanças de residência, doenças graves, físicas ou psíquicas, de um familiar ou si mesmos, incluindo a morte precoce. Dentre essas, a perda de uma pessoa significativa, a de um filho, por exemplo, parece ser a maior delas, promovendo grande desgaste emocional e físico.

A dificuldade de aceitação da morte pelo ser humano prende-se a seu caráter paradoxal, suscitando apelos à religião, à filosofia e à ciência, na busca de explicações diante do fenômeno indissolúvel entre vida e morte (Morin, 1976). A consciência da finitude desperta no ser humano, indagações acerca de sua existência, gerando um conjunto de sentimentos como insegurança, medo, desamparo e ansiedade. Sentimentos esses, por vezes, contraditórios e angustiantes porque, se por um lado, as pessoas admitem a possibilidade da morte, por outro, sentem-se imortais e evitam falar ou pensar sobre o assunto (Ariès, 1989).

Segundo este último autor, abreviar os sentimentos decorrentes da perda é uma herança cultural da sociedade ocidental, desde o século XIX, havendo uma tendência cada vez maior de negar a morte socialmente, tornando-a cada vez menos ritualizada, desenvolvendo-se uma espécie de tabu em torno dela, como um fenômeno que deveria ser contestado e evitado. Ressalta que a modernidade é marcada pelo individualismo porque a morte não representa mais a continuação da comunidade como um todo tendo adquirido uma conotação trágica e, por isso, mais difícil de ser enfrentada.

O luto é uma resposta ao rompimento de um vínculo significativo para o indivíduo, uma resposta natural e esperada após uma perda simbólica ou concreta importante (Bowlby, 1997 e Parkes, 1998). Segundo Silva (2009), todas as perdas envolvem mudanças e exigem uma reorganização individual e familiar interna e externa, com vistas a promover novas formas de lidar com as situações que se apresentam.

Diversos estudos apresentam nomenclaturas para o diagnóstico do luto normal/saudável, complicado, crônico, adiado, negado, presumido, entre outros, e a previsibilidade de tempo de duração das reações esperadas no percurso, os quais não serão aqui todos aprofundados. Para Bowlby (1997), o que caracteriza o luto saudável é a aceitação da modificação do mundo externo, ligada à perda definitiva do ente querido e à consequente modificação do mundo interno e representacional, com a organização dos vínculos que permanecem.

A caracterização do luto complicado, conforme o entendimento de Parkes (2009) e de Silva (2009) relaciona-se às perturbações de sintomas intrusivos, de ansiedade da separação, da descrença prolongada, cujas características assemelham-se às dos transtornos psiquiátricos. O luto pode ser considerado complicado quando o processo é muito prolongado e causa disfunções na vida do indivíduo, prejudicando suas atividades.

Nesse sentido, os principais estudiosos sobre o luto e suas reações preveem a existência de um luto normal decorrente da perda, estabelecendo parâmetros para avaliação da pessoa enlutada, com relação à intensidade e à duração do processo, com uma variação de três a cinco fases, que consideram úteis para o acompanhamento profissional, de acordo com Silva (2009). Citando especificamente os estágios previstos por Bowlby (1998) como uma sequência de estados subjetivos que acompanham o enlutamento, tem-se:

(i)- Fase de entorpecimento que geralmente dura de algumas horas ou semanas. A resposta inicial à perda oferece uma espécie de proteção à pessoa enlutada, pois evita o reconhecimento da dimensão e extensão do sofrimento e de suas consequências. Essa particularidade parece ser mais comum e/ou mais intensa quando se trata de perdas inesperadas e prematuras; (ii) - Fase de anseio e busca da figura perdida, que pode durar alguns meses e por vezes anos. É uma busca infrutífera que produz reação de raiva, protesto, frustração pela impossibilidade de recuperação do objetivo desejado; (iii) - Fase de desorganização e desespero. O sentimento de desespero e frustração concentrados permanentemente deixa poucas possibilidades de resolução do conflito: o mundo interior do ‘sobrevivente’ parece não combinar com o contexto externo do mundo; (iv) - Fase de maior ou menor grau de reorganização. Na medida em que o sofrimento gradualmente diminui, permite a ressignificação da relação com o ente perdido em uma outra perspectiva e de novas relações com o mundo.

No entanto, essas fases, embora didaticamente positivas para o acompanhamento psicológico (Bowlby, 1998) podem não ocorrer necessariamente na mesma ordem, da mesma forma e em tempo predeterminado, pois são muitas as nuances que permeiam os processos de luto, e, considerando que cada ser humano experiencia a perda a sua maneira, torna-se difícil a delimitação inflexível de fases pré-determinadas que normatize o processo.

