SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número1Alienação parental: complexidades despertadas no âmbito familiarTransformações dos laços vinculares na família: uma perspectiva psicanalítica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.19 no.1 Porto Alegre jun. 2015

 

ARTIGOS

 

A família com filhos adolescentes em conflito com a lei: contribuições de pesquisas brasileiras

 

The family of teenagers in conflict with the law: contributions of Brazilian research

 

 

Juliana Predebon1, I; Cláudia Giongo2, II, III

I Professora do curso de graduação em Psicologia na Universidade Luterana do Brasil - ULBRA
II Diretora fundadora da DOMUS
III Professora do curso de graduação em Serviço Social na Universidade Luterana do Brasil - ULBRA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse estudo realizou uma revisão sistemática da literatura nacional, em artigos científicos produzidos no Brasil no período de 2003 a 2013 sobre a família com filhos adolescentes em conflito com a lei. A busca foi realizada na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) através do Index Psi Periódicos Técnico Científicos, Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e LILACS. Utilizou-se artigos empíricos publicados em revistas específicas de psicologia disponíveis online e na íntegra. Os descritores utilizados foram: (a) família, (b) adolescência (c) ato infracional (d) medida socioeducativa e (e) conflito com a lei. Foram selecionados 19 artigos que abordaram temas como o significado das medidas de proteção e socioeducativas, o significado da família e os instrumentos de medida usados para avaliar o jovem infrator. Os resultados ilustraram famílias pouco coesas, com histórico de violência e autoridade parental enfraquecida. Outros programas sociais de atenção à família, a escola, a profissionalização, a geração de renda e a construção de novos projetos de vida são necessários.

Palavras-chave: Adolescente, Família, Ato infracional.


ABSTRACT

This study carry out a systematic review of national literature regarding scientific articles produced in Brazil in the period from 2003 to 2013 discussing families of teenagers in conflict with the law. The search was conducted in the Virtual Health Library (VHL) through the Index Psi Scientific Journals, Scientific Electronic Library Online (Scielo) and LILACS. Only empirical articles published in specific psychology journals available online and in full were listed. The descriptors used were: (a) family, (b) adolescence, (c) criminal offense, (d) socio-educational measures, and (e) conflict with the law. A number of 19 articles was selected covered themes such as the meaning of protective and socio-educational measures, the meaning of the family and the measurement instruments used to assess the young offender. Families were little cohesive, with a history of violence and weakened parental authority. Other social programs addressing the family, school, professional training, income generation and the construction of new life projects are needed.

Keywords: Teenagers, Family, Criminal offense.


 

 

Introdução

A adolescência é uma fase do ciclo vital bastante vulnerável, marcada por intensas mudanças biológicas, cognitivas, emocionais e sociais. Todas estas mudanças proporcionam diferentes experiências de vida para o jovem e geram um aumento nas demandas da família (Silva & Hutz, 2002). Como resposta a esta complexidade, alguns adolescentes podem apresentar um desenvolvimento saudável, enquanto outros podem apresentar problemas de comportamento e, muitas vezes, cometer atos infracionais (Silva & Hutz, 2002).

Sabe-se que algumas condições podem contribuir para o surgimento de atos infracionais na adolescência, das quais o baixo nível socioeconômico é destacado por alguns estudos (Masten & Garmezy, 1985; Silva & Hutz, 2002). Além disso, famílias com problemas psicossociais frequentemente são menos coesas (coesão definida como a ligação emocional que se estabelece entre os membros da família) e apresentam relações hierárquicas não balanceadas, dimensões essenciais para o desenvolvimento saudável de um indivíduo (Nardi & Dell’Aglio, 2012; Nardi & Dell’Aglio, 2013).

Branco, Wagner e Demarchi (2008) realizaram uma pesquisa com cinco adolescentes infratores que cumpriam a medida socioeducativa de Internação com Possibilidade de Atividade Externa (ICPAE). Um dos objetivos do estudo foi conhecer a percepção dos jovens quanto ao funcionamento familiar, no qual revelaram relações insatisfatórias e problemas de comunicação devido a conflitos não resolvidos em suas famílias. Além disso, os dados desse estudo demonstraram como a importância da família está centrada na figura da mãe, que sempre foi a primeira a ser lembrada e uma figura paterna distante ou até mesmo ausente.

Outra pesquisa interessante buscou compreender a dinâmica familiar dos adolescentes infratores, abordando as lealdades invisíveis que apareceram através da transmissão dos valores, dos deveres e do desejo inconsciente da família de seguir o legado infracional. Os resultados apontaram que a transgressão foi transmitida de forma transgeracional como um valor a ser seguido, sendo as famílias coparticipantes do ato infracional (Cenci, Teixeira & Oliveira, 2014).

Levando em consideração esses aspectos, o presente estudo pretende investigar quais são as variáveis familiares associadas a maior incidência de atos infracionais na adolescência, e assim buscar explicações teóricas com objetivo de desenvolver intervenções e medidas preventivas voltadas aos jovens e suas famílias.

Isso porque o adolescente em conflito com a lei necessita de intervenções que visem não somente a não reincidência, mas também ações que envolvam toda a estrutura familiar do jovem. Alguns autores apontam como estratégia de prevenção um atendimento mais abrangente em relação às famílias, como, por exemplo, um atendimento familiar em grupo, visando o desenvolvimento integral dos adolescentes (Peres et al., 2010) ou intervenções desde o período da gravidez, seguindo durante a infância, para aquelas famílias em situação de risco, assim como um treinamento para pais (Assis & Constantino, 2005).

Famílias com filhos adolescentes

A adolescência é uma fase do ciclo vital marcada por intensas mudanças que geram transformações nos jovens e na sua família. No que se refere aos adolescentes, estes vivenciam a emergência da sexualidade e a busca por uma maior autonomia e independização dos pais. Quanto à família, percebem-se, geralmente, transformações na sua estrutura e no seu funcionamento, ocorrendo uma renegociação dos papéis e da autoridade parental.

Todas essas mudanças geram transformações na estrutura e no funcionamento da família, já que nessa fase ocorre uma renegociação dos papéis e da autoridade parental (Carter & McGoldrick, 2008). Nesse contexto, geralmente, ocorre um incremento nos confrontos entre pais e filhos (Wagner, Predebon, Falcke, Dotta & Garcia, 2002). Partindo dessa concepção, ter um filho adolescente gera uma série de renegociações, responsabilidades e dúvidas aos pais que se sentem, na maioria das vezes, ameaçados e inseguros quanto ao papel e ao tipo de autoridade a ser exercida.

