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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.19 no.2 Porto Alegre Dec. 2015

 

ARTIGOS

 

Sentimentos de estranhamento e a reconstituição do vínculo familiar do emigrante retornado1

 

Feelings of strangeness and the reconstitution of the family ties of the returned emigrant

 

 

Odacyr Roberth Moura da Silva2,I; Lucas Nápoli dos Santos3,II; Carlos Alberto Dias4,III

IUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES)
IIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)
IIIDepartamento de Turismo da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O sentimento de estranhamento acomete emigrantes retornados que encontram dificuldades de reinserção simbólica no seio familiar. Essa barreira que impede a reconstrução das relações familiares é experienciada por diversas famílias residentes em Governador Valadares e seu entorno. Objetivando compreender este sentimento presente no processo de restabelecimento das relações familiares do emigrante retornado, realizou-se este estudo do tipo transversal, descritivo, sob a forma de estudo de casos. Participaram 17 famílias de emigrantes retornados, que permaneceram no exterior por um período de 3 a 15 anos. Coletaram-se os dados através de entrevista guiada por roteiro semiestruturado de entrevistas, utilizando-se, em seguida, a Análise de Conteúdo de Bardin. Três categorias foram identificadas: (a) estranhamento inicial, (b) não estranhamento e (c) estranhamento constante. Conclui-se que apesar da maioria dos emigrantes fantasiar encontrar a mesma família deixada na partida, o restabelecimento das relações ocorreu, na maioria das vezes, com papéis e funções reformulados.

Palavras-chave: Migração humana, Relações familiares, Ajustamento social, Reinserção.


ABSTRACT

The feeling of strangeness affects emigrants who have returned home and encountered difficulties in the symbolic reintegration within the family. This barrier which prevents the reconstruction of family relationships is experienced by many families living in the city of Governador Valadares (Minas Gerais – Brazil) and its surroundings. In order to understand such feeling present in the process of re-establishment of the returned emigrant's family relations, a cross-sectional and descriptive study in the form of case studies was performed. Seventeen families of returning emigrants, who remained abroad for a period from 3 to 15 years, participated in the study. We collected data through semi-structured interviews guided by Script Interview and used Bardin Content Analysis. Three categories were identified: (a) initial strangeness, (b) no strangeness e (c) constant strangeness. Although the majority of emigrants fantasize about finding the same family left, the reestablishment of family relations occurred, most often, with reformulated roles and functions.

Keywords: Human migration, Family relations, Social adjustment, Reinsertion.


 

 

Introdução

Desde a década de 1960, a história da cidade de Governador Valadares tem sido marcada por um fenômeno de deslocamento populacional, a emigração internacional, que atingiu seu ápice na década de 1980. Tal fenômeno pode ser compreendido, em parte, como um reflexo da crise generalizada que a economia nacional vinha sofrendo, sobretudo na década de 1980, e do esgotamento de um sistema produtivo baseado em atividades extrativistas que constituíam o cerne da economia local (Pinto, 2011).

O projeto migratório é, na maior parte das vezes, familiar. Por esse motivo, aqueles que permanecem no país de origem também experimentam as vicissitudes do processo de emigração. A dinâmica de toda a vida familiar é alterada pela migração de um de seus membros. Em geral, um dos membros que permaneceram fica encarregado de administrar as remessas de..., fazer investimentos e cuidar do cotidiano familiar. Essas características apontam para uma relação diferenciada entre os membros dessas famílias: além de todos estarem envolvidos emocional e afetivamente com o emigrado, veem-se inseridos em um projeto econômico de administração de bens e finanças (Cassarino, 2013; Siqueira, 2009).

Estimulados pela recessão econômica no país de destino, pelo bom momento da economia nacional, ou ainda por motivos particulares, grande parte dos emigrantes tem retornado ao país de origem, cumprindo a meta inicial traçada pela família. Por outro lado, muitos brasileiros continuam a emigrar, pois, em seu imaginário, encontram-se associados o apoio/incentivo fornecido pelas redes sociais5 e a representação dos Estados Unidos da América e da Europa como territórios de oportunidades (Assis & Campos, 2009).

Ao retornar, o emigrante depara-se com diversas alterações ocorridas durante a sua ausência. Os membros de sua família parecem diferentes daqueles com quem se relacionava antes de ir para o exterior. Esse novo cenário frequentemente gera, no emigrante, sentimentos de desconforto e estranhamento que resultam em uma sensação profunda de não pertencimento ao seu ambiente de origem (Tedesco, 2013).

Siqueira (2007) caracteriza os sentimentos de estranhamento como produto da não correspondência entre o que o emigrante espera encontrar e o que de fato ele encontra. Este conflito entre o mundo idealizado e o mundo “real”, segundo a autora, provoca no sujeito uma sensação de não pertencimento, levando-os a não reconhecer os espaços e as relações que antes faziam parte de seu universo social.

A família também passa por um processo de estranhamento em relação ao emigrante retornado. Embora este não seja o foco deste estudo, deve-se ressaltar que as relações no âmbito familiar ou dentro de qualquer outra instituição privada não ocorrem unilateralmente. O estranhamento costuma ocorrer entre todos os membros do grupo familiar. Em seus estudos, Siqueira, Assis e Dias (2010) constataram que a família amiúde idealiza o emigrante enquanto este se encontra no exterior. Por essa razão, quando ele retorna, é comum haver esse sentimento de estranhamento advindo especialmente da esposa e/ou dos filhos. Isso pode estar relacionado ao fato de que as experiências obtidas no exterior tendem a alterar o modo de ser do emigrante, fazendo com que a magnitude dessas alterações comportamentais entre em choque com a imagem que os familiares tinham do emigrante até então.

