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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.21 no.1 Porto Alegre jul. 2017

 

ARTIGOS

 

Terapia familiar como um espaço de ressignificação das relações

 

Family therapy as a redefinition of space relations

 

 

Mara Lúcia Rossato1

Programa de Terapia Sistêmica de Casal e Família da Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Associação Gaúcha de Terapia Familiar - AGATEF
Associação Brasileira de Terapia Familiar – ABRATEF

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretende-se, neste artigo, destacar as possibilidades de diálogos ente duas teorias, contribuindo assim para a prática clínica. Abordaremos o socioconstrucionismo e as afinidades com a teoria da aprendizagem na perspectiva da autoria do pensamento. Entendendo o socioconstrucionismo como uma abordagem teórico-clínica que enfatiza os processos relacionais e estimula as pessoas a serem capazes de construír a si mesmas e o mundo em que vivem, entendendo a aprendizagem como processo de produção de sentido onde o sujeito é protagonista e tem papel ativo, podemos pensar a terapia familiar como um espaço de aprendizagem e ressignificação das relações. O terapeuta pode operar na terapia, tal qual o ensinante opera na relação de aprendizagem: sendo um facilitador das competências. Além disso, o processo terapêutico pode se configurar numa troca onde família e terapeuta se enriquecem. Tanto o ensinante quanto o terapeuta, nestas abordagens, precisam reconhecer a legitimidade do outro e possibilitar a autoria. Dessa forma, a terapia torna-se uma construção conjunta e não um processo linear onde o terapeuta detém o conhecimento e vai transmitir à família. Nesta perspectiva, o terapeuta precisa estar sempre curioso e assumir uma postura de questionamento e reflexão a respeito do que está estabelecido, abrindo assim, espaço para o novo e para a criação.

Palavras-chave: Socioconstrucionismo, Autoria do pensamento, Terapia familiar.


ABSTRACT

It is intended in this article highlight the possibilities of dialogues between two theories, thus contributing to the clinical practice. We discuss the social constructionism and the affinities with learning theory in view of the authorship of thought. Understanding social constructionism as a clinical theoretical approach that emphasizes the relational processes and encourages people to be able to build themselves and the world they live in; understanding learning as meaning production process where the subject is the protagonist and has active role, we may think family therapy as a space for learning and redefinition of relations. The therapist can operate in therapy, like the teaching being active in learning relationship: being a facilitator skills. Moreover, the therapeutic process may be set on an exchange where family and enrich therapist. Both the teaching being as the therapist, these approaches must recognize the legitimacy of the other and enable the authorship. Thus, the therapy becomes a joint construction and not a linear process where the therapist has the knowledge and will convey to the family. In this perspective, the therapist must always be curious and take a questioning attitude and reflection as to what is established, thus opening space for the new and create.

Keywords: Social constructionism, Authorship of thought, Family therapy.


 

 

“Dizem que a vida é para quem sabe viver, mas ninguém nasce pronto.
A vida é para quem é corajoso o suficiente para se arriscar
e humilde o bastante para aprender”.
(Carice Lispector)

 

Introdução

Sempre fui inquieta e curiosa por aprender. Uma inquietação produtiva que me motiva em direção à busca do conhecimento. Durante todos os anos de trabalho como psicóloga, pouco havia me detido para estudar mais profundamente questões relativas à aprendizagem. Tem sido enriquecedor trabalhar estas questões a partir da perspectiva da autoria do pensamento.

É gratificante, ainda, ter a oportunidade de integrar conceitos e noções que venho utilizando na prática clínica cotidiana. Cada vez mais reforça em mim a ideia de que todo campo de conhecimento está entrelaçado e que dividimos em diferentes áreas apenas por uma limitação humana; limitação esta que nos impede de dar conta de toda a complexidade do ser humano e suas relações.

Lendo e estudando textos a respeito de socioconstrucionismo, senti uma tranquilidade preocupante. Por um lado a certeza de me deparar com noções teóricas e conceitos que fazem muito sentido para mim, trazendo-me a sensação de encontrar um caminho seguro a seguir. No entanto, por outro lado, se por ventura tivesse a pretensão de ser uma terapeuta socioconstrucionista, ficar tranquila com estes conceitos é exatamente o oposto que se espera, pois uma das premissas desta abordagem é exatamente a postura de constante questionamento sobre as verdades estabelecidas. Seria, portanto, nas palavras de Gracia (1994) “construccionista a medias” (p. 39).

