SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21 número2Coparentalidade em famílias pós-divórcio: uma ação desenvolvida em um núcleo de práticas judiciáriasInfluência do segredo na dinâmica familiar: contribuições da teoria sistêmica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.21 no.2 Porto Alegre dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Voltando pra casa: a experiência do acolhimento institucional e os impactos na família1

 

Coming home: the experience of institutional care and the impacts on family

 

 

Larissa Líbio2 ; Dulce Grasel Zacharias3

Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A família é reconhecida socialmente como sinônimo de cuidado e pertencimento. Na impossibilidade de assegurar tal cuidado, cabe ao Estado garanti-lo através de medidas de proteção, como o acolhimento institucional. Trata-se de uma medida excepcional e provisória que visa a reinserção familiar frente a mudanças no contexto. Neste estudo qualitativo foram entrevistadas cinco famílias com histórico de acolhimento institucional. Buscou-se compreender os significados atribuídos por elas acerca desta experiência e os impactos do retorno gerados neste sistema. Os dados foram analisados através da Análise de Conteúdo proposta por Bardin. Os resultados apontam que a experiência do acolhimento institucional foi retratada pelas famílias como positiva e como possibilidade de superação. A reinserção familiar da criança foi percebida por mudanças no sistema, principalmente, nos relacionamentos entre os membros e com o filho reintegrado. Assim, o retorno da criança ao lar foi caracterizado como uma nova oportunidade para a família desempenhar seus papéis.

Palavras-chave: Reinserção familiar, Acolhimento institucional, Família.


ABSTRACT

The family is socially recognized as a synonym for care and belonging. Front to inability to provide such care, is responsability of the State guarantee it through the application of protective measures, such as Institutional Care. This is an exceptional and temporary measure aimed at family reintegration front to changes in context. In this qualitative study were interviewed five families with Institutional Care history. It sought to understand the meanings attributed to them about this experience and the impacts of return generated in this system. Data were analyzed using content analysis proposed by Bardin. The results show that the experience of the Institutional Care was portrayed by families as positive and as a possibility of overcoming. The child's family reintegration was perceived by changes in the system, especially in relationships between the members and the son reintegrated. Thus, the return of the child at home was featured as a new opportunity for the family to play their roles.

Keywords: Family reinsertion, Institutional care, Family.


 

 

Introdução

Ao se propor uma discussão acerca da temática família, abre-se espaço para o reconhecimento da diversidade de suas configurações. Coloca-se de lado o termo singular para tratá-lo no plural: famílias no lugar de família. Isto implica o reconhecimento da singularidade de cada contexto, relação e dinâmica familiar. Para Sarti (2004), ao se deparar com este sistema faz-se necessário realizar um movimento de estranhamento, a fim de que um discurso normativo ou etnocêntrico não naturalize as relações familiares.

Enquanto produto do sistema social, à família é atribuído o papel fundamental de proteção e cuidado de seus membros. No entanto, quando a família não consegue promovê-los, rupturas podem ser evidenciadas e novos movimentos se mostram necessários. Este cenário é retratado nas situações de acolhimento institucional de crianças e adolescentes cujos contextos familiares revelam violações de direitos, como: negligência, abandono, maus-tratos e demais formas de violência. O afastamento da criança da família de origem ocorre frente à impossibilidade dos responsáveis em promover um ambiente seguro e adequado que permita seu pleno desenvolvimento. Neste sentido, o acolhimento institucional refuta a ideia socialmente construída da família como instituição de proteção.

O caráter provisório desta medida aponta para a reinserção da criança ou adolescente à família de origem ou extensa, ou ainda, frente à impossibilidade, na colocação em família substituta (Brasil, 1990). É neste vértice que a reinserção familiar passa a ser ponto de discussão. Para que o retorno da criança se efetive, mudanças na estrutura e nos modos de organização da família devem ser realizadas a fim de garantir um ambiente livre de violência ou situações que coloquem a criança em risco. Inúmeras questões circunscrevem a saída e o retorno da criança ao lar e necessitam de visibilidade. Desta forma, este estudo teve como objetivo conhecer estas histórias a partir da ótica das famílias, buscando compreender os significados atribuídos por elas à experiência do acolhimento institucional e os impactos do retorno da criança gerados no contexto familiar. Buscou-se, ainda, compreender os fatores que determinaram a medida de proteção, os movimentos realizados por este sistema para reaver a guarda e, principalmente, as possíveis mudanças observadas pela família a partir da reinserção da criança ao lar. Narrar estas histórias e resgatar estas experiências permite problematizar os modos de subjetivação destas famílias, bem como dar visibilidade aos processos que se produzem neste sistema. O afastamento produzido por esta medida de proteção tende a gerar sofrimento tanto na criança quanto na família. Silva e Arpini (2013) referem que estas famílias contam com uma série de sofrimentos que nem sempre são compreendidos pelos profissionais.

Ao longo da construção deste trabalho verificou-se uma escassez de estudos no contexto brasileiro que referissem acerca dos significados gerados neste sistema a partir do acolhimento institucional, bem como da reinserção familiar sob a ótica da família. Desta forma, ao promover um debate sobre a família neste contexto, possibilita-se dar voz às suas percepções, às formas que significam este processo, além dos reflexos e impactos desta medida de proteção no sistema familiar.

Família ou famílias?

A organização e a estrutura familiar passaram por significativas mudanças e o afeto se mostra um elemento essencial que permeia a emergência destas relações. A família está constantemente sujeita a mudanças que advém tanto de fatores internos quanto externos. Ao mesmo tempo, possui uma incrível capacidade de se adaptar e mudar enquanto mantém sua continuidade (Minuchin & Fishman, 1990). A instituição família tem um papel reconhecidamente central em nossa sociedade. Schütz (2014) reflete que a maneira como ela se estrutura está diretamente atrelada ao contexto sócio-histórico em que está inserida. Cúnico e Arpini (2013, p. 29) corroboram com tal afirmação quando referem que “a família é um sistema complexo que está diretamente ligado aos processos de transformação histórica, social e cultural”. Desta forma, parece indissociável a relação entre família, sociedade e subjetividade.

