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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.19 no.2 Porto Alegre Dec. 2015

 

ARTIGOS

 

Por que não se separam? A perda da confiança no relacionamento conjugal1

 

Why don't you just break up? The loss of confidence in marriage

 

¿Por qué no se separan? La pérdida de confianza en matrimonio

 

 

Roberto Pereira2

Diretor da Escuela Vasco Navarra de Terapia Familiar (EVNTF)
Presidente do Red Española y Latinoamericana de Escuelas Sistémicas (Relates)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Quando se trabalha em terapia sistêmica, especialmente com casais, não é raro encontrar-se com alguns que brigam sem cessar, que não deixam passar nenhuma oportunidade para ferirem-se mutuamente, para fazerem-se mal com todos os recursos que possuem ao seu alcance, geralmente sem violência física, terminando as brigas sem que exista uma mínima reconciliação. São estes casais que, quando alguém os recebe acaba dizendo (em voz alta ou pra si mesmo, segundo como seja o seu dia): “por que não se separam?”. É uma pergunta pertinente. Se como parece, seu principal objetivo como casal é machucar-se mutuamente, e sofrem com sua relação, e não possuem motivos legais ou econômicos importantes que o impeçam, o divórcio poderia ser uma boa alternativa. Então, por que não se separam? Este artigo trata de dar respostas a essa pergunta, propondo que a origem do conflito interminável está em uma traição da confiança do casal com a família de origem, em uma situação de bloqueio da saída, quer dizer, da ruptura da relação. Utiliza-se, finalmente, um fragmento da ópera Aida, de Verdi, para exemplificar a proposta.

Palavras-chave: Confiança, Relação de casal, Teoria dos jogos, “Clinch maligno”, Escalada simétrica.


ABSTRACT

When you are working in systemic family therapy, especially with couples, it is not uncommon to find some of them fighting all the time, taking whatever opportunity to hurt each other, harming the other person and the relationship with the resources at hand, usually without physical violence. The fights stop with our repair or forgiveness. These are couples, when you see them you end up just saying (aloud or to yourself, depending on how you feel that day): "Why don´t you just break up?" It is an important question. If, as seems, the primary goal as a couple is to harm each other, and both suffer in their relationship, and there are no major legal or economic reasons that make them stay together , the divorce could be a good alternative. So why don´t they just separate? The article tries to answer exactly this question, suggesting that the source of endless conflict is a betrayal of the trust of each member of the couple with his or her family of origin. They can´t divorce because their loyalty to their family of origin blocks this exit: breakdown of the relationship. A fragment of Aida, Verdi's opera is used as an example to back up our working hypothesis.

Keywords: Trust, Relationship, Game Theory, "Malign clinch", Symmetrical escalation.


RESUMEN

Cuando se trabaja en terapia sistémica, especialmente con parejas, no es extraño encontrarse con algunas que se pelean sin cesar, que no dejan pasar ninguna oportunidad para herirse mutuamente, para hacerse daño con todos los recursos que tienen a su alcance, generalmente sin violencia física, terminando las peleas sin que haya una mínima reconciliación. Son esas parejas que, cuando uno las recibe acaba diciendo (en alta voz o para sus adentros, según como tenga el día): “¿Por qué no se separan?”. Es una pregunta pertinente. Si como parece, su principal objetivo como pareja es dañarse mutuamente, y sufren con su relación, y no hay motivos legales o económicos importantes que se lo impidan, el divorcio podría ser una buena alternativa. Entonces, ¿por qué no se separan?. El artículo trata de dar respuesta a esa pregunta, proponiendo que el origen del conflicto interminable está en una traición de la confianza de la pareja con la familia de origen, en una situación de bloqueo de la salida, es decir, de la ruptura de la relación. Se utiliza finalmente un fragmento de Aída, la ópera de Verdi, para ejemplificar la propuesta.

Palabras clave: Confianza, Relación de pareja, Teoría de los juegos, “Clinch maligno”, Escalada simétrica.


 

 

Introdução

Quando se trabalha em terapia sistêmica, especialmente com os casais, não é incomum deparar-se com alguns que brigam sem cessar, que não deixam passar nenhuma oportunidade para ferirem-se mutuamente, para fazer danos com todos os recursos que possuem ao seu alcance, geralmente sem violência física, embora possam chegar alguma vez às vias de fato, terminando as brigas sem que haja uma mínima reconciliação, um pedido de desculpas ou perdão. São esses casais que quando alguém os recebe acaba dizendo (em voz alta ou para si mesmo, segundo como seja o seu dia): "Por que eles não se separam?".

É uma questão pertinente. Se, como parece, seu principal objetivo como um casal é ferirem-se mutuamente, e sofrer com sua relação, e não há motivos legais ou econômicos importantes que o impeçam, o divórcio poderia ser uma boa alternativa. Então, por que não se separam? Porque efetivamente esses casais não se separam. Tentaremos responder a esta pergunta, tomando como ponto de partida a teoria dos Jogos, propondo uma explicação a esta situação de conflito interminável, e utilizando finalmente um fragmento de Aida, a ópera de Verdi, para ilustrar a proposta.

 

A confiança e a Teoria dos Jogos

Boa parte do funcionamento social baseia-se em uma confiança básica na qual os outros vão respeitar as regras. Quando há um semáforo com o sinal vermelho, os carros param; quando um açougueiro levanta seu facão não é uma ameaça, é que ele vai cortar bifes; ou quando o barbeiro apoia o fio da navalha na garganta de alguém, não é para degolar, é para barbear. Não que de vez em quando alguém não ultrapasse um semáforo em vermelho, ou um açougueiro não faça bifes de algum cliente, ou um barbeiro mafioso nos ilustre uma degola. Mas se estas últimas não são expectativas habituais, deixamos de pensar nestas possibilidades como uma ameaça próxima, caso contrário, não se poderia circular de carro por uma cidade, nos tornaríamos todos vegetarianos e as barbearias fechariam por falta de clientes.