Na revisão da literatura realizada por Neimeyer (2001, In Rangel, 2008), analisando os modelos tradicionais de luto considera que há uma desvalorização do enlutado, uma vez que esse sofre pressões externas quando vivencia transições psicológicas. Encontra posicionamentos que questionam o pressuposto de estágios em detrimento de significados e ações, argumentando que as teorias tradicionais privilegiam o individualismo, já que o luto se daria como um processo exclusivamente privado, sem considerar a experiência e a particularidade do contexto das relações humanas. Acrescenta que teorias sobre o luto estão surgindo, dentre elas, a da continuidade do vínculo, destacando os seguintes elementos comuns:

(i)questionamento da universalidade da trajetória que o enlutado faz desde o desequilíbrio inicial pós-perda até o reajustamento; (ii) reconhecimento do papel potencialmente saudável da continuidade dos vínculos simbólicos que o enlutado mantém com o morto, contrariamente ao pressuposto da retirada da energia dirigida ao morto para um enlutamento bem sucedido; (iii) valorização dos aspectos cognitivos como complemento às reações emocionais, que sempre foram o foco principal; (iv) focalização nos diferentes grupos culturais; (v) aumento da consciência de que a modificação do senso de identidade em perdas maiores necessita de profundas revisões; (vi) aumento da apreciação da possibilidade de crescimento pós-traumática em uma adaptação que integra as lições da perda; (vii) ampliação do entendimento da experiência individual do sobrevivente que é negociada em contextos familiares e sociais mais amplos.

Uma das principais contraposições do autor supracitado é que Bowlby (1998) não dá importância à continuidade do vínculo, mas se refere a sua existência, observando a persistência entre o sobrevivente e a pessoa que faleceu, o predomínio de uma sensação constante da presença dessa pessoa, mesmo em processos de luto considerados favoráveis.

De acordo com Silva (2009), outros trabalhos mais recentes, como os de Klass (1999) e Klugman (2006) tem se destacado e valorizado a continuidade dos vínculos, sem a necessidade de ter que viver sem a pessoa falecida, podendo-se manter com ela algum tipo de relacionamento pessoal, entendidos como certos tipos de contato, que podem ser sonhos, sons, cheiros, conversações, entre outros. É um entendimento que esta autora corrobora, diferente de alguns profissionais que enfocam o aspecto da funcionalidade humana e a retomada eficiente das atividades, o mais rápido possível.

Abordar o comportamento das pessoas pela perda de entes significativos envolve o questionamento a respeito da resiliência, cujo termo, desenvolvido e investigado no âmbito das ciências humanas, refere-se à capacidade do ser humano enfrentar determinadas adversidades, e com isso, se fortalecer ou permanecer submerso no sofrimento. Esse termo originou-se do campo das ciências exatas, especificamente da física, que se relaciona à capacidade dos materiais de resistirem aos choques. Esse conceito é bastante discutido por Walsh (2005) que entende a resiliência “como a capacidade de se renascer da adversidade fortalecido e com mais recursos. É um processo ativo de resistência, reestruturação e crescimento em resposta à crise e ao desafio” (p. 4). A esse respeito, algumas perguntas são suscitadas imediatamente: por que certos indivíduos têm a capacidade de se reerguer após um grande trauma enquanto outros permanecem submersos na dor? Quais os elementos que contribuem para que esse processo ocorra? Existe alguma maneira que se possa contribuir para um bom desdobramento do processo de luto?

Segundo Silva (2005), não há possibilidade de se detectar com clareza quais fatores culturais ou míticos impulsionam para uma mudança ou uma paralisação no processo de luto. Porém, as adversidades não impedem algumas pessoas de transformá-las em recursos de vida, mesmo com dificuldades. Essa capacidade de elaboração e enfrentamento após uma perda significativa parece ser variável, conforme a característica do indivíduo e o contexto sócio-cultural em que se dá o impacto do estressor, pois alguns conseguem continuar dando um sentido as suas vidas, enquanto outros atingem à desestruturação.

Estudos mais recentes apontam que o processo de luto é um fenômeno biopsicossocial que envolve diversas reações levando em conta características individuais com diferentes manifestações. Manifestações essas, que a sociedade ocidental contemporânea, por tradição, tem dificuldades para enfrentar e entender, não deixando espaço para serem compartilhadas. E, um modo de compartilhar pode acontecer por meio das narrativas.

Nesse sentido, várias áreas do conhecimento têm apresentado fundamentações teóricas referentes ao enfrentamento de perda. A psicologia dá enfoque às relações familiares, principalmente na infância, como alicerces que fazem do indivíduo um ser forte; para enfrentar e ser capaz de superar determinadas crises. Em contrapartida, a sociologia evidencia a influência do contexto sócio-cultural e dos costumes que, somados, constroem a capacidade do indivíduo para enfrentar dificuldades. Por sua vez, a biologia prima pela visão de que cada ser humano é dotado de um potencial genético que o faz ser mais resistente do que outros. De outro modo, a teologia prioriza a questão do transcendente, no âmbito da subjetividade, de modo que o sofrimento tem um peso para se alcançar a espiritualidade.

São muitas as adversidades que os indivíduos podem atravessar durante o seu ciclo vital: além das transições das etapas esperadas, de uma parte do corpo, de um emprego, mudanças de residência, doenças graves, físicas ou psíquicas, com um familiar ou com eles próprios, incluindo a morte precoce. Dentre essas, a perda de uma pessoa significativa, a de um filho, por exemplo, parece ser a maior delas, promovendo grande desgaste emocional e físico.