Parte-se de uma visão de família que se encontra atrelada à possibilidade de prover base para o sujeito. Rizzini (2010) salienta que esta instituição tem sido idealizada como um sinônimo de afeto e pertencimento àqueles que a ela fazem parte. Logo, a família expressa uma função social ao mesmo tempo em que produz espaço para que o indivíduo se constitua enquanto sujeito, se reconhecendo no outro e subjetivando-se nesse processo.

Visitada e revisitada sob a égide da evidência, a família se apresenta como foco para estudos e debates. Devido à pluralidade das suas configurações, parte-se da premissa de que não há uma delimitação de parâmetros que consigam definir um conceito de família, bem como sua composição e funcionamento. Segundo Osorio (2011), a família contemporânea é marcada por um contexto de inúmeros atravessamentos, entre eles: a emancipação feminina, o reconhecimento dos direitos das crianças e adolescentes, as mudanças e questionamentos na gerência familiar e na autoridade parental. Além destes, reconhece-se alterações quanto às questões referentes à sexualidade e a aceitação da homossexualidade; as separações conjugais e reconfigurações familiares; o aumento da expectativa; os avanços tecnológicos que impactaram nos hábitos domésticos e as modificações nos valores éticos da sociedade. Uma constatação é clara: ao longo da história, a família evoluiu e as transformações resultantes desta evolução é que garantiram a sua continuidade.

Filhos do Estado: o acolhimento institucional de crianças no Brasil

Rosa et al. (2012) destacam a família como um microssistema de fundamental importância para o desenvolvimento da criança e do adolescente. Os autores acrescentam ainda que, na impossibilidade da família assegurar tal cuidado, cabe ao Estado garanti-lo. Neste cenário de violação de direitos de crianças e adolescentes em contexto familiar, surgem as medidas de proteção, entre elas o acolhimento institucional previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O artigo 98 da Lei nº 8.069 de 1990 que dispõe sobre este estatuto estabelece que tais medidas de proteção são aplicáveis sempre que seus direitos forem ameaçados ou violados por: ação ou omissão da sociedade e do Estado; falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis ou em razão de sua conduta. O Estatuto dispõe ainda em seu artigo 101 que o acolhimento institucional é uma medida provisória e excepcional, utilizável como transição para a reintegração familiar ou, frente à impossibilidade, na colocação da criança ou adolescente em família substituta (Brasil, 1990).

Rizzini et al. (2006), mencionam que, historicamente, as famílias pobres têm vivido o acolhimento institucional de seus filhos, refletindo a permanência do mito de que crianças de famílias pobres estariam melhor protegidas distantes de seus núcleos familiares, consideradas socialmente como famílias desestruturadas. Os autores ressaltam o fato de estas famílias serem retratadas como incapazes de criar e educar seus filhos. Referem, ainda, que o acolhimento institucional provoca uma punição tanto para a criança quanto para a família. Ao mesmo tempo em que a criança é retirada do seu lar, a família, já subestimada, é percebida e se percebe como incapaz.

Rizzini e Rizzini (2004) salientam que a documentação histórica acerca da assistência a crianças no Brasil data os séculos 19 e 20 e indica a pobreza como determinante para o encaminhamento dos filhos a instituições de acolhimento. A modalidade da Roda de Expostos surgida na Idade Média na Europa foi a única forma de assistência a recém-nascidos na época do Brasil Colonial. A prática tinha como intuito receber bebês deixados na Roda, mantendo o anonimato daquele que os abandonavam. Rizzini e Rizzini (2004, p. 24) referem que “a criação das Rodas de Expostos evitou que bebês fossem abandonados nas ruas e nas portas das igrejas por mães que buscavam ocultar a desonra de gerar um filho ilegítimo, ou que não tinham condições de criá-lo”. Foi com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 que se passa a trabalhar com uma perspectiva de proteção integral, no qual todas as crianças e adolescentes são detentores de direitos e deveres.

Em pesquisa realizada com famílias que tiveram os filhos abrigados, Azôr e Vectore (2008) referem que o processo de institucionalização caracteriza-se como uma somatória de fatores que envolvem desde o pertencimento das famílias às esferas mais inferiores em termos econômicos até fatores de adoecimento psíquico (abuso de álcool e drogas). As autoras salientam que ao longo da trajetória familiar estes fatores se inter-relacionaram e desestruturaram uma organização familiar que já se mostrava enfraquecida. A união destes fatores culminou com o afastamento da criança do ambiente familiar como medida de proteção. Desta forma, o acolhimento institucional de crianças e adolescentes é multifatorial.

Cassab e Fante (2007) destacam que a institucionalização não pode ser considerada um exemplo de família, mas deve ser encarada como um difícil atalho que promoverá tempo para que as famílias em situação de vulnerabilidade e abandonadas pelas políticas sociais de proteção possam se reestruturar. Arpini e Quintana (2009) salientam que no período em que a criança encontra-se acolhida em abrigo deve-se deixar claro para a família que a sua retirada do lar não é definitiva, mas será um período no qual a família poderá rever as falhas e reorganizar-se.

Sobre a reinserção familiar

O processo que ocorre a partir da saída da criança ou adolescente de um abrigo e seu retorno à família (de origem, extensa ou substituta) se define, entre outras expressões, como reinserção familiar. Pode-se inferir que foi a partir da criação do ECA que a temática da reinserção familiar de crianças e adolescentes abrigados começou a ganhar espaço em estudos e debates (Siqueira, Zoltowski, Giordani, Otero e Dell'Aglio, 2010). Entretanto, os autores revelam uma carência no campo científico acerca desta temática em nosso país, visto que passou a ser alvo de estudos recentemente. A reinserção da criança ou adolescente à família é um momento permeado de incertezas e expectativas, mostrando-se também decisivo para delinear a trajetória da criança e da família. Bento (2010) afirma que na prática cotidiana em instituições de acolhimento percebe-se, com frequência, carência de rigor e, também, certa fragilidade no processo de preparação para a reintegração no contexto familiar.