Isto é, todos nós nos esforçamos para conseguir que as coisas funcionem para todos obtermos benefícios: explica-nos muito bem a Teoria dos Jogos. Enunciada pelos matemáticos austríacos Von Neumann e Morgenstern (1944), aplicada inicialmente para a economia, ela nos explica que existem dois tipos de jogos relacionais (compreendendo por jogo as interações relacionais demarcadas por determinadas regras): Jogos competitivos e Jogos colaborativos.

Os jogos competitivos, ou jogos de soma zero, são aqueles nos quais os jogadores buscam obter algum benefício, mesmo se o resto dos jogadores não o obtiverem ou, inclusive, saiam perdendo. São jogos de ganhar/perder: o que um ganha, o outro perde. A soma de prejuízos e lucros soma zero.

Os jogos colaborativos, ou jogos de soma não zero, são aqueles nos quais os jogadores possuem uma ampla gama de opções: podem ganhar todos, perder todos, ou alguns ganhar e outros perder. Normalmente se exemplifica pelo “dilema do prisioneiro”, enunciado pelo também matemático A. Tucker, e descrito por Watzlawick et al. (1981, p. 209) na Teoria da Comunicação Humana.

As relações humanas são em princípio jogos colaborativos, nos quais se pretende que todos os participantes possam obter benefícios da relação. Quer dizer, são jogos de ganha/ganha. Contudo, para que isto possa ocorrer, é necessária uma condição imprescindível: a Confiança de que os demais jogadores respeitem as regras, quer dizer, que o carro vai respeitar o semáforo, e o açougueiro e o barbeiro vão se limitar a exercer o seu ofício, sem expandir o leque de possibilidades para as suas ferramentas afiadas. Embora o dilema dos prisioneiros ilustre muito bem a necessidade de confiar para que se possa obter benefícios da relação, irei ilustrar com um exemplo tirado da minha adolescência, que acredito que também o explicará muito bem.

 

A bofetada histórica

Quando estava no colégio – um colégio unicamente de meninos, como era o habitual – tivemos durante um par de cursos um professor que nos ensinava e nos incentivava a jogar a um jogo que, na sua opinião, estimulava nossas atitudes viris: o chamávamos de “a bofetada histórica”, provavelmente devido à deformação de um nome que era mais apropriado “a bofetada estoica”, embora como veremos na continuação, o adjetivo “histórico” também não lhe cabia mal.

O jogo consistia no seguinte: dois jogadores se colocavam um frente ao outro, a uma distância de um braço, e alternadamente se davam uma bofetada na cara, até chegar a três cada um, devendo estar o jogador que a recebeu em completa imobilidade. Sempre pensei que o jogo havia sido inventado pelo citado professor até que descobri que os Yanomami, belicosa etnia da Amazônia venezuelana e brasileira, possuíam um ritual similar, porém golpeando o peito no lugar da face. Em todo o caso, se vê que era um ritual bastante primitivo, no qual nenhum dos estudantes em geral possuía grande interesse em participar, e só o faziam pela pressão social que os incitavam a mostrar uma suposta conduta viril (quem se negava veementemente a jogar corria o risco de receber o apelido de “menina”, epíteto muito pouco valorizado nessa época entre os adolescentes). Eu creio haver jogado um par de vezes, felizmente o volume de alunos não precisava fazê-lo muito mais para evitar o adjetivo denegritório, e com pouco ou nenhum entusiasmo, como a maioria dos companheiros. Contudo, analisemos o fogo.

Sorteava-se tanto a dupla de jogadores, quanto qual dos dois era o que começava a série de tapas, de forma que não adiantava combinar regras próprias com antecedência. Partimos do pressuposto que ninguém tinha muito interesse de receber bofetadas – outra coisa era dá-las – pelo qual o jogador que começava a série poderia fazer o seguinte raciocínio: se eu acerto o meu adversário com uma bofetada suave, cumpro com o ritual, e calculo que irei receber uma bofetada suave, porque o jogador que tenho a minha frente provavelmente tampouco quer que lhe vire a cara ao avesso. Não houve nenhuma negociação com ele, mas confio que ele corresponderá a minha proposta de usufruir o menor dano possível.

Se colocarmos em números, provavelmente o entenderemos melhor. Suponhamos que cada bofetada suave recebida equivale a um ponto (+1), visto que obtenho um ganho social sem sofrer fisicamente, e cada bofetada forte que ganho, recebo uma pontuação negativa (-1), visto que a dor produzida pela bofetada obscurece o prestígio social obtido. Se os dois jogadores se dão três bofetadas suaves, obterão +3 pontos cada um, o máximo benefício para os dois (Figura 1, a1b1). Caso se deem três bofetadas fortes, cada um obterá -3 pontos, a perda máxima (Figura 1, a2b2).

Figura 1: Matriz com as possibilidades de obter pontos segundo as bofetadas suaves ou fortes

 

 

Voltemos ao jogo. Recordemos que cada jogador dá três bofetadas alternadamente, e que se sorteia quem começa, de maneira que a bofetada no 6 é final da série, não há contragolpe. Assim, o jogador que bofeteia por último, pode ter obtido o seu máximo lucro, os três pontos, no caso de ter recebido três bofetadas suaves. Então, o que lhe impede de dar a última bofetada com todas as suas forças? O benefício do contrário será de um só ponto (+2 -1 = +1), porém o seu continuará intacto (+3) (Figura 1, a2b1). O que poderá pensar o primeiro jogador?: “Bem, é certo que me arrisco a ter um benefício menor que meu par, porém mesmo assim obtenho um benefício, desse modo o risco vale a pena. Por outro lado, conheço meu adversário, e confio que ele não vai ser desleal ao acordo tácito de não nos machucarmos, conforme propus”. Assim, a confiança em que a resposta do par seguirá as normas, mesmo que sejam implícitas, e que agirá de boa fé, é o que nos move a agir de uma maneira não prejudicial (obviamente, também pode nos mover uma atitude altruísta, ou de bondade, ou de “dar a outra face”, contudo pensemos em negociações que buscam um equilíbrio na relação. Também poderia acontecer que esse equilíbrio fosse buscado em outros contextos, porém para compreendê-lo melhor, vamos simplificar e reduzir a negociação para as bofetadas dadas e recebidas).