A dificuldade de aceitação da morte pelo ser humano prende-se ao seu caráter paradoxal, suscitando apelos à religião, à filosofia e à ciência, na busca de explicações diante do fenômeno indissolúvel entre vida e morte (Morin, 1976). A consciência da finitude desperta no ser humano, indagações acerca da sua existência, gerando um conjunto de sentimentos como insegurança, medo, desamparo e ansiedade. Sentimentos esses, por vezes, contraditórios e angustiantes porque, se por um lado, as pessoas admitem a possibilidade da morte, por outro, sentem-se imortais e evitam falar ou pensar sobre o assunto (Ariès, 1989).

Segundo este último autor, abreviar os sentimentos decorrentes da perda é uma herança cultural da sociedade ocidental, desde o século XIX, havendo uma tendência cada vez maior de negar a morte socialmente, e tornando-a menos ritualizada, desenvolvendo-se uma espécie de tabu em torno dela, como um fenômeno que deveria ser contestado e evitado. Ressalta que a modernidade é marcada pelo individualismo porque a morte não representa mais a continuação da comunidade como um “todo”, tendo adquirido uma conotação trágica e, por isso, mais difícil de ser enfrentada.

 

As práticas narrativas e o API

A abordagem narrativa foi desenvolvida por Michael White na década de 80, cuja originalidade e inovação foram relevantes no âmbito da Terapia Familiar, uma vez que apresentou um novo modo de visualizar as relações, possibilitando a compreensão dos problemas e de seus efeitos na vida das pessoas e/ou famílias e comunidades, conforme Palma (2008). Ou seja, a Terapia Narrativa busca compreender as pessoas não só a partir de suas histórias, mas como elas são contadas. Parte da premissa de que o ser humano, baseado em seus valores e crenças, tem a capacidade de resgatar a sua história por um prisma diferente, reconstruindo significados.

Um dos principais pilares dessa teoria é a conversação terapêutica baseada em histórias que o autor chama de dominantes e as histórias preferidas ou subordinadas que ficam encobertas e que, ao serem contadas e recontadas, fazem transparecer novos significados sobre a identidade e a história dos indivíduos. Ao perceberem que possuem competência, conseguem lidar com os desafios futuros de suas vidas. São histórias alternativas que possibilitam o fortalecimento e a consciência das pessoas, das famílias e de comunidades. Por meio de perguntas terapêuticas o terapeuta constrói metaforicamente os “andaimes” para alcançar a história preferida. Por meio desse mecanismo podemos entender que nossa vida é uma história que embute muitas outras histórias e que podem ser contadas de diferentes maneiras, pois uma só história contada não abarca todos os fatos contingentes da vida, havendo sempre “brechas” para contradição. Retomando o pensamento de White (1999):

A Terapia Narrativa fala sobre opções para contar e recontar e para o desenvolvimento e re-desenvolvimento das histórias favoritas das vidas das pessoas; retribuir os eventos únicos, contraditórios, contingentes e, às vezes, aberrantes das vidas das pessoas, significantes como presentes alternativos; um re-engajamento e uma produção da história dos presentes alternativos das vidas das pessoas; uma exploração está no presente dos conhecimentos e habilidades alternativos que informam estas expressões, e a identificação da história e localização cultural destes conhecimentos – muitas vezes os conhecimentos subordinados de habilidades da cultura; descrição rica na qual a história alternativa do presente das pessoas é ligada com as histórias alternativas de seu passado – uma ligação das histórias através dos tempos; ligação de histórias entre vidas, de acordo com temas compartilhados que falam de compromissos em comum e uma descrição rica dos contextos para as atividades de contar e recontar e recontar o já recontado (White, 1999, In Palma, 2008, p. 3).

Nessa perspectiva, a pesquisadora (Palma, 2008, p. 5) discorre sobre um mapeamento elaborado por White, sobre alguns recursos utilizados como orientação, os quais podem ser usados de acordo com o estágio do processo terapêutico. Dentre eles, os que mais se encaixam no contexto do API, resumidamente, são: (i) conversas de externalização: o sujeito é visto não como portador do problema, mas vivendo sob os efeitos deste. O exame dos problemas como separados das pessoas, permite que o sujeito e a sua família observem a influência dos problemas na sua vida e a sua influência na vida do problema. O objetivo deste mapa é caracterizar o problema, verificar como ele se relaciona com outras dimensões da vida do sujeito, trazer a experiência do sujeito sobre o desenvolvimento do problema e permitir a consciência das compreensões intencionais de valores atribuídos aos problemas; (ii) conversas de re-lembrança: podem ser trazidas de volta pessoas significativas como “membros do clube da vida” do sujeito, fazendo parte da comunidade de membros/sócios na qual o sujeito pode ter as suas próprias expressões. Essa pessoa significativa, viva ou morta, será lembrada por sua contribuição especial para a vida do sujeito. Pelo uso deste mapa pode-se atingir o propósito de refletir e identificar a contribuição da pessoa significativa para a vida do indivíduo, a identidade do indivíduo aos olhos da pessoa significativa, a contribuição do cliente para a vida da pessoa significativa e as implicações desta contribuição para a identidade da pessoa significativa.

Em tais recursos (mapas) inclui-se também a cerimônia de definição, em que é convocada a presença de testemunhas externas (amigos, familiares ou pessoas significativas) no ato de contar e recontar, que implicam a descrição de metáforas e ressonâncias como maneiras poderosas para o reconhecimento, visibilidade e validação do sujeito, a possibilidade de ser ouvido, visto e conhecido.