Neste contexto, Ladvocat (2011) menciona as fases necessárias no processo de reinserção de crianças e adolescentes à família de origem, quais sejam: pré-integração, em que os profissionais buscam conhecer a motivação para a reintegração, além dos aspectos históricos, sociais, psicológicos e jurídicos que circundam o caso. É imprescindível a compreensão acerca da história da família, bem como sua constituição e trajetória. A fase da reintegração trata do retorno efetivo à família. Presume-se que tanto a criança quanto a família já se mostram preparadas e é consentânea a vontade para esta nova fase de convivência. E, por último, na fase da pós-reintegração que requer um aprofundamento da interação familiar, bem como a adaptação e aceitação mútua entre os membros. Para tanto, tem-se em vista um reordenamento da rotina familiar. Siqueira e Dell’Aglio (2007) salientam que mesmo que a medida protetiva seja inevitável, deve-se trabalhar sob a perspectiva da manutenção dos vínculos familiares e de uma rápida reintegração familiar.

Não se pode negar a presença de sofrimento, sentimentos de impotência e fracasso nos familiares de crianças institucionalizadas. Arpini e Quintana (2009) apontam para a necessidade de acolhimento destes sentimentos e que a superação dos mesmos constitui o trabalho de retorno destas crianças ao lar. Em pesquisa realizada no estado de São Paulo, Fávero et al. (2008) referem que das famílias que tiveram seus filhos abrigados, 98% manifestaram intenção em ter a criança ou adolescente de volta ao lar e 65% consideraram como “ruim” a institucionalização, quando questionadas sobre suas percepções acerca da medida protetiva. Destes 65%, 8% manifestaram medo dos filhos serem colocados em famílias substitutas.

Fávero et al. (2008, p. 119) relatam ainda que estas famílias “muitas vezes se sentem incapazes de cuidar das crianças e/ou adolescentes e, apesar de desejarem tê-los de volta, várias reconheceram que “é bom” que estejam abrigados, porque assim estão tendo melhores condições de vida.”. As autoras enfatizam a necessidade de se considerar a imensa desigualdade social e a não-universalização do acesso a direitos sociais no que tange à institucionalização, os motivos do acolhimento e as perspectivas de retorno da criança ao lar a partir da ótica da família.

 

Método

Este estudo se constituiu como uma pesquisa de caráter qualitativo. Segundo Minayo e Guerriero (2014, p.1105) a pesquisa qualitativa tem como objetivo “compreender o sentido ou a lógica interna que os sujeitos atribuem a suas ações, representações, sentimentos, opiniões e crenças”. Desta forma, o paradigma qualitativo demonstrou melhor adequação a esta proposta à medida que ofereceu subsídios para compreender as percepções dos participantes, favorecendo a interpretação dos fenômenos pesquisados.

O presente trabalho contou com o apoio de um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de um município do interior do Rio Grande do Sul que informou o contato de famílias que correspondessem aos critérios da presente pesquisa. A escolha deste critério se justifica por tratar-se de um serviço que acompanha o processo de reinserção familiar de crianças institucionalizadas no município. Os participantes deveriam contemplar os seguintes critérios: famílias com histórico de acolhimento institucional de crianças (na faixa etária entre zero e doze anos na época do acolhimento) que, após a medida de proteção, retornaram ao lar; famílias que estiveram vinculadas ao serviço de assistencial social supracitado durante ou após o acolhimento institucional.

Entrevistas semiestruturadas foram utilizadas como instrumento para a coleta de dados. Entretanto, para caracterizar as famílias entrevistadas, optou-se por realizar inicialmente um breve levantamento de dados com os participantes, como: tipo de família, profissão e grau de instrução dos responsáveis e informações sobre o período de institucionalização dos filhos. Cabe ressaltar que nas entrevistas semiestruturadas ou semidirigidas se utilizam perguntas mais abertas. Segundo Fontanella, Campos e Turato (2006), a entrevista proposta na pesquisa qualitativa pode ser definida como um encontro interpessoal a fim de obter informações verbais ou mesmo escritas, mas de uma maneira não-dirigida, o que implica em gerar novos conhecimentos sobre as vivências humanas.

Os participantes foram informados sobre os objetivos do estudo e procedimentos metodológicos e receberam um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido previamente ao início de sua participação, sendo que todos os cuidados éticos foram observados. Foram entrevistadas cinco famílias, totalizando seis pessoas. O estudo considerou como família os responsáveis pela criança antes e após a medida de proteção, os quais poderiam ser: pais, pai ou mãe, avós ou outros indivíduos que estivessem com a guarda legal da criança. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade de Santa Cruz do Sul sob parecer nº 1.337.692. As entrevistas foram realizadas com os responsáveis pela criança, gravadas a partir de aparelho eletrônico e, posteriormente, transcritas de maneira literal. Os participantes foram identificados ao longo do trabalho com a sigla F referente à família (F1, F2, F3, F4, F5).

Os dados foram organizados através da análise de conteúdo. Este método de análise dos dados é uma proposta de Bardin e se caracteriza pelo conteúdo do que é comunicado. Segundo Bardin (1977, p. 38) “a intenção da análise de conteúdo é a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção (ou, eventualmente, de recepção), inferência esta que recore a indicadores (quantitativos ou não)”. Os saberes que são deduzidos dos conteúdos podem ser de natureza psicológica, histórica, sociológica, entre outros.

 

Resultados e discussão

Com base nos conteúdos das entrevistas traçaram-se seis categorias de análise. As discussões que seguem nas categorias são apresentadas a seguir e foram analisadas à luz de teorias e pesquisas que discorrem sobre o tema deste trabalho e baseadas nas falas retiradas das entrevistas.

Quem são estas famílias?

Para que se possa compreender e analisar os dados encontrados, faz-se necessário identificar quem são as famílias entrevistadas ao longo deste trabalho, a fim de identificar suas realidades e compreender suas particularidades.

F1: Família adotiva, monoparental materna. Pai ausente. Mãe exerce trabalho formal e possui ensino médio incompleto. Teve um filho institucionalizado pelo período de dois meses. Sem histórico de acolhimento institucional de outros filhos ou na família de origem.