Portanto, o que acontece se não possuímos ou se tivermos perdido a confiança no nosso oponente? Suponhamos que já jogamos anteriormente com ele, que oferecemos um acordo tácito de não nos agredirmos com força, mas que ele se aproveitou que acertasse o último tapa, e arrancou um dente com a bofetada. Suponhamos também que nos escolheram novamente para dar o tapa em primeiro lugar. Podemos repetir a proposta inicial, e dar duas bofetadas suaves e receber outras duas parecidas. Chega a vez do último tabefe, e pensamos: A não! Não vai voltar a se repetir a história de que eu o golpeie de forma leve (+3 para ele), e ele volte a me deixar como um imbecil e com outro dente a menos (+1)”. Deste modo, dou a última bofetada com toda a minha força, assumindo que ele vá responder igual (+1 para os dois). “Vou levar a bofetada, mas desta vez eu não perco” (Figura 1, a1b2).

Mas vamos imaginar que o 2o jogador fez o seguinte raciocínio: “a última vez que joguei não respeitei o jogo da bofetada leve até o fim, então certamente o meu adversário não vai repetir o mesmo padrão. É mais provável que em algum momento me acerte com força, dessa forma vou bater desde o início com toda a minha vontade”. Assim o 2o jogador recebe a primeira bofetada suave, mas para se garantir de não perder responde com uma forte, então os quatro restantes serão fortes. O primeiro jogador recebe -3 pontos - máxima perda – e o segundo -1 (1-2) pontos. Também tem perdas, mas menos do que o primeiro jogador.

Suponhamos que o azar nos coloca de frente com o mesmo jogador. Já não temos qualquer confiança nele, além de estarmos com raiva. Sentimos-nos traídos duas vezes, mesmo que nunca tenhamos explicitado as regras da nossa particular relação. “Desta vez”, pensamos, “não vou sair perdendo”. E novamente a sorte indica que iniciaremos as bofetadas. Qual é a maneira de assegurarmos que não vamos perder? Começamos agredindo com todas as nossas forças, e continuamos assim até o final. Nossas perdas são as máximas, -3, mas nos asseguramos de ficar empatados (Figura 1, a2b2).

Assim, poderia acontecer que um jogador que não tenha nenhuma confiança em que os outros se comportem de acordo com suas propostas relacionais, e que seja uma tragédia para ele ficar em desvantagem, comporte-se sempre dando as bofetadas mais fortes possíveis. E que o outro que carece de empatia, e que jogue em 2o lugar, aproveite sempre o último momento para descarregar as bofetadas mais fortes que puder, mesmo que não as tenha recebido antes. Com o qual, os movimentos de ambos sempre acabarão resultando em perdas, mesmo que se assegurem que as dos outros nunca sejam menores que as suas.

Também pode ocorrer que, ao receber a 1a bofetada forte, um dos jogadores decida por retirar-se. Terá que enfrentar a pressão social (“menina, menina, etc.”), porém não receberá mais bofetadas. Entretanto, se essa retirada não se faz a tempo, quanto mais golpes são trocados, mais difícil será retirar-se, já que o fazer resulta não só “ficar mal” socialmente, mas que, se já foi estabelecido um jogo competitivo, significa aceitar “perder” frente a outros jogadores. Isto é, quem se retira “perde”.

Em suma, para obter benefícios na relação devemos confiar que o outro vai respeitar as regras, e que não vai utilizar nossa boa vontade e exposição para nos prejudicar e obter vantagens. E se isso acontecer, e nos sentirmos traídos, uma possibilidade é se retirar do jogo. Mas se não o fizermos e devolvermos o golpe, o jogo pode passar de colaborativo para competitivo, e quanto mais tempo durar este último, mais se acirra a competição (ganhar ou pelo menos não perder) como objetivo do jogo, e mais difícil resulta retirar-se.

Como mencionado, os jogos relacionais humanos são jogos colaborativos, no qual todos os jogadores possam ter benefícios; porém para que isto aconteça, deve existir confiança de que nossa boa intenção não seja utilizada contra nós. Se a confiança é perdida, os jogos colaborativos se transformam em competitivos, e o objetivo acaba sendo não mais obter os máximos benefícios, e sim que o outro não ganhe mais que a gente, pois seus ganhos são contabilizados como perdas nossas. Transportemos agora esta teoria dos jogos para as relações de casal.

 