 

Socioconstrucioismo

O Construcionismo Social apresenta-se como uma abordagem teórica que fundamenta sua ênfase sobre processos relacionais e discursivos, impulsionando as pessoas a construírem a si mesmas e o mundo em que vivem. Nossas histórias são socialmente construídas, levando em consideração as diferentes vozes e experiências das quais fizemos parte. Internalizamos estas vivências que contribuem para a reconstrução de significados. O Construtivismo teve uma importante função no advento da pós-modernidade, que foi afastar a terapia familiar de sua crença na objetividade, e sua consequente busca pela verdade (Nichols, 2007).

Segundo Gergen (1997), o construcionismo é uma forma de investigação social que tem como principal preocupação o esforço na busca de encontrar explicação para os processos pelos quais as pessoas descrevem ou dão conta do mundo ao qual elas próprias estão inseridas.

A maioria dos autores que escrevem sobre construcionismo social, aponta duas premissas fundamentais. Utilizaremos aqui as ideias propostas por Guanaes (2006).

Ele refere como a primeira das premissas, o lugar de destaque que a linguagem ocupa nas concepções teóricas construcionistas. Entende-se que todas as realidades são construídas socialmente, e o campo onde se operam estas construções é a linguagem. A segunda, que está diretamente relacionada à primeira, diz respeito ao caráter de crítica das verdades estabelecidas, ou seja, uma postura reflexiva e de autocrítica constante.

Na visão socioconstrucionista, o mundo é entendido como um meio de intercâmbio e interlocução. Através desta perspectiva, elimina-se a tradicional dicotomia entre sujeito e objeto, entendendo-se que estas duas instâncias não existem em si mesmas, independentes uma da outra. Estão interligadas. Portanto, instaura-se aqui um questionamento em relação ao próprio conceito de objetividade e neutralidade.

Iñiguez (2004) afirma que “... o construccionismo se presenta como una postura fuertemente des-reificante, des-naturalizante, y des-esencializante, que radicaliza al máximo tanto a natureza social de nuestro mundo, como la historicidad de nuestras prácticas y de nuestra existência” (p. 15). Percebe-se uma postura de constante questionamento e crítica em relação ao que se considerava como obvio e natural. Esta seria uma de suas principais características, obrigando-nos a sempre repensar nossas supostas certezas.

Iñiguez (2004) aponta alguns elementos básicos necessários para que se tenha uma postura socioconstrucionista. São eles o antiessencialismo, o relativismo/antirrealismo, o questionamento das verdades geralmente aceitas, a determinação cultural e histórica do conhecimento, a linguagem – condição de possibilidade, o conhecimento como uma produção social e também a construção social.

- Antiessencialismo: não existem objetos naturais. As pessoas e o mundo social são o resultado, o produto de processos sociais específicos.

- Relativismo/Antirrealismo: A realidade não existe de forma independente do conhecimento que podemos produzir sobre ela. Não se pode separar a realidade de qualquer conhecimento que se possa produzir sobre esta mesma realidade.

- Questionamento das verdades geralmente aceitas: é necessário que se estabeleça um constante questionamento sobre o que se pensa ser a verdade, numa atitude de dúvida constante sobre o que aprendemos a respeito do mundo, das pessoas e de nós mesmos.

- Determinação cultural e histórica do conhecimento: precisamos estar atentos ao fato de que toda a concepção de mundo e de sociedade depende também do contexto social, histórico e cultural que se está inserido. “Las distintas concepciones del mundo son dependientes de su contexto cultural y histórico, es decir que toda forma de conocimiento en una cultura concreta y en una época histórica dada, es peculiar y particular” (Iñiguez ,2004, p. 21),

- Linguagem – condição de possibilidade: A linguagem tem seu lugar de importância nesta concepção à medida que se constitui não só como uma referência de expressão, mas também como uma forma de se atuar e, portanto, construir o mundo. Constitui-se como condição prévia do pensamento, quer seja ele individual ou social.

- Conhecimento como uma produção social: toda relação entre conhecimento e prática social é uma relação que exerce influência mútua, é o resultado de uma construção coletiva. Para Iñiguez (2004), todo saber, e conhecimento social pode desencadear determinados modos de ação social ao mesmo tempo em que exclui outros.