O objetivo geral deste estudo é analisar o sentimento de estranhamento em relação à família percebido pelo emigrante ao retornar, relacionando-o ao restabelecimento das relações familiares. Em termos específicos, este trabalho pretende verificar em que medida o emigrante retornado percebeu ou ainda percebe o estranhamento vivenciado a partir do retorno e levantar as consequências geradas por esse estranhamento para a sua reinserção no seio familiar.

 

Métodos e instrumentos

Adotou-se, nesta investigação, a abordagem de análise qualitativa por possibilitar maior aproximação com o cotidiano e com as experiências percebidas pelos próprios sujeitos. A análise qualitativa relaciona-se com a procura dos significados que as pessoas atribuem às suas vivências no mundo social e consequentemente com a maneira como representam e compreendem o mundo (Minayo, 2008).

Trata-se de uma pesquisa de natureza exploratória. O universo foi formado por famílias de emigrantes retornados residentes no município de Governador Valadares. A amostragem foi intencional (não-probabilística), envolvendo 17 famílias. A coleta domiciliar foi realizada no município de Governador Valadares, participando emigrantes retornados (que residiram por pelo menos três anos no exterior e retornados há, pelo menos, dois anos), suas mulheres e seus filhos maiores de 18 anos. A maioria das famílias entrevistadas pertenciam à classe média (nível socioeconômico C, de acordo com classificação do IBGE), possuindo renda média entre quatro e 10 salários mínimos. Este estudo foi realizado apenas com famílias nucleares compostas de pai, mãe (casados) e filhos, sendo esta configuração familiar critério de inclusão para a amostra.

Quanto aos procedimentos técnicos para coleta de dados, fez-se uso da entrevista em profundidade. Por se tratar de uma entrevista que explora a subjetividade, as percepções e as experiências dos sujeitos, ela possibilita o aprofundamento em determinados pontos da discussão, trazendo flexibilidade e identificação de questões até então não contempladas pelo roteiro. As entrevistas foram realizadas individualmente e de forma intercalada por pesquisadores do curso de psicologia e registradas eletronicamente por meio de um gravador de voz digital com autorização dos participantes. A entrevista foi guiada por pontos de interesse para a presente investigação com base em roteiro semiestruturado, possuindo questões organizadas em cinco eixos: (a) contexto emigratório; (b) vida no país de destino; (c) projeto de retorno; (d) retorno ao país de origem; (e) avaliação da migração e perspectivas de futuro.

Visando verificar o modo de abordagem das questões e o tempo gasto com a entrevista, foi realizado um estudo piloto com uma família cujo emigrante havia permanecido no exterior por seis anos e retornado há 12 meses. A família era composta por pai, mãe, filha e filho. O estudo piloto permitiu avaliar a clareza e a objetividade constantes no Roteiro desenvolvido para o estudo.

Os emigrantes retornados, mulheres e filhos participantes da pesquisa foram localizados inicialmente a partir de indicação de pessoas da comunidade e, em seguida, pelas famílias participantes da pesquisa. Os participantes foram contatados via telefone, ocasião em que eram apresentados os objetivos da pesquisa. Caso concordassem em participar, agendava-se um horário em sua residência, quando todos os membros da família pudessem ser encontrados na casa. A coleta dos dados ocorreu no domicílio dos participantes em local que permitiu a manutenção da tranquilidade e do sigilo. O tempo médio empregado na coleta de dados com cada participante foi de, em média, 50 minutos. Os dados foram coletados no primeiro semestre de 2012.

Esta pesquisa, intitulada “O estranhamento familiar em relação ao emigrante retornado”, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Vale do Rio Doce (UNIVALE) sob o parecer CEP/UNIVALE 070-10-12. Os participantes, após terem conhecimento dos objetivos da pesquisa e manifestarem disposição em participar da investigação, leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, que garantia a preservação de seus direitos individuais e respeito ao seu bem estar físico e psicológico. Aos sujeitos que apresentaram considerável sofrimento psíquico foi oferecida a possibilidade de encaminhamento ao Serviço de Psicologia Aplicada da universidade.

Os dados coletados foram analisados utilizando-se como método a Análise de Conteúdo de Bardin (2009). Para tanto, passaram pelo processo de definição de categorias, codificação e registro de exemplos ilustrativos de cada categoria identificada. Para diminuir o risco de vieses, este processo foi realizado pelo primeiro autor e avaliado pelos outros dois, todos com formação em psicologia. As entrevistas foram transcritas ipsis litteris, visando preservar o caráter espontâneo das falas.

Optou-se pela delimitação à percepção do emigrante do sexo masculino para melhor circunscrição do tema e maior aprofundamento nas questões que envolvem esse gênero. Pretendendo-se preservar a identidade dos entrevistados, as falas dos mesmos estão identificadas pela posição ocupada por cada membro na família e pelo número de sua respectiva família, classificadas com base na sequência da realização das entrevistas (Emigrante 01, Esposa do emigrante 03 ou Filho do emigrante 07).

 

Resultados e discussão

Ao retornar a seu país de origem, o emigrante pode se deparar com diversas transformações tanto nos espaços físicos como em suas relações interpessoais. A fim de se defender da angústia provocada por possíveis transformações durante sua ausência, o emigrante pode ser levado a construir a fantasia de que seus familiares e o local de origem não sofrem alterações enquanto ele se encontrava no exterior. Assim, espera reencontrar a esposa, os filhos, os amigos e os espaços que havia guardado em sua memória exatamente como estavam antes da emigração, como se a passagem do tempo fosse suspensa durante o período migratório.