A confiança nas relações de casal

As relações de casal se baseiam, em grande parte, na confiança “Confio em ti”, é uma das frases que asseguram que a relação adquiriu uma boa qualidade. O que significa esse confio em ti? Poderíamos resumi-lo – é naturalmente muito complexo e adaptado a cada contexto – em “eu me exponho diante de ti, te mostro minhas debilidades, te conto meus pequenos – ou grandes – segredos, e confio que tu farás um bom uso desta informação; que não a utilizarás para me fazer qualquer dano, nem me trair obtendo algum benefício com ela que possa me prejudicar”. Deste modo, este pacto, nem sempre explícito, vai sendo cumprido, o volume de informação sutil trocado é cada vez maior, e do mesmo modo que no jogo da “bofetada histórica”, cada um dos membros do casal se expõe cada dia mais, imóvel frente ao outro, com a expectativa de que se trate de um jogo colaborativo e, portanto, ambos possam obter benefícios. Se um dos jogadores sente que sua confiança foi traída, pode retirar-se do jogo (o que acontece com maior frequência na infidelidade, por exemplo). Todavia, se a traição não é tão clara, ou se apresenta como um conflito de lealdades, ou como um “dever familiar”, ou simplesmente não se apresentam as condições para uma “retirada”, é possível que a relação continue, porém transformando-se, de maneira lenta ou brusca, de jogo colaborativo para um jogo competitivo. E como vimos, o jogo competitivo possui como objetivo “ganhar”, mesmo que o custo seja do casal “perder”. E se não se pode ganhar, ao menor “perder menos” que o adversário, acaba sendo vivido como uma vitória. E se continua por tempo suficiente, esse “ganhar” ou ao menos “não perder”, termina por ser a principal meta da interação relacional. Assim, mesmo que eu termine machucado na discussão, ou pela desqualificação, ou pela agressão verbal ou de outra índole, se eu interpreto que termino menos machucado ou querido, possivelmente acabe pensando que valha a pena.

 

Escaladas simétricas, jogo sem fim e clinch maligno.

Alguns autores fizeram referência a este tipo de situação. Sem dúvida as descrições de escalada simétrica no casal (Watzlawick et al., 1981, p. 104) explicam em parte o que acontece. A escalada simétrica descreve especialmente o “processo” do que costuma acontecer: trata-se de uma relação simétrica na qual se estabelece uma competição, em que os competidores querem se colocar acima do outro, dando lugar para esta escalada, que somente termina quando um dos competidores aceita ocupar a posição complementar inferior, ou quando a relação se rompe. Contudo, não acabamos de compreender “por que não se separam”, por que essas escaladas simétricas ocorrem de novo e de novo em um "jogo infinito".

Este conceito de “jogo sem fim”, bem como definiu Simon em seu Vocabulário de TF, ajuda a compreender um pouco melhor o que acontece com estes casais. Segundo Simon, “os jogos que não possuem regras para decidir quando um jogador ganha ou perde, ou quando o jogo acaba, são necessariamente ‘jogos sem fim’” (Simon, Stierlin & Wynne, 1988, p. 208). Isto nos dá uma nova perspectiva. O jogo das bofetadas tinha bem definido o seu final, mas nem tanto quem havia ganhado ou perdido. Isto poderia levar os dois jogadores a entrarem em uma discussão a respeito de quem havia ganhado ou perdido, e a repetir o jogo várias vezes, o que, salvo diferenças contextuais evidentes (por exemplo, uma clara desvantagem de força física de um dos jogadores) conduziria prontamente a um claro empate com perdas máximas para ambos (-3/-3, o que é o mesmo, uma acumulação de bofetadas fortes). Mas, ocorre o mesmo com um casal? Se nos atentarmos ao ritual matrimonial, a relação de casal, salvo separação ou divórcio prévio, somente é dissolvida pela morte de um dos cônjuges. Portanto, a menos que um dos dois decida fixar uma data unilateralmente - por suicídio ou homicídio -, o jogo pode chegar a se converter em um “jogo sem fim”. Nem sempre as regras são claras acerca de quem ganha as jogadas. Em algumas ocasiões podem estar mais nítidas – “te peguei”, “você viu, você percebe, eu estava certo ou não?”, contudo inclusive as que podem estar aparentemente mais claras, podem dar a volta quando menos se espera – “sempre estás me perseguindo, não me deixas respirar, tu és um perseguidor!”. Na maior parte dos casos, inclusive um observador que se fizera de árbitro teria dificuldades para decidir a quem dar a vitória.

Esta rivalidade competitiva, em um jogo sem fim carente de regras, conduz, como diz mais adiante o mesmo autor, ao embate e à escalada simétrica, no qual as duas partes tratam de ganhar o controle da relação, mas nos quais não existem critérios bem definidos e acordos mútuos para determinar no que consiste ter alcançado esse objetivo. Interessante proposta. Já não somente dizemos que não existem regras definidas para determinar quem é o vencedor de cada jogada, senão que não tem tampouco para decidir que o objetivo buscado, o poder e o controle da relação, foi obtido. Perfeita situação para um jogo sem fim, já que se não se sabe quando se ganhou ou perdeu, somente pode obter-se a vitória por desistência do oponente, pelo reconhecimento explícito de um dos jogadores de que “não posso ganhar”, nunca por uma acumulação de jogadas que nem se sabe se são vitoriosas, nem se conduzem ao objetivo supostamente buscado.

Este engate ou “clinch maligno” (Simon, Stierlin e Wynne, 1988, p. 132), nos leva a imagem de dois boxeadores que, exaustos e feridos pela dura luta, se abraçam – seja os dois de modo uníssono, ou um que abraça ao outro – com o objetivo de evitar que o oponente possa ter a suficiente distância para continuar agredindo. E permanecerão abraçados a menos que um dos dois oponentes tenha forças suficientes para forçar a separação, ou bem o faça o árbitro, ou o som da campainha indique uma trégua permitida. Agora, não é incomum que, mesmo que o clinch esteja servindo para se proteger e recuperar as forças, continuem tentando se agredir nas laterais, ou tentando se machucar por esfregar as costuras das luvas sobre a pele. Esse seria o adjetivo de maligno adicionado ao do clinch: mesmo quando ambos os oponentes estão machucados e esgotados, o impulso de fazerem-se danos mutuamente não termina. Este clinch, segundo Stierlin, “é um engate físico, as estratégias e táticas que refletem as ideias, os objetivos, as experiências, e as histórias de vida dos oponentes parecem ter se apagado... É um ‘engate relacional’, as armas não são punhos se não, em troca, as estratégias criadas pelos dois oponentes para desvalorizar o adversário. Entre as armas deste arsenal figura ‘fazer que o outro se torne impotente’, e ‘fazer que o outro se sinta culpado’ recorrendo a sintomas ou a condutas masoquistas. Outras das armas são ‘a mistificação, o duplo vínculo, evitar toda definição das relações e esquivar o papel dominante e a responsabilidade pessoal’. E mais adiante, durante a existência do engate, nenhum dos dois oponentes pode ficar bem, e o contato entre eles é estreito e intenso ao mesmo tempo que hostil e distante. Uma vez que se dissolva o engate, se acrescenta o risco de perder” (Simon, Stierlin & Wynne, 1988, p. 132).

