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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.20 no.2 Porto Alegre dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Identidade e relações familiares: transmissão psíquica em “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum

 

Identity and family relations: psychic transmission in "Dois Irmãos", by Milton Hautoum

 

 

Ricardo da Silva Franco1 ; Maíra Bonafé Sei2, I

I Departamento de Psicologia e Psicanálise – Universidade Estadual de Londrina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir a influência das relações familiares na construção da identidade do Nael, o narrador-personagem do romance "Dois Irmãos" por Milton Hautoum. Trata-se de um estudo teórico, empreendido por meio dos aportes teóricos da psicanálise de família, com ênfase nos aspectos relativos à transmissão psíquica geracional. Entende-se, assim, que a memória e as complexas relações familiares se configuram como um princípio organizador do psiquismo de cada indivíduo. Desse modo, Nael, através de sua narrativa, construída por meio da lembrança do passado, poderia conhecer e compreender a sua história, que é também a história de sua família, e, assim, construir a sua identidade.

Palavras-chave: Identidade, Relações familiares, Transmissão psíquica geracional.


ABSTRACT

This article aims to discuss the influence of family relationships in the construction of the Nael’s identity, the narrator-character in the novel "Dois Irmãos" by Milton Hatoum It is a theoretical study, undertaken by the theoretical framework of family psychoanalysis, with emphasis on aspects of the psychic generational transmission. It is understood that memory and the complex family relationships are configured as an organizing principle of the psyche of each individual. Thus, Nael, through its narrative, constructed through the recollection of the past, could know and understand his history, which is also the story of his family, and thus be more apt to develop his identity.

Keywords: Identity, Family relationships, Psychic generational transmission.


 

 

Introdução

Guattari e Rolnik (1996) compreendem que a produção de subjetividade acontece a partir das experiências vivenciadas, das interações sociais. As representações sociais, assim, são fabricadas nos encontros entre as relações humanas, dos discursos criados de tais encontros, em que componentes de subjetividade e modos de subjetivação são construídos (Silva & Garcia, 2011). Para Stuart Hall (2015), os papéis sociais possuem um caráter mutável, pois entende a questão da identidade como uma construção discursiva em um constante processo de transformações, ou seja, podem ser repensados e alterados de acordo com o contexto histórico e social.

Dentre tais encontros, surge o grupo familiar, capaz de criar moldes para cada integrante. André-Fustier e Aubertel (1998) explanam a respeito das famílias se organizarem por meio de alianças inconscientes, pelas quais os materiais da vida psíquica se tornam passíveis de transmissão entre as gerações. O inconsciente de um indivíduo leva consigo marcas de outros inconscientes a partir desses vínculos familiares e/sociais estabelecidos (Puget, 2001). Tais marcas configuram-se como conteúdos psíquicos, podendo ser eles afetos, fantasias e outros mais (Paiva & Gomes, 2008).

Nesse sentido, o presente trabalho teve por objetivo discutir os desdobramentos das relações familiares na construção da subjetividade de um sujeito. Para tal, utilizou-se de um material de ficção coletado da obra Dois irmãos, do escritor e professor universitário Milton Hatoum, publicada no ano de 2000. Assim, em semelhança à metodologia empregada para a análise psicanalítica de um caso clínico, escolheu-se analisar o texto referido acima. De maneira a esclarecer e alcançar a proposta desse estudo, o artigo se organizou em três subtítulos, na análise a partir do material coletado e nas considerações finais acerca das contribuições deste trabalho para o campo da psicologia, mais especificamente da psicoterapia psicanalítica de casal e família. O primeiro subtítulo se configura como uma possível justificativa para se utilizar o texto literário enquanto material de análise, na tentativa de encontrar uma metodologia adequada, pois conforme Durão (2015, p. 382-383) comenta sobre a dificuldade em se encontrar uma metodologia cientifica na área da literatura:

O cerne da pesquisa em literatura acontece em torno da interpretação. Não há uma receita ou fórmula, nada dado de antemão que assegure um ato interpretativo eficaz. Nesse sentido, qualquer metodologia em literatura conterá sempre algo de falho e insuficiente. Daí o leve absurdo da ideia de projeto de pesquisa: como não há garantia alguma de sucesso, de um ponto de vista lógico ele deveria ser escrito no final: o projeto se confundiria, assim, com o relatório. Talvez o máximo que possa ser dito a respeito daquilo que leva para a interpretação resuma-se a uma mistura de atenção e despreocupação: atenção, para lidar com a linguagem como algo denso, que contém em si diferentes potencialidade, frequentemente em conflito, e para conseguir focar no detalhe e na minucia, que são capazes de alterar o todo; despreocupação, para não tentar trazer para a obra uma agenda pessoal, não querer que ela seja o que você deseja, mas, pelo contrário, submeter-se à sua disciplina.