- Construção social: as práticas sociais criam estruturas e instituições sociais que, por sua vez, influenciam e condicionam as interações. “No hay pues mundo ni vida social sin la existência de las práticas que los constituyen de donde se muestra el enorme valor de su capacidade constitutiva” (Iñiguez, 2004, p. 23).

Não é nem um pouco simples assumirmos uma postura socioconstrucionista em nossa vida cotidiana e nem em nossas práticas profissionais, em especial no que diz respeito às áreas de educação e psicologia, pois em geral temos a tendência de utilizarmos parâmetros que nos apontam, supostamente, uma verdade estabelecida, aquilo que é certo ou errado, aquilo que consideramos adequado nas relações.

Em relação a isto, Gracia (1994) faz referência a algumas questões que define como obstáculos que dificultam esta postura. O primeiro obstáculo do qual ele faz referência é exatamente à dicotomia entre sujeito e objeto. É difícil deixar de considerar estas duas entidades como independentes. O segundo obstáculo apontado diz respeito à concepção representacionista do conhecimento. Compartilhar esta noção significa aceitar uma verdade pré-existente. O terceiro fator de impedimento está relacionado justamente à crença na existência de uma verdade. Em suas palavras, “la creencia de que se pueden discriminar los enunciados en función de su valor de verdad” (p. 40). Por último, o quarto obstáculo é colocado na noção de que o cérebro é a instância que produz o conhecimento e constitui-se como a sede do pensamento. “... cada uno de estos obstáculos basta por si mismo para mermar considerablemente nuestra coherencia construccionista, pero tomados em bloque, eliminam por completo cualquier atisbo de construccionismo” (Gracia, 1994, p. 40).

 

Autoria do pensamento

Fernandez (2001) define autoria “como o processo e o ato de produção de sentidos e de reconhecimento de si mesmo como protagonista ou participante de tal produção” (p. 90). Isto significa assumir uma atitude que não é passiva diante da realidade. Ser autor diz respeito a não reproduzir simplesmente a realidade, independente da forma como se está inserida nesta realidade.

Segundo Fernandez (2001) para que exista autoria de pensamento é necessário ter condições de reconhecer um pensamento próprio. É isso que nos diferencia do outro e que possibilita a mudança em uma ação. Prandini (2003) ressalta a importância de se reconhecer a legitimidade do outro e também do próprio desejo para que alguém se autorize a criar. Assim, teremos condições também de nos oferecermos como referência e não como modelo. Modelo induz à imitação, referência propicia a reflexão e o questionamento.

Aprender pressupõe passagem de tempo. Para Fernandez (2001), aprender também é uma forma de se recolocar frente ao passado.

Saber, ter conhecimento, nos traz poder e isto pode nos conduzir à autonomia. Desenvolvendo curiosidade, tornamo-nos questionadores. As indagações nos ajudam a refletir e tentar encontrar alternativas e isto proporciona uma nova maneira de ver e entender a realidade que os cerca, contribuindo para criar ou recriar diferentes padrões de interação com esta realidade. Vai-se construindo a possibilidade de reconhecer que somos capazes de transformar a realidade e nós mesmos.

Segundo Bollas (1989, In Fernandez, 2001) “... O saber não é instintivo, nem um bloco irremovível. Pelo contrário, esse saber, que embora careça de palavras conceituais para ser expresso, constrói-se pela experiência de vida na história do sujeito. O saber está sempre em construção” (p. 65).

Autoria de pensamento quer dizer liberdade, autonomia e criatividade.

Kastrup (1999) nos diz:

O domínio cognitivo não é um domínio de representações, mas um domínio experiencial e emergente das interações e dos acoplamentos do organismo. Não há relações objetivas com o ambiente, independentes da posição, da direção e da história, mas estas são especificadas pela estrutura do organismo. No entanto, a estrutura condiciona, mas não determina as ações, posto que ela própria é permeável a múltiplas perturbações, cujos efeitos são inantecipáveis. (p. 128).

Quando nos ocupamos em direção a tomar consciência de todas as etapas do nosso processo de aprender, estamos construindo autoria de pensamento. Isto de estabelece de acordo com um tempo próprio. O tempo de aprender. Este tempo contribui para uma disponibilidade interna para a mudança. Esta mudança se concretiza a partir do potencial e do investimento próprio em conjunto com o outro e a realidade.

 

Terapia familiar

Não pretendo fazer aqui um apanhado histórico, apenas ressaltar alguns aportes teóricos para situar a terapia familiar no contexto deste artigo.