F2: Família reconstituída atualmente. Mãe possui novo companheiro que não aceitou participar da entrevista. Pai encontra-se preso, devido ao motivo do acolhimento dos filhos (abuso sexual). Após a institucionalização dos filhos a mãe passou a ser beneficiária do BPC (Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social) à pessoa com deficiência. Possui ensino médio completo. Teve três filhos institucionalizados por períodos diferentes, entre cinco meses a um ano. Família com histórico de acolhimento institucional na família de origem.

F3: Família monoparental materna. Pai ausente. Mãe era profissional do sexo e, atualmente, é beneficiária do BPC à pessoa com deficiência (transtorno em decorrência do uso de substâncias psicoativas, conforme aponta). Possui ensino fundamental incompleto. Tem dois filhos, sendo que um deles foi institucionalizado pelo período de seis meses. Sem histórico de acolhimento institucional de outros filhos ou na família de origem.

F4: Família nuclear consanguínea. A mãe já era beneficiária do BPC à pessoa com deficiência (deficiência intelectual) e o pai exerce trabalho formal. O casal possui ensino fundamental incompleto, tendo a mãe frequentado a Educação Especial. A família teve uma filha institucionalizada por dois meses. Família com histórico de acolhimento institucional de outro filho que está sob a guarda da tia materna.

F5: Família monoparental materna. Pai ausente. Na época da institucionalização das filhas a mãe estava envolvida com tráfico de drogas. Atualmente, se encontra desempregada. Possui ensino fundamental incompleto. Cinco filhos foram acolhidos institucionalmente, sendo que três foram adotados. Duas filhas passaram em dois momentos diferentes pelo acolhimento institucional. No primeiro acolhimento permaneceram acolhidas por oito meses e no segundo, por cinco meses. Família com histórico de acolhimento institucional de outros filhos.

Quanto à configuração familiar, certifica-se que, entre as cinco famílias, três se configuram como monoparentais maternas (F1, F3 e F5). A ausência paterna parece constituir a realidade destas famílias. Azôr e Vectore (2008) em estudo realizado com famílias com filhos institucionalizados também se depararam com a ausência da figura paterna. Fávero et al. (2008) também constataram que a presença da mulher-mãe se mostra marcante nestas famílias. Os autores salientam que mesmo em condições difíceis os cuidados pelos filhos permanecem sendo assumidos de forma majoritária pela mulher.

Verifica-se que nestas famílias predomina o ensino fundamental incompleto (quatro das cinco famílias), o que caracteriza a baixa escolarização dos pais. Siqueira, Zoltowski, Giordani, Otero e Dell'Aglio (2010) em estudo sobre a reinserção familiar de adolescentes também constatou a baixa escolaridade presente nas famílias de origem, o que indica que tal fenômeno pode se mostrar presente em famílias que passam por medida de proteção. Das cinco famílias entrevistadas, três referem histórico de acolhimento de outros filhos ou, ainda, na família natural. Pode-se inferir uma repetição do fenômeno da institucionalização a partir dos casos apresentados.

O trabalho informal no período da institucionalização dos filhos caracterizava a realidade de três famílias, sendo que a prostituição e o tráfico de drogas foram descritos por duas famílias como fonte de renda. Estas características podem retratar o cenário de dificuldades financeiras das famílias entrevistadas antes da medida de proteção. Após a reinserção do filho, duas famílias passaram a ser assistidas pelo BPC, totalizando três famílias beneficiárias. Duas famílias permanecem em trabalho formal e uma encontra-se em situação de desemprego. Observa-se que após a reinserção dos filhos, as duas famílias que referiram a prostituição e o tráfico de drogas deixaram de exercê-los. Costa, Cavalcante e Pontes (2015) salientam o fato de que poucos estudos têm buscado compreender os padrões de comportamento das famílias com crianças institucionalizadas. Os autores indicam que há um consenso na literatura de que estas famílias se encontram, geralmente, em situação de vulnerabilidade social. A baixa escolaridade, o desemprego ou trabalho informal também retratam a realidade destes contextos.

Reflexões sobre papéis parentais

A partir das entrevistas realizadas constata-se a forma como as famílias percebiam o desempenho de seus papéis antes da saída das crianças, como evidenciado na seguinte fala: “Eu achava que eu tava sendo uma boa mãe, mas que nem eu te disse, naquela maneira, assim, de eu não deixar faltar nada” (F5).Nota-se que suprir as carências materiais dos filhos se constituía como fator determinante para caracterizar o desempenho do papel materno antes da medida. Observa-se que as famílias se importavam com seus filhos, diferente do que uma visão estigmatizadora poderia supor acerca das famílias que vivenciam a experiência do acolhimento institucional. Rocha, Arpini e Savegnago (2015) em pesquisa realizada com famílias de crianças reintegradas, também referem que os filhos ocupavam um lugar na família e na relação com suas mães. Embora elas não estivessem conseguindo desempenhar de modo satisfatório seus papéis maternos, o sentimento destas mães pelos filhos existia.

O fenômeno da transgeracionalidade, no qual as práticas parentais das famílias de origem podem ter sido repetidas e reproduzidas na família atual, também se evidenciam nestas famílias, como expresso na fala de F1 que teve o filho acolhido devido a maus-tratos praticados pela mãe que, em sua família de origem, também presenciou um ambiente de violência: “Minha mãe era a melhor mãe do mundo, mas meu pai bebia e não podia me ver que queria me bater, me espancar”. Acerca deste fenômeneo, Falcke e Wagner (2014) ponderam que o sujeito constrói a sua identidade a partir do legado familiar, o qual definirá o lugar que irá assumir na família. De forma figurativa “é como se todas as pessoas tivessem vozes familiares gravadas no seu interior” (p.26). As autoras ainda acrescentam que tal fenômeno tende a acontecer em períodos específicos no ciclo de vida familiar, relacionando-se, principalmente, a períodos de crise, no qual se verifica maior estresse na família.