Os demais subtítulos dizem respeito a uma revisão teórica da ideia de identidade no campo das ciências sociais e dos conceitos da psicanálise de casal e família. Além disso, deve-se destacar, a fim de compreender a história da personagem principal, foi-se necessário a apropriação de alguns conceitos de diferentes teóricos, cujos pensamentos são divergentes entre si.

O texto literário como representação da realidade

A literatura mostra-se como uma importante ferramenta para a compreensão da figura do homem nas várias etapas de seu desenvolvimento ao longo da história. Esta teria a capacidade de expor as marcas de uma sociedade num determinado contexto histórico e social, além de seu papel influenciador no próprio processo de humanização (Candido, 2011).

De acordo com Candido (2011), a arte literária surge, de modo geral, como manifestação universal humana por meio de todas as criações ficcionais, poéticas e dramáticas. Assim, pode-se supor, que todo indivíduo, em algum momento de sua vida, teve contato, mesmo que mínimo, com a literatura. Tal arte se configura como uma representação da realidade, pois apresenta a vida como ela é, com altos e baixos, luzes e sombras, isto é, fazendo o leitor vivê-la e, dessa maneira, deixa marcas, humaniza em um sentido profundo (Candido, 1999).

Candido (1999) relaciona o papel da literatura com uma espécie de função psicológica e menciona a necessidade do humano em fantasiar, colocando tal necessidade em um mesmo patamar das necessidades mais essenciais do homem, como, por exemplo: a fome. Nessa mesma perspectiva, Esteves (2010) afirma, ao discutir sobre o gênero literário romance, que as obras de ficção permitem a superação da insatisfação com a realidade:

A ficção deve superar a insatisfação que a realidade causa; deve enriquecer e completar a existência; compensar o ser humano de sua trágica condição, a de desejar e sonhar com o que não pode realmente atingir. Assim, os romances não são escritos para contar a vida, mas para transformá-la após o processo de leitura (Esteves, 2010, p. 43).

Freud (1908/2006) também discorre sobre o papel da fantasia e da literatura para o homem. Para este autor, o aparelho psíquico é regido por dois princípios: o de prazer e o de realidade (Freud, 1911/2006). Sob a pele de cada pessoa habita um mundo cheio de desejos e pulsões em busca de descarga pulsional, satisfação que caracteriza o primeiro princípio. Enquanto que o segundo princípio aponta para a não possibilidade de todos esses desejos e todas essas fantasias alcançarem satisfação, pois há uma realidade convocando cada sujeito a se adaptar as suas exigências (Freud, 1991/2006). Assim, a fantasia surge como uma das respostas à realidade frustrante, pela qual o ser humano pode indiretamente satisfazer os seus desejos e as suas pulsões. Segundo Freud (1908/2006, p. 137), “as forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória”.

Neste sentido, o escritor criativo, como nomeia Freud (1908/2006), conseguiria vencer a barreira da repulsa transmitindo, por meio da escrita, os seus conteúdos latentes e inconscientes, partilhando de um dote pulsional comum com o leitor. Ao narrar sobre a jornada do herói, o escritor consegue transmitir, por exemplo, o seu desejo sexual pela sua amada, entretanto, para ser merecedor do encontro entre corpos, o herói deve vencer todos os obstáculos de sua difícil jornada. Mesmo que na realidade o escritor possa nunca conseguir sequer aproximar-se de seu amor, na fantasia, através de sua narrativa, ele pode, bem como leitor ao ler e se identificar. Ou mesmo, um escritor negro ao narrar pode transmitir toda a luta de seu povo, suas dores, suas batalhas e conquistas, possibilitando, por exemplo, que seus antepassados escravizados e sem vozes possam agora se expressarem através dele. Bernd (1988, p. 22-23) a respeito da literatura negra, de maneira a ilustrar, explana:

Na verdade, é possível que a literatura negra surge como uma tentativa de preencher vazios criados pela perda gradativa da identidade determinada pelo longo período em que a “cultura negra” foi considerada fora-da-lei, durante o qual a tentativa de assimilar a cultura dominante foi o ideal da grande maioria dos negros brasileiros.

Conforme sugere Candido (2011), então, a literatura humaniza ao confirmar o homem em sua humanidade, atuando em grande parte no inconsciente, pois quando o escritor transfere para as suas palavras as experiências de sua vida, os seus desejos e as suas fantasias, permite que o leitor, criança ou adulto, identifique-se e vivencie conteúdos ditos como conscientes, latentes e inconscientes (Bettelheim, 2002). Desse modo, a leitura de um romance de ficção, por exemplo, possibilita que o sujeito possa pensar e refletir sobre suas próprias questões e a respeito de problemas sociais, culturais, políticos, morais e éticos (Lukács, 2007). Entende-se ser essa a maneira pela qual o escritor Milton Hatoum consegue, no corpus literário proposto para a análise já citado, fazer o leitor vivenciar como muitas das relações familiares se configuram em inúmeros lares, possibilitando, também, identificar-se e refletir acerca de sua própria vida.