A realidade, contudo, exige que o emigrante tenha que passar por um novo processo de adaptação a um ambiente que outrora julgava conhecer, mas que agora se lhe apresenta com facetas totalmente desconhecidas. Os sentimentos de estranhamento surgidos neste processo de adaptação solapam o senso de pertencimento anteriormente existente.

Segundo a concepção freudiana, a fantasia serve para abrandar a ferocidade dos nossos desejos inconscientes. É um recurso utilizado pelo aparelho psíquico para obter satisfação parcial de um desejo frustrado, uma estrutura erigida em torno da satisfação do desejo. A fantasia possui uma estrutura psíquica semelhante a de um sonho ou de uma alucinação e é denominada por Freud de “psicose do desejo” (Nasio, 1993). Segundo Brenner (1975), quando a realidade é dura demais (no caso dos emigrantes, a distância do lar, a carência de afetos, etc.) e entra em conflito com o desejo (estar perto da família e dos amigos, compartilhando com eles sua existência), o indivíduo tende a ignorar a realidade desagradável e insistir que é verdade aquilo que deseja (ou seja, que tudo se encontre da forma que era quando partiu).

Buscando realizar os desejos que, por um motivo ou outro, não pode realizar – pelo menos não naquele momento – o indivíduo então se refugia na fantasia, na satisfação imaginária dos desejos. No que diz respeito ao emigrante e suas relações familiares, a intensidade da adesão à fantasia pode ser muito maior, variando conforme a intensidade do afeto que se investe na representação psíquica da família, associada a outros fatores inerentes ao processo migratório tais como a distância, vulnerabilidade emocional, incertezas e esperanças. O forte investimento psíquico na representação da família e sua consequente idealização por parte do emigrante pode funcionar, durante o período em que se encontra no exterior, como uma forma de suportar a ausência dos familiares. Ao retornar, tal representação idealizada da família, alimentada durante sua permanência no exterior, choca-se com as transformações ocorridas no núcleo familiar.

Tomando como referência o sentimento de estranhamento em relação à família percebido pelo emigrante ao retornar, verificou-se, a partir da análise de conteúdo das entrevistas, que os relatos dos participantes estariam distribuídos em três categorias: (a) estranhamento inicial, (b) não estranhamento e (c) estranhamento constante. Estas categorias foram criadas baseadas na verbalização dos participantes e na contextualização de suas posições dentro do contexto de seus discursos.

O estranhamento inicial

A categoria “estranhamento inicial” se refere àqueles emigrantes que, apesar das dificuldades iniciais de reinserção, obtiveram êxito em readaptar-se à nova configuração familiar. Para estes, o estranhamento foi sentido apenas no início do retorno à família, sobretudo no que dizia respeito ao relacionamento com seus filhos. Os relatos deixaram evidente que uma das maiores dificuldades encontradas no restabelecimento dos laços era a retomada da função paterna anteriormente transferida para a mãe ou terceiros.

O estranhamento familiar afeta e também é afetado por outros estranhamentos que o emigrante encontra ao regressar. O emigrante pode considerar estranho desde um buraco na rua, até o modo de ser da esposa com o qual ele não está familiarizado. Nos relatos, é possível perceber que há estranhamento em relação ao trânsito, às pessoas nas ruas, ao modo de trabalhar, à periodicidade no recebimento de salários, enfim, a tudo que o rodeia. Algumas famílias participantes chegaram a qualificar seus emigrantes como tediosos por sempre fazerem comparação do Brasil com o país no qual estavam residindo. Nesta comparação, o Brasil era geralmente desqualificado.

“Entrei em casa, olhava pras paredes e tudo; até as paredes, pra mim, estavam estranhas. Andava na rua com medo – com medo assim, assustando no trânsito. Pra mim, cara que acostuma num trânsito tão educado, chegar num trânsito nosso aqui... Eu tava andando na rua assustando. Foi difícil adaptar no trânsito” (Emigrante 2).

Todo esse sentimento de estranhamento percebido pelo emigrante ao retornar se revela, sobretudo, em relação ao ambiente familiar. Neste, em que mais investiu afeto e do qual mais esperava sentir-se parte é exatamente onde mais se sente deslocado. Assis (2009) sintetiza muito bem esses sentimentos quando conclui que quem retorna não reconhece o lugar de onde partiu, estranhando os lugares e especialmente as relações sociais. Segundo a autora, muitos emigrantes, ao retornarem, acham a cidade lenta e suja, queixam-se da falta de respeito às leis, e lastimam a falta da modernidade norte-americana, o que faz com que eles sintam-se deslocados, obrigando-os a reconstruírem seu lugar e suas relações sociais. Nessa perspectiva, a esposa do emigrante 04 relata sobre o retorno do marido e o estranhamento inicial do lugar e das relações:

“No início foi... Assim, ele achou um pouco diferente, mas depois ele foi acostumando. Ele voltou pro mesmo serviço que ele tava antes e as amizade dele que ele tinha antes foi voltando tudo de novo... Voltou tudo que era”.

A respeito do movimento de retomada do seu lugar, Giddens (1993) afirma que “quando grandes áreas da vida de uma pessoa não são mais compostas por padrões e hábitos preexistentes, o indivíduo é continuamente obrigado a negociar opções de estilo de vida” (p. 87). Nessa tentativa de reconstrução do seu lugar junto à sua família, buscando realocar-se, o sofrimento psíquico sentido tanto pelo emigrante quanto por esposa e filhos é, na maioria das vezes inevitável, como relata o emigrante 17:

“(...) quando eu saí daqui, os meninos eram adolescentes, eram totalmente dependentes. Assim que eu voltei, já eram mais homens. Quer dizer, já tem uma certa autonomia e a minha esposa também, porque era muito dependente de mim quando eu sai, aí quando eu voltei... É lógico ficou seis anos aqui, né, então não dependia tanto de mim, então já tinha autonomia prum tanto de coisa, né. Então isso acabou criando um pouco de atrito porque (risos) não aceitei muito isso”.