A família F2 refere histórico de acolhimento institucional em sua família de origem, o que pode indicar que as dificuldades encontradas para suprir os cuidados com os filhos também estavam presentes na família de origem: “Minha mãe foi criada pelos outros, que nem eu [...] Então, tu vê, a minha família já vem com a turbulência faz bastante tempo”. A família F5 menciona a negligência da mãe e ausência do pai em sua família de origem:“Minha mãe nunca me deu bola e meu pai eu vi duas, três vezes. Eu nunca tive uma estrutura de família, sabe”. Siqueira e Dell’Aglio (2007) refletem que práticas educativas coercitivas na infância podem influenciar na parentalidade exercida na vida adulta. Ao mesmo tempo, Cruz (2010) refere que as competências que promovem cuidado são resultado de vivências de bons tratos dos pais enquanto crianças e que podem, no futuro, assegurar uma prática saudável em suas famílias. A autora acrescenta que, ao passo que a capacidade parental não se reflete em cuidado e proteção, a medida de proteção (Acolhimento Institucional) pode se concretizar.

Saindo de casa: motivos do Acolhimento Institucional e sentimentos gerados na família

A partir das falas dos entrevistados, evidencia-se que os principais determinantes para saída da criança da família por medida de proteção se relacionaram à: presença de violência física praticada através de maus-tratos, violência sexual praticada por um dos genitores, dependência química, abandono e negligência dos genitores. F1 menciona a violência praticada: “E como eu te disse, eu dou uns tapas, dou umas chineladas da mesma forma como no meu pequeno. Só que na época isso foi confundido com maus-tratos, né”. A violência física também é citada por F2 em seu discurso: “Ele acusou que eu batia nas crianças, mas eu nunca fiz isso neles. Só na forma de educar, mas não era de espancar pra matar”. Percebe-se que a violência física praticada, enquanto motivo para o acolhimento institucional era compreendida pelas famílias como forma de educar os filhos e não como fator prejudicial a eles. Falcke e Rosa (2011) a respeito da violência familiar salientam que nestes pais constata-se uma carência de modelos de flexibilização diante dos conflitos, motivado por um aprendizado também deficiente nas interações com a família de origem. Além disso, para F5, o uso de drogas refletiu na negligência com os filhos: “A própria culpada fui eu mesma, sabe. Por causa da droga. Só a droga estragou tudo. Porque eu acabava não dando atenção pra elas”. Contata-se que entre os motivos percebidos e descritos pelas famílias a dependência química e a violência física foram os fatores que apareceram com mais frequência neste estudo.

Ainda sobre a saída dos filhos por medida de proteção é possível verificar nos discursos dos entrevistados a forma como vivenciaram este momento, marcado por angústia e adoecimento, como explicitado por F2: “E quando levaram as crianças, pra mim, assim, na hora eu não me dei conta, mas depois que eu adoeci [...] tinha muita angústia. Ah, peguei e me isolei”. F5 também compartilha de sentimentos semelhantes: “Tudo ficou estranho. Eu sentia tristeza, angústia. Eu não tinha vontade de fazer nada, de sair de casa. Aí eu vi o quanto eu tinha prejudicado, sabe”. Estas percepções das famílias entrevistadas corroboram com os achados de Martins e Ferriani (2003) que mencionam o sentimento de perda da maternidade nas mães que tiveram os filhos institucionalizados, havendo influência desta percepção com o estado emocional. O que emerge dos discursos destas famílias indica a existência de um lugar de afeto ocupado pelos filhos e que sua saída de casa foi vivenciada neste sistema por sentimentos de tristeza e angústia. Rocha, Arpini e Savegnago (2015) mencionam que as famílias de crianças reintegradas compartilham o sofrimento pelo acolhimento institucional dos filhos.

O sentimento de culpa também é observado nas falas, o que pode indicar que estas famílias sentiram-se responsabilizadas pelo acolhimento institucional dos filhos, como exposto por F5: “Eu sentia culpa, sentia bastante culpa quando pensava neles, porque eles podiam ter ficado comigo e agora estavam num lugar estranho [...] Eu me senti um lixo por ter deixado meus filhos irem pra lá”. As narrativas apresentadas indicam a diversidade de sentimentos produzidos na família com a saída dos filhos de casa. Tais sentimentos retratam o impacto que a medida de proteção teve na família.

Por onde andei: as trajetórias para reaver a guarda

Certifica-se que as trajetórias das famílias para reaver a guarda dos filhos foram permeadas tanto por condições impostas pelo judiciário para que a reinserção se concretizasse, quanto pelo interesse e a vontade em ter os filhos de volta. Observa-se também que seus papéis parentais foram alvo de reflexões e questionamentos neste processo. Entre as condicionalidades, destaca-se a necessidade de tratamento para a dependência química do responsável como exposto na fala de F5: “Ou eu me internava e tentava recuperar eles ou ela [juíza] ia colocar eles pra adoção. Aí que começou a minha luta”. Percebe-se que a trajetória para garantir o retorno foi encarada pela família como sinônimo de luta. Rocha, Arpini e Savegnago (2015) também postulam que a busca pela reinserção existe nestas famílias e que tal movimento tende a ser comparado por elas a uma luta. Ao equipararem as tentativas para reaver a guarda a uma luta, as famílias parecem indicar uma trajetória difícil, permeada por obstáculos conscientes de serem enfrentados, havendo, no final, um sentimento de vitória: o retorno dos filhos à família.

F2 também cita o papel do judiciário e os movimentos que realizou em prol da retomada dos filhos: “A juíza me chamou, né [...] Ela me encaminhou pra psicóloga que eu fui bastante tempo [...] A psiquiatra determinou que eu teria que tomar remédio, né. Tudo isso aí eu fiz”. Nota-se que entre as condicionalidades colocadas às famílias se encontra o atendimento com profissionais da rede socioassistencial (Assistentes Sociais e Psicólogos) e também com profissionais da saúde. Para Cassab e Fante (2007) o número de crianças e adolescentes sob a tutela do Estado poderia se configurar como significativamente menor se estas famílias fossem alvo de um trabalho social com caráter preventivo e promocional, principalmente no que concerne às dificuldades socioeconômicas.

A família F2 justificou a realização de seus movimentos ressaltando o interesse de ter os filhos de volta: “Porque eu queria meus filhos e se eu não fizesse o que ela [juíza] queria, jamais teria acesso a eles”. Certifica-se que há um esforço por parte da família para a reinserção da criança. Neste sentido, ter os filhos de volta é o que mobiliza e ao mesmo tempo motiva para a mudança. Azôr e Vectore (2008, p.86) expõem este fato ao referirem que o desejo pelo retorno dos filhos se apresenta como “a mola propulsora” para a iniciativa de reaver a guarda.