Em relação à análise de narrativas, Gancho (2002) elucida a respeito de elementos fundamentais presentes sem os quais nenhuma narrativa pode existir, sendo eles: o enredo, os personagens, o tempo, o espaço e o narrador. De modo a contemplá-los, torna-se interessante uma breve apresentação da obra e, ulterior, uma discussão referente à metodologia utilizada para a análise do texto.

No que se refere à história de Dois irmãos, ela é contada em primeira pessoa por Nael, o narrador-personagem. Ele busca reunir todas as suas memórias recolhidas ao longo de sua vida a fim de colocá-las numa ordem capaz de remendar o máximo possível as lacunas de sua história, da história de sua família, com o intuito de compreender quem é. A trama gira em torno da relação conflituosa entre os irmãos gêmeos Yaqub e Omar e na busca da sua própria identidade que Nael realiza, especialmente para descobrir quem dos dois irmãos é o seu pai. Nael é filho da relação sexual de um dos gêmeos com a sua mãe Domingas, a empregada da casa. Este fato é tratado por todos os membros da casa como um segredo familiar.

Os conflitos entre Omar e Yaqub são alimentados especialmente pela mãe, a destemida Zana. Omar e a mãe possuem uma relação de grande proximidade, não sendo permitido a aproximação de Omar com outra mulher, que não a própria mãe, para amar, estando liberado apenas para relações sexuais. Omar acaba, assim, sendo descrito como “mulherengo”, “festeiro” e “irresponsável”. Já Yaqub após retornar do Líbano, pois foi separado de todos por decisão de Zana, enviando-o para lá ainda adolescente, decide arriscar e se muda para São Paulo com a finalidade de estudar. Consegue se formar em engenharia e se torna alguém com uma importante carreira. E Rânia, irmã dos gêmeos, acaba assumindo o lugar do pai, Halim, nos negócios. Nael vê-se diante de vários conflitos internos: empregado ou filho da casa? Filho de Omar, o “irresponsável”, ou de Yaqub, aquele que conseguiu estudar e vencer? A história se passa na cidade de Manaus, no estado do Amazonas, no século XX.

Sendo assim, este artigo objetivou discutir os desdobramentos das relações familiares na construção da identidade de um indivíduo a partir do material contido e coletado na citada obra. Para tal, o trabalho configura-se como um estudo teórico-clínico (Pinto, 2004) que visa discorrer sobre os conceitos próprios da psicanálise de casal e família, semelhante a um estudo de caso clínico. Pinto (2004, p. 74) ao discutir sobre as influencias sofridas pela pesquisa qualitativa, explana:

Em psicologia clínica tal complexidade fica ainda mais evidente quando é adotado o modelo qualitativo de pesquisa cientifica, pois este implica em um processo personalizado e dinâmico de investigação. Trata-se de um procedimento essencialmente construtivo-interpretativo, que tem suas raízes históricas na Antropologia Cultural, e pode incluir: a integração de fragmentos de um processo em uma nova configuração; a integração da informação obtida na investigação a partir de um conjunto de aspectos qualitativos; a interpretação como elemento de contato na investigação da realidade estudada; ou ainda a transferência como instrumento de investigação.

Dessa forma, Pinto (2004) entende a metodologia qualitativa de pesquisa em psicologia clínica como uma construção da subjetividade humana e Villari (1997), ao falar das relações possíveis e impossíveis entre a psicanálise e a literatura, entende a arte literária como um campo onde se pode resgatar o conhecimento sobre a subjetividade. Pode-se, assim, entender a literatura enquanto um campo de investigação, em que ela é capaz de dizer sobre o real, funcionando como uma representação deste (Candido, 1999; Villari, 1997). A aproximação de uma metodologia do contexto da psicologia clínica parece pertinente, ainda, pela peculiaridade da obra em questão, pois a história é narrada em primeira pessoa em que o narrador-personagem busca conhecer a sua história, a sua identidade, a partir de fragmentos de sua memória. Assim, torna-se possível fazer a analogia de o narrador-protagonista parecer estar adentrando em uma espécie de psicoterapia, pois faz um processo semelhante ao da análise. Nael, mobilizando o passado por meio de sua ação narrativa, busca preencher as lacunas de sua história acessando os seus conteúdos inconscientes e os de sua família. A proposta da psicanálise é justamente a de acessar o material recalcado por meio da técnica da associação livre, da palavra, do discurso, regredindo para o passado que o indivíduo possa conhecer, entender e elaborar as coisas ocorridas em sua história (Freud, 1940/2006; Nasio, 2013). No caso de Nael, um passado desconhecido e conturbado, pois não sabe qual dos dois irmãos gêmeos é o seu pai. Segundo o narrador: “Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia” (Hatoum, 2006, p. 54).