Os adolescentes, de um modo geral, questionam os valores, as regras e os papéis familiares determinados até o momento. E os pais, por sua vez, encontram-se na faixa etária dos quarenta e cinquenta anos, e também questionam sua relação, seus valores, sua profissão, seu futuro, preocupam-se com o corpo e com a aparência. Na verdade, quando os filhos entram na adolescência ocorre um somatório de crises na família (Carter & McGoldrick, 2008).

As tarefas e funções específicas da família com filhos adolescentes exigem, acima de tudo, fronteiras mais flexíveis. Isso significa possibilitar ao jovem mostrar a sua dependência quando não se sentir capaz de enfrentar alguma situação sozinho, e, simultaneamente, permitir um afastamento para que o adolescente experimente sua independência e autonomia (Carter & McGoldrick, 2008; Cerveny & Berthoud, 2002).

No entanto, esta não é uma tarefa simples. Nesse contexto, é frequente a perda da confiança nessas famílias, porque os adolescentes não confiam mais nos pais como antes, e os pais não estão prontos para confiarem nas mudanças dos filhos adolescentes.

Embora fiquem evidentes os inúmeros desafios de uma família com filhos adolescentes, ela desempenha um papel fundamental na educação formal e informal dos jovens. É a família quem inicialmente transmite valores éticos, normas e modelos de conduta que servirão de parâmetro para prevenir o surgimento de atos infracionais.

Problemas de comportamento e ato infracional na adolescência

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o adolescente é aquela pessoa que tem entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade. No entanto, hoje os limites da adolescência nem sempre podem ser definidos exclusivamente em termos da idade cronológica.

Atualmente, percebe-se um prolongamento do período da adolescência que, muitas vezes, invade a idade adulta, bem como certa antecipação que tem transformado crianças em pequenos adolescentes precoces. Por todas essas transformações, a adolescência tem sido considerada um período do ciclo vital longo, turbulento, estressante e suscetível ao surgimento de problemas de comportamento.

Algumas pesquisas corroboram a ideia de que os jovens estão cada vez mais problemáticos, uma vez que têm mostrado que os problemas de conduta, o uso de drogas, a depressão e o suicídio têm aumentado nos últimos anos. (Rutter & Smith, 1995). Além disso, nas últimas décadas, afirma-se que as tarefas desenvolvimentais dos adolescentes têm crescido em número e em complexidade (Diekstra 1995, In Silva & Hutz, 2002).

Tomando como base estas afirmações, uma variedade de pesquisas tem sido propostas a fim de investigar como se caracterizam os problemas de comportamento, e especificamente, a conduta infracional. Um número consistente de estudos divide os problemas de comportamento na adolescência em três categorias: (a) abuso de substâncias, (b) problemas emocionais e (c) problemas comportamentais (Achenbach, Howell, McConaughy & Stanger, 1998; Barnes & Farrel, 1992; Ferdinand, Verhulst & Wiznitzer, 1995; Hofstra, Ende & Verhulst, 2000; 2002 Lambert, Lyubansky & Achenbach, 1998; Silva & Hutz, 2002;).

Em geral, com relação ao abuso de substâncias, destacam-se as drogas lícitas e ilícitas, tais como: tabaco, álcool, maconha, cocaína, entre outras. Nesse sentido, a pesquisa de Rosenberg e Anthony (2001) que investigou a suscetibilidade dos jovens para o uso de drogas, constatou que a busca por drogas não está associada apenas com o comportamento agressivo ou com o comportamento delinquente por si só. Apenas quando altos escores de comportamento agressivo ocorrem concomitantemente com altos escores de comportamento delinquente é que a busca por drogas aumenta, corroborando o que os autores chamam de síndrome dos problemas de comportamento na adolescência. Ou seja, esse fenômeno é multicausal e determinado por diferentes problemas que geralmente tendem a ocorrer juntos (Rosenberg & Anthony, 2001).

Quanto aos problemas emocionais destacam-se a depressão, a ansiedade, a fobia, o retraimento, a vergonha, o estresse psicológico, entre outros. Com relação aos problemas comportamentais consideram-se o comportamento delinquente (antissocial), o comportamento agressivo, a hiperatividade, a hostilidade, entre outros. Pesquisas desenvolvidas sobre os problemas de comportamento na adolescência mostram, de forma geral, que os problemas emocionais são significativamente mais altos entre as mulheres e os problemas comportamentais entre os homens (Achenbach, Dumenci & Rescorla, 2002; Lambert et al., 1998).

Dentre os problemas comportamentais, tem se observado um aumento na incidência de adolescentes em conflito com a lei, frequentemente envolvidos em atos infracionais (Nardi & Dell’Aglio, 2012; Nardi & Dell’Aglio, 2013). Conforme o ECA (artigo 103º), o ato infracional é a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Quando um adolescente comete um ato infracional ele está sujeito às medidas protetivas e socioeducativas contidas no referido estatuto. Essas medidas são caracterizadas como dispositivos jurídicos, estabelecidos por representante do Ministério Público ou Poder Judiciário. Além disso, as medidas se baseiam na natureza do ato infracional, nas circunstâncias, na personalidade e na situação social e familiar do adolescente (Brasil, 1990; Santos, 2007).

As medidas de proteção, conforme consta no art. 98º do ECA, são aplicáveis sempre que os direitos da criança e do adolescente forem ameaçados ou violados: por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis; em razão da conduta da criança ou adolescente. Já as medidas socioeducativas se aplicam se verificada a prática de ato infracional por adolescente (Jacobina & Costa, 2007).

Quando um adolescente comete um ato infracional, aplica-se uma medida socioeducativa (Artigo 112º do ECA) que pode ser: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade ou internação em estabelecimento educacional (Costa, Penso, Sudbrack & Jacobina, 2011).

Quem regulamenta a implementação e execução das medidas socioeducativas é o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE, 2006). Sua implementação objetiva o desenvolvimento de uma ação socioeducativa assentada nos princípios dos direitos humanos. Esse sistema propõe medidas em meio aberto (PSC – Prestação de Serviço a Comunidade e LA – Liberdade Assistida) em preferência às restritivas de liberdade, as quais devem ser aplicadas em caráter excepcional (casos de atos infracionais graves) (Costa, Penso, Sudbrack & Jacobina, 2011).

A prestação de serviço à comunidade (PSC) é considerada por alguns autores como a medida mais eficaz aplicada aos adolescentes, uma vez que é realizada em meio aberto com a contribuição a entidades assistenciais, hospitais, escolas que recebem o jovem para realizar tarefas gratuitas de interesse público (Brasil, 1990; Nardi & Dell’Aglio, 2013; UNICEF, 2008).