Ao longo do processo para reaver a guarda dos filhos, evidencia-se reflexões da família acerca de seus papéis parentais, como evidenciado por F5: “Eu larguei tudo para a f1. Larguei um compromisso para ela que ela não tinha a obrigação. Ela era só uma criança. Aí eu senti que aquilo ali tinha que mudar, sabe”. Na fala de F5 o papel que era exercido antes da institucionalização foi questionado e a busca para reaver a guarda dos filhos passou ser compreendida como uma nova chance à família para desempenhar os papéis parentais.

F2 ressalta a forma como foi tratada pela equipe da instituição de acolhimento: “No momento, ela [coordenadora da instituição] dizia que eu não tinha como tomar conta dos meus filhos. Não tinha condições psicológicas, ela disse”. Neste relato parece existir uma ideia por parte da instituição de acolhimento de que as famílias entrevistadas não seriam capazes de cuidar de seus filhos. O estigma relacionado à família e a dificuldade de comunicação com a instituição de acolhimento podem dificultar ações que promovam a reinserção familiar da criança. Siqueira, Zoltowski, Giordani, Otero e Dell'Aglio (2010) alertam para a importância do estabelecimento de uma relação entre a instituição de acolhimento e a família livre de estigmas, a fim de que possam acreditar na capacidade e nos esforços da família de educar seus filhos.

Voltando pra casa: mudanças na família a partir do retorno dos filhos

Ao reportar-se aos entrevistados neste estudo, evidencia-se que o retorno dos filhos foi caracterizado por diversas mudanças na família, especialmente nos relacionamentos entre os membros. As famílias destacaram mudanças no comportamento do filho institucionalizado, como relata F2: “Eles vieram mais comportado, porque serviu pra educar eles todos, pra ensinar a fazer coisas que eles não sabiam [...] eles voltaram mais caprichoso com as roupas deles. Hoje eles se dividem pra arrumar o quarto”. A partir da reinserção, as famílias perceberam nos filhos a aquisição de aprendizados, principalmente referentes à organização e higiene e os relacionaram às rotinas institucionais. Algumas famílias enfatizam tentativas de reproduzir as regras da instituição, enquanto outras mencionam o retorno do comportamento da criança, o que sugere que tais mudanças no ambiente familiar podem não ter permanecido, como representado nas seguintes falas: “Eu pensava em manter ele com aquela educação, com aquelas regras da Casa de Passagem [...] Mas não deu, eu mimei ele, estraguei ele um pouquinho no início” (F3). “Ela ficou mais tranquila, ela veio de lá outra criança. Só que passou o tempo e ela voltou para as mesmas coisas” (F1).

Verifica-se que a mudança percebida em um membro refletiu em mudanças no sistema familiar. Neste sentido, Minuchin e Minuchin (1999) ressaltam que uma das características fundamentais de um sistema se refere à influência das partes umas sobre as outras. Os autores ao definirem a família como sistema atentam para a presença de uma estrutura com padrões de interação. Toda a família passa por períodos de transição em que enfrenta momentos de desorganização. Os padrões familiares habitualmente aceitos não se mostram mais adequados e novas tentativas precisam ser feitas a fim de buscar o equilíbrio.

As famílias destacaram mudanças na relação dos genitores com os filhos acolhidos, indicando uma aproximação no subsistema parental a partir da reinserção familiar, como exposto por F1: “Algumas coisas eu também tive que pegar mais leve com ela, sabe? Parei e pensei: não, eu também teria que mudar”. F5 coloca: “Eu tive mais liberdade com elas. A gente conversa mais. Elas me cobram mais. Elas me cobram, eu cobro delas. Se tornou uma relação mais aberta”. Neste contexto, Ferreira (2015) ressalta que a reunificação familiar implica num trabalho com a família que favoreça a mudança na dinâmica e também nos padrões de interação. Deve-se também fomentar as competências parentais e potencializá-los para atender as necessidades dos filhos.

As famílias entrevistadas ressaltam modificações nas relações entre os membros da família. F4 salienta mudanças no subsistema conjugal: “Agora ela (esposa) tá começando a colocar a cabeça no lugar. A gente conversa mais também, né. Não separou mais tanto”. F5 relata mudanças na convivência entre os membros familiares: “A nossa estrutura mudou muito [...] acho que ensinou a gente a se aproximar mais e se respeitar”. Minuchin e Nichols (1995) reconhecem que a mudança na organização familiar permite alterações na vida de cada membro. Cruz (2010) salienta que, à medida que a família reassume os cuidados aos filhos também garante autonomia parental e firma uma postura de proteção e segurança a partir do retorno dos filhos ao lar.

Sob a ótica da família: significados e impactos do Acolhimento Institucional

Ao refletirem sobre as mudanças no sistema familiar, as famílias entrevistadas justificam a experiência do acolhimento institucional como positiva, principalmente, pela possibilidade de modificações no desempenho dos papéis parentais. O que emerge destas falas remete, principalmente, a um aprendizado e a uma conscientização da família sobre a forma como vinham educando seus filhos. Além disso, o significado positivo atribuído pelas famílias se relaciona também à melhora nos relacionamentos entre os membros do sistema. Compreende-se que, apesar do sofrimento vivenciado pelos membros a partir da saída da criança de casa, a família demonstrou tentativas para modificar e superar os problemas que levaram à institucionalização dos filhos, percebendo-se fortalecida a partir desta experiência.