Com Nael contando a sua própria história a partir de fragmentos de sua memória, constrói um tipo de material clínico, o que permite identificar certas características da pesquisa em psicologia clínica, tais como Pinto (2004, p. 75) relata:

Essa metodologia de investigação visa principalmente detectar as regularidades contidas em um conjunto de elementos que, direta ou indiretamente, poderão adquirir uma significação para a teoria, seja porque ainda não foram integradas na construção teórica ou vêm a confirmar hipóteses teóricas específicas. Assim, essa forma de pesquisa cientifica busca realizar uma integração teórica sobre as relações entre eventos ou processos. Alguns sentidos de tais relações podem ser particularidades que só fazem sentido dentro do processo específico.

No entanto, a respeito da utilização de um método teórico-clínico para a análise de um texto literário, deve-se destacar:

Sabemos que não se trata de uma prática, já que nada nos permite pensar na análise da neurose de transferência de uma narrativa, e ao mesmo tempo também não constitui uma clínica – entendida esta como reflexão sobre a prática. Isso quer dizer que quem utiliza a Psicanálise, tenha ou não se autorizado como analista para, no caso específico, abordar textos literários, utiliza somente um aspecto da Psicanálise, sua teoria, quer dizer, seu aspecto imaginário (Villari, 1997, p. 123).

Então, a grande justificativa do uso de tal método sustenta-se, principalmente, por possibilitar uma forma de análise mais leve e criativa do que aquela prevista na análise de um caso real, haja vista não ser necessário o evidente compromisso ético que um material clínico exige (Berttran & Gomes, 2013). O texto literário, que se configura como uma representação da realidade (Candido, 2011), pode proporcionar um material de ficção capaz de contribuir com a formação do discente em psicologia clínica pela maior leveza do conteúdo manipulado, além de consistir em outro modo de incentivar o interesse dos alunos a fim de testarem seus próprios conhecimentos teóricos (de-Farias, Ribeiro, Coelho & Sanabio-Heck, 2014).

Narrativa, identidade e memória

Nas palavras de Souza (2014), pode-se dizer que a narrativa da obra “é o ponto de encontro entre memória e identidade” (p. 188), pois é por meio do discurso que o passado é mobilizado para Nael construir ou reconstruir a sua identidade. O personagem decide percorrer os trilhos das memórias familiares com a finalidade de desvendar a sua origem, preenchendo os vazios de sua história que o impediam de conhecer, entender e elaborar quem ele é.

Stuart Hall (2015) considera a identidade como uma construção discursiva num constante processo de aperfeiçoamento. As representações sociais, conforme explanam Guattari e Rolnik (1996), sobre a produção de subjetividade, são fabricadas a partir das experiências vividas no encontro com o outro, das interações sociais. Tais papéis sociais possuem um caráter mutável, isto é, podem ser repensados e alterados de acordo com o contexto histórico e social (Hall, 2015).

Hall (2015) argumenta que o viver em sociedade exige do humano a configuração de um sistema e dentro desse sistema são criados papéis que os indivíduos são determinados a assumirem. Assim, a identidade pode surgir para preencher uma falta, pois para a funcionalidade e manutenção desse sistema, espera-se que as pessoas ocupem seus lugares, caso contrário esse sistema pode se tornar um caos. Esses lugares sociais são os nós capazes de unirem os diversos discursos e práticas culturais porque funcionam como pontos de encontro (Souza, 2014). A ideia de sistema discutida pode ser pensada de forma macro ou micro, desde a sociedade como um todo até mais restritamente as relações familiares.

Segundo Candau (2011), a memória configura-se como a faculdade humana responsável pela conservação da história de cada indivíduo, do seu passado, das suas experiências vividas. Todavia, esse passado aloca-se no inconsciente sendo afetado pela realidade psíquica de cada pessoa, ou seja, as lembranças são registros imperfeitos da realidade. Nem todas as lembranças podem ser evocadas, pois há uma espécie de seletividade afetiva, envolvendo os significados atribuídos as memórias (Souza, 2014).

Para Souza (2014), “a memória é abordada como fonte de referentes identitários, como pilar a partir do qual se edificam as identidades, cujas vigas mestras são buscadas no passado e surgem sob a forma de lembranças” (p. 189). Assim, observa-se a memória como uma ferramenta apta e essencial para contribuir na construção das identidades, trazendo o passado para o presente (Candau, 2011).

De modo a complementar os pensamentos de Hall acerca da identidade e a questão da memória, na tentativa de melhor compreender a busca de Nael, torna-se interessante discorrer sobre alguns pressupostos teóricos da psicanálise e mais especificamente da psicanálise de casal e família. Mostra-se, assim, pertinente pensar a construção da identidade nas relações familiares, sobre a história, o funcionamento e a dinâmica da família, os papéis que cada um ocupa e desempenha e como se influenciam mutuamente.