Um levantamento realizado no Brasil, em 2004, pela Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente identificou que existiam 39.578 adolescentes no sistema socioeducativo (medidas privativas de liberdade, medidas não privativas de liberdade e internação provisória). Esse número representava que dois em cada 1000 jovens com idades variando de 12 a 18 anos no Brasil eram autores de ato infracional. Especificamente com relação a adolescentes cumprindo medida em meio aberto, em 2006, havia 19.444 jovens, representando a maioria (55%) dos jovens inseridos no sistema socioeducativo (Nardi & Dell’Aglio, 2013).

No entanto, intervir somente com o adolescente é insuficiente, tendo em vista as inúmeras variáveis que influenciam esse problema. O contexto em que o adolescente está inserido deveria, segundo Nardi (2010) contar com três grupos de fatores essenciais para proteger o seu desenvolvimento: (a) atributos pessoais (como, por exemplo, a autoestima, autonomia, inteligência e orientação social positiva); (b) coesão familiar (caracterizada pela resolução construtiva de conflitos, presença de comunicação, afeto e pela presença de pelo menos um adulto com interesse pela criança) e (c) disponibilidade de uma rede social de apoio (caracterizada pela presença de recursos na comunidade que auxiliem as famílias a enfrentarem as adversidades).

Quanto aos fatores de risco para o desenvolvimento do adolescente, muitos aspectos têm sido descritos pela literatura entre eles: (a) baixo nível socioeconômico, (b) famílias numerosas vivendo na pobreza, (c) negligência parental, (d) distanciamento entre pais e filhos, (e) pouca coesão familiar, (f) relações hierárquicas disfuncionais, (g) violência familiar, (h) praticas coercitivas e aversivas, (i) comportamentos antissociais na infância, (j) agressividade na escola e em casa, (k) impulsividade, (l) evasão escolar (Conger et al., 1992; DuBois, Felner, Brand, Adan & Evans, 1992; Farrel, Barnes & Banerjee, 1995; Hutz, Koller & Bandeira, 1996; Lempers, Lempers & Simons, 1989; Nardi, 2010).

Frente a isso, pesquisas têm mostrado que as práticas coercitivas e a baixa exigência e responsividade parental contribuem diretamente para os comportamentos antissociais entre os jovens e também contribuem indiretamente para a associação dos mesmos com grupos antissociais, aspecto este que é preditivo do comportamento delinquente na adolescência (Conger, Lorenz, Elder, Melby, Simons et al., 1991; Patterson & Dishion, 1985; Simons et al., 1996).

Na busca de respostas para a compreensão do comportamento delinquente entre os jovens, Patterson, Reid e Dishion (1992), propuseram um modelo de desenvolvimento do comportamento antissocial em quatro etapas. A primeira etapa se desenvolve durante o período da infância, em que os membros da família são apontados como os primeiros a treinarem habilidades antissociais em suas crianças. Acredita-se que práticas educativas ineficazes seriam os primeiros determinantes do comportamento antissocial. Trentin (2011) corrobora esse aspecto, ao enfatizar que a família é a responsável pelo desenvolvimento e pela proteção da criança, contudo nem sempre essa função de proteção é exercida tornando-se o palco de muitas experiências violentas. Cenci, Teixeira e Oliveira (2014) afirmam que o manejo e as técnicas utilizadas pelos pais na educação dos filhos atuam como um dos principais determinantes da delinquência.

A segunda etapa ocorre no momento em que a criança inicia relações sociais fora da família, como por exemplo o período em que inicia a vida escolar. Os comportamentos coercitivos e antissociais aprendidos dentro de casa colocam a criança em grave risco ao ampliar suas relações sociais, tornando-se difícil ensinar a essas crianças habilidades sociais ou acadêmicas.

A terceira etapa ocorre na adolescência, quando o adolescente é induzido a procurar um grupo que se pareça mais com ele devido às falhas acadêmicas e aos relacionamentos pobres com familiares e amigos. Assim, nessa etapa, o adolescente passa a se envolver com outros grupos que contribuem para o uso de drogas e o cometimento de atos infracionais (Nardi & Dell’Aglio, 2010). A quarta etapa ocorre quando o indivíduo já é adulto. As falhas nas habilidades sociais ocorridas na infância associadas às dificuldades dos pais quanto à educação do adolescente impulsionariam o jovem ao baixo rendimento escolar, ao uso de drogas, aos atos infracionais, à institucionalização. O ato infracional pode ser compreendido como um sintoma de toda a família sendo visto como uma maneira aprendida de como enfrentar os conflitos (Cenci, Teixeira & Oliveira, 2014).

Em última análise, verifica-se que há múltiplos fatores envolvidos na prática do ato infracional pelo adolescente. Faz-se necessário investigar quais são as variáveis familiares associadas ao aumento da incidência de adolescentes em conflito com a lei, já que a família pode ser um local de proteção, mas muitas vezes também pode ser um fator de risco para o desenvolvimento saudável do adolescente (Nardi & Dell’Aglio, 2012; Cenci, Teixeira & Oliveira, 2014)).

Este artigo tem por objetivo revisar a produção científica brasileira sobre a família com filhos adolescentes em conflito com a lei buscando responder: quais as principais variáveis familiares associadas ao aumento da incidência de adolescentes em conflito com a lei? Como se caracterizam as famílias com filhos adolescentes em conflito com a lei? Como construir programas de prevenção e intervenção mais efetivos para essa população?

 

Método

A partir de uma revisão sistemática da literatura de estudos empíricos sobre família com filhos adolescentes em conflito com a lei, produzidos no Brasil no período de 2003 a 2013, realizou-se um levantamento de 22 artigos científicos. A busca foi realizada na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) através das seguintes bases de dados: Index Psi Periódicos Técnico Científicos, Scientific Eletronic Library Online (Scielo), LILACS (Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde). Dos 22 estudos encontrados foram excluídos três estudos, pois não estavam disponíveis online e na íntegra, restando 19 estudos para análise (Anexo A).

Os descritores utilizados na busca foram (a) família, (b) adolescência, (c) ato infracional, (d) medida socioeducativa e (e) conflito com a lei. Os descritores estavam presentes no título, ou no resumo, ou nas palavras-chave ou nos resultados dos estudos.

Os estudos selecionados foram lidos integralmente e analisados de acordo com as seguintes categorias: (a) tema do estudo, (b) tipo metodologia utilizada e (c) principais resultados. Além dessas categorias foram discutidas sugestões e limitações desses estudos a fim de embasar futuras intervenções junto a famílias com filhos adolescentes em conflito com a lei.