O acolhimento institucional teve um significado positivo para as famílias entrevistadas porque provocou mudanças no desempenho dos papéis parentais, como refere F5: “Eu sou mais dura hoje com elas, antes eu não era. Eu deixava fazer o que queria. Hoje não, eu cobro muito delas”. Martins e Ferriani (2003) apontam para o fato da institucionalização ser percebida pela família como uma forma de repensar a educação dos filhos e, ao mesmo tempo, uma maneira de amparar os problemas de comportamento. Cruz (2010) coloca a existência de uma reabilitação dos papéis que se mostraram comprometidos na saída da criança do lar por medida de proteção. Gulassa (2007) ressalta que ao passo que a família se apropria de seus desafios, ela se fortalece e avança. F1 também reflete sobre um aprendizado na forma de educar a filha, não agindo mais com violência (motivo pelo qual a criança foi institucionalizada): “Eu aprendi: se tu tá muito braba, não pega um chinelo porque tu pode acabar machucando [...] Eu aprendi que eu tenho que ter paciência”. Cruz (2010) coloca que superar as carências parentais demanda esforços dos cuidadores no sentido de reorganizarem sua dinâmica e adaptarem-se a um novo ciclo. A flexibilidade, segundo a autora, permitirá a acomodação frente a situações de risco.

F4 justifica o acolhimento como positivo para a família, pois permitiu que os membros passassem a interagir de outra forma, melhorando suas relações: “Olha, de um ponto de vista pode ter sido positivo por causa que a gente conseguiu se entender melhor depois disso, né [...] A gente não sabia conviver e a gente aprendeu. Melhorou a nossa relação, né”. Rocha, Arpini e Savegnago (2015) também ponderam que as famílias que passaram pela experiência do acolhimento institucional dos filhos, apesar dos sentimentos de angústia e o sofrimento vivenciado, conseguiram resgatar pontos positivos. Minuchin e Minuchin (1999) salientam que o afastamento da criança da família também pode ser compreendido como uma transição no ciclo de vida familiar que irá desorganizar a família e uma nova organização se fará necessária a fim de buscar o equilíbrio do sistema.

O interesse e a vontade de estar com os filhos também são percebidos nas falas das famílias. O medo de que a medida de proteção se repita é sintetizado na fala de F5: “Eu tenho medo que elas voltem pra lá. Tanto que surgiu oferta para eu voltar a traficar, mas eu não aceitei. Eu quero ficar com elas”. Rocha, Arpini e Savegnago (2015) indicam que, contrariando um olhar discriminatório e estigmatizado acerca das famílias que tiveram os filhos acolhidos institucionalmente, ressaltam que há vínculo afetivo entre as famílias e seus filhos.

Ao mesmo tempo, para F3, o acolhimento institucional recebeu um significado de luta e superação: “Modificou a minha maneira de ver [...] porque como eu te disse, até então a única preocupação eram as drogas [...] isso serviu pra me superar”. No discurso desta família a experiência do acolhimento institucional surge como uma possibilidade de sair das drogas e uma nova chance de desempenhar o papel parental com os filhos que foram acolhidos. Neste sentido, Cruz (2010) salienta que a reinserção familiar consiste em enfrentar fragilidades e potencializar os envolvidos a fim de buscar uma superação. Para a autora, trata-se de uma nova oportunidade de recuperar a vida familiar.

 

Considerações finais

Este trabalho teve como objetivo compreender os significados atribuídos pelas famílias que tiveram filhos institucionalizados à experiência do Acolhimento Institucional e os impactos do retorno gerados neste contexto. Pode-se perceber que esta experiência foi retratada pelas famílias como positiva e como possibilidade de superação, uma vez que produziu uma conscientização acerca do desempenho dos papéis parentais e mudanças no sistema familiar, constatado na melhora das relações entre os membros.

Os significados gerados a partir da saída da criança do lar indicam a presença de sofrimento na família e o reconhecimento de um lugar afetivo ocupado pela criança neste sistema. Apesar do sofrimento vivenciado, as famílias evidenciaram interesse e vontade em reaver a guarda, significando esta busca como sinônimo de luta. As trajetórias para trazer o filho de volta ao lar foram atravessadas por condicionalidades e exigências impostas tanto pelo judiciário quanto pelos profissionais que lhe atenderam a fim de verificar o real interesse da família nos filhos. Pelo estudo realizado percebe-se a permanência de um olhar estigmatizador sobre estas famílias, reconhecidas, em muitos momentos, como incapazes de cuidar de seus filhos.

Ao mesmo tempo, pode-se apontar que as famílias se submeteram a estas condicionalidades, pois o vínculo com o filho se apresentou como um propulsor para a realização de movimentos de mudança que resultassem no retorno da criança ao lar. Neste processo as famílias revisitaram seus papéis parentais e refletiram sobre eles, reconhecendo sua importância no cuidado com os filhos. Neste sentido, a possibilidade de retorno da criança se configura também como uma nova oportunidade de desempenhar os papéis parentais. Observa-se que estas famílias pareciam necessitar de apoio quanto ao exercício de seus papéis, uma vez que passaram a desempenhá-los de outra forma a partir da experiência do acolhimento.

No que concerne à reinserção familiar, percebe-se que as famílias significaram este processo como um momento permeado por mudanças no sistema, especialmente nos relacionamentos dos subsistemas parental e conjugal e na relação de afeto com o filho reintegrado. Constatam-se tentativas da família em reproduzir o ambiente da instituição de acolhimento através da aplicação de regras, a fim de manter o comportamento do filho. No entanto, muitas destas famílias referiram impotência em replicar este contexto, retornando aos mesmos hábitos e formas de organização.

Destaca-se que os resultados apresentados não anseiam a generalização, mas o princípio de discussões acerca da implicação da família frente à experiência do acolhimento institucional. Por fim, acredita-se que esta pesquisa possa fomentar novos estudos acerca da temática da família no cenário da ação institucional e da reinserção familiar, uma vez que se observa uma escassez de material bibliográfico. Esta carência de conhecimento pode ocasionar uma visão limitada sobre estas famílias, desconsiderando os aspectos subjetivos presentes neste contexto.