Contribuições da psicanálise de casal e família

O inconsciente é a força primordial que confere identidade social ao indivíduo (Nasio, 2013). Escolhas julgadas como deliberadas foram e são, na verdade, ditadas pelo inconsciente, desde simples decisões como escolher a roupa para o trabalho até as escolhas mais complexas como, por exemplo, o parceiro amoroso (Freud, 1915/2006). Para tal, o inconsciente se utiliza da repetição enquanto um mecanismo psíquico (Zimerman, 2010). Por meio da repetição, então, o inconsciente impele o sujeito a repetir os comportamentos bem-sucedidos como, também, os comportamentos de fracasso (Levinzon, 2010).

Nasio (2013. p. 34) defende ser o indivíduo aquilo que ele repete, ou seja, a pessoa é o seu passado em ato:

Eu gostaria de terminar esse capítulo com duas fórmulas que definem a identidade produzida pela repetição: “Repito, logo sou” e “Sou aquilo que repito”. No primeiro caso, a identidade é a sensação de ser eu mesmo, consolidada por todas as repetições que opero na vida; no segundo, a identidade é o ser, a coisa ou o ideal que, ao longo dos anos, se perpetua e se afirma como sendo uma parte de mim.

Para a psicanálise de casal e família, Laguna (2014) argumenta que a subjetividade humana se constrói no espaço familiar e social, ou seja, o inconsciente de cada pessoa leva consigo a marca de outros inconscientes a partir dos vínculos familiares e/ou sociais. Segundo Kaës (2014), a família se organiza por meio de alianças inconscientes, compostas por pactos e contratos variados entre seus membros que permitem o estabelecimento do processo de transmissão psíquica geracional a fim de partilharem conteúdos psíquicos e para que cada um possa desempenhar seu papel no grupo familiar.

Nessa perspectiva, tem-se, assim, a hipótese central de ser o material da vida psíquica algo passível de transmissão entre as gerações, influenciando na formação e na dinâmica familiar (Silva, Rocha, Bobado, Necker & Lorenzetti, 2015). Tal material psíquico transmitido entre as gerações, o qual o sujeito se submete através de alianças inconscientes, seja para o seu bem-estar ou para o seu sofrimento, trata-se de afetos, representações, valores, mitos, fantasias entre outros (Gomes & Zanetti, 2009).

Transmite-se, preferencialmente, entre gerações os conteúdos nomeados como negativos, isto é: um luto não elaborado, um caso de violência como um estupro, um caso de abandono ou vergonha, um ódio excessivo e muitos outros (Rehbein & Chatelard, 2013). Conteúdos de aspectos traumáticos, patológicos e sintomáticos com os quais uma determinada geração não conseguiu lidar e, então, transmitiu para a geração seguinte e assim sucessivamente (Eiguer, 1998). Joubert (2008) explica que tal herança acaba sendo inscrita a força nessa geração seguinte, fazendo com que os herdeiros passem a seguir um destino não escolhidos por eles, mas sim pela geração precedente. Esse mecanismo de transmissão recebe o nome de transmissão psíquica transgeracional (Garcia, Pires e Penna, 2010).

Entretanto, não se transmite somente o negativo, haja vista que há também aspectos mais fáceis de elaboração, pois estão ligados a elementos latentes e conscientes (Scorsolini-Comini & Santos, 2016). Esse segundo mecanismo de transmissão recebe o nome de transmissão psíquica intergeracional (Magalhães & Féres-Carneiro, 2004). Uma família em que estudar é considerado como importante, provavelmente, transmitirá para as gerações seguintes como conteúdo fácil de elaboração o ato de estudar, por exemplo.

Identidade e relações familiares: o percurso de Nael

Candau (2011) defende que “a memória familiar serve de princípio organizador da identidade do sujeito em diferentes modalidades” (p. 141). A identidade de Nael é construída ou restituída a partir da ação da personagem de narrar a sua própria história, num mergulho nas relações conflituosas de sua família. O narrador moderno, explica Benjamin (1994), recolhe os cacos da sua vida, organizando-os de alguma maneira para contar sua história. Nael narra a sua história dos recortes de sua vida, de suas lembranças.

Nesse sentido, torna-se interessante analisar a história, a dinâmica e o funcionamento da família de Nael, para entender o papel de cada personagem. Zana e seu pai, Galib, possuíam uma relação muito próxima. Seu pai era o seu protetor. Pouco é contado sobre os dois e a mãe de Zana que morreu quando ela era pequena ainda, no entanto, este fato, possivelmente, contribuiu para uma maior aproximação entre pai e filha.

Halim surge e se apaixona por Zana. Os dois se casam. Galib decide viajar de volta para o seu país o Líbano. Com a ida de Galib, Halim assume seu lugar nos negócios, assim como o protetor de Zana. Entretanto, o pai de Zana morre no Líbano e ela entra em luto. Zana pede ao marido filhos. Nael conta sobre a morte de Galib e o pedido de Zana para Halim:

Duas cartas, depois nada. Em Biblos, dormindo na casa perto do mar, ele morreu. Mas a notícia tardou a chegar, e, quando Zana soube, se trancou no quarto do pai, como se ele ainda estivesse por ali. Depois balbuciou para o esposo: “Agora sou órfã de pai e mãe. Quero filhos, pelo menos três” (Hatoum, 2006, p. 56).