Palma (2008), na linha de raciocínio de White (1999), advoga que as práticas narrativas são técnicas apropriadas para se lidar com os traumas e suas consequências, cuja finalidade é tirar o sujeito ou o grupo do centro daquele trauma para outro lugar da sua identidade.

O propósito do API de facilitar o processo de luto por meio do compartilhamento pode ser relacionado às Práticas Narrativas na medida em que as conversas de externalização entre os membros possibilitam visualizar os diferentes modos de compreensão e vivência dos problemas decorrentes das perdas que afetam suas vidas. Essas conversas trazem à tona as imagens, as lembranças significativas das pessoas falecidas e suas formas de relacionamento, que trouxeram contribuição para suas vidas, ou seja, os aspectos valorizados entre a pessoa falecida e o enlutado, como as características pessoais, os fatos, enfim, as experiências vivenciadas.

Enquanto em um espaço de prática privada de profissionais de saúde mental, as testemunhas são convidadas a fazer parte do processo terapêutico para auxiliar na elucidação dos problemas do indivíduo e/ou da família, no grupo essas testemunhas são os membros que, automaticamente, já se encontram presentes, pois, são participantes da mesma reunião. Os relatos das histórias e experiências evocam metáforas que fazem parte do imaginário de quem narra, provocando ressonâncias nos ouvintes.

Essas ressonâncias ocorrem de modo circular num processo de narração e escuta, trazendo à tona sentimentos e experiências, cujos benefícios transitam entre os participantes, sutilmente. Assim, as narrativas constituem-se em um mecanismo que promove um deslocamento na vida das testemunhas pelo impacto da experiência vivenciada.

Ao narrar sua história, o indivíduo deixa lacunas que, no decorrer da narração do outro, por consequência, podem ser preenchidas no momento da escuta. Por mais que as experiências sejam individuais, há sempre traços em comum que podem ser detectados reciprocamente, uma vez que se trata de similaridades em que o tipo de linguagem se afina. Assim, “as narrativas decorrem das tentativas humanas de se relacionarem por meio do discurso ... da ação conjunta entre o narrador e o ouvinte” (Grandesso, 2000, p. 212).

Pode-se dizer que as narrativas são recursos organizadores, pois por intermédio delas os indivíduos conseguem dar vazão aos seus sentimentos, muitas vezes, confusos, carregados de dor, culpa e vazio, e que no decorrer dos encontros adquirem contornos diferentes, mais organizados, favorecendo para uma visão de recomeço, de ressignificação de suas vidas. São elas que possibilitam modelar, recortar, determinar o sentido que é dado à experiência, com ênfase na linguagem desenvolvida pela conversação.

 

API – Apoio a Perdas Irreparáveis: reflexões

O trabalho desse tipo de grupo pode ser relacionado à prática da Terapia Comunitária em que as narrativas podem abrir espaço a reflexões para as relações opressoras de desqualificação e poder que tem a cultura sobre os indivíduos, as famílias e as comunidades. White (1999) entendeu ser essa uma forma de preencher lacunas deixadas por órgãos governamentais que deveriam disponibilizar profissionais para atuar de várias maneiras no trabalho social. Aliás, alguns estudos mostram que trabalhos dessa natureza foram realizados em países do Oriente Médio, África e Austrália por profissionais de saúde mental em comunidades e em domicílios, em épocas de necessidades contingentes, de crises. É uma forma para as pessoas se agruparem para expressão dos seus problemas, explorando recursos para auxiliar na resolução de dificuldades.

Embora sob enfoques um pouco diferenciados, o posicionamento de Neimeyer (2001, In Rangel, 2008) sobre a continuidade do vínculo aproxima-se ao de White (2004) nas Práticas Narrativas. Esse último enfatiza que uma forma gradativa de aceitação da perda e de torná-la mais amena é usar a metáfora de dizer olá de novo, ao invés de dizer adeus, sendo esse um modo de o indivíduo empreender uma nova forma de viver, evitando-se, também tratamentos prolongados à base de medicamentos. De acordo com seu entendimento, fazer perguntas aos clientes é uma forma eficaz de encorajá-los a reivindicar versões alternativas, revivendo suas experiências. Ao reviverem suas experiências, conseguem localizar outras versões de si mesmos, cujos fatos “podem ajudá-los e também a outras pessoas a escreverem novas histórias” (White, 2004, p. 63). Nesse sentido, e considerando a terapia como prática de conversação dialógica, Grandesso (2000), destaca:

Como prática social, a terapia pode ser definida como um encontro que se dá na linguagem, um evento linguístico no qual, pessoas com diferentes tipos de experiências, uma das quais, se define como terapeuta, interagem a partir de um interesse em comum que os coloca juntos. Esse ponto de convergência apresenta uma relevância, em particular, para os envolvidos – dissolver dilemas, vencer desafios, aliviar sofrimentos, atingir determinadas metas. Antes de mais nada, a terapia constitui-se de pessoas que se relacionam na e por meio da linguagem, em torno de dramas de diferentes complexidades que restringem as suas alternativas existenciais (Grandesso, 2000, p. 244).

Assim, as histórias vividas por cada participante são ouvidas sem censuras e que enriquecem os membros em sua aprendizagem sobre o caminho a empreender para conviver com a perda, por meio da cooperação mútua. Pode ser visto, então, como um meio de intervenção comunitária de apoio a indivíduos e/ou famílias que perderam pessoas significativas e que, muitas vezes, sofrem restrições sociais.