A autonomia adquirida pelos filhos e pela esposa é o fator que os emigrantes mais mencionaram durante as entrevistas como fator gerador do estranhamento e principalmente choque de ideias e disputa de poder. Pesquisa realizada por Cruz e Siqueira (2012) confirma este fato. Segundo as autoras, as mulheres que permaneceram no país de origem enquanto seus companheiros foram para o exterior, alteraram seu horizonte e suas expectativas. Estas, que antes ocupavam apenas o espaço doméstico, agora passam a ocupar o espaço público, através da atuação na rede bancária, do gerenciamento das remessas, da realização de investimentos e até da abertura do próprio negócio. Deixam sua antiga condição para se tornarem independentes e autônomas. Algumas vezes, porém, essa autonomia é tão grande que o emigrante não é capaz de suportá-la, como será discutido na categoria estranhamento constante.

Portanto, para que houvesse sucesso na reinserção desses emigrantes ao seio familiar foi necessário que ambas as partes cedessem em um ou outro aspecto. O emigrante, por um lado, passa a reconhecer que seus filhos já não são mais as crianças que ele havia deixado outrora para trás e que sua esposa, depois dessa experiência vivida, não é mais a mesma. Esposa e filhos, por sua vez, abrem mão de parte da liberdade que tinham quando o emigrante estava no exterior, passando a se submeterem parcialmente às exigências da vida com “o homem da casa” que está de volta.

Os emigrantes retornados relataram que foi mais difícil reaproximarem-se dos filhos do que das esposas. Os relatos dos filhos e das esposas confirmam esse dado. Os filhos mencionam muito mais estranhamento em relação ao pai do que as esposas em relação ao marido. As mudanças ocorridas com os filhos, tanto física como psicologicamente, são de proporções maiores do que as sofridas pela esposa. Como exposto pelo Emigrante 17, quando eles vão, deixam no Brasil crianças, e quando regressam, encontram homens. O emigrante 12 também compartilha do mesmo sentimento: “A minha esposa era a mesma, agora os meninos não, porque com os meninos eu tive que readaptar tudo de novo... Pra eles, era mais difícil. Pra eles e pra mim, né? Era mais difícil”.

O não estranhamento

Na categoria “não estranhamento”, foram incluídos os emigrantes que declararam não terem sentido nenhum tipo de estranhamento em relação à família ao retornar. Estes entrevistados atribuem essa ocorrência ao constante contato mantido com os familiares para acompanhar o desenvolvimento dos filhos, especialmente via internet. Contudo, mesmo declarando não ter sentido esse estranhamento, foi possível captar no discurso dos entrevistados que, de fato, pode ter havido algum tipo de estranhamento, embora em menor intensidade se comparado com o relato dos emigrantes das outras categorias. Um deles, ao ser indagado se sentiu que a esposa e os filhos não eram mais exatamente como quando partiu, forneceu a seguinte contribuição:

“Não, apesar que cresceram, mas... acho que... sei lá... Meu relacionamento com meus filhos sempre foi o mesmo. Mesmo tando longe, eu não passava um dia sem falar com eles. Voltei e, pra mim, foi normal. Apesar de que tavam todos crescidos. Como diz o outro, deixar um menino e encontrar um homem falando mais grosso do que eu. Acho que nosso relacionamento continuou a mesma forma de antes. (...) A rotina já tava alterada porque um partia pra escola, outro pro trabalho e o contato passou a ser menos, mas... Tinha aquela expectativa de ficar esperando a filha no ponto do ônibus quando ela tava voltando do colégio ou até mesmo levar. Então era assim... (...) Não houve diferença nenhuma. Cheguei... Apesar de chegar encontrar meu filho já com os dezesseis anos, trabalhando, responsável, e a minha filha trabalhando, estudando” (Emigrante 02).

O relato deste emigrante está em conformidade com o que afirma Sarti (2003) acerca das mudanças que ocorrem no grupo familiar: “a família não é uma totalidade homogênea, mas um universo de relações diferenciadas, e as mudanças atingem de modo diverso cada uma destas relações e cada uma das partes da relação” (p. 39). Embora o entrevistado tenha relatado de forma veemente que não houve estranhamento, em diversos momentos da entrevista relatou diferenças existentes entre os filhos que ele deixou e os filhos que encontrou, tais como a rotina alterada e o fato de os filhos crescidos estarem gozando de certa autonomia. Essas diferenças, contudo, não foram interpretadas como negativas pelo emigrante e, talvez por isso, não interferiram na reconstrução dos laços familiares.

Os emigrantes que não sentiram estranhamento atribuem esse fato à constante manutenção do contato com a esposa e os filhos. Mesmo no exterior, alguns emigrantes acompanhavam à distância o crescimento e amadurecimento dos filhos, especialmente via telefone e internet. A esse respeito vale citar o fragmento abaixo.

“Eu não senti (estranhamento) pelo fato que eu falava sempre com eles e, pela internet, eu estava sempre vendo e sempre acompanhando o desenvolvimento deles. E os problemas que aconteciam também pra mim eram passados. E a gente conversava muito, cê entendeu? Então eu não tive dificuldade. (...) Pra mim, continuou a mesma coisa” (Emigrante 10).