 

Apresentação dos resultados

A partir do levantamento, identificaram-se 22 estudos científicos dos quais três deles não estavam disponíveis na íntegra e foram excluídos da análise: artigos nº 15 (Alcantara, 2007), 20 (Machado, 2005) e 22 (Alves, 2003). Inicialmente classificaram-se os estudos quanto ao tema principal de investigação e foram identificadas três grandes categorias: (a) o significado da família para o adolescente infrator, (b) o significado das medidas de proteção e socioeducativa e (c) os instrumentos de avaliação.

O tema mais investigado foi o significado da medida de proteção e da medida socioeducativa de liberdade assistida segundo a opinião dos adolescentes, das famílias, das instituições e da justiça (10 artigos ou 53%). Dada a frequência de estudos optou-se por especificá-los: relações familiares antes, durante e depois da MSE de privação de liberdade (Dias, Arpini, Simon, 2011), (Costa, Guimarães, Pessina, Sudbrack, 2007) e (Jacobina, Costa, 2007); representações sociais dos adolescentes sobre a MSE com privação de liberdade (Coutinho, Estevam, Araújo, Araújo, 2011), significado da MP e da MSE de liberdade assistida para o adolescente, para a família, para as instituições e para a justiça (Jacobina, Costa, 2011), (Carmo, 2011), (Capanema, Vorcaro, 2012), (Germano, Bessa, 2010) e (Guareschi, Castro, 2008); representações sociais acerca da adolescência infratora (Espíndula, Santos, 2004).

Na segunda categoria os estudos relacionaram-se ao tema avaliação, tanto de instrumentos de medida para avaliar o jovem infrator, quanto instrumentos para avaliar os critérios adotados para a aplicação das MP e das MSE de liberdade assistida e de prestação de serviços à comunidade. Essa categoria contemplou cinco artigos (26%) que buscaram desenvolver uma avaliação sobre a efetividade da Entrevista Motivacional para os adolescentes infratores usuários de drogas (Andretta, Oliveira, 2011); avaliação da relação entre drogas e práticas de atos infracionais (Pereira, Sudbrack, 2008); avaliação de fatores de risco associados ao ato infracional (Silveira, Maruschi, Bazon, 2012); avaliação do processo de construção do Relatório Psicossocial enviado ao juiz (Costa, Penso, Sudbrack, Jacobina, 2011); avaliação dos critérios adotados para a aplicação das MSE de liberdade assistida e de prestação de serviços à comunidade (Cruz, Welzbacher, Freitas, Costa, Lorini, 2010).

Na terceira categoria foram classificados quatro estudos (21%). Esses estudos relataram pesquisas cujo tema central era o significado da família para o jovem infrator. Esses estudos versaram sobre as percepções dos adolescentes infratores sobre suas famílias (Nardi, Dell’Aglio, 2012); o significado das práticas educativas parentais utilizadas pela família (Carvalho, Gomide, 2005) e (Salvador, Weber, 2005); e as experiências de violência intrafamiliar relatadas por adolescentes infratores (Lima, Alcantara, Almeida, Alves, 2006).

Após a análise do tema de investigação os estudos foram classificados quanto à metodologia empregada: (a) qualitativa ou (b) quantitativa. Para diferenciar os estudos quantitativos dos qualitativos utilizaram-se critérios propostos por Creswell (2010). Segundo o autor, os estudos quantitativos testam teorias objetivas, examinando a relação entre variáveis. Tais variáveis são medidas por instrumentos para que os dados numéricos possam ser analisados por procedimentos estatísticos e generalizados para a população. A pesquisa qualitativa é um meio de explorar e entender o significado que os indivíduos ou grupos atribuem a um problema social ou humano. Os dados são coletados no ambiente natural dos participantes e a análise é indutivamente construída a partir das particularidades para os temas gerais.

Encontraram-se 15 (79%) estudos qualitativos e quatro (21%) estudos quantitativos. Após os estudos foram analisados quanto aos instrumentos utilizados. O número total de instrumentos é maior do que o número de estudos, pois em determinadas pesquisas utilizaram-se mais do que um instrumento.

Nos estudos qualitativos foram levantados 17 instrumentos, dos quais 11 foram entrevistas. Nardi e Dell’Aglio (2012), por exemplo, avaliaram as percepções de jovens autores de ato infracional sobre suas famílias através de entrevistas semiestruturadas. Alguns instrumentos não puderam ser classificados na categoria entrevista. Esses instrumentos foram: a análise documental/prontuários, construção do genograma, estudo de caso, FAST (Family System Test) e observação participante.

Nos estudos quantitativos foram levantados quatro instrumentos: Escala que avaliou o Estilo Parental através de duas práticas educativas positivas: monitoria e comportamento moral e cinco práticas educativas negativas: negligência, abuso físico, monitoria negativa, punição inconsistente e disciplina relaxada (Carvalho, Gomide, 2005), Inventário Youth level of service/case managent Inventory que avaliou a capacidade preditiva dos fatores de risco associados à persistência da conduta infracional (Silveira, Maruschi, Bazon, 2012), entrevista motivacional (Andretta, Oliveira, 2011) e levantamento de prontuários (Cruz, Welzbacher, Freitas, Costa, Lorini, 2010).

Assim considerando-se todos os métodos utilizados, observou-se uma maior frequência de pesquisas que utilizaram a abordagem qualitativa, ilustrando o quanto o tema dessa pesquisa está mais articulado com o paradigma contemporâneo da ciência. Esse novo paradigma da ciência foca as relações e abandona a crença da objetividade e da simplicidade, ou seja, não é preciso separar as partes para entender o todo e não existe realidade independente de um observador (Vasconcellos, 2002).

A análise dos estudos revelou resultados diversificados que foram agrupados em três categorias: medidas de proteção/socioeducativas; relações familiares; intervenções. Com relação às medidas de proteção/socioeducativas constatou-se uma desarticulação do sistema de garantias de direitos que atendem os adolescentes. As medidas protetivas recebem uma fiscalização esporádica levando o adolescente a maior vulnerabilidade. Essa prática de atendimento desapropria o jovem de sua autoestima, restringe suas alternativas de reconhecimento social apenas ao papel de delinquente, perpetuando a mesma inacessibilidade aos direitos básicos que estão acostumados no seu cotidiano.

Esses resultados afirmam que essa prática perdura uma noção compensatória no que se refere aos adolescentes pobres, já que são compreendidos como carentes e em situação de risco. Essa prática contribui para a construção de uma infância normal em oposição a uma infância de risco e, assim, assistimos de camarote a desproteção se tornar infração.