Essas trocas revelam-se como mini estratégias que contribuem para a socialização, sobretudo, com relação à expressão de sentimentos que permeia os processos de luto, frequentemente mal compreendidos, negados ou repelidos pelo meio social. Assim sendo, a rede de apoio que se forma ao redor do enlutado pode proporcionar diferentes formas de elaboração de perdas, constituindo-se um recurso complementar aos trabalhos dos profissionais da área de saúde mental, evitando-se o uso prolongado de medicamentos.

Um fato que comprova a necessidade desse compartilhamento é a existência de organizações que dão suporte a pais enlutados que, muitas vezes, são fundadas, dirigidas e mantidas pelos próprios pais. Existe em diversas partes do mundo um número significativo desse tipo de grupo. Em Portugal, por exemplo, José Eduardo Rebelo, após a perda de sua mulher e das filhas, fundou a APELO - Associação de Apoio à Pessoa em Luto, da qual é presidente, onde exerce atividade de moderador de grupos de “entreajuda” (Rebelo, 2004).

Segundo Parkes (1998), em diversos países da língua inglesa, por exemplo, o Compassionate Friends (Amigos Solidários)4, tem o objetivo específico de oferecer apoio aos pais que perderam filhos. Acrescenta o autor, que Phyllis Silverman foi primeira pesquisadora a dar início, em 1967, a um grupo de ajuda recíproca direcionada ao luto, no Laboratório de Psiquiatria Comunitária, em Boston, nos Estados Unidos, sendo amplamente reproduzido em outros locais.

Nesse sentido, a importância da existência de grupos de apoio como espaço de compartilhamento torna-se de grande importância, por congregar pessoas que vivenciam problemas semelhantes e, por isso, partilham a mesma linguagem. A atenção do API é voltada para o processo de luto, relacionando-o às dificuldades de sua aceitação individual e social.

 

Ressonâncias...

Para os participantes do API com os quais há contato mais frequente, tanto os que se encontram em processo de luto mais recente como aqueles com mais tempo decorrente da perda, é possível encontrar nessa rede um suporte muito eficaz.

Durante o percurso foram sentidos como mais impactantes alguns relatos feitos por pais e mães, que por razões éticas não serão aqui identificados, significativos por revelarem sentimentos em relação as suas perdas, a si mesmos, ao suporte social e ao grupo. Por intermédio desses relatos foram observadas diversas reações e manifestações que os enlutados podem apresentar no processo de luto, como: culpa, raiva, negação, entorpecimento, melancolia, vergonha, dentre outras, muitas vezes manifestadas em relação à família, aos amigos, a si próprio, a Deus ou à sociedade em geral (Rando, 1997a, In Silva, 2009, p. 98):

(i) sentimentos de negação e raiva: “sempre penso que ele vai chegar à noite, antes do jantar e me contar como foi o seu dia”; “abri um processo contra a família que deixou a arma à vista”; (ii) desorganização emocional pela melancolia e culpa: “após a morte da minha filha deixei de pensar no futuro, de ter ambição”; “fui muito exigente com ela...se eu soubesse que ela iria embora tão cedo, não teria exigido tanto”; (iii) uma espécie de confronto psicológico, quando da assimilação da perda física: “eu precisava tê-lo visto... mas a imagem dele estava desfigurada”; (iv) reação de agressividade dirigida ao marido e à família de origem: “não me deram espaço para chorar”; (v) frustração: “era meu único filho e agora com essa idade, não posso mais ter filhos”; (vi) em um outro encontro, compartilhou o fato de estar tratando de um câncer que havia aparecido, indicando que o impacto da perda pode ter potencializado o aparecimento da doença; (vii) raiva em relação aos amigos do filho: “o amigo foi irresponsável dirigindo alcoolizado, se não fosse isso meu filho estaria aqui.”; (viii) culpa: “.pedi para ele parar de jogar no computador, ele saiu e foi brincar lá fora...aí aconteceu o acidente... pra que fiz isso”?; (xix) mudança de entendimento a respeito da religiosidade: “continuo acreditando em Deus, mas mudei a minha maneira de compreendê-lo... acho que Ele não cuida de tudo como se fala”; (x) frustração por não ter podido conviver com a filha: “preferi esperar a minha filha nascer. Embora o médico tivesse informado sobre a doença congênita, o quarto estava arrumado para sua chegada...eu tinha esperança”; (xi) indignação e impotência: “tentei evitar, mas ela decidiu continuar junto ... se não fosse a perseguição dele, ela estaria aqui...e ainda estou brigando na justiça pela guarda da minha neta”; (xii) como forma de encontrar uma continuidade: “tenho me dedicado muito à leitura de livros espíritas...era isso que ele pedia para eu fazer, pois era muito inteligente”; (xiii) conforto na espiritualidade: “converso sempre com ela sobre como gostaria que eu fizesse as coisas, inclusive em relação aos filhos que estão conosco”; (xiv) ressignificação: “não podemos passar por uma situação dessas e continuar os mesmos...temos que transformar isso em algo positivo”; (xv) impotência: “levamos nosso filho num dos melhores médicos e ele disse que não era nada grave; que isso estava muito longe de acontecer”; (xvi) enfrentamento e inconformação: “tenho que passar sempre pelo local onde ele faleceu...mas tento trabalhar normalmente... depois choro escondido.”. E ainda: “os pais foram preparados para enterrar o filho e não o contrário”; (xvii) continuidade do vínculo: “.eu não perdi a minha filha...estou sempre com ela...tenho uma maneira de conviver com isso, diferente dos outros”.