Em um primeiro momento Halim nega e ulteriormente acaba aceitando o pedido por vê-la tão infeliz com a morte do pai. No seguinte trecho pode-se observar a suposição da aproximação entre Zana e Galib nas palavras de Halim, após ele morrer:

“Chorava que nem uma viúva”, disse-me Halim. “Se esfregava nas roupas do pai, cheirava tudo o que tinha pertencido ao Galib. Ela se agarrou às coisas, e eu tentava dizer que as coisas não têm alma nem carne. As coisas são vazias... mas ela não me ouvia.” (Hatoum, 2006, p. 56).

Quando os gêmeos nasceram, Zana identificou-se fortemente com Omar ao descrevê-lo como um bebê frágil que precisava muito mais dos seus cuidados em comparação a Yaqub. Nael relata: “Cresceu cercado por um zelo excessivo, um mimo doentio da mãe, que via na compleição frágil do filho a morte iminente” (Hatoum, 2006, p. 67).

Zana estabelece uma relação simbiótica com o filho. Uma relação próxima da qual tinha com seu pai, porém esta acontece de modo patológico. Ela não consegue se desvincular do filho. Neste sentido, pode-se retomar a proposta de Winnicott (1963/2007) para o desenvolvimento emocional humano. Este autor indica que este processo ocorre a partir de três fases: Dependência Absoluta, Dependência Relativa e Rumo à Independência. Na fase de dependência absoluta mãe e lactente são um, pois este depende inteiramente dos cuidados da mãe ou de quem faça tal papel. A mãe suficientemente boa tem a tarefa de suprir o máximo de necessidades possíveis do filho para que este não vivencie o que Winnicott chama de angústias de aniquilamento.

Todavia, após o primeiro ano de vida do lactente, este, com o desenvolvimento natural dos processos de maturação, começa a caminhar para uma dependência relativa em relação à figura da mãe até uma maior independência, pois Winnicott assinale que o ser humano nunca conseguirá ser totalmente independente das relações humanas (Filho, 2011). Dessa maneira, a mãe deve ir permitindo progressivamente essa desvinculação de um estado de dependência absoluta para um rumo à independência. Permite-se a criança se diferenciar da mãe e construir de maneira saudável a sua própria personalidade, um self verdadeiro (Neto, 2011).

No caso da relação de Omar com Zana, observa-se que Omar parece desenvolver um falso self. Para Winnicott (1960/2007), o falso self tem a função “de ocultar e proteger o self verdadeiro, o que quer que este possa ser” (p. 130). Indica, sobre o papel da mãe, que aquelas que falham frequentemente em atender às necessidades do bebê acabam por substituir o que seria o gesto espontâneo deste por uma submissão ao meio externo, dando início à constituição de um falso self.

O fato de Zana não poder se apresentar como a necessária “mãe suficientemente boa” pode ser decorrente dela, provavelmente, sentir-se culpada pela morte do pai, tendo a fantasia de que se não tivesse casado, talvez, o pai ainda estivesse vivo. Tem-se os primeiros conteúdos negativos: um grande sentimento de culpa e um luto não elaborado. O que resta para Omar é tornar-se o caçula, assumindo a identidade do mulherengo e festeiro, propondo-se a não estabelecer laços afetivos por não conseguir se desvincular da mãe. Omar passa a repetir os comportamentos de fracasso que o entrega a tal identidade. Pode-se dizer que tais comportamentos repetitivos são o significante da teoria lacaniana. Nasio (2013, p. 24) explana:

Para que haja repetição, é preciso haver um agente humano, uma consciência que, primeiro, identifique um acontecimento e, depois, o extraia do fluxo incessante da vida e conte todas as vezes que ele vem à tona. Em outras palavras, nosso pensamento isola um fato relevante, nomeia-o e aponta o número de vezes que ele se reproduz. É assim que transformamos um simples fato em significante, termo central na obra de Lacan. O que é um significante? Um significante é todo acontecimento, todo o ser ou toda coisa que formalizo numa entidade suscetível de ser contabilizada.