Nessa categoria também foram destacados estudos que criticaram a forma pela qual é construído o relatório enviado ao juiz sobre o jovem infrator, bem como a falta de clareza quanto à aplicação das medidas. A construção do relatório precisa valorizar a família e reconhecer a realidade socioeconômica, basear-se na fase do desenvolvimento deste sujeito, enfocar a circularidade das relações que ele mantém em seu meio e resgatar a proteção que lhe é devida. Não é suficiente conhecer o ato infracional, é preciso também conhecer as motivações que vem da história de vida do adolescente, sua realidade social e cultural, e os conflitos familiares que o envolvem. Essa avaliação descentra o ato infracional e o centra no sujeito e sua história. Além disso, essa avaliação deve ser feita antes da aplicação da medida, já que orienta o juiz e deve subsidiar as orientações que acompanham a medida.

Uma segunda categoria agrupou resultados relacionados às famílias com adolescentes infratores. Especificamente quanto às relações familiares, verificou-se que os jovens têm muitas dificuldades em se abrirem com a família, de falar sobre suas dificuldades e de pedir ajuda a eles. São famílias caracterizadas por relações insatisfatórias, violentas e com problemas de comunicação devido aos conflitos resolvidos de forma destrutiva na família. Além disso, a importância da família está centrada na figura da mãe e dos irmãos, com uma figura paterna distante ou ausente. As mães também foram referidas como permissivas ao comportamento transgressor dos filhos, perdendo sua autoridade diante deles. Chegam a negar ou guardar segredo do problema com a intenção de minimizar os riscos.

Alguns adolescentes autores de ato infracional apresentaram comportamento violento que pode ser explicado pelo padrão de relações estabelecidas dentro da família (Nardi & Dell’Aglio, 2012), tais como: problemas na disciplina, nos cuidados, na monitoria e na supervisão dos filhos. Com relação aos papéis de pai e mãe, observou-se que uma das principais problemáticas dos adolescentes que cometem ato infracional estava relacionada à inexistência de um pai (ausência simbólica desta função), que possibilite a vivência de um sistema de limites e proibições que toda a cultura possui.

Ainda sobre a importância das figuras parentais, constatou-se que para que ocorra a reinserção social, após o período de prisão, é fundamental a ajuda da família, do estado, da escola de toda a rede de apoio que o jovem tiver acesso. O jovem frente à falta de referências simbólicas que possam ajudá-lo a passar pela adolescência, pode restringir-se a dimensão do ato como forma de lidar com a angústia. No relato de um adolescente detido ficou evidente sua relação com seus pais caracterizada pelo baixo envolvimento e demonstração de afeto; uso inadequado de reforçamento positivo; ausência de regras e monitoria; comunicação coercitiva e punições exageradas (Costa, Guimarães, Pessina, Sudbrack, 2007).

Além disso, os resultados ilustraram que a grande maioria dos adolescentes infratores já havia experimentado algum tipo de violência no ambiente familiar, sendo a mais comum a classificada como forma mecânica: surras, golpes na cabeça, palmatórias, beliscões, ponta-pé, mordidas, ataques provocados por cães. O pai foi apontado como o principal agressor nos estudos analisados. Isto é, as famílias dos adolescentes infratores foram referidas pela literatura consultada como famílias de risco, uma vez que há a prevalência de práticas parentais negativas e estratégias destrutivas para a resolução de conflitos, com histórico de expulsão ou exclusão escolar.

Na terceira categoria de resultados foram reunidos dados que apontaram possíveis intervenções com objetivo de diminuir a incidência de atos infracionais na adolescência, enfatizando a necessidade de um trabalho de intervenção em rede devido à multiplicidade e complexidade da prática de atos infracionais. Nesse sentido, observou-se a importância de promover o fortalecimento dos vínculos sócio afetivos, autonomia e projetos de vida com os adolescentes como fatores de proteção, de modo que possam atenuar os fatores de vulnerabilidade que permeiam o ambiente psicossocial desses jovens.

 

Discussão dos resultados

A revisão da literatura consultada apontou a existência de uma grande quantidade de fatores de risco presentes na vida dos adolescentes em conflito com a lei. Além disso, mesmo que possam ser identificados fatores de proteção nos diversos contextos que esses jovens frequentavam, a quantidade dos fatores de risco foi muito maior.

De acordo com Gehring (1993), as famílias com adolescentes infratores frequentemente são menos coesas e apresentam relações hierárquicas não balanceadas (igualitárias ou rígidas demais). Assim, alguns adolescentes autores de ato infracional apresentam um comportamento violento que pode ser explicado pelo padrão de relações estabelecidas dentro da família (Nardi & Dell’Aglio, 2012).

A partir dessa perspectiva, não é suficiente conhecer o ato infracional, é preciso também conhecer as motivações que vem da história de vida do adolescente, sua realidade social e cultural e os conflitos familiares que o envolvem (Costa et al, 2011).

Nesse sentido, Pereira e Sudbrack (2008) afirmam que deve se levar em consideração a perspectiva da complexidade, já que são diferentes (únicos) adolescentes que podem cometer o mesmo ato. O adolescente ainda é estigmatizado ora como vítima (é o produto do meio que vive), ora como agressor (é o único responsável pelo ato infracional), ora como doente (logo precisa de tratamento), ora como delinquente (logo precisa ser punido). Essas são visões simplistas que se limitam apenas ao comportamento do adolescente e não consideram a realidade social mais ampla em que o jovem está inserido.

A teoria sistêmica constitui um importante recurso para a compreensão do comportamento do adolescente infrator e uma das suas principais características é a ampliação do foco de análise. Assim a conduta do adolescente reflete mais que suas características de personalidade e seus conflitos pessoais. Esse comportamento é percebido como parte de um jogo relacional complexo composto por outros indivíduos contextos e regras de conduta (Costa, Guimarães, Pessina & Sudbrack, 2007).

A teoria sistêmica também pode compreender o comportamento desviante de um adolescente como um sintoma que possui uma função dentro sistema familiar. Nesse sentido, torna-se fundamental avaliar o contexto relacional de um adolescente para melhor compreendê-lo. A vida das pessoas é modelada pela significação que elas atribuem a sua experiência, pela situação que ocupam nas estruturas sociais e pelas práticas culturais e da linguagem de suas relações (Costa, Guimarães, Pessina & Sudbrack, 2007).

Dentre as relações mais significativas estão as relações estabelecidas entre o jovem e sua família. Nos estudos analisados constatou-se que os adolescentes descreveram um forte vínculo com a mãe valorizando o papel protetivo e acolhedor da figura materna. As mães foram referidas como permissivas ao comportamento transgressor dos filhos, perdendo sua autoridade diante deles. Chegam a negar ou guardar segredo do problema com a intenção de minimizar os riscos.

Com relação ao pai, ficou evidente a ausência do papel afetivo, protetivo e de autoridade. A função paterna fica comprometida fazendo com que o jovem permaneça no vazio e procure fora a autoridade que não encontra dentro da família (Pereira & Sudbrack, 2008).

Uma característica comum às famílias com filhos delinquentes, segundo Jacobina e Costa (2007) é que a autoridade parental foi enfraquecida de alguma maneira. Talvez os atos delinquentes sejam uma forma de denunciar as dificuldades da família em aceitar mudanças ou ainda poderiam ser interpretados como uma forma de expressão de algo que não pode ser dito. Isto é, uma forma de comunicação que denuncia carências no sistema familiar, que denuncia as desigualdades sociais e que denuncia lealdades invisíveis (Cenci, Teixeira e Oliveira, 2014).

No estudo de Cenci, Teixeira e Oliveira (2014) ficou evidente que essas famílias não oferecem adequadas opções para a resolução de conflitos, apresentam um ambiente familiar no qual o delito faz parte do cotidiano e a transgressão passa ser utilizada como uma forma de resolver os problemas, sendo estas estratégias aprendidas no âmbito familiar.

No entanto não são todos os adolescentes expostos à violência e conflitos familiares que apresentam vulnerabilidade e problemas de comportamento. O que será que ocorre com os adolescentes que não cometem atos infracionais, mesmo sendo igualmente expostos a violência e conflitos familiares? Será que toda a família violenta e conflituosa é geradora de filhos delinquentes?

Castro e Guareschi (2008) apontam que o discurso social normalmente deposita na família a causa dos males das crianças e dos jovens. A família também sofre as consequências de relações sociais excludentes, assim como os jovens. Ela não deve ser vista como causadora e sim como exposta e subjetivada pelas mesmas situações. Os programas sociais existentes ao culparem a família acabam por colaborar com o afastamento dos familiares e o rompimento dos vínculos já frágeis.

Alguns fatores de proteção presentes no contexto desses jovens podem amenizar os riscos. Monitorar os filhos e exercer certa autoridade sobre eles, fortalecer os vínculos, mantendo uma hierarquia adequada constitui-se em um fator de proteção (Nardi & Dell”Aglio, 2012; Rossato & Souza, 2014).

Gallo (2008) apresenta uma experiência do Canadá, local com índices de violência significativamente menores que o Brasil. O trabalho desenvolvido envolve toda a família do adolescente por um período de três meses. Esses encontros ocorrem diariamente na casa da família, em horários flexíveis, para atender a todos os membros da família. A intervenção leva em consideração as necessidades individuais de cada membro, assim como seus valores, crenças e cultura. O objetivo dessa intervenção é identificar o problema dentro de um contexto mais amplo, avaliando a relação do adolescente com a sua família, com a sua comunidade, com a escola, com os serviços de saúde. A partir das relações entre esses sistemas, o terapeuta enfatiza as características positivas de cada sistema e as usa como alavanca para melhorar as relações com os demais sistemas, endereçando problemas específicos e bem definidos, com vista ao empoderamento da família.

Infelizmente no Brasil a realidade é diferente e os índices de violência são muito maiores que no Canadá. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) apresentou um levantamento sobre o atendimento socioeducativo à adolescentes em conflito com a lei no Brasil em 2010. Realizado anualmente desde 2006, o balanço tem como objetivo subsidiar a avaliação das políticas públicas na área (Conanda, 2010).

Em 2010, havia 58.764 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no Brasil, sendo 18.107 com restrição de liberdade (internação, internação provisória e semiliberdade) e 40.657 em meio aberto. O balanço reitera a tendência já observada em anos anteriores de estabilização da taxa de internação. Se de 1996 a 2004 o crescimento na taxa de internação foi de 218%, de 2004 a 2010, este aumento foi de 31%. Em 2010 este aumento foi de 4,5%, em decorrência especialmente do incremento na internação provisória, em especial no estado de São Paulo, que concentra aproximadamente 1/3 do total de internos (Conanda, 2010).

No Brasil, em média, para cada 10 mil adolescentes entre 12 e 17 anos há 8,8 cumprindo medida de privação e restrição de liberdade. A maior proporção de internos em relação à população adolescente é no Distrito Federal, com 29,6 adolescentes para cada 10 mil, seguido pelo estado do Acre (19,7), São Paulo (17,8) Pernambuco (14,8) e Espírito Santo (13,4). A menor proporção foi encontrada no estado do Maranhão (1,2), Amapá (1,5) e Piauí (1,6) (Conanda, 2010).

A proporção entre adolescentes em cumprimento de medidas em meio aberto e fechado (internação, internação provisória e semiliberdade) se apresenta na média brasileira de um interno para cada dois em meio aberto. As maiores proporções foram encontradas nos estados de Roraima (1/15), Goiás (1/12), Santa Catarina (1/6), Paraná e Mato Grosso do Sul (1/5). A menor proporção (1/1) foi encontrada nos estados do Acre, Amapá, Rondônia, Tocantins, Alagoas, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Rio de Janeiro e São Paulo (Conanda, 2010).

Sabe-se que a lei preconiza a ruptura da cultura da internação de adolescentes. No entanto, esses dados evidenciam a dificuldade de respeitar a doutrina da proteção e preservação dos vínculos familiares e comunitários, mostrando o descompasso entre a lei e a prática.

Cruz et al. (2010) destaca que as medidas socioeducativas representam apenas um elo da rede de atendimento ao adolescente infrator. Outros programas sociais de atenção a família, a escola, a profissionalização e a geração de trabalho e renda são urgentes. A partir da compreensão dos possíveis fatores de proteção e de risco presentes no ambiente dos adolescentes autores de ato infracional, poderão ser criadas ações a fim de ajudá-los na busca de uma trajetória de vida socialmente aceita.

De acordo com Gallo e Williams (2005), os fatores de risco, isoladamente, dificilmente levariam um adolescente a praticar ato infracional. Por isso a importância de se entender o contexto em que esses fatores se manifestam juntamente com os fatores capazes de amenizar o efeito desses riscos, os fatores protetivos. Entre estes, pode-se destacar a importância da família, da escola, do estabelecimento de vínculos afetivos, de projetos de vida e até mesmo da medida socioeducativa para os adolescentes que já estão inseridos no sistema (Nardi & DellAglio, 2010).

 

Considerações finais

O levantamento dos 19 estudos empíricos sobre as famílias com adolescentes em conflito com a lei revelou que os pesquisadores brasileiros investigaram as influências negativas das variáveis familiares associadas ao ato infracional. Estudos sobre os fatores de proteção ou sobre os fatores excepcionais (White, 2012) nas famílias praticamente inexistiram.

O que será que ocorre com os adolescentes que não cometem atos infracionais, mesmo sendo igualmente expostos à pobreza, à violência e aos conflitos familiares? Será que todo jovem que comete ato infracional é um delinquente? Certamente não. O delito em si é apenas uma dimensão do problema.

É preciso muito cuidado para não transformar o infrator em delinquente. Para isso é necessária uma cuidadosa avaliação das condições individuais, familiares e sociais do adolescente que cometeu o ato infracional, sem construir para ele um perfil de delinquente (Foucault, 1994). Essa avaliação deve buscar conhecer as motivações que vem da história de vida do adolescente, sua realidade social e cultural e os conflitos familiares que o envolvem.

Nesse sentido, a teoria sistêmica é um importante recurso para a compreensão do comportamento do adolescente infrator, já que promove uma ampliação do foco de análise. Além disso, pensar sistemicamente é pensar a complexidade, a instabilidade e a intersubjetividade (Vasconcellos, 2002).

O pressuposto da complexidade possibilita contextualizar o fenômeno a partir da ampliação do foco de observação. Ou seja, não veremos mais apenas o jovem infrator, mas uma teia de fenômenos interligados ao jovem infrator. O pressuposto da instabilidade obriga descrever o fenômeno com o verbo estar. Ou seja, o fenômeno que se observa está em constante mudança e evolução. E o pressuposto da intersubjetividade considera e valida as possíveis realidades instaladas por distinções diferentes e o terapeuta se inclui verdadeiramente no sistema que trabalha.

De que forma, nós, terapeutas de família, embasados no pensamento sistêmico, podemos desenvolver ações que visem a proteção desses jovens e a amenização dos riscos? Como auxiliar a família com filhos adolescentes no monitoramento, no exercício de certa autoridade e na manutenção de uma hierarquia adequada? Como uma terapeuta familiar, identificada pelo pensamento sistêmico novo-paradigmático (Vasconcellos, 2002) e interessada na possibilidade de construção de alternativas terapêuticas para famílias com adolescentes que cometeram ato infracional, acredito que uma das formas seja olhar com mais atenção para os eventos excepcionais dessas famílias (White, 2012).

Esse trabalho apresentou uma revisão sistemática da literatura nacional publicada em revistas de psicologia online, excluindo todas as demais áreas do conhecimento. Em função desses critérios, é provável que muitos estudos não tenham entrado nesta revisão. Sugere-se que mais revisões de literatura sejam realizadas incluindo outras áreas do conhecimento, bem como novas pesquisas que possam investigar a influência dos eventos excepcionais na vida dessas famílias.

Assim, provavelmente, os terapeutas conseguirão ajudar essas famílias a buscarem em sua memória o outro lado da história. O lado que honra a sua coragem e persistência, o lado que abre o caminho para a esperança e para a construção de uma nova história (White, 2012).

 

Referências

Achenbach, T. M., Howell, C. T., McConaughy, S. H. & Stanger, C. (1998). Six-year predictors of problems in national sample: IV. Young adult signs of disturbance. American Journal of Academic Child and Adolescent Psychiatry, 37(7), 718-727.         [ Links ]

Assis, S. G., & Constantino, P. (2005). Perspectivas de prevenção da infração juvenil masculina. Ciência e Saúde Coletiva, 10(1), 81-90.         [ Links ]

Barnes, G. M. & Farrel, M. P. (1992). Parental support and control as predictors of adolescent drinking, delinquency and related problems behaviors. Journal of Marriage and the Family, 54, 763-776.         [ Links ]

Branco B. M., Wagner, A., & Demarchi, K. A. (2008). Adolescentes infratores: Rede social e funcionamento familiar. Psicologia: Reflexão e Crítica, 21(1), 125-132.         [ Links ]

Brasil. Lei 8069, de 13 de julho de 1990: Estatuto da Criança e do Adolescente. Retirado em 6/7/2013 do http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm.         [ Links ]

Carter, B., & McGoldrick, M. (2008). As mudanças no ciclo de vida da família: Uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Cenci, C.M.B., Teixeira, J.F. & Oliveira, L.R.F. (2014). Lealdades invisíveis: Coparticipação da família no ato infracional. Pensando Famílias, 18(1), 35-44.         [ Links ]

Cerveny, C. M. O., & Berthoud, C. M. E. (2002). Visitando a família ao longo do ciclo vital. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Conanda - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (2010). Retirado em 6/6/2013 do http://www.unicef.org/brazil/pt/PoliticaPlanoDecenal_ConsultaPublica.pdf.         [ Links ]

Conger, R. D., Conger, K. J., Elder, G. H., Lorenz, F. O, Simons, R. L. & Whitebeck, L. B. (1992). A family process model of economic hardship and adjustment of early adolescent boys. Child Development, 63, 526-541.         [ Links ]

DuBois, D. L., Felner, R. D., Brand, S., Adan, A M. & Evans, E. G. (1992). A propecstive study of life stress, social support and adaption in eatly adolescence. Child Development, 63, 542-557.         [ Links ]

Farrel, M. P., Barnes, G. M. & Banerjee, S. (1995). Family cohesion as a buffer against the effects of problem-drinking fathers on psychological distress, deviant behavior and heavy drinking in adolescents. Journal of Health and Social Behavior, 36, 377-385.         [ Links ]

Ferdinand, R. F., Verhulst, F. C. & Wiznitzer, M. (1995). Continuity and change of self-reported problem behaviors from adolescence into young adulthood. American Journal of Academic Child and Adolescence Psychiatry, 34(5), 680-689.         [ Links ]

Hofstra, M. B., Ende, J. V. D. & Verhulst, F. C. (2000). Continuity and Change of psychopatology from childhood into adulthood: A 14-year follow-up study. American Journal of Academic Child and Adolescent Psychiatry, 39(7), 850-858.         [ Links ]

Hofstra, M. B., Ende, J. V. D. & Verhulst, F. C. (2002). Child and adolescent problems predict DSM-IV disorders in adulthood: A 14-year follow-up of dutch epidemiological sample. American Journal of Academic Child and Adolescent Psychiatry, 41(2), 182-189.         [ Links ]

Hutz, C. S., Koller, S. H. & Bandeira, D. R. (1996). Resiliência e vulnerabilidade em crianças em situação de risco. In S. H. Koller (org.), Coletâneas da ANPEPP: Aplicações da psicologia na melhoria da qualidade de vida (Vol. 1, pp. 79-86). Porto Alegre: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia.         [ Links ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2010). Síntese dos indicadores sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Estudos e Pesquisas: Informação Demográfica e Sócio Econômica 27. Rio de Janeiro: IBGE.         [ Links ]

Lambert, M. C., Lyubansky, M. & Achenbach, T. M. (1998). Behavioral and emotional problems among adolescents of Jamaica and the United States: Parent, teacher and self-reports for ages 12 to 18. Journal of Emotional and Behavioral Disorders, 6(3), 180-187.         [ Links ]

Lempers, J. D., Lempers, D. C. & Simons, R. L. (1989). Economic hardship, parenting and distress in adolescence. Child Development, 60, 25-39.         [ Links ]

Nardi, F. L. (2010). Adolescentes em conflito com a lei: Percepções sobre a família, ato infracional e medida sócio educativa. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Nardi, F. L. & Dell’Aglio, D. D. (2012). Adolescentes em conflito com a Lei: Percepções sobre família. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 28, 181-191.