Foram observadas opiniões diferentes sobre o grupo, mesmo entre os membros do casal. Isso foi percebido em relatos como: a mãe disse: “aqui é um lugar que se pode compartilhar e deixa a gente melhor” e o marido: “às vezes, fico pior porque é sofrido falar sobre aqueles acontecimentos de novo”. Essa diferente adaptação no compartilhar, provavelmente, deve-se ao fato de as mulheres, por questões culturais, terem mais facilidade em se expor.

Podem ocorrer também situações com percurso de luto individualizado e contraditório com culpabilização entre marido e mulher, com falas do tipo: “se o pai não tivesse se aborrecido com ele naquela hora... mas ele diz que sou eu que sempre fiz todas as vontades”. Essa culpa pode não ser verbalmente exteriorizada e aparecer subjacente às atitudes.

Percebe-se que, apesar do suporte do grupo e/ou psicológico, muitas vezes é necessário recorrer ao uso de antidepressivo nos enlutados, sobretudo, nas mulheres nos primeiros meses após a perda. Os que recorrem à medicação prolongada podem enfrentar dificuldades no sentido de intensificar a desorganização emocional e a negação que os distancia dos sentimentos da dor da perda e da sua assimilação, podendo postergar o processo. Pode ocorrer, ainda, que o uso da medicação seja interrompido passado algum tempo da perda, mas que pode ser novamente retomado em momentos de recaídas, em períodos mais difíceis, atribuídos a datas significativas.

No processo de luto no contexto do API desde seu início, em 2005, observa-se que a maioria dos homens frequentadores é acompanhada de suas esposas, enquanto muitas mulheres participam individualmente. A preocupação do grupo tem sido a de contribuir para que os enlutados convivam razoavelmente com suas perdas favorecendo uma reorganização emocional.

Observa-se também que após as pessoas frequentarem algumas reuniões tiveram mudanças significativas em relação às narrativas dos encontros iniciais. As narrações iniciais, principalmente os que tinham perda recente, devido à fragilidade, eram marcadas por muito choro, por minúcias dolorosas sobre suas histórias dominantes. Com o passar de algumas reuniões, percebeu-se que esses sentimentos estavam se deslocando para outro território, um lugar diferente na identidade da pessoa, promovendo a compreensão do que é valorizado pelo indivíduo, das suas emoções relacionadas às pessoas significativas e a sua história.

As perguntas feitas, frequentemente, pela coordenadora nas reuniões do grupo são: “Como você se sentiu a partir da última reunião”? “Como vocês passaram este último mês, desde a última reunião?” Agindo dessa forma, o enfoque é dado ao que é significativo para cada participante e pode-se ter um indício de como cada um tem conseguido conviver com as dificuldades. As respostas são dadas em forma de narrativas, destacando os fatos que consideram significativos vivenciados entre um encontro e outro. As narrações são do tipo: “senti muita tristeza ao passar no local onde meu filho faleceu”; “no dia do aniversário dele, mesmo com dificuldades, conseguimos ir à missa e almoçamos em companhia da família, num restaurante onde nosso filho gostava”. A narração de certa mãe quando disse que observa nela aspectos que a filha admirava, o que se pode considerar como uma experiência positiva, uma forma de dizer “olá novamente” à filha, conforme entende White (2004).

Nesse aspecto, o papel da coordenadora é de suma importância nesse espaço, pois, além de organizar/administrar o tempo dos depoimentos, é também facilitadora, fazendo pontuações breves ou mais prolongadas junto aos membros, incluindo orientações e encaminhamentos quando necessários. Essas retomadas suscitam uma espécie de pequenos gatilhos fazendo com que comecem a entrar em contato com os fatos e a reorganizá-los. São recursos que funcionam como mini estratégias e que ao serem exteriorizados por um dos participantes podem servir de espelho e serem experimentados por outros.

São diversas as questões relatadas pelos participantes em relação à maneira de lidar e de conviver com a ausência; questões que embora aparentemente sem importância para os não enlutados, são significativas no processo de luto: por exemplo, alguns têm bloqueio em rever fotos; outros mudam imediatamente de residência após a perda, desfazem-se do quarto, de objetos, enquanto outros permanecem no mesmo local. Porém, em relação às datas significativas (aniversário, data do falecimento, natal, etc.), percebe-se que a maioria tem dificuldades em ultrapassar.