Na vida de qualquer pessoa, a família continua sendo lugar favorecido de proteção e sentimento de pertença a um campo relacional importante no revigoramento existencial entre os indivíduos (Martin, 1995). Durante o tempo em que o emigrante estava no exterior, os vínculos relacionais que previnem o risco de isolamento social foram garantidos, possibilitando assim que o restabelecimento do relacionamento familiar no retorno fosse o menos nocivo possível.

Tedesco (2013) ressalta que o retorno promove o reencontro de várias dimensões da vida do sujeito: coisas, lugares, pessoas, interações. Nesta perspectiva, a família se constitui como o principal ponto de referência nesse reencontro do emigrante com as múltiplas dimensões da sua existência e vai influenciar diretamente a intensidade de seu sentimento de pertencimento ou estranhamento ao retornar.

Apesar das alegações dos participantes de que não experimentaram estranhamento ao retornarem em função da manutenção de um contato frequente via telefone e internet, é possível inferir que alguns deles possam ter feito uso do mecanismo de negação para lidar com as transformações encontradas. Percebe-se, neste sentido, elementos de contradição no discurso de alguns emigrantes que afirmaram não sentir estranhamento, como mostra o primeiro exemplo desta categoria. “Mas”, “porém”, “apesar de” são expressões comuns na fala dos entrevistados.

O emigrante 08, por exemplo, afirma que não sentiu diferença alguma em relação às pessoas que compunham sua família (esposa e filhos), ao modo de ser e se comportar destes indivíduos. Mas justifica dizendo que, apesar disto, estranhou a situação de estar convivendo em família novamente. Para ele, as pessoas permaneciam as mesmas, mas ele sentia falta da liberdade que tinha no exterior, da vida que não precisava dar satisfação para onde ia, que horas voltava, etc.

Essas pequenas contradições foram encontradas não necessariamente imediatamente após a constatação de não estranhamento em relação à família feita pelo emigrante, mas em análise realizada na entrevista como um todo. Questões que avaliavam outros aspectos da migração de retorno – como, por exemplo, o que o emigrante percebeu de diferente em relação ao lugar quando ele regressou, ou que dificuldades encontrou para se readaptar ao país de origem – nos apontavam os vestígios deste antagonismo de opiniões acerca de um mesmo objeto/fenômeno.

O estranhamento constante

A terceira categoria, “estranhamento constante”, engloba os emigrantes cujos sentimentos de estranhamento em relação a sua família não ocorreram apenas nos momentos iniciais do retorno, como foi o caso na categoria 1. Estes participantes se queixam de que o estranhamento ainda se faz presente mesmo tendo se passado alguns anos desde o retorno. Verifica-se que estes entrevistados apresentaram severas dificuldades de readaptação ao contexto familiar e não reataram satisfatoriamente os laços familiares, sentindo-se estranhos com relação à própria família.

Em pesquisa realizada por Siqueira (2007), constatou-se que 31,4% dos emigrantes que retornam ao Brasil voltam para o exterior por questões que vão desde o estranhamento do país de origem até a dificuldade de compreender sua dinâmica econômica. Essa decisão independe se o projeto migratório foi um sucesso ou um fracasso. Por estranharem o local de origem e as relações ao retornarem muitos emigrantes sentem-se muito mais estrangeiros em sua terra natal do que no país de destino (Assis, 2009; Siqueira, 2009; Tedesco, 2013). Os dados deste estudo corroboram as conclusões apresentadas por esses autores:

“O que todo imigrante sonha quando regressar encontrar aqui é a família como ele deixou. Existe uma outra família moldada(?) nas mesmas pessoas que aqui estão. (...) eu vou dizer com você que eu me senti um pato no ninho de passarinho. E é aquilo que eu falei anteriormente: você sente que você não pertence a esse elo. Por mais que as pessoas vem(?), que você converse, que a pessoa venha, te dê um abraço, faz um carinho, que seu filho tá ali, conversa com você, (...) eu me vejo que eu não pertenço a isso aqui” (Emigrante 03).

Ao contrário daqueles emigrantes que afirmaram sentir estranhamento apenas no início do retorno, neste grupo o estranhamento é duradouro, a ponto de o emigrante não se sentir mais parte da família. Esse sentimento prejudica drasticamente a reinserção e a manutenção do emigrante no seio familiar. O tempo passa e o estranhamento não abranda para quem retornou, tampouco para os membros da família, tal como afirma a esposa do emigrante 07: “vivia dizendo pra ele assim que ele não era ele. Que aquilo era um clone (risos), porque ele sempre foi muito calmo, muito tranquilo e... não sei... ele ficou mais seco, mais desconfiado”.

Ao se encontrar novamente na terra natal, o emigrante fatalmente percebe que apenas o reencontro físico com os familiares não é suficiente para a reconstrução dos vínculos familiares. Essa tarefa exigirá dele uma adaptação às transformações operadas na dinâmica familiar, as quais incluem frequentemente um remanejamento dos papéis desempenhados por cada membro. O emigrante percebe também que tanto ele quanto as pessoas de seu meio de origem mudaram com o passar do tempo e que foi possível apenas retornar ao espaço físico de onde saiu, porém não para as vivências do tempo em que ainda não havia emigrado. A partir daí é feita a descoberta da irreversibilidade do tempo da qual fala Sayad (2000): “não se pode estar e ter estado ao mesmo tempo. O passado, que é o ‘ter-estado’, não pode jamais tornar-se novamente presente e voltar a estar-no-presente, a irreversibilidade do tempo não permite” (p. 11).