O primeiro acontecimento, assim, é modelo para o segundo, o segundo para o terceiro e assim por diante. Omar não trabalha, sai todas as noites, relaciona-se sexualmente com várias mulheres, volta tarde. Zana e Domingas cuidam dele na rede ao chegar bêbado ou quando contrai alguma doença sexual. Cria-se um ciclo, contabilizado por Zana, Domingas, Halim, Yaqub, Rânia e pelo próprio narrador. O corte com a mãe não é feito, assim Omar não pode se relacionar afetivamente com outra mulher. Ninguém pode tomar o lugar de Zana, nessa relação mãe-filho, como Halim tomou de Galib. Caso esse laço se desfaça, na fantasia de Zana, a consequência pode ser alta como foi em relação à perda de seu pai. As tentativas de Omar em dar voz ao seu self verdadeiro são frustrantes, ele acaba tendo de fugir da mãe e ainda assim apenas consegue se distanciar fisicamente da mãe. Os laços inconscientes continuam firmes, pois Omar termina como um fugitivo e desorganizado psiquicamente. Sobre as tentativas de Omar ao buscar se desvincular da mãe, podem ser resumidas no seguinte trecho, quando estava apaixonado por outra mulher que não Zana:

“O filho da Zana! Vai e volta, bêbado de indecisão, um molenga no momento de soltar as amarras”, lamentou Halim. “Resistiu por um bom tempo, mas no fundo eu sabia que ele não ia conseguir. Tinha tudo nas mãos, no coração: o amor, uma mulher colossal… Tinha ouro puro, só faltou coragem. mas bem que tentou. E como! até enganou o Zanuri alcagüete. quanto dinheiro jogado no lixo!” (Hatoum, 2006, p. 145-146).

Em relação aos comportamentos da mãe para com o filho ao sabotar cada paixão de Omar, pode ser verificado nesse outro trecho no qual seus ciúmes excessivos são visíveis, em sua festa de aniversário quando seu filho apresenta sua mais nova namorada, a bela Dália:

Mas Omar cometia o erro de trair a mulher que nunca o havia traído. Zana se remexeu na cadeira ao ver o filho aproximar-se de Dália, o foco de luz da lanterna crescendo no rosto da dançarina, até que ele, exibicionista e enamorado, beijou teatralmente a amante no meio da sala e depois pediu aplausos para ela. Todos bateram palmas ao som de um batuque tocado pelo viúvo Talib. Só Zana ficou alheia a tanta homenagem. Não quis que cantassem o parabéns; desprezou o bolo que ela e Domingas tinham preparado e deixou acesas as velinhas com que Halim desenhara o nome da esposa. O nome de Zana permaneceu aceso sobre o bolo confeitado, e a imagem das chamas daquelas velas vermelhas ainda se acende com força na minha memória. Halim entendeu e subiu para o quarto. Minha mãe me fez um sinal, que eu a acompanhasse, mas disfarcei, fiquei por ali. Não havia mais música: Omar e Dália se arrastavam na sala, grudados, enquanto Zana, sentada na cadeira de balanço, o leque na mão imóvel, acompanhava a dança silenciosa dos dois (Hatoum, 2006, p. 102).

Já a história de Yaqub parece ser uma repetição da história de seu pai. Halim foi abandonado pelo tio em Manaus e teve de se virar sozinho. O pai tenta transmitir o seu conteúdo transgeracional para ambos os filhos. Contudo, Zana protege Omar e permite apenas que Yaqub seja enviado para o Líbano. Yaqub, então, é abandonado pela família de maneira semelhante ao que ocorreu com seu pai. O conteúdo negativo transmitido nesse caso refere-se ao abandono.

Quando Yaqub volta, ele age como o pai no passado e procura se virar sozinho, recusando a ajuda de todos. Decide ir para São Paulo estudar e torna-se um importante engenheiro. Conquista que se deu sem a ajuda de ninguém, por seus próprios esforços. Embora tenha recebido tal herança psíquica, Yaqub parece conseguir lidar com ela, já que vivencia situações difíceis em sua vida, mas consegue transformá-las em algo construtivo. Com isso, repete comportamentos bem-sucedidos que lhe conferem a identidade de estudioso, calado e aquele que se tornou alguém importante.

Rânia demonstra ter se identificado inicialmente com a mãe ao se apaixonar por um homem como Halim, mas Zana também não permite que ela escolha livremente os seus parceiros. Acaba seguindo os passos do pai, inclusive tomando seu lugar nos negócios. Halim parece ir perdendo pouco a pouco o seu lugar na família, fato este que sempre temeu desde o pedido de Zana para ter filhos. Omar ocupa seu lugar com Zana, Yaqub assume sua herança e Rânia os negócios.

Nael é representado na obra pelo duplo: Yaqub e Omar (Souza, 2014). Os gêmeos simbolizam o grande conflito interno do narrador-personagem. O duplo configura-se pela dualidade dos irmãos, pelos opostos de seus lugares. Empregado ou filho da casa e, assim, patrão? Filho de Omar ou de Yaqub? Sem destino como Omar ou alguém com um futuro como Yaqub? “Festeiro” e “mulherengo” como Omar é descrito no livro ou estudioso como Yaqub? Não sabe quais lugares escolher, quem realmente é. O mais provável é que Nael seja filho de Omar, pois sua mãe, Domingas, em seu leito de morte conta alguns segredos para o filho, dentre eles:

Senti suas mãos no meu braço; estavam suadas, frias. Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou a cabeça, Murmurou que gostava tanto de Yaqub… Desde o tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumado quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano. “Com o Omar eu não queria… Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado… Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão” (Hatoum, 2006, p. 241).