A terapia familiar surge por volta da década de 50 trazendo uma nova forma de pensar e fazer clínica. Fundamentada a partir da teoria geral dos sistemas e da teoria da comunicação, traz a concepção de família enquanto um sistema, regido por determinadas regras que tem como propósito manter o equilíbrio de seu funcionamento.

 

Algumas considerações

Já fiz referência, no início, da minha inquietação. Acredito que esta seja uma marca em mim e nas minhas relações, pois não me conformo ou não me satisfaço tranquilamente com o estabelecido. Em geral busco sempre imprimir uma marca de diferença. Durante minha trajetória profissional sempre estive muito envolvida com questões sociais e políticas e ficava angustiada no exercício de minha prática clínica com os limites impostos pelas técnicas. O contato com a teoria sistêmica me deixou mais à vontade, pois considera de fundamental importância as relações e o que elas produzem. Além disto, também entende que as interações entre as pessoas estão influenciadas, não só pela trajetória individual, mas também pelo familiar, pelo contexto histórico, social e cultural no qual as pessoas estão inseridas.

Poder estudar um pouco mais profundamente os conceitos do construcionismo social e as noções de aprendizagem inventiva, produziu uma verdadeira revolução na minha forma de pensar o mundo, o conhecimento e, consequentemente minha prática clínica.

É possível estabelecer uma clara conexão entre um processo terapêutico e um processo de aprendizagem e produção de conhecimento ou, quem sabe, construção de um conhecimento em conjunto. Nenhum terapeuta é capaz de deter qualquer verdade a respeito de quem quer que seja. É absolutamente necessário ter flexibilidade suficiente para respeitar e valorizar aquilo que cada um tem de potencial, de bagagem e experiência sobre si mesmo. Não precisamos descobrir nada sobre as pessoas que nos procuram em busca de ajuda para então definir a melhor forma de ajudá-las. É necessário, sim, construir juntos um espaço de questionamento e reflexão sobre os padrões interacionais que estão estabelecidos e são repetidos, buscando novos padrões.

Cecchin (1994) comenta: “Fue muy duro renunciar a esa idea, ya que pensábamos que la tarea del clínico o del científico residia justamente em descubrir algo: solo después de um buen descubrimiento, de um descubrimiento confiable, seríamos capazes de obrar adecuadamente desde el punto de vista médico y ético” (p. 337).

É necessário dar-se conta que qualquer conclusão que se chegue a respeito de algo, tem a influência de quem concluiu. Ou seja, em terapia, vai se conhecer algo das pessoas ou das famílias dependendo daquilo que o terapeuta busca. Portanto a terapia é uma co-construção entre a família e o terapeuta.

Conforme esta perspectiva, torna-se produtivo que o terapeuta arrisque mais, estando disposto a repensar suas convicções, abrindo espaço para a produção de um conhecimento em conjunto. É necessário ser mais curioso e também propiciar desconforto suficiente para que as pessoas também exercitem mais a sua curiosidade construindo, assim diferentes caminhos possíveis. Quem vem buscar ajuda de um terapeuta certamente o faz por algum desconforto ou descontentamento ante alguma situação. Assumindo uma postura de curiosidade em relação às conexões que mantêm este padrão de desconforto, cria-se a possibilidade de buscar novas formas que podem se tornar úteis na direção de encontrar um caminho diferente. Também dá ao terapeuta chances de vislumbrar novas formas de entendimento e intervenção.

De acordo com Cecchin (1994), é preciso ser um “terapeuta irreverente”. Para isso, é necessário ter presente alguns princípios:

Primero, deve recordar que a la construcción del terapeuta como controlador social, moralizador, etc., contribuyen varias y diferentes relaciones; entre las relevantes cabe mencionar la relación terapeuta-cliente, el clima terapéutico y las condiciones institucionales, culturales y históricas que gravitan esse momento terapéutico. (...) Segundo, el terapeuta debe recordar que su posición, construida en el momento interactivo complejo, es una co-construcción. Entonces el terapeuta comparte la responsabilidad por el contexto que emerge en la terapia (p. 340).