As consequências do estranhamento do retorno são sentidas tanto pelo emigrante como pelos seus familiares. Após ficar quase seis anos longe do pai, as divergências de ideias parecem emergir em todos os aspectos da convivência quando este regressa:

“(...) tipo quando eu era criança a gente era mais apegado como eu disse. Aí, depois que ele voltou, ele já começou a implicar mais por eu ter entrado na fase da adolescência. Tudo que eu fazia era motivo de ciúme. Ele era muito ciumento. Então... roupa, sair, amigas o dia inteiro, celular o dia inteiro... Nossa! Foi bem difícil. Até hoje tá sendo um pouco difícil pra adaptar. A gente ainda não se adaptou nem eu com ele nem ele comigo então a gente ainda se estranha bastante, tá totalmente diferente. (...) minha mãe era mais solta, um pouquinho liberal, já ele prende muito” (Filha do emigrante 15).

Bilac (2003) conjectura que a família não é mais vista como organizada por normas estabelecidas. Para o autor, o processo de destruição do modelo familiar clássico pode ser entendido como uma das consequências da forte incidência do individualismo nas sociedades contemporâneas. Ele ressalta ainda que, nessas condições, a família é vista como “fruto de contínuas negociações e acordos entre seus membros e, nesse sentido, sua duração no tempo depende da duração dos acordos” (p. 37).

A relação que antes existia entre o pai e uma filha criança, agora se dá entre o pai e uma filha adulta. Se antes, quando criança, ele a mimava, agora quer protegê-la, compensando tudo que não pôde fazer por ela quando estava no exterior e, em decorrência dessa proteção, pode acabar tolhendo sua liberdade. A filha, por sua vez, não habituada a tanta proteção, convertida em forma de imposição de limites, não consegue se adaptar a seu pai, o que gera conflitos e sofrimento psíquico para ambas as partes.

Brenner (1975) atesta que esse tipo de atrito entre as gerações é mais comum do que se imagina, inclusive usa o termo “conflito de gerações” (p. 232) para referir-se a muitos aspectos dessas relações familiares. Ressalta ainda que é comum esperar que a geração mais nova se ache em conflito com a geração mais velha, em maior ou menor grau. Nesse sentido, à luz dos resultados da pesquisa, pode-se formular a hipótese de que o conflito de gerações pode ser potencializado em sua intensidade em função da separação provocada pela emigração. Em decorrência, a saída clássica para esse conflito, qual seja, a identificação da geração atual com a geração anterior, pode encontrar dificuldades para se realizar ou até tornar-se inviável.

É interessante notar que em uma mesma família os relatos acerca do emigrante podem ser tão diferentes que chega a ser difícil acreditar que todos estão falando da mesma pessoa. Isso é reflexo da idiossincrasia, da maneira como cada indivíduo interpreta o mundo e as experiências provocadas pelo processo migratório. A situação vivenciada pela família 03 exemplifica bem este tipo de situação. O depoimento do emigrante 03 pode ser lido no início deste tópico. Sua esposa relata:

“(...) igual quando ele tava aqui, eu não trabalhava. Mas eu falava com ele de lá, que eu comecei a trabalhar, que, quando ele viesse embora, eu não ia sair do serviço, que eu ia continuar trabalhando, porque pra ele eu não gostava. Mas ele ta até acostumando bem com isso, entendeu? Tem que trabalhar! Toda pessoa tem que trabalhar, né? Ter seu dinheiro é bom... (...) Assim: quando ele foi, eu era diferente, né? Assim, cê mudou o visual e tudo, né? É diferente... Então, agora ele tá mais ciumento. (...) É que eu tô mais diferente. Porque agora eu trabalho. Totalmente diferente. Ele fica em casa aqui agora e eu trabalho. Agora tá mais ciumento. Agora eu tô andando bem mais arrumada...”

Bilac (2003) acredita que a mudança na organização das famílias é consequência das mudanças na condição feminina, que, por sua vez, afetam também os papéis masculinos. Nessa perspectiva faz-se necessário reexaminar os papéis na família visando incorporar a eles as vivências, sentimentos e percepções masculinas. Deve-se, contudo, estar atento ao fato de que em um relacionamento nenhum acontecimento deve ser analisado unilateralmente. A reorganização dos papéis de um casal dentro da família deve ser pensada, negociada, repensada e posta em prática coletivamente, visto que se trata de um processo de adaptação mútua.

O papel de pai e de filho também sofre alterações, sendo perceptível que alguns filhos e emigrantes encontraram maiores dificuldades que outros para negociar e chegar a um acordo:

“Os primeiros dias é levar família pra sair, pra comer, pra fazer um monte de coisa assim... Até levar todo mundo pra passear... Essas coisas assim. Aí depois a coisa começou a mudar. (...) A presença dele dentro de casa... As atitudes dele, ele querendo me controlar; isso tudo me incomodava porque eu fiquei seis anos sem ele e aí ele chegou e quis mudar minha vida toda. (...) Mas aí, aqui ele queria me segurar, e segurar e eu não quis aceitar por que eu já tinha 23 anos” (Filha do emigrante 03).

Na contemporaneidade, verifica-se que a autoridade paterna e marital não é absoluta e total; ao contrário, é passível de questionamentos, críticas e até mesmo negação e rejeição, com muito mais vigor do que foi no passado (Romanelli, 2003). O questionamento desta autoridade é nítido nos confrontos que a filha desenvolve com o pai quando este retorna.

Por outro lado, ao contrário da irmã, o filho do emigrante 03 percebe o fenômeno do retorno do pai com outro olhar. Ele é enfático ao afirmar que não sentiu nenhuma diferença com o retorno do pai e que não houve mudanças na vida pessoal, social e familiar:

Pra mim ele voltou a mesma pessoa, só que, como pelo tempo que ele ficou lá, ele ficou adaptado lá, então ele chegou aqui, ele sentiu as coisas bastante diferentes no termo de adaptação. Lá as coisas são bem diferentes daqui do Brasil, mas assim, questão pessoal, questão de pai, de marido, eu senti que ele voltou a mesma pessoa. Não deixou de ser aquela pessoa que ele era antes não”.

Observa-se, então, a divergência de opiniões acerca do retorno do emigrante. A relação estabelecida com o filho se configurava de maneira diferente da relação estabelecida com a filha. Esse modelo de relação pode ser reflexo de uma cultura predominantemente machista, em que, segundo a percepção da filha, o pai queria mantê-la presa, controlada, dominada. Já o filho nem sentiu os impactos negativos do retorno, porque, para ele, os mesmos simplesmente não existiram. Se, por um lado, o filho não sentiu nenhuma dificuldade ou estranhamento em relação ao pai, por outro, tamanho foi o estranhamento da filha, que ela se viu obrigada a sair de casa, abandonando o convívio familiar.

Em relação à esposa, o estranhamento passa para a relação conjugal. Ao voltar e encontrar a esposa trabalhando, cuidando da aparência e agindo de forma independente, o emigrante se sente menos seguro em relação à mesma tornando-se mais ciumento. Esses sentimentos são ainda acirrados pelo fato de não ser mais o único provedor da casa.

Giraud (2004) coloca em evidência a crise da parentalidade do ponto de vista paternal, que parece ser uma realidade fundamental das sociedades contemporâneas. Nessa linha de raciocínio, afirma tornar-se ainda mais real essa crise vivenciada no âmbito de uma família envolvida no processo migratório, já que os pais estão particularmente fragilizados.

Ainda acerca desta dificuldade da retomada da função paterna e da autonomia adquirida pelas esposas, o emigrante 07 narra que, mesmo após quatro anos do seu retorno, ainda se vê entrando em conflito com sua esposa. Antes de emigrar, era ele quem fazia as compras, pagava as contas e organizava a dinâmica familiar de uma maneira geral, executando o papel de chefe da família. Com sua ida para o exterior, essas responsabilidades ficaram a cargo da sua esposa, que, embora com certa dificuldade, aprendeu a manejar situações com as quais não saberia lidar antes da partida do marido. Com o retorno do esposo, ela continuou realizando as tarefas que fazia em sua ausência. O atrito está no fato de que ele quer fazer de um jeito, e ela quer fazer da maneira que aprendeu a realizar e deseja preservar a autonomia adquirida. Em relação aos filhos, conflitos semelhantes acontecem. Até hoje, quando os “meninos” vão sair, pedem autorização para a mãe e não ao pai, que, por tanto tempo, deixou de exercer sua função na estrutura familiar. “Às vezes eles falam só assim ‘tô indo’, e eu falo assim ‘ó, menino!’ ‘ah, já falei com a mãe’” (Emigrante 07). Nessas condições impostas pela emigração, a mãe passa a exercer o papel de chefe da família, o qual, na maior parte dos casos, era exercido pelo pai, além do papel maternal:

“Os meninos conversam com ele, mas aí vêm pro meu lado. Então eu tenho que dar a palavra final. (...) Tem coisa que eu gostaria que meus filhos crescessem e falassem ‘pai eu vou sair hoje. Posso?’ aí meu marido falasse ‘não’. (...) Não vai lá falar com ele. Fala comigo. (...) eu gostaria que isso não tivesse acontecido” (Esposa do emigrante 07).

Quanto ao processo de autonomia adquirido pelos filhos, o fato mais instigante é que o mesmo poderia acontecer naturalmente, estando o pai presente ou não. Contudo, como já foi dito, os emigrantes investem fortemente na imagem de seus filhos como as crianças dependentes e vulneráveis que deixaram aqui ao partir. Ao retornarem e encontrá-los independentes e autônomos, o impacto causado é de proporções muito maiores. Quando indagado sobre o que mais notou de diferente na esposa e nas filhas, o emigrante 4 responde:

“É que antes eles teriam, assim, em mãos um poder, né. E quando eu cheguei, bem menos, por ter que perguntar pra mim (parafraseando a filha) "pode fazer isso?" "Não pode" "Ah, mas por que que não pode?". Eu esperava mais. Eu devia ter ficado mais um pouco então pra vir deste jeito. (parafraseando a filha) "Apesar de que a gente queria você aqui, a gente pensava que ia te amar" E não sei o que... Eu falei, dinheiro eu tenho tanto, então o que eu pude fazer eu já fiz. Fiquei sempre pregando isso. O que eu fiz eu me sinto um herói de vocês. Agora, se vocês acham que não tá bão... Se quiser ir pra lá, cês vão e depois cês me contam como é que é. Então eu não dei muito mole também não”.

Diferente do que aconteceu com algumas famílias entrevistadas, em alguns casos, a mulher e/ou o filho já ganham seu próprio dinheiro e isso intensifica a redução da autoridade do pai/marido e da sua exclusividade como provedor. Esse fato acaba, muitas vezes, se tornando um potente fator gerador de conflito.

Quando o estranhamento percebido pelo emigrante chega a patamares insustentáveis, abandonar o convívio familiar parece-lhe a solução mais palpável. Uma saída que encontra para isso é retornar ao país de destino – desejo este explicitado por alguns dos nossos entrevistados.

 

Considerações finais

Percebe-se que o estranhamento é representado de diferentes maneiras pelos vários atores do processo. Deve-se também levar em conta algumas variáveis, para não cair no risco de cometer erros grosseiros na interpretação dos resultados. Alguns emigrantes podem ser dotados de uma estrutura egóica mais favorável à adaptação que outros, assim como algumas famílias podem possuir mais maleabilidade em lidar com o estranhamento do que outras. Os dados coletados indicaram que a variável temporal também pode influenciar nesses casos: emigrantes que permaneceram menos tempo no exterior geralmente demonstram mais facilidade de readaptação ao país de origem e consequentemente sentir menos estranhamento nas suas relações familiares. Foi possível perceber que o tempo de retorno dos emigrantes ao Brasil é também fator a ser considerado, já que aqueles que voltaram há menos tempo vivenciam mais fortemente o sentimento de estranhamento do que aqueles que já voltaram há muitos anos. Embora pareça frequente, não se pode afirmar que tal conexão seja invariável.

É possível interpretar o advento da fantasia de imutabilidade do ambiente de origem como uma defesa psíquica contra o sentimento de estranheza que o emigrante possivelmente imagina que experimentará ao retornar e perceber as alterações ocorridas, sobretudo, no comportamento dos filhos e na dinâmica familiar. No texto “Escritos criativos e devaneio”, Freud (1908/1996) defende a tese de que as fantasias são tributárias da existência prévia de um estado de insatisfação, de modo que toda fantasia seria “a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória” (Freud, 1908/1996, p. 137). A princípio, tomando-se como ponto de partida apenas a dimensão consciente da experiência de estranhamento vivida pelo emigrante, poder-se-ia ser levado a pensar que a “realidade insatisfatória” da qual fala Freud seria, nesse caso, tão-somente a nova dinâmica familiar e os aspectos atuais dos comportamentos dos filhos. Frente à expectativa de se deparar com essa suposta nova realidade, o emigrante sentir-se-ia estranho, incomodado, angustiado e, para defender-se, forjaria a fantasia de imutabilidade do ambiente de origem, realizando, assim, de forma imaginária, o desejo ter permanecido com a família que existia antes dele emigrar.

Por outro lado, à luz do clássico artigo freudiano sobre o sentimento de estranheza (Unheimliche), é possível aventar a hipótese de que certo elemento de natureza inconsciente possa estar na origem da fantasia de imutabilidade. No mencionado artigo, Freud (1919/1996) contesta o argumento tradicional de que a experiência de estranhamento seria fruto do contato com algo novo ou desconhecido para o indivíduo. Através de uma análise filológica dos significados que a palavra “estranho” (Unheimliche) assume no idioma alemão e em outras línguas, Freud defende a tese de que o sentimento de estranheza é produzido quando algum objeto ou acontecimento evoca no mundo interno do indivíduo algo que lhe é, paradoxalmente, familiar. Nesse sentido, não é a novidade da experiência que provoca o estranhamento, mas o reencontro com algo já conhecido, geralmente de natureza inconsciente.

A partir dessa premissa, pode-se propor outra interpretação para o estranhamento experimentado pelo emigrante ao retornar ao seu ambiente de origem. Considerando que a expectativa de retornar, bem como a saudade dos familiares que permaneceram são sentimentos que se mantêm muito fortes durante toda a permanência no exterior, é possível concluir que os emigrantes frequentemente imaginam como será seu retorno. Fatalmente supõem que encontrarão os filhos mais amadurecidos e que será preciso certo grau de esforço para adaptarem-se novamente ao contexto familiar. Em outras palavras, a situação que o emigrante encontra ao retornar não é efetivamente nova. Nesse sentido, o estranhamento poderia ser compreendido não como a reação à aparente novidade do contexto com o qual o emigrante se depara. O sentimento de estranheza seria produzido pelo reencontro com uma situação já conhecida – ainda que apenas na imaginação – e fortemente temida: o ambiente familiar modificado.

Em decorrência, a fantasia de imutabilidade poderia ser compreendida como tributária do temor sentido pelo emigrante em relação ao caráter inevitável das transformações em seu contexto de origem. Temor que pode se associar também a um possível sentimento consciente ou inconsciente de culpa por ter deixado a família para emigrar. Para se defender desses afetos, imaginar que a esposa, os filhos, a cidade, enfim, todo o ambiente de origem irá manter rigorosamente as mesmas características pode ser a única alternativa.

Destarte, conclui-se que nesse processo de reconstrução da intersubjetividade faz-se necessário requalificar as relações fragilizadas entre o emigrante e sua família, a partir da afirmação da autonomia de cada um.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Odacyr Roberth Moura da Silva
E-mail: odacyrroberth@gmail.com

Enviado em: 14/12/2014
1ª revisão em: 05/10/2015
Aceito em: 10/11/2015

 

 

1 Pesquisa derivada do projeto “O estranhamento familiar em relação ao emigrante retornado”, apoiado pela FAPEMIG.
2 Psicólogo (Univale) e pedagogo (Uniube). Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
3 Psicólogo. Doutorando em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
4 Graduado em Psicologia e Filosofia. Pós-graduado em Psicologia e em Administração e Gerência. Mestre e Doutor em Psicologia Clínica com experiência em docência em instituições de ensino nacionais e internacionais. Professor do Departamento de Turismo da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.
5 Redes sociais são uma variedade de mecanismos sócio-estruturais que podem servir de apoio ao emigrante no país de destino. Essas redes podem ser estabelecidas através de instituições religiosas, estatais, de familiares, de amigos, etc. (Massey, 1990).

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