Enquanto todos estavam vivos na casa, Nael teve de se comportar como secundário em sua própria história. Embora ele tentasse montar o quebra-cabeça, sempre atento às conversas da casa, especialmente às de Halim e Domingas: “Contava esse e aquele caso, dos gêmeos, de sua vida, de Zana, e eu juntava os cacos dispersos, tentando recompor a tela do passado” (Hautom, 2006, p. 101), a construção de sua identidade era proibida pela família, inclusive por sua própria mãe. Domingas somente revelou o segredo ao filho sobre qual dos gêmeos ser realmente seu pai, quando ela estava em seu leito de morte. Fato este não revelado por Nael em sua narrativa. Sobre o segredo familiar, Ramos (2006) argumenta que frequentemente as famílias guardam segredos, que se ligam a situações vergonhosas, de desvios ou impossibilidades de seus membros ou dos antepassados, como questões com a sexualidade, morte, traições, transtornos mentais e outros.

No caso da relação doentia entre Zana e Omar, pode-se levantar a hipótese de uma espécie de adultério cometido por Omar ao ter um filho com Domingas, tornando-se um segredo familiar que não pode ser dito entre eles. Após reconstruir sua história a partir de todas as memórias colecionadas e coletadas, Nael, por fim, encontra o seu lugar como professor, ou seja, como um filho da casa. Sobre esse lugar assumido pelo narrador-personagem, constata-se no seguinte trecho:

Eu acabara de dar minha primeira aula no liceu onde havia estudado e vim a pé para cá, sob a chuva, observando as valetas que dragavam o lixo, os leprosos amontoados, encolhidos debaixo dos oitizeiros. Olhava com assombro e tristeza a cidade que se mutilava e crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do rio, irreconhecível com o seu passado (Hautom, 2006, p. 197).

Dessa forma, Nael parece se identificar com a herança de Yaqub, de modo a negar a de Omar. O comportamento bem-sucedido de estudar o levou a ser professor. Depois de cumprir diariamente todas as suas tarefas enquanto empregado da casa, Nael voltava para casa com o desejo de estudar como Yaqub e não o de festar como Omar fazia. Este pode ser considerado o conteúdo intergeracional transmitido de Yaqub para Nael, pois “estudar” é um conteúdo transmitido passível de elaboração, diferentemente de conteúdos brutos como um luto não elaborado, um excessivo sentimento de culpa e um abandono. Assim, Nael decide assumir o papel de patrão e não mais empregado da casa (Souza, 2014). Nael, ao voltar-se para o passado, pôde entender a história, a dinâmica e a estrutura de sua família, para que pudesse escolher qual lugar ocupar e construir verdadeiramente a sua identidade. Encontrou as respostas nas memórias de sua história, agora com bem menos lacunas.

 

Considerações finais

A literatura enquanto uma arte capaz de expressar e representar a vida consegue humanizar, deixar marcas profundas em seus leitores (Candido, 2011). Dois irmãos narra uma história que reflete a realidade de inúmeras famílias com suas relações complexas e conflituosas. Além disso, por meio desta análise foi possível verificar a importância das relações familiares na construção do psiquismo de cada indivíduo, pois a partir dessa investigação pode-se detectar certas regularidades acerca da história, da estrutura e da dinâmica familiar de Nael presentes no material contido na obra que puderam confirmar hipóteses teóricas específicas (Pinto, 2004), neste caso da psicanálise de casal e família.

Desse modo, observa-se que o método teórico-clínico aplicado se mostrou pertinente, uma vez que o próprio Freud se utilizou de tais recursos para a construção de suas hipóteses teóricas, como a própria peça de teatro grega Édipo Rei, escrita por Sófocles por volta de 427 A.C., para pensar a questão da estrutura familiar (Teixeira, 2005). Deve-se ressaltar, novamente, que distintamente do compromisso ético exigido por um estudo de caso clínico real, um material de ficção permite que os dados sejam manipulados com mais leveza e criatividade, pois não há necessidade do referido cuidado ético (Henriques & Gomes, 2005; Scorsolini-Comin & Santos, 2012). Tendo essa maior liberdade com o material de análise, os alunos podem se motivarem a testarem seus conhecimentos teóricos (de-Faria et al., 2014), o que pode contribuir significativamente para a sua formação, especialmente que em muitos cursos de graduação em psicologia a prática clínica só acontece nos últimos anos do curso com o estágio.

 

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Endereço para correspondência
Maíra Bonafé Sei
E-mail: mairabonafe@gmail.com

Enviado em: 26/06/2016
1ª revisão em: 24/10/2016
Aceito em: 28/11/2016

 

 

1 Psicólogo pela Universidade Estadual de Londrina.
2 Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pelo IP-USP, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e Psicanálise – Universidade Estadual de Londrina.

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