Sendo assim, terapeuta e família compartilham a responsabilidade daquilo que emerge no contexto terapêutico. Qualquer intervenção ou interpretação precisa de um contexto interacional significativo e que autorize e reconheça alguma coerência. Caso contrário, não faz sentido. É necessário admitir que qualquer decisão que se tome, enquanto terapeuta, não traz em si nenhuma certeza de viabilidade e nem tampouco garante a predição de qualquer resultado, pois nossas ações sempre estarão relacionadas às ações dos outros, ao momento, às circunstâncias. É importante que se esteja preparado para a possibilidade de surgir consequências que não estavam previstas. Então assumir uma atitude reflexiva diante disto torna-se fundamental. Dá-se mais importância ao cuidado do que à cura.

Cabe lembrar aqui que nenhuma terapeuta inicia uma relação terapêutica desprovido de ideias, valores ou crenças. Da mesma forma que os clientes, o terapeuta também tem suas próprias convicções e concepções acerca do mundo e da realidade. O grande desafio se instaura exatamente na possibilidade de se permitir abertura suficiente para considerar que sua bagagem ou experiências são apenas uma forma, a sua forma, e mostrar-se disponível para uma construção em conjunto.

“El terapeuta irreverente trata de seguir múltiples guias pero nunca acata uno modelo o una teoria particulares. Adoptar a posición de irreverência equivale a ser levemente subversivo respecto a cualquier verdad reificada” (Cecchin, 1994, p. 345),

Para um terapeuta de família, todas as pessoas, todos os casais e todas as famílias têm, contidos em si mesmos, o potencial e as respostas para a melhora dos aspectos para os quais vêm buscar ajuda. A relação terapeuta-família busca a articulação conjunta. O conhecimento trazido pelo terapeuta não é hierarquicamente superior àquele conhecimento trazido pelas pessoas que compõe a família. Ele não tem a verdade sobre o outro, mas pode contribuir trazendo diferentes formas de falar, comportar e entender o mundo e as relações. Com isso, abre possiblidades de encontrar, juntos, alternativas úteis para novas construções.

Quero finalizar estas reflexões, compartilhando o conteúdo da carta de uma cliente. M., 50 anos, separada e dois filhos: R. de 21 anos e N. de 24. Busca terapia por desejar se relacionar melhor com os filhos e o ex-marido que retrata como um homem abusador e violento. Separada judicialmente há dois anos, não conseguia se mudar da residência, segundo ela por medo, convivendo ainda com o pai de seus filhos a mesma casa. A terapia ainda está em curso e as sessões são realizadas em conjunto com os filhos e algumas apenas com M. Ela conseguiu se mudar, após 10 meses, morando sozinha atualmente. Não pretendo descrever o processo terapêutico, mas sim demonstrar como ela vem fazendo reflexões e mudanças. Um dos recursos utilizados ao longo da terapia foi estimular M. a escrever o que pensava e o que sentia. Este é um dos seus relatos:

“Hoje resolvi sentar e escrever para você. Faz muito pouco tempo e os fatos que me levaram a encontrá-la foram de uma certa forma estranhos. Agora entendo o que está acontecendo, sinto por não ter acontecido antes, mas paciência, não posso voltar e talvez se voltasse não teria o entendimento que tenho agora. Talvez seja mesmo este o momento certo. Escrevo para você porque sei que irá entender tudo, tudo mesmo o que digo, estes momentos de conflito, os de consciência, enfim tudo. Cresci e amadureci em sete meses o que não aconteceu em cinquenta anos. Seu apoio foi fundamental. Cresci e me fortaleci, vejo agora que não tenho só defeitos, que tenho muitas qualidades, acredito em mim e isto me deixa feliz, explodindo de felicidade por pensar que sim eu mereço tudo isto. Me emociono, mas me sinto muito bem, consigo mergulhar cada vez mais fundo no meu ser e isto me faz bem e faz bem à minha família. Estou encontrando o que procurava, EU, e estou gostando de mim mesma e não é só do exterior, mas do interior, do lado de dentro”.

 

Referências

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Prandini, R. C. A. (2003), Autoria de pensamento e alteridade: Temas fundantes de uma relação pedagógica amorosa e libertadora. In S. Amaral (coord.), Psicopedagogia: Um portal para a inserção social. São Paulo: Vozes.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Mara Lúcia Rossato
E-mail: mluc@uol.com.br

Enviado em: 11/03/2017
Aceito em: 24/04/2017

 

 

1 Psicóloga e Terapeuta de Família. Coordenadora do Programa de Terapia Sistêmica de Casal e Família da Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro da Associação Gaúcha de Terapia Familiar - AGATEF e da Associação Brasileira de Terapia Familiar – ABRATEF.

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