 

Referências

Arpini, D., & Quintana, A. (2009). Família e instituições de abrigo: Reconstruindo relações. In D. Arpini (Org.). Psicologia, família e instituição (pp. 9-28). Santa Maria: Editora UFSM.         [ Links ]

Azôr, A., & Vectore, C. (2008). Abrigar/desabrigar: Conhecendo o papel das famílias nesse processo. Estudos de Psicologia (Campinas)25(1), 77-89.         [ Links ]

Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Bento, R. (2010). A história de vida de crianças e adolescentes como mediadora da reintegração no contexto familiar (Dissertação de Mestrado, Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil).         [ Links ]

Cassab, L., & Fante, A. (2007). Convivência familiar: Um direito à criança e adolescente institucionalizado. Revista Textos e Contextos, 6(1), 154-174.         [ Links ]

Costa, A., Cavalcante, L., & Pontes, F. (2015). Metas e estratégias de socialização de pais e avós de crianças em acolhimento institucional. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 8(1), 94-110.         [ Links ]

Cruz, R. (2010). Uma nova vida na mesma vida: Um estudo de caso de reinserção familiar (Dissertação de Mestrado, Universidade de Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil).         [ Links ]

Cúnico, S., & Arpini, D. (2013). A família em mudanças: Desafios para a paternidade contemporânea. Revista Pensando Famílias, 17(1), 28-40.         [ Links ]

Falcke, D., & Rosa, L. (2011). A violência como instrumento educativo: Uma história sem fim? In A. Wagner, et al. Desafios psicossociais da família contemporânea: Pesquisas e reflexões (pp. 150-166). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Falcke. D., & Wagner, A. (2014). A dinâmica familiar e o fenômeno da transgeracionalidade: Definição de conceitos. In A. Wagner (Coord.). Como se perpetua a família: A transmissão dos modelos familiares (pp. 25-46). Porto Alegre: EDIPUCRS.         [ Links ]

Fávero, E., Clemente, M., Giacomini, M., Santana, A., Gueiros, D., Navas, E., & Castanho, M. (2008). Famílias e medida de proteção abrigo: Realidade social, sentimentos, anseios e perspectivas. In E. Fávero, M. Vitale, & M. Baptista (Orgs.). Famílias de crianças e adolescentes abrigados: Quem são, como vivem, o que pensam, o que desejam (pp.113-142). São Paulo: Paulus.         [ Links ]

Ferreira, S. (2015). Famílias sem rumo: Da institucionalização à reunificação familiar, qual o papel da terapia familiar? Revista de Psicologia da Criança e do Adolescente, 6(1).         [ Links ]

Fontanella, B., Campos, C., & Turato, E. (2006). Coleta de dados na pesquisa clínico-qualitativa: Uso de entrevistas não-dirigidas de questões abertas por profissionais da saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 14(5), 1-11.         [ Links ]

Gulassa, M. (2007). De volta pra casa: A experiência da Casa de Acolhida Novella no fortalecimento da convivência familiar. São Paulo: Fundação Abrinq.         [ Links ]

Ladvocat, C. (2011). Famílias com crianças e adolescentes em situação de risco. In L. Osorio, & M. Valle (Orgs.). Manual de terapia familiar (pp. 39-50). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (1990, 16 de julho). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, p.13.563.         [ Links ]

Martins, C., & Ferriani, M. (2003). Reintegração da criança e do adolescente vitimizados na percepção dos pais. Revista Brasileira de Enfermagem, 56(6), 651-654.         [ Links ]

Minayo, M., & Guerriero, I. (2014). Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 19(4), 1103-1112.         [ Links ]

Minuchin, S., & Fishman, H. (1990). Técnicas de terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Minuchin, S., & Minuchin, S. (1999). Trabalhando com famílias pobres. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Minuchin, S., & Nichols, M. (1995). A cura da família: Histórias de esperança e renovação contadas pela terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Osorio, L. (2011). Novos rumos da família na contemporaneidade. In L. Osorio, & M. Valle (Orgs.). Manual de terapia familiar (pp. 17-26). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Rizzini, I. [Irene], Rizzini, I. [Irma], Naiff, L., & Baptista, R. (2006). Acolhendo crianças e adolescentes: Experiências de promoção à convivência familiar e comunitária no Brasil. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Rizzini, I. (2010). Para além da centralidade da família. Revista Psicologia: Ciência e Profissão, 7(7), 20-22.         [ Links ]

Rizzini, I [Irene], & Rizzini, I [Irma]. (2004). A institucionalização de crianças no Brasil: Percurso históricos e desafios do presente (2ªed.). Rio de Janeiro: PUC-RJ.         [ Links ]

Rocha, P., Arpini, D., & Savegnago, S. (2015). Acolhimento institucional: Percepções de familiares que o vivenciaram. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 67(1), 99-114.         [ Links ]

Rosa, E., Nascimento, C., Matos, J., & Santos, J. (2012). O processo de desligamento de adolescentes em acolhimento institucional. Estudos de Psicologia, 17(3), 361-368.         [ Links ]

Sarti, C. (2004). O jovem na família: O outro necessário. In P. Vannuchi & R. Novaes (Orgs.). Juventude e sociedade: Trabalho, educação, cultura e participação (pp.115-29). São Paulo: Fundação Perseu Abramo.         [ Links ]

Schütz, F. (2014). Bem-estar em crianças de diferentes configurações familiares e em acolhimento institucional. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.         [ Links ]

Silva, M., & Arpini, D. (2013). O impacto da nova Lei Nacional de Adoção no acolhimento institucional: O ponto de vista de psicólogos e assistentes sociais que integram as equipes técnicas. Psicologia em Revista, 19(3), 422-440.         [ Links ]

Siqueira, A., & Dell’Aglio, D. (2007). Retornando para a família de origem: Fatores de risco e proteção no processo de reinserção de uma adolescente institucionalizada. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 17(3), 134-146.

Siqueira, A., Zoltowski, A., Giordani, J., Otero, T., & Dell'Aglio, D. (2010). Processo de reinserção familiar: Estudo de casos de adolescentes que viveram em instituição de abrigo. Estudos de Psicologia (Natal)15(1), 7-15.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Larissa Líbio
E-mail: larissalibio@gmail.com

Dulce Grasel Zacharias
E-mail: dulce@unisc.br

Enviado em: 18/10/2016
1ª revisão em: 11/04/2017
2ª revisão em: 11/05/2017
Aceito em: 21/07/2017

 

 

1 O presente estudo deriva do Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia da primeira autora, orientado pela segunda autora, apresentado à Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
2 Psicóloga, Residente de Psicologia do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde – Saúde da Família.
3 Psicóloga, Mestre em Psicologia pela UNISC e docente do Curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).

Creative Commons License