 

O processo de cronificação do conflito

Propomos para a continuação, uma proposta explicativa de como se gera o processo que leva ao conflito crônico. Partimos de um casal, que já estabeleceu uma relação de confiança de um no outro, com a mencionada exposição já sinalizada. Em um momento determinado essa confiança se vê traída - por ambos ou somente por um membro do casal - que causa um dano importante, e que conduz a uma progressiva redução da confiança no outro. Mesmo que o início seja unilateral, caso não seja produzida a separação neste momento, ou que se pode metacomunicar e esclarecer o ocorrido, assumindo algum tipo de responsabilidade de forma que a confiança se restaure, a perda desta irá afetar progressivamente a relação e, portanto, a ambos os membros. Caso o processo continue, o jogo colaborativo irá se converter progressivamente em um jogo competitivo, com contínuas escaladas simétricas que conduzem a um jogo sem fim. Isso leva, finalmente, a um clinch maligno, o qual foi esquecido há muito tempo atrás ou os motivos da confrontação, e ganhar o controle da relação para, hipoteticamente, evitar terminar machucado, tornando-se esse em único objetivo da relação. Não podem deixar de brigar, porque na realidade não sabem por que o fazem. Entretanto, se sabem que deixando o outro em uma distância suficiente, podem agredi-lo e nocauteá-lo, continuam com esse clinch interminável, buscando machucar, porém sem se separar um do outro. Somente podem parar o clinch com a intervenção de alguém externo (o árbitro ou o terapeuta), porque soa o gongo (doença grave, ou a morte se este é o gongo final) ou porque algum dos adversários se rende, “atira a toalha”, e pede o divórcio: contudo, tem que assumir então que “perdeu”, o que na dinâmica instaurada na qual o objetivo é ganhar acima de tudo (mesmo que isso signifique assumir perdas ou danos pessoais), é muito pouco provável.

Então, como começa este jogo sem fim? Não costuma ser fácil determinar, porque aos poucos os adversários foram integrando a sua disputa, apontando arbitrariamente a sequência de feitos. Partimos do pressuposto que deve ser uma traição importante na confiança, uma deslealdade vivenciada de forma dolorosa. Pode ser uma infidelidade, porém sabemos que as infidelidades são as principais causas de separação de um casal, além do que oferece um ponto de partida muito claro: “tudo começou quando...”. Em nossa opinião, costuma ser uma deslealdade mais justificável, que pode ser “motivada”: “não tive outro remédio”, “te coloca no meu lugar”, “olha o que conseguimos em troca”, com um importante peso sócio-familiar, que não é facilmente evitado. Geralmente são deslealdades relacionadas com intromissões da família de origem, que aos poucos não se resume a um feito concreto, mas que progressivamente vão deteriorando a relação. São geralmente “microtraições”, que vão minando a confiança, na qual se perde progressivamente a noção de que se podem obter benefícios mútuos da relação, porém sem um motivo claro que facilite a separação, que também pode identificar obstáculos pelas vantagens econômicas obtidas em contrapartida das lealdades.

Um ou ambos os membros do casal possuem claras dificuldades para se desvincular, o que aos poucos se percebem ativamente tolhidos por um ou ambos os progenitores. Isto pode claramente depreciar ou desqualificar ao cônjuge do filho ou filha, sem que este faça nada de efetivo para combatê-lo. Ou também podem intrometer-se na vida do casal até o ponto de anular completamente a um ou ambos os membros do casal, em troca, ao mesmo tempo, de apoio pessoal, social, ou econômico.

 

Aida, Amonasro e Radamés

Ilustraremos este processo mediante o argumento de uma das óperas mais conhecidas de Verdi, com trama de Antonio Ghislanzoni, Aida. Estreou no El Cairo com grande êxito em 1871, figurando desde então na programação habitual da grande maioria dos teatros de Ópera.

A ação se desenrola em um momento indeterminado do Reino Antigo egípcio. Aida, filha de Amonasro, rei dos etíopes, foi capturada pelos egípcios durante uma das muitas guerras que mantém com os etíopes, e agora é escrava de Amneris, a filha do Faraó. Amneris está apaixonada por Radamés, general dos exércitos egípcios, novamente em guerra com Etiópia, porém Radamés se apaixonou por Aida, que corresponde a seu amor, no entanto por temor a Amneris, devem mantê-lo em segredo.

Na última batalha com os etíopes, os egípcios capturaram a Amonasro, porém acreditam que ele é apenas mais um guerreiro: não sabem nem que ele é rei, nem que ele é o pai da Aida. Amonasro está planejando fugir e fazer uma emboscada aos egípcios, porém para isso necessita saber o caminho que Radamés decidiu seguir para marchar até a Etiópia. Quando Aida conta que está apaixonada por Radamés, e que este a corresponde, seu pai acredita ter encontrado a maneira de saber a rota que seguirá o exército egípcio, e busca convencer a Aida para que, através de Radamés, fique sabendo e conte para ele. Aida, inicialmente resiste trair o seu amor, porém seu pai a pressiona, e manipula: ataca com o ciúme, o patriotismo e o amor filial. Acusando-a de causar potencialmente a destruição de seu povo, de sua casa e de sua família e a ameaça de não a reconhecer como filha. Finalmente, Aida cede.

Aida utiliza seu amor para conseguir a informação de Radamés, prometendo-lhe que irão viver em um paraíso se contentarem a seu pai. Consegue a informação, e a traição é consumada. Ela utilizou a confiança de Radamés em que nunca ia fazer-lhe mal, para satisfazer a seu pai e proteger a sua pátria. Ela foi leal à sua família de origem e desleal ao seu amor. Propôs a Radamés que vá viver no seu país, porém ele se negou. Ela também não o faz, e está disposta a encarar as consequências do ocorrido sem separar-se dele. Estas são fatais. Os egípcios condenaram Radamés a morrer enclausurado, e Aida conseguiu, não se sabe muito bem como, ficar presa com ele. Ambos morrerão, de maneira horrível, porém juntos e isolados do mundo.

Analisemos mais detalhadamente o diálogo crucial entre Amonasro e Aida, primeiro, e com Radamés depois. Durante a cena Aida e Amonasro, que está em plena fuga de seu cativeiro, e disposto a descobrir o segredo que guarda Radamés, através de sua filha:

AMONASRO
Um motivo grave me traz a ti, Aida. Nada escapa ao meu olhar.
O amor por Radamés te dilacera, ele te ama, e aqui o esperas.
A filha dos Faraós é a tua rival: Raça infame, horrenda e fatal para nós!
AIDA
E estou em seu poder! Eu, a filha de Amonasro!

Como vemos, Amonasro inicia seu ataque estratégico utilizando o ciúme, reavivando o orgulho da princesa aos etíopes submetidos à escravidão pelos egípcios. Como poderia ser esse diálogo atualmente?

Como te trata essa família (política) que não pode comparar-se com a gente! Além do mais, prestam muito mais atenção a suas filhas que a você! Você que foste a princesa de nossa casa! Você sempre vai ser a segunda para tudo, vão te tratar como uma escrava! (figurada e literalmente neste caso).

AMONASRO
Em seu poder! Não!
Se quiseres vencerás a rival poderosa, e pátria, trono, amor, terás tudo.
Voltarás a ver as florestas perfumadas, os frescos vales, nossos templos de ouro!
(...)
Esposa feliz daquele que tanto amaste, imensas alegrias poderás então desfrutar...
AIDA
Apenas um dia de tão doce encanto, uma hora de tal júbilo, e depois morrer!

O pai oferece a sua filha uma alternativa ao sombrio panorama que lhe pintou: podes evitar tudo isso se vieres, com teu amado, a viver com a gente. Desfrutarás do teu amor, e continuarás sendo uma princesa nos doces prados da tua infância. Com quem estarás melhor do que com teus pais, tua família, teus amigos, teus conterrâneos, etc.

AMONASRO
Lembra-te, porém que o feroz egípcio, profanou nossas casas, templos e altares;
Acorrentou as virgens sequestradas; Trucidou mães, velhos e crianças.
AIDA
Ah! Lembro-me bem daqueles dias funestos! Lembro do luto que meu coração sofreu!
Ah! Fazei, oh deuses, que retorne para nós a aurora dos dias serenos, que tanto invocamos.

Além do mais, o pai, mesmo que aceite o genro a contragosto, não o faz gratuitamente. Antes, deverá reconhecer sua autoridade. Para ir preparando o terreno, relembra que nunca foi muito amável, nem muito simpático. “Tu lembras aquela vez que se sentou enquanto tua mãe ficou de pé? E aquela outra que não me cedeu o caminho? E quando te falou que não tinhas razão naquela discussão? Verdadeiramente, não é alguém totalmente de confiança. Teria que provar seu amor vindo aqui comer todos os domingos, no lugar de ir, como o fez até agora, um em cada dois na casa de seus pais. Deste modo demonstraria que verdadeiramente te quer. Porém eu não posso pedir isso, filha, tem que ser você”.

AMONASRO
Antes que seja tarde – Nosso povo se eleva em armas, já está tudo pronto.
Obteremos a vitória. Só preciso saber que caminho o inimigo tomará...
AIDA
Quem poderia descobri-lo? Quem?
AMONASRO
Tu mesma!
AIDA
Eu!
AMONASRO
Sei que aguardas Radamés... Ele te ama, e comanda os egípcios... Entendes?
AIDA
Horror! Que conselho é esse? Não! Não! Jamais!

A filha resiste. Não lhe parece muito adequado separar o seu querido dos pais. Não lhe parece também muito justo. Sabe que possui poder sobre ele, mas não quer aproveitar para distanciá-lo da família e aproximá-lo da sua: parece-lhe que trairia sua confiança. No entanto, seu pai continua pressionando, e a ameaça que caso ela se afaste sua família poderá ficar destruída. E fala que se ela os deixar, se já não lhes fizer caso, deixará de ser sua filha. Não há meio termo: ou tu ficas com a gente ou tu vais e não volta. Parece se tratar de uma família com problemas de desvinculação, com um apego ambivalente, talvez. Ou possivelmente com relações “pseudomútuas” (Wynne & cols., 1958) ou com pouco grau de diferenciação entre seus membros, estando disposta a família a ampliar o necessário a “cerca de borracha” (Bowen, 1989) para incluir Radamés e a todo aquele que circunde pelos arredores.

AMONASRO
Pois seja! Vinde Cortes egípcias! Destruí pelo fogo as nossas cidades!
Espalhai o terror, os massacres, a morte. Vosso furor não tem mais freios.
AIDA
Ah, pai!
AMONASRO
E te dizes minha filha!
AIDA
Piedade, piedade, piedade!
AMONASRO
Torrentes de sangue correm pelas cidades dos vencidos... Vês? Os mortos se levantam dos vórtices negros... Apontam para ti e gritam: A pátria morre por tua causa!
AIDA
Piedade!

Frente à resistência da filha, o pai derrama o resto, e leva a passear a mãe, que também renunciará e amaldiçoará a filha: é bem evidente que tal atitude se suporta muito menos se vem da mãe – a Santa mãe, sempre sacrificada pelos filhos – que pelo pai, mais desapegado e dedicado às coisas do reino.

AMONASRO
Um espectro horrível surge-nos, em meio às sombras.
Treme! Os braços descarnados ergueram sobre tua cabeça.
É tua mãe! Olha... Ela te amaldiçoa (...). Não és minha filha. És a escrava dos Faraós.
AIDA
Ah! Piedade, piedade, piedade! Pai, não, não sou escrava deles. Não me amaldiçoa. Não me abomina... Ainda podes me chamar de filha, serei digna de minha pátria.
AMONASRO
Pensa que um povo vencido, dilacerado, só poderá ressurgir por meio de ti.
AIDA
Oh pátria! Oh pátria... Quanto me custas!
AMONASRO
Coragem! Ele está vindo... Ouvirei tudo de lá.
[esconde-se entre as palmeiras quando Radamés entra].

A filha, por fim, não consegue suportar a pressão do pai, da mãe, do resto da família e por último de todo o povo, e, finalmente, cede. Utilizará o poder que recebeu de Radamés sobre ele para trair sua confiança. Obterá um proveito – benefícios obtidos na relação com sua família de origem, manutenção de uma relação privilegiada ou que não suporta perder, ampliação de sua posição de poder na família de origem, reconhecimento do longo tempo esperado, etc. – em troca de um prejuízo para seu amado. O jogo colaborativo deixa de estar equilibrado. Aida se aproveita da exposição leal de Radamés para ganhar enquanto ele perde.

RADAMÉS
Finalmente volto a te ver, minha doce Aida!
AIDA
Para, vai-te... Que esperas ainda?
RADAMÉS
O amor me guia para perto de ti.
AIDA
Esperam-te os ritos de outro amor. Esposo de Amneris...!
RADAMÉS
Que dizes? Só a ti, Aida, eu devo amar. Os Deuses me ouvem... Serás minha!
AIDA
Não te manches com um perjúrio! Amei-te valente, não te amarei perjuro.

Aida utiliza com Radamés uma estratégia similar a que seu pai utilizou. Começa colocando-o em desvantagem acusando-lhe de infidelidade com sua maior rival, Amneris. Radamés, ingênuo, cai na armadilha e começa a se desculpar por algo que não fez. Coloca-se, sem motivo algum, na situação de ter que provar seu amor. Aida lhe ganhou claramente a posição.

RADAMÉS
Duvidas do meu amor, Aida? (...) No feroz anseio por nova guerra o solo etíope despertou. Os teus já estão invadindo nossa terra, eu serei o comandante dos egípcios.
Entre o fragor, entre os aplausos da vitória, ao Rei me prostro, abro-lhe meu coração.
Serás a coroa da minha glória, viveremos felizes em eterno amor.
AIDA
Não temes o furor vingativo de Amneris?
Sua vingança, tremenda como um raio, cairá sobre mim, sobre meu pai, sobre todos.
RADAMÉS
Eu vos defendo.
AIDA
Em vão! Não poderias...

Radamés, evidentemente, é um magnífico estrategista no campo de batalha, porém muito ruim nas relações amorosas e nos jogos de poder da relação. Sua proposta é: primeiro conquistarei a tua família, os subjugarei com minha audácia, meus encantos e minha iniciativa, e estou certo de que teu pai cairá rendido aos meus pés. Logo lhe direi que em realidade não quero nada deles, que somente quero a ti e nós iremos viver nossa felicidade no nosso ninhozinho de amor. Minha família é muito compreensiva, e sem dúvida não vão colocar nenhum obstáculo. Quer dizer, se teu pai se incomoda de irmos um domingo de cada dois na casa dos meus pais, o melhor é não irmos a nenhuma das duas casas. Aida, muito mais inteligente e hábil nestas tarefas, não o desqualifica diretamente, porém o ataca por outra frente: seria maravilhoso, querido, porém tua família nunca nos perdoaria. E o posto de trabalho de meu pai, correria risco. Não pode ser. Radamés diz que ele será capaz de convencer a seu pai para que trate bem seu sogro, porém Aida não acredita que ele é capaz, e o desqualifica. Não somente lhe ganhou a posição, se não que cada vez a complementaridade é mais acusada. Assim, dá um passo a mais desbancando-o absolutamente: “fujamos!”, “para onde?”, pergunta perplexo Radamés, que a esta altura já não compreende mais nada. “Ao paraíso ideal”. Outra nova prova de amor para o confuso Radamés.

AIDA
Porém, se me amas... Abre-se ainda uma via de salvação para nós. (...) Fugir!
RADAMÉS
Fugir!
AIDA
Fujamos dos ardores inóspitos dessas charnecas desertas; Uma nova pátria se abre ao nosso amor.
Lá... Entre florestas virgens, de flores perfumadas, perdidos no êxtase esqueceremos a terra.
RADAMÉS
Para terra estrangeira teria que fugir contigo! Abandonar a pátria, o altar de nossos Deuses!
O solo em que colhi os primeiros louros da glória, o céu dos nossos amores; Como poderemos esquecer?
AIDA
Sob o meu céu, mais livre, o amor nos será concedido; Lá, no mesmo templo, teremos os mesmos Deuses.
Fujamos, fujamos!

E de repente, Aida dá uma nova volta na situação difícil criada (rosca). O paraíso ideal está na sua casinha. Lá estaremos muito bem, e protegidos de qualquer perigo. Recordemos que Radamés está submerso em plena prova de amor, que lhe conduziu de uma acusação de infidelidade para uma solução de todos os seus problemas indo morar com seus pais. Isso, se ele a ama, claro.

RADAMÉS
Abandonar a Pátria! Aida!
AIDA
Não me amas... Vai-te!
RADAMÉS
Não te amo? Jamais um mortal ou um Deus ardeu de amor tão poderoso quanto o meu.
AIDA
Vai... vai... Amneris te espera no altar.

Frente às dúvidas de Radamés, novamente Aida reafirma todos os seus argumentos manipuladores: não me quer o suficiente, então vá com tua amante, etc.

RADAMÉS
Não! Jamais!
AIDA
Jamais, disseste? Então, que o machado caia sobre mim, sobre meu pai.

Isso não te convence? Diz Aida: pois saibas que vai ser a perdição não somente para mim, mas também para meu pai!! (isto não está suficientemente explicado, porém nestes momentos de confusão mental, Radamés acaba acreditando em qualquer coisa). Não pode mais, e finalmente cede. Fugirão juntos. Ele disse que para uma terra de ninguém, porém ela rapidamente traduz que será para a casa de seus pais.

RADAMÉS
Ah não! Fujamos! Sim: fujamos destas muralhas, fujamos juntos para o deserto; Aqui é o reino da desventura, lá se abre um céu de amor. Os desertos infindáveis serão o nosso tálamo. Sobre nós, os astros brilharão com o mais límpido fulgor.
AIDA
Na bem-aventurada terra dos meus pais, o céu nos espera; Lá o ar é perfumado, lá o solo é de aromas e flores. Vales frescos e prados verdes serão o nosso tálamo. Os astros brilharão sobre nós com o mais límpido fulgor.
AIDA - RADAMÉS
Vem comigo – fujamos juntos dessa terra de dor.
Vem comigo – eu te amo, eu te amo! Que o amor seja nosso guia.

Desmantelado o navio contrário, Aida se apressa a apontar o tiro final para o convés e colocará a pique o navio de Radamés:

AIDA
Mas diz-me: por que caminho evitaremos as legiões armadas?
RADAMÉS
O caminho escolhido pelos nossos para cair sobre o inimigo estará deserto até amanhã...
AIDA
E esse caminho é?
RADAMÉS
O desfiladeiro de Napata...

A traição ser consumou. Radamés desvelou o segredo que permitirá a Aida e a sua família obter vantagens decisivas na relação. Radamés ainda pensa na boa vontade de sua amada, e segue expondo-se sem temor. As consequências serão fatais. (Amonasro sai de seu esconderijo).

AMONASRO
O desfiladeiro de Napata! Os meus estarão lá...
RADAMÉS
Oh! Quem nos escuta?
AMONASRO
O pai de Aida e Rei dos Etíopes.
RADAMÉS
Tu! Amonasro! Tu o Rei? Deuses! O que eu disse?
Não! Não é verdade! Sonho... É um delírio...

Radamés começa a se dar conta de que a confiança que havia depositado em Aida foi traída. Aida e seu pai tratam de amenizar sua dor, dizendo-lhe que no futuro obterá benefícios, porém Radamés sabe que isso será às custas de se submeter ao seu sogro e a sua mulher.

AIDA
Ah não! Acalma-te... Escuta-me, confia no meu amor.
AMONASRO
O amor de Aida edificará um trono para ti.
RADAMÉS
Por ti traí a pátria! Estou desonrado...

Aqui se inicia o processo que levará ao jogo competitivo sem fim. Radamés pode ir embora, alertar as tropas egípcias e anular os efeitos da traição de Aida. Porém mesmo assim, depois de tamanha bobagem, sua posição como general será comprometida, e além do mais perderá a Aida, a qual todavia quer. Tem que escolher entre separar-se neste momento, ou continuar unido a seu par, com um destino muito negro, sem confiança na relação que prontamente começará a se deteriorar. Tampouco será fácil deixar a Aida: a culpa o perseguirá, e não será raro que, com o tempo, se voltaria contra o seu par.

Começarão as escaladas simétricas, as discussões intermináveis que os deixarão exaustos até que se abracem em um clinch maligno. Caso não se separem neste momento, é provável que continuem unidos para sempre, na desconfiança, nas múltiplas acusações e nas desqualificações contínuas. Uma simetria contínua sem ruptura, porque a separação é uma jogada a mais no jogo sem fim, e neste jogo competitivo no qual o último objetivo é ganhar na confrontação imediata, o que se separa, perde.

A ópera simboliza bem esta terrível união até a morte com seu claustrofóbico final: unidos na armadilha da qual não podem escapar, e que os asfixiará até que acabe em uma relação morta.

 

Referências

Bowen, M. (1989).Terapia familiar en la práctica clínica. Bilbao: Descleé de Brower.         [ Links ]

Simon, F.; Stierlin, H. & Wynne, L. (1988). Vocabulario de terapia familiar. B. Aires: Gedisa.         [ Links ]

Von Neumann, J. & Morgenstern, O. (1944). Theory of games and economic behavior. Princeton (NJ): Princeton University Press.         [ Links ]

Watzlawick, P.; Beavin, J. & Jackson, D. (1981). Teoría de la comunicación humana. Barcelona: Herder.         [ Links ]

Wynne, L.; Ryckoff, I.; Day, J. & Hirsch, S. (1958). Pseudomutualidad en las relaciones familiares de los esquizofrénicos. In C. Sluzki (comp.) (1971). Interacción familiar. Aportes fundamentales sobre teoría y técnica. B. Aires: Tiempo Contemporáneo.         [ Links ]

Bilbao, 20 de agosto de 2015

 

 

Endereço para correspondência
Roberto Pereira
E-mail: director@avntf-evntf.com

Enviado em: 12/09/2015
Aceito em: 17/09/2015

 

 

1 Este artigo foi elaborado a partir da palestra que apresentou o autor no Congresso Internacional Relates que ocorreu em São Paulo em Junho de 2015. É, ao mesmo tempo, uma atualização do capítulo de Pereira, R. (2014): “Aída y las parejas en conflicto crónico”, em Linares, J. e Semboloni, P. “La familia en la Ópera”, Gedisa, Barcelona.
2 Diretor da EVNTF, Presidente do Relates.

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