Nardi, F. L & Dell'Aglio, D. D. (2013). Reflexões acerca do ato infracional e da medida socioeducativa: Estudos de caso. Interamerican Journal of Psychology, 47, 33-42.         [ Links ]

Nichols, M. P., & Schwartz, R. C. (2007). Terapia familiar: Conceitos e métodos. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Osório, L. C. (1992). Adolescente hoje. Porto Alegre: Artes médicas.         [ Links ]

Peres, M. F. T., Ruotti, C., Vicentin, D., Almeida, J. F., & Freitas, T. V. (2010). Avaliação de programas de prevenção da violência: Um estudo de caso no Brasil. Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade, 2, 58-71.         [ Links ]

Rossato, L. & Souza, T.M.C. (2014). Psicologia e adolescentes em conflito com a lei: Reflexões a partir do estágio. Revista da SPAGESP, 15(1), 112-122.         [ Links ]

Rutter, M. & Smith, D. J. (1995). Psychosocial disorders in young people: Time trends and their causes. Psychological Bulletin, 51, 172-175.         [ Links ]

Santos, F. V. G. (2007). Família: Peça fundamental na ressocialização de adolescentes em conflito com a lei? Recife, 2007. 103 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

Silva, D. F. M. & Hutz, C. S. (2002). Abuso infantil e comportamento delinquente na adolescência: Prevenção e intervenção. In C. S. Hutz (org.) Situações de risco e vulnerabilidade na infância e na adolescência: Aspectos teóricos e estratégias de intervenção (pp. 151-185). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

UNICEF (2008). Cartilha em defesa do adolescente: Protagonismo das famílias em defesa dos direitos dos adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas. São Paulo.         [ Links ]

Wagner, A., Predebon, J. C., Falcke, D., Dotta, R. & Garcia, I. (2002). A comunicação familiar: Uma experiência com adolescentes em grupos focais. Psico, 33(1), 137-150.         [ Links ]

 

 

Anexo A

1. Risco e proteção para adolescentes envolvidos em práticas de condutas agressivas. (Silveira, M. S.; Maruschi, M. C; Bazon, M. R., 2012).

2. Adolescentes em conflito com a lei: percepções sobre a família. (Nardi, F. L.; Dell’Aglio, D. D., 2012).

3. Modalidades do ato infracional na particularidade da adolescência. (Capanema, C. A.; Vorcaro, A., 2012).

4. Adolescente que cumpre medida socioeducativa: modos de ser no cotidiano e possibilidades para a enfermagem. (Carmo, D. R. P., 2011).

5. Um olhar sobre a família de jovens que cumprem medidas socioeducativas. (Dias, A. C. G.; Arpini, D. M.; Simon, B. R. 2011).

6. Prática de privação de liberdade em adolescentes: um enfoque psicossociológico. (Coutinho, M. P. L.; Estevam, I. D., Araújo, L. F.; Araújo, L. S., 2011).

7. A entrevista motivacional em adolescentes usuários de drogas que cometeram ato infracional. (Andretta, I.; Oliveira, M., 2011).

8. Adolescente em conflito com a lei: o relatório psicossocial como ferramenta para promoção do desenvolvimento. Costa, L. F.; Penso, M. A.; Sudbrack, M. F. O.; Jacobina, O. M. P., 2011).

9. Da medida protetiva à socioeducativa: o registro da (dês) proteção. (Jacobina, O. M. P.; Costa, L. F., 2011).

10. Medidas socioeducativas em meio aberto no município de santa Cruz do Sul/RS: entre as diretrizes legais e as políticas sociais públicas. (Cruz, L.R.; Welzbacher, A. I.; Freitas, C. L. S.; Costa, L. X.S.; Lorini, R. A., 2010).

11. Pesquisas narrativo-dialógicas no contexto de conflito com a lei: considerações sobre uma entrevista com jovem autora de infração. (Germano, I., Bessa, L. L., 2010).

12. Da privação da dignidade social à privação da liberdade individual. (Guareschi, P. & Castro, A. L. S., 2008).

13. Drogadição e atos infracionais na voz do adolescente em conflito com a lei. Pereira, S. E. F. N. & Sudbrack, M. F. O., 2008).

14. Intervenção única com a família e adolescente em conflito com a lei. (Costa, L. F.; Guimarães, F. L.; Pessina, L. M.; Sudbrack, M.F.O., 2007).

15. Significações construídas no diálogo entre família, esfera judicial e sociedade sobre adolescentes em conflito com a lei. (Alcantara, M. A.R., 2007).

16. Para não ser bandido: trabalho e adolescentes em conflito com a lei e trabalho. (Jacobina, O. M. P.; Costa, L. F., 2007).

17. Experiências de violência intrafamiliar entre adolescentes em conflito com a lei. Lima, I. M. S. O.; Alcantara, M. A. R.; Almeida, K. V. D.; Alves, V. S., 2006).

18. Práticas educativas Parentais: um estudo comparativo da interação. (Salvador, A. P. V.; Weber, L. N. D., 2005).

19. Práticas educativas parentais em famílias de adolescentes em conflito com a lei. (Carvalho, M. C. N.; Gomide, P. I. C., 2005).

20. A experiência com a violência urbana entre adolescentes de Botucatu. (Machado, D. F., 2005).

21. Representações sobre a adolescência a partir da ótica dos educadores sociais de adolescentes em conflito com a lei. (Espíndula, D. H. P.; Santos, M. F. S., 2004).

22. Adolescentes em conflito com a Lei: representações sociais maternas. (Alves, M. I. A. M., 2003).

 

 

Endereço para correspondência
Juliana Predebon
E-mail: juliana@turistar.com.br

Enviado em: 25/05/2015
1ª revisão em: 17/07/2015
Aceito em: 21 /07/2015

 

 

1 Psicóloga. Doutora em Psicologia (PUCRS). Professora do curso de graduação em Psicologia na ULBRA.
2 Assistente Social. Mestre em Serviço Social. Diretora fundadora do Domus. Professora do curso de graduação em Serviço Social na ULBRA.

Creative Commons License