Relatando um pouco da própria experiência, a criação do grupo acontece após a autora visitar o API em Belo Horizonte, em 2005, em companhia da psicóloga, possibilitando a percepção de que era possível a vida continuar após a perda da única filha naquele mesmo ano. A participação no API foi-lhe significativamente proveitosa, ajudando-a a ultrapassar momentos de extrema fragilidade em seu processo de luto. A cada encontro, os relatos sobre os acontecimentos das perdas, das dificuldades de cada membro, soavam como se fossem dela. Ao observar que existiam pessoas sentindo a mesma dor e compartilhando a mesma linguagem auxiliava na compreensão de determinados fatos e detalhes que eram para ela muito confusos. Isso não significa dizer que se sentia confortável em saber que tantas pessoas passavam pelas mesmas dificuldades, mas sentia que não era a única e podia ter alguma esperança em continuar vivendo, observando os caminhos deles. Essas três horas, de falar e de ouvir, tornavam-na um pouco mais forte.

Como um espelho, muitas ressonâncias foram trazidas a esse respeito, pois as experiências que vivenciavam eram semelhantes às da autora. Contudo, para lidar com essas situações, fez a opção por continuar residindo no mesmo lugar, mantendo as fotos e a maioria dos objetos da filha e falando sobre ela. Mantém, regularmente, contato com amigas da filha e seus familiares, enxergando isso como uma continuidade, uma forma de ressignificar a presença da filha por intermédio da ausência. Possivelmente, na visão de alguns estudiosos, este seria um tipo de luto complicado ou crônico, mas considerando que é um processo individual e único, cada um encontra formas próprias de conviver com a perda.

Dentre os estudos sobre o luto que despertam maior interesse são os que defendem a posição da continuidade do vínculo. Sem a pretensão de desmerecer os diferentes posicionamentos, a continuidade do vínculo é uma forma de conviver com a perda, sem atingir a desestruturação. Aliás, consideram-se também importantes os tipos de contato por intermédio de sonhos, de cheiro, de conversas, entre outros contatos com a pessoa falecida, como formas pertinentes de elaboração da perda e até mesmo de ressiginificação.

Um fato interessante é que ao longo desse percurso, paralelamente aos encontros mensais, passaram a acontecer outros encontros com algumas mães que perderam seus filhos para trocas de experiências, cujas afinidades proporcionaram a possibilidade de travar longas conversas durante a noite que se estendiam, às vezes, até de madrugada, servindo também como suporte nos momentos de maior angústia.

De fato, a sociedade é um segmento que isola os indivíduos nos momentos de dificuldades, sobretudo, no luto (Neimeyer, 2001, In Rangel, 2008). Alguns fatores como a religiosidade, o apoio da família, dos amigos, do entorno social influenciam no fortalecimento e enfrentamento das perdas. Por outro lado, percebe-se através de relatos no grupo, além dos já mencionados, a insatisfação das pessoas em relação ao que ouvem de familiares e amigos, como: “isso não trará ele de volta”; “vire essa página”; entre outras parecidas. Além do despreparo para ajuda, parece haver uma banalização do sentimento alheio, com críticas ou conselhos inapropriados.

Frases como essas, provavelmente, são ditas no sentido de confortar, mas acabam por piorar a situação pela falta de habilidade em usar uma linguagem adequada em determinados momentos. Dependendo do grau de fragilidade em que se encontra a pessoa, essas falas podem causar mal estar, reabrindo lacunas para mais sofrimento. Como disse Tavares (2001, p.118), “...acho necessário adquirirmos uma etiqueta para o luto. É importante oferecer consolo, mas é imprescindível evitar algumas atitudes e falas inadequadas”.

A perda de alguém muito estimado, a de um filho, por exemplo, altera a concepção da realidade, pois a vida adquire uma outra dimensão, e isso envolve diferentes graus de resiliência de acordo com o ritmo individual diferenciado. Às vezes, dentro da mesma família há diferenças nas maneiras de lidar e de externalizar os sentimentos, o que pode provocar incômodos e desentendimentos familiares. Por exemplo, um casal que, ao perder o único filho, passa cada um, a viver solitariamente o luto, pois enquanto um sente necessidade de falar sobre o assunto, o outro se fecha. Daí, a importância do espaço para o compartilhamento.

Contudo, dificuldades ainda maiores são percebidas quando se trata da perda do único filho, pois é um fato que suscita no indivíduo um sentimento de falência de suas funções básicas de continuidade biológica da espécie. A incapacidade de nova gestação pode acarretar a negação da perda emocional do filho e a perda da autoestima que podem levar ao isolamento (Worden, 1998).

Nos relatos das mães percebe-se muito forte, por exemplo, o elemento culpa: “...se não tivesse emprestado o carro poderia ter evitado o acidente”; “...se tivesse levado a outro médico que fosse mais acertado para a doença do filho”; “...se tivesse dado mais amor e compreensão”, entre muitos outros relatos. Nesses ses, está, muitas vezes, embutido o sentimento de raiva que sentem. Para Silva (2009), essa raiva pode ser dirigida a Deus, aos médicos ou a si mesmos, em função da culpa que também pode ser sentida em relação ao morto, por ter deixado o convívio com os pais.

Embora sejam percebidas sensíveis mudanças nos processos de luto dos participantes do API, os pais que perderam filhos, em sua maioria, afirma que “nunca mais serão os mesmos”. Nesse sentido, e retomando o conceito de resiliência de Walsh, (2005) é possível se falar de luto razoável para as pessoas que aprendem a conviver com a perda e seguir com suas atividades, pelo menos, aquelas consideradas básicas, sem comprometimento sério de doenças. Diferentemente do entendimento da física de que o material após sofrer forte impacto retorna ao seu estado inicial, quando se trata do ser humano não há um retorno completo, mas uma adaptação, uma acomodação para as situações.

O suporte do API se dá de diferentes maneiras: os que chegam mais desorganizados emocionalmente buscando respostas para os seus sofrimentos podem encontrar apoio nos relatos dos que estão mais estruturados, em geral, frequentando há mais tempo. Esses, ao ouvirem os relatos dos mais recentes podem ter ressonâncias das experiências que auxiliam na reorganização das próprias emoções que remontarão o seu mosaico.

 

Considerações finais

Este estudo apresenta reflexões acerca do luto, especialmente de pais participantes do API, procurando articular a Teoria Narrativa ao trabalho do grupo, entendendo o seu funcionamento de compartilhamento dos membros como uma prática comunitária, sem pormenorizar ou aprofundar os recursos que a teoria narrativa oferece. É um tipo de rede que, na verdade, atua como prática comunitária e as narrativas como ferramentas para o compartilhamento. É importante destacar que neste estudo não foram discutidas todas as noções de luto, pois não era o objetivo discutir seus meandros já tão bem estudados por diversos autores.

Entende-se que narrar, nada mais é do que externalizar os fatos sobre as histórias. As conversas de externalização bem como as perguntas feitas entre os depoimentos, pela coordenadora, proporcionam a observação de acontecimentos novos historiados que dão um novo contorno à vida das pessoas.

Nesse sentido, as narrativas mostram o valor que tem a linguagem nos segmentos da vida do indivíduo, da família e da sociedade. À parte às questões fundamentadas por estudos sobre o inconsciente, pode-se dizer que tudo ou quase tudo é permeado pela linguagem. Ou seja, o sujeito torna-se acessível através da sua linguagem, do modo como ele a utiliza, numa relação de conversação dialógica. Para Grandesso (2000), “...nos constituímos como sujeitos na linguagem”. O verbo compartilhar, recorrente neste estudo – tomar parte em, partilhar, dividir algo ou um sentimento e receber do outro o que pode me oferecer -, trava-se um processo de complementaridade.

De acordo com a leitura realizada até o momento, um aspecto pouco abordado pelos autores é a questão das recaídas, pois têm uma visão progressiva e linear para o processo de luto. Nesse sentido, pôde-se observar entre os integrantes do grupo, mesmo aqueles com mais tempo de perda e que estavam convivendo razoavelmente com ela, relatarem períodos de forte tristeza, de baixa, principalmente em datas comemorativas ou acontecimentos que lembrassem a pessoa perdida.

O estabelecimento de etapas previsto por alguns autores (Bowlby, 1998) para o processo de luto, pode ser útil para o acompanhamento psicológico, mas que, na realidade, não devem ser vistas como estanques na linha divisória de tempo, sobretudo, quando se trata de perdas traumáticas e muito significativas que implicam revisões profundas (Neimeyer, 2001, In Rangel, 2008). Do mesmo modo, torna-se difícil afirmar se o uso de medicação é melhor ou pior, pois seria uma visão dicotômica de enxergar o processo, contrárias às idéias do pensamento sistêmico que prevê olhar não só o fato, mas o contexto, as circunstâncias, o espaço e o tempo em que ele ocorre, levando em consideração que cada luto é único.

A ressignificação da perda pode vincular-se também a reflexões sobre a vida. Percebe-se que quem perde um ente querido, de um modo ou de outro, passa a enxergar a vida de modo diferente. Normalmente referem-se a mudanças no modo de agir, de não mais enfatizar pequenos acontecimentos, ao modo de valorizar o aspecto financeiro, entre outros. Na verdade, parecem adquirir a noção da fragilidade da vida e da sua transitoriedade.

Em geral, o exercício da prática terapêutica envolve reflexões que estreitam a aproximação entre teoria e prática, sobretudo, na visão pós-moderna que estende a prática para além do espaço de consultório. Certamente, as teorias oferecem sustentação aos terapeutas e profissionais da saúde para ajudar as pessoas que passam por dificuldades, mas o trinômio morte/ luto/ressignificação requer não só um conjunto de teorias, mas também e principalmente, habilidade, paciência e sensibilidade, requisitos básicos que demandam vocação e treino. Conforme mencionado no decorrer deste estudo, as narrativas servem aos indivíduos para externalizar e organizar seus sentimentos que, nos moldes do grupo, funcionam como recursos terapêuticos quando trocados mutuamente no ato de compartilhar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Daniela Reis e Silva
E-mail: drsilva@terra.com.br

Enviado em: 20/05/2014
1ª revisão em: 01/06/2014
Aceito em: 11/06/2014

 

 

1 Mestre em Estudos Linguísticos, pela Universidade Federal do Espírito Santo e Fundadora do API-ES.
2 Psicóloga Clínica e Hospitalar, Terapeuta de Famílias e Casais, Terapeuta Certificada em EMDR, Terapeuta de Brainspotting, Mestre em Psicologia Clínica – PUC-SP, Fellow in Thanatology – ADEC (Association for Death Education and Counseling), Fundadora e Coordenadora do API-ES.
3 Constitui-se requisito parcial para obtenção do título de Pós-Graduação em Intervenção Sistêmica com Famílias pelas FDV/ Crescent.
4 Tradução livre.