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Pensando familias

versión impresa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.21 no.2 Porto Alegre dic. 2017

 

ARTIGOS

 

Influência do segredo na dinâmica familiar: contribuições da teoria sistêmica

 

Secrecy and its influence on family dynamics: contributions of the systems theory

 

 

Klaus E. Cavalhieri1, I ; Isabela Machado da Silva2, II; Monica Barreto3, III; Maria Aparecida Crepaldi4, III

I Southern Illinois University – Carbondale
II Universidade de Brasília - UnB
III Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo de caso teve como objetivo ilustrar e compreender a dinâmica de uma família em situação de vulnerabilidade social, considerando os segredos familiares que a permeavam. Relatou-se e discutiu-se um processo de terapia familiar do qual participaram uma senhora, seus dois netos e três bisnetos, atendidos no serviço-escola de uma universidade brasileira. Destacou-se a presença de segredos mantidos com o objetivo de proteção mútua, bem como a aprendizagem de padrões de omissão de informação pelas crianças. Entre as repercussões do segredo, identificaram-se comportamentos sintomáticos que podem ser compreendidos como uma forma de lidar com a ansiedade gerada por esses segredos e uma sensação de insegurança nos relacionamentos. Os segredos mantidos por essa família, que vivia uma situação de vulnerabilidade social, mostraram-se como fatores de risco adicionais a todas as dificuldades já enfrentadas. Os segredos minavam e obscureciam seus recursos familiares, impedindo que contassem com o apoio uns dos outros.

Palavras-chave: Segredos familiares, Terapia familiar, Relações familiares, Avós, Problemas sociais.


ABSTRACT

This case study aimed to illustrate and to comprehend the dynamics of a social vulnerable family, considering their family secrets. Their family therapy process was related and discussed. A woman, her two grandchildren and three great-grandchildren participated in family therapy sessions conducted in a Brazilian university clinic. Secrets aimed to protect other family members were prominent, as also the learning, by the children, of communicative process characterized by concealments. Their family secrets brought as repercussions: symptomatic behaviors comprehended as a mechanism to cope with the anxiety caused by the secrets, and relationship insecurity. The secrets kept by this family, which lived in a social vulnerability situation, acted as additional risk factors to the difficulties already faced by them. The secrets damaged and hided their family resources, preventing their mutual support.

Keywords: Family secrets, Family therapy, Family relations, Grandparents, Social issues.


 

 

Lembre-se das reuniões familiares da sua infância. Os adultos em um quarto e as crianças
em outro. As vozes dos adultos tornam-se mais altas e intensas. Você não consegue resistir e
entra no quarto para checar o que está causando aquela comoção – e então você entra, a
sala fica em silêncio, o assunto sutilmente muda para algo banal…
(Imber-Black, 2014, p. 152)

 

O segredo familiar oculta fatos “que não correspondem às rígidas exigências estabelecidas pelos padrões familiares” (Prado, 1996, p.199) e pode deturpar os processos comunicacionais entre os subsistemas familiares, favorecendo comportamentos sintomáticos no próprio sistema (Imber-Black, 1994). O objetivo deste estudo é ilustrar e compreender, a partir de um estudo de caso, a dinâmica de uma família em situação de vulnerabilidade social, considerando os segredos familiares que a permeiam. Para tal, será relatada e discutida a experiência dos autores no atendimento a essa família, do qual participavam uma senhora na faixa dos 50 anos, seus dois netos e três bisnetos. Com o intuito de contextualizar as experiências da família atendida, abordaremos, a seguir, as possíveis relações entre contexto socioeconômico e dinâmica familiar. Posteriormente, apresentaremos uma breve revisão de obras clássicas e de estudos contemporâneos acerca das implicações do segredo na esfera familiar e de sua compreensão pela abordagem sistêmica.

Contexto socioeconômico e dinâmica familiar

Na contemporaneidade, tem-se tornado cada vez mais visível a diversidade de configurações familiares possíveis, as quais ultrapassam o modelo mãe-pai-filho/a. Nesse contexto destacam-se as famílias chefiadas por mulheres, que, segundo o censo de 2010, compunham aproximadamente 40% dos domicílios brasileiros (http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/05/mulheres-comandam-40-dos-lares-brasileiros). Também merecem destaque as famílias chefiadas por idosos, que, com os proventos de suas aposentadorias, assumem a responsabilidade pelo sustento de filhos, netos e bisnetos especialmente diante de situações de crise econômica. Esta é uma realidade que atinge mais de 17 milhões de famílias brasileiras, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE; http://www.em.com.br/app/noticia/economia/2015/07/19/internas_economia,670003/crise-economica-faz-de-aposentados-os-novos-chefes-de-familia.shtml). Assim, as famílias brasileiras têm se diversificado ao longo do tempo e torna-se cada vez mais frequente a coabitação entre três ou quatro gerações (Mainetti & Wanderbroocke, 2013). De acordo com a revisão da literatura realizada por essas autoras, há fatores, inclusive, que podem levar os avós a assumirem a responsabilidade integral pelos cuidados com os netos: despreparo ou impossibilidade dos pais para cuidarem dos filhos, bem como situações de desemprego, conflito com a lei ou uso de drogas.

O contexto de vulnerabilidade social pode vir a contribuir para a coabitação entre diferentes gerações ou o exercício do papel de cuidador por parte dos avós devido aos desafios que os pais tendem a enfrentar para oferecer um cuidado de qualidade a seus filhos nesse contexto (Fulmer, 1995). As famílias em vulnerabilidade social são compreendidas como aquelas cujas experiências se expressam

no adoecimento de um ou vários membros, em situações recorrentes de uso de drogas, violência doméstica e outras condições que impeçam ou detenham o desenvolvimento saudável desse grupo. Vulnerabilidade social é uma denominação utilizada para caracterizar famílias expostas a fatores de risco, sejam de natureza pessoal, social ou ambiental, que coadjuvam ou incrementam a probabilidade de seus membros virem a padecer de perturbações psicológicas. Tais riscos estão, em geral, associados a eventos de vida negativos, que potencializam e predispõem a resultados e processos disfuncionais de ordem física, social e/ou emocional. (Prati, Koller, & Couto, 2009, p. 404)

Em famílias em situação de vulnerabilidade social – assim como pode ocorrer em famílias pertencentes a quaisquer contextos –, as crianças são, por vezes, cuidadas pela pessoa da rede que está disponível na ocasião, sendo que podem ocorrer trocas constantes de cuidadores. Por um lado, essa organização possibilita que as necessidades físicas da criança sejam atendidas; por outro, essa constante mudança pode estar relacionada a questões emocionais, como medo de abandono, retraimento defensivo ou uma autoconfiança prematura. As adoções informais, comuns nesse contexto, também tendem a influenciar as relações fraternas. Primos podem tornar-se irmãos; avós serem conhecidas como mães, fazendo com que a criança e demais parentes mudem de posição dentro do sistema familiar (Fulmer, 1995).

Conforme destacam Paludo e Koller (2008), parece haver uma tendência a se abordar as configurações adotadas em famílias em situação de vulnerabilidade social a partir de um prisma negativo, que não reconhece o impacto do sistema social na forma como as famílias se organizam. Assim, deve-se destacar que, embora essa estrutura possa parecer desorganizada quando vista a partir de perspectivas que enaltecem a primazia da família nuclear, é necessário compreender essas famílias considerando sua realidade histórica, social e econômica (Fulmer, 1995).

Nesse contexto, a família ampliada, que inclui as relações intergeracionais que ultrapassam a família nuclear, pode constituir um recurso para famílias em situação de vulnerabilidade social ao tornar possível o compartilhamento de funções importantes para a manutenção e o desenvolvimento do sistema familiar. O apoio constante entre diferentes gerações pode ser compreendido como uma resposta ao processo de industrialização das grandes cidades (Ponciano & Féres-Carneiro, 2003). No entanto, essa configuração pode vir acompanhada por uma estrutura caracterizada pelo emaranhamento das fronteiras entre os subsistemas.

De acordo com Minuchin (1982), o sistema familiar possui uma estrutura, que se refere aos padrões relacionais estabelecidos entre os diferentes componentes do sistema familiar, os chamados subsistemas. Os subsistemas são definidos a partir das funções que os membros da família desempenham ou das características daqueles que os integram – tais como idade e gênero – e têm seus limites demarcados pelas chamadas fronteiras. A diferenciação e permeabilidade dessas fronteiras podem ser compreendidas em um continuum entre fronteiras emaranhadas e rígidas. Fronteiras emaranhadas são difusas, e as funções de cada subsistema não são claras. Fronteiras exageradamente rígidas, em contraponto, podem dificultar a comunicação entre os subsistemas. Considera-se que no sistema familiar, as fronteiras não devam ser rígidas ou emaranhadas, mas nítidas, para que haja promoção do desenvolvimento de seus membros. Deve-se destacar, ainda, que pode haver diferentes tipos de fronteiras entre os subsistemas diversos que compõem uma família.

A estrutura familiar tende a variar no decorrer do ciclo vital da família, de forma que as fronteiras podem se tornar mais ou menos permeáveis de forma a atender as necessidades com que a família se depara (Carter & McGoldrick, 1995). A percepção que a família tem de si mesma e do seu contexto também tende a se transformar com o passar do tempo. Ao se deparar com situações de estresse, as famílias ativam os recursos de que dispõem na tentativa de manejá-las. Ao se verem bem-sucedidas diante desses desafios, a forma como se veem tende a ser reforçada. Essa informação é integrada à sua identidade e tende a ser generalizada para desafios futuros, o que favorece sua possibilidade de adaptação, uma vez que acredita ser capaz de superar desafios (Patterson, 2002; Patterson & Garwick, 1994).

Quando em situações de vulnerabilidade social, as famílias têm ampliada a probabilidade de se verem diante de eventos estressores inesperados – como a perda de um emprego ou da própria moradia, o desaparecimento de algum membro familiar, a exposição à violência e a pobreza – vendo-se diante de situações em que as demandas parecem superar os recursos de que dispõem (Fulmer, 1995; Gómez & Kotliarenko, 2010). É possível conceber como esse acúmulo de estressores pode dificultar o processo de reorganização da família. Quando a estrutura familiar não acompanha as necessidades desenvolvimentais dos membros de uma família, ao longo do ciclo vital, pode haver o desenvolvimento de comportamentos sintomáticos (Fulmer, 1995). Esse processo tende a apresentar, ainda, repercussões na forma como a família vê sua capacidade de enfrentar as dificuldades com que se defronta, aumentando sua insegurança em relação a desafios futuros (Gómez & Kotliarenko, 2010).

Atualmente os terapeutas de família têm privilegiado uma visão dessas famílias como multinecessitadas, ou seja, “sistemas carentes de suporte social, repletas de desafios e necessidades não correspondidas” (Pratti et al., 2009, p. 405). Segundo Gómez e Kotliarenko (2010), para que essas famílias possam responder de forma satisfatória aos desafios com que se defrontam – ou seja, demonstrarem resiliência – é necessário reduzir as demandas familiares, aumentar seus recursos e trabalhar o significado atribuído aos eventos estressores.

De acordo com Walsh (2006), alguns dos importantes recursos de que a família dispõe na promoção de sua resiliência são (a) seus padrões organizacionais, ou seja, sua estrutura; (b) seu sistema de crenças; e (c) seus processos de comunicação. Segundo essa autora, a comunicação “facilita a resiliência trazendo clareza a situações de crise, encorajando uma expressão aberta das emoções e contribuindo para formas colaborativas de resolução de problemas” (p. 136). Assim, não é difícil perceber como a presença de segredos pode ser prejudicial à resiliência familiar.

Segredo

Um segredo familiar pode ser compreendido como a omissão intencional de qualquer informação que influencia diretamente os demais membros de uma família ou que lhes diz respeito (Brown-Smith, 1998; Imber-Black, 1994; Rober, Walravens, & Versteynen, 2012). Deve ser, assim, diferenciado da privacidade, cujo conteúdo diz respeito apenas àquele que o guarda, não sendo considerado relevante para a vida, as escolhas ou o desenvolvimento dos demais.

A literatura demonstra que os segredos familiares podem ser classificados em diferentes categorias (Brown-Smith, 1998). Podem diferir, por exemplo, no que se refere à sua amplitude (quantidade de conteúdo que abrangem), sua duração, sua profundidade (referindo-se à intimidade envolta pela informação omitida) e sua valência. Neste sentido, podem ser positivos ou nocivos (Imber-Black, 1994). Os positivos são temporários, normalmente ligados a rituais, como a entrega de presentes ou os segredos mantidos pelos adolescentes para iniciar seu processo de individuação. Os segredos nocivos destroem a confiança nos relacionamentos, podendo criar sintomas no sistema familiar. Por fim, os segredos familiares devem ser compreendidos quanto às suas fronteiras (Brown-Smith, 1998), ou seja, podem ser compartilhados, quando todos os membros de uma família protegem uma informação daqueles que são vistos como não pertencentes ao sistema; internos, quando o segredo é mantido por um subsistema; e individuais, quando uma única pessoa omite um conteúdo dos demais membros da família.

No entanto, como bem assinalam Pincus e Dare (1987), em uma família, segredos jamais “permanecem como propriedades do indivíduo, considerando que os outros membros da família iniciam, como resposta, um processo de influência mútua, fortalecendo ou enfraquecendo os efeitos do segredo” (p. 16). O segredo, portanto, pode ser compreendido como um fenômeno fundamentalmente sistêmico por estar estreitamente ligado aos relacionamentos. Quem sabe do segredo, quem não sabe: essas questões formam díades, triângulos, alianças e coalizões na família, orientando o terapeuta acerca de que forma tais segredos influenciam os relacionamentos. Os segredos familiares podem inclusive aumentar em complexidade, pois a própria existência de uma díade que guarda um segredo torna-se um segredo, o que pode tornar-se um hábito familiar transmitido para outras gerações. As lealdades familiares são também frequentemente guiadas pelo segredo. A capacidade de um sujeito de guardar o segredo pode estreitar ou prejudicar os relacionamentos, talvez pela crença de que, perante uma solicitação de sigilo, sua simples quebra seria o maior ato de deslealdade (Imber-Black, 1994).

Conforme Rober et al. (2012) destacam em sua revisão da literatura, diferentes autores questionaram a forma predominantemente negativa como os segredos têm sido abordados pelos autores da área de terapia de família. Argumentos como a importância de considerar o contexto sociocultural em que se dá a manutenção do segredo, o uso do segredo como estratégia de proteção frente àqueles que possuem mais poder ou que podem se mostrar mais violentos bem como a possibilidade de os segredos contribuírem para a formação de laços íntimos têm sido apresentados (Rober et al., 2012). No entanto, “com frequência, há um preço a se pagar” (Rober et al., 2012, p. 530).

Diferentes estratégias podem ser utilizadas pelos membros de uma família na proteção de um segredo (Rober et al., 2012). Evitar certos assuntos ou revelar as informações para apenas alguns membros da família são algumas delas. De acordo com Imber-Black (1994), a existência de um segredo no sistema familiar “distorce e mistifica os processos de comunicação” (p. 24). Os membros tornam-se excluídos de certas informações. Um segredo nocivo dificulta a comunicação no sistema familiar e compromete a capacidade de resiliência familiar. Quando os relacionamentos estão vinculados a um segredo, toda a comunicação é balizada pelos esforços em mantê-lo, o que pode ameaçar a confiança interpessoal e os relacionamentos familiares (Imber-Black, 1994; Walsh, 2006).

Discrepâncias entre o dito e o não dito, o verbal e o não verbal, passam a marcar os comportamentos familiares (Imber-Black, 2014). Aqueles que guardam o segredo, precisam tê-lo constantemente em mente para não correrem o risco de revelá-lo acidentalmente (Afifi & Caughlin, 2006). “Manter um segredo que vive e respira todos os dias em uma família – câncer, diabetes, alcoolismo, uso de drogas, morte iminente – requer as habilidades de um acrobata em uma corda bamba” (Imber-Black, 2014, p. 157). Assim, cria-se um cenário em que, embora o segredo esteja à vista de todos, não se pode falar sobre ele ou esclarecer suas implicações (Imber-Black, 2014).

Apesar de a intenção, muitas vezes, ser protetiva, crianças costumam perceber a tensão existente e, por não conseguirem explicar o que está acontecendo, podem culpar a si mesmas (Walsh, 2006). Ao buscarem ‘explicar o inexplicável’ (Papp, 1994, p. 77), constroem crenças e mitos que podem manifestar-se por meio de comportamentos sintomáticos. Crianças costumam perceber a tensão no sistema familiar, como bem demonstraram Rhodes, Bernays e Houmoller (2010) em sua pesquisa quanto à experiência da parentalidade de dependentes químicos. Os autores constataram que, embora os pais tentassem manter sua dependência em segredo de seus filhos, como forma de limitar possíveis danos à criança, os filhos identificavam que algo estava errado, mesmo sem saber especificar o quê.

A influência do segredo familiar no desenvolvimento pessoal é amplamente discutida pela literatura (Baker, Tabacoff, Tornusciolo, & Eisenstadt, 2003; Passmore, Feeney, & Foulstone, 2007; Melo, Magalhães, & Féres-Carneiro, 2014). Em seu estudo, Baker et al. (2003) compararam um grupo de 29 jovens que já haviam cometido crimes sexuais (young sex offenders) com um grupo de 32 jovens com transtorno de conduta. Os autores constataram que as famílias do grupo de jovens que cometeram assédio sexual possuíam mais relacionamentos familiares balizados pelo segredo e propõem o segredo de família como um fator de risco ao desenvolvimento. Em seu estudo quanto ao segredo da adoção nas famílias, Passmore et al. (2007) entrevistaram 144 pessoas adotadas sobre a abertura ou o sigilo quanto à adoção, por meio de questionários e entrevistas qualitativas. Os autores constataram que as famílias adotivas que mantinham um relacionamento honesto e aberto quanto à adoção tendiam a apresentar mais comportamentos de cuidado e menos comportamentos de controle. Em oposição, famílias nas quais a adoção manteve-se em segredo apresentavam membros com maiores sentimentos de solidão, apego evitativo e ansioso bem como maiores índices de problemas em relacionamentos íntimos.

A manutenção do segredo também pode se mostrar prejudicial àqueles que o guardam. Em uma pesquisa com 342 indivíduos adultos que guardavam um segredo, Afifi e Caughlin (2006) constataram que a ruminação relativa ao segredo mostrou-se correlacionada negativamente à autoestima e positivamente com preocupações quanto à própria identidade. Ou seja, aqueles que mais se preocupavam com o segredo apresentavam uma menor autoestima e mais preocupações em relação à própria identidade.

Assim, o segredo e o sintoma frequentemente mostram-se relacionados, podendo ser compreendidos de quatro maneiras. Primeiramente, como já abordado, o sintoma pode surgir por conta da constante manutenção do segredo, pois aqueles que o guardam tornam-se ansiosos pelo receio de que alguém o descubra, enquanto aqueles que não têm conhecimento do segredo tornam-se ansiosos por perceberem a tensão no sistema (Imber-Black, 1994). Uma segunda possibilidade consiste em o sintoma funcionar como metáfora de determinado segredo, “uma expressão simbólica de emoções poderosas conectadas a ele [o segredo]” (Imber-Black, 1994, p. 26). Uma terceira possibilidade é o sintoma (alcoolismo, Aids, transtornos mentais, etc.) ser mantido em segredo da família ou pela família – frequentemente por conta da vergonha e estigmatização inerentes ao sintoma –, o que compromete os recursos aos quais a família pode recorrer (Mason, 1994; Rassin, 2011). Por fim, o sintoma pode funcionar como distração para algum segredo insuportável, evitando que se fale sobre ele a qualquer custo (Imber-Black, 1994).

Embora a decisão sobre manter ou revelar um segredo seja complexa e haja uma constante tensão entre as duas opções (Rober et al., 2012), diferentes motivos podem contribuir para que o(s) membro(s) de uma família opte(m) por sua manutenção. Entre eles, podemos mencionar o desejo de proteger a si mesmo ou a membros da família, o desejo de resguardar a própria imagem ou a imagem familiar e o temor de que falar sobre o assunto pode piorar a situação (Brown-Smith, 1998; Imber-Black, 2014; Rober et al., 2012). Tende a haver, portanto, uma preocupação em relação aos possíveis riscos relacionados à revelação do segredo.

A expectativa de que um membro da família responda de forma negativa ou agressiva à revelação de um segredo está relacionada à continuação do segredo em si. Assim tem origem o ciclo do segredo, que se perpetua no sistema familiar. Uma possível solução para quebrar tal ciclo pode ser a simples revelação do segredo (Afifi & Steuber, 2010). No entanto, embora a intimidade entre os membros de uma família possa contribuir para a revelação dos segredos (Vangelisti & Caughlin, 1997), esta nem sempre é facilmente alcançada.

Deve-se considerar ainda que cada membro de uma família tende a atribuir um significado específico ao segredo em questão. Aquilo que um percebe como um segredo visando à proteção do sistema familiar pode ser visto por outro como traição.

Orgad (2015) sugere que o segredo familiar é permeado pela relação entre o sistema cultural (macrocontexto), familiar (mesocontexto), e psicológico (microcontexto), devendo ser compreendido por meio de seu contexto socio-histórico. O segredo familiar, então, é marcado pelas regras sociais quanto a gênero, cultura e classe social, por exemplo (Imber-Black, 2003). Dessa forma, não é no segredo em si, mas em seu conteúdo que se encontram “as origens do estigma, vergonha e o medo da revelação e da dissolução da família, que alimenta poderosamente o processo de manutenção do segredo” (Imber-Black, 1994, p. 22).

O segredo e a terapia de família

Os segredos familiares apresentam um verdadeiro dilema para o sistema terapeuta-cliente: a revelação de um segredo pode ter efeitos curativos, perigosos, reconciliatórios ou até mesmo divisórios, tendo grande importância para o processo terapêutico (Imber-Black, 1994) e o desenvolvimento da família. Contudo, o trabalho terapêutico não deve focar somente a revelação. O terapeuta deve estar atento para “não presumir de modo simplista que a sinceridade, apenas, oferece a cura” (Imber-Black, 1994, p.37).

Os terapeutas devem, ainda, considerar os objetivos da manutenção do segredo. O segredo mantido por intenções protetivas é diferente daquele mantido por coerção ou abuso, sendo normalmente mais fácil reestabelecer a confiança em segredos protetivos. A revelação de um segredo pode acabar por criar outros ou exercer pressão sobre outros segredos ainda mais obscuros, fazendo necessária a existência de um ambiente terapêutico capaz de abarcar as mais diversas respostas decorrentes de uma eventual revelação de segredos familiares (Imber-Black, 1994; Melo et al., 2014). Assim, os terapeutas devem criar um ambiente seguro e apto a sustentar as diversas percepções (frequentemente contraditórias) do segredo e de sua manutenção. Enquanto os significados vinculados ao segredo mudam, torna-se possível a mudança do relacionamento entre as gerações (Imber-Black, 1994).

Objetivo

Alguns dos estressores a serem enfrentados pelas famílias em situação de vulnerabilidade social tendem, por seu próprio conteúdo, a se mostrarem envoltos em uma aura de segredos, como a exposição a situações de violências ou o uso de álcool e drogas. Além disso, é possível hipotetizar que o segredo pode ser usado por essas famílias como uma maneira de proteger a estrutura atual e evitar a necessidade de lidar com estressores adicionais, em um contexto já permeado por tantas dificuldades. No entanto, segredos tendem a prejudicar a comunicação e a intimidade dessas famílias (Walsh, 2006), minando ou invisibilizando recursos que, por vezes, já se mostram escassos. Dessa forma, torna-se necessário compreender o lugar que o segredo familiar ocupa em famílias em situação de vulnerabilidade social. Portanto, o objetivo deste estudo é ilustrar e compreender, a partir de um estudo de caso, a dinâmica de uma família em situação de vulnerabilidade social, considerando os segredos familiares que a permeiam.

 

Método

O objetivo do estudo de caso é compreender determinada situação de forma aprofundada e contextualizada (Gliner, Morgan, & Leech, 2009). Os estudos de casos possibilitam uma análise detalhada, tornando-se uma fonte de ideias para gerar novas hipóteses para futuras pesquisas (Heppner, Wampold, & Kivlighan, 2008), além de ajudar a compreender os resultados de pesquisas já realizadas e permitir o reconhecimento das pluralidades em oposição às tendências gerais (Eisner, 2003).

Este estudo de caso se baseia no relato e na discussão da experiência dos autores no atendimento a uma família, atendida no serviço-escola de uma universidade brasileira. A família foi atendida na modalidade de terapia familiar relacional sistêmica, com coterapia e equipe reflexiva (Andersen, 2002). Os atendimentos eram quinzenais e ocorreram por aproximadamente dois anos, sendo registrados em breves relatos, que foram mantidos arquivados pela equipe. Para este artigo, todos os relatos foram revisados. Para iniciar o tratamento, a família assinou um termo de consentimento livre e esclarecido, permitindo o uso dos dados para fins de pesquisa. Para a elaboração do artigo, buscou-se preservar a confidencialidade da família através do uso de nomes fictícios, bem como da não exposição de informações que possibilitem sua identificação.

Relato do caso

Dona Luíza, 57 anos, foi quem buscou atendimento. Era casada com Alexandre, com quem teve nove filhos. Na casa de Luíza, moravam (a) ela e seu marido, (b) seus filhos Paulo, Gabriela, Ângela e Fábio, (c) seus netos Bruno, Douglas (filhos de Gabriela), Mariana e Pedro e (d) seus bisnetos Daniela, Vinícius e Priscila.

Mariana (9) e Pedro (6) eram filhos de Fernanda, que também era mãe de Aline (1). Fernanda era dependente química e portadora do HIV. Mariana, no início de sua vida, foi cuidada pela mãe, que era moradora de rua, passando por muitas dificuldades: sua fralda era raramente trocada, o que deu origem a crônicas e severas infecções do trato urinário. Assim que Pedro nasceu, ele e sua irmã mais velha foram informalmente adotados por sua avó, Luíza. Pedro não conviveu com sua mãe e não a reconhece como tal, chamando sua tia Gabriela, que mora com ele, de mãe. Aline mora com a mãe (Fernanda), em outra cidade. Mariana e Pedro encontravam-se no grupo de risco quanto à infecção pelo HIV. A avó levava as crianças, com frequência, para fazerem testes para verificar se elas se mostrariam portadoras do vírus ao longo do seu desenvolvimento. As crianças, porém, não eram informadas sobre a finalidade dos testes, acreditando se tratar de exames de rotina. Ao entrar na escola, a menina apresentou dificuldades e repetiu a primeira série, o que a levou a buscar aulas de reforço. Mariana era muito afetuosa, mas tinha dificuldade em compreender limites e ocasionalmente roubava pequenos objetos para presentear alguém. No início do processo terapêutico, Mariana demonstrou relutância em compartilhar com a avó as saudades que sentia de sua mãe, a quem raramente via. Pedro frequentava uma escola de educação infantil e demonstrava agressividade no ambiente escolar. A avó parecia não saber quem era o pai dos dois ou se tinham o mesmo pai.

Daniela (7), Vinícius (4) e Priscila (2) eram filhos de Isabela, bisneta de Luíza, que também era dependente química e teve seus filhos ainda adolescente. O pai das crianças encontrava-se preso, e Luíza não tinha contato com ele. No início da terapia, Luíza frequentemente dizia a Daniela, Vinícius e Priscila que seu pai estava viajando. Isabela vivia com um novo parceiro, mas a família não era próxima dele. Daniela e Vinícius moraram com a mãe durante um tempo, mas eram constantemente deixados na casa de Luíza, para que esta cuidasse deles. Eventualmente, os dois passaram a morar permanentemente com ela. Priscila, por sua vez, morava com Luíza desde seus 4 meses de idade e a chamava de mãe. Isabela nunca informou ninguém onde morava, e Luíza relatou que as crianças voltavam abatidas e chorosas após visitá-la. Daniela recusava-se a contar para a avó o que acontecia nas visitas. Inicialmente, Luíza não se sentia no direito de impor limites às visitas de Isabela às crianças.

Além das situações já mencionadas, outros segredos foram identificados no decorrer da terapia. Também morava na mesma casa outro neto de Luíza, Douglas, que já se encontrava na adolescência e que veio a apenas uma sessão por não se sentir confortável com as crianças. Certa vez, Douglas foi agredido por um grupo de meninos e Pedro, que viu tudo, foi coagido a não contar a ninguém o que aconteceu. Luíza decidiu que Douglas mudar-se-ia para a casa de uma de suas filhas, em uma cidade próxima, mas não contou às crianças, dizendo somente que ele havia ido visitar a tia.  Pedro passou a se mostrar mais irritadiço e agressivo.

Além disso, ao longo da terapia, tanto Luíza como Alexandre tiveram que se submeter a cirurgias. No entanto, em ambas as ocasiões, omitiram a razão de sua ausência das crianças.  Depois desses afastamentos, as crianças aparentavam estar muito agitadas e, ao mesmo tempo, chorosas – em especial, Vinícius.

A relação estabelecida entre a família C. e os terapeutas foi adaptada ao funcionamento familiar, levando em consideração a idade das crianças e sua realidade sociocultural. O formato de equipe reflexiva utilizado diferenciou-se daquele proposto por Andersen (2002), uma vez que seus membros adotavam uma postura ativa ao longo de toda a seção, respondendo às iniciativas de aproximação das crianças, com o intuito de fortalecer sua confiança e o vínculo com o setting terapêutico.

Buscou-se compreender como a agressividade de Pedro, o silêncio de Daniela e os eventuais roubos de Mariana relacionavam-se e qual era o seu lugar no sistema familiar. Durante o curso da terapia, atividades lúdicas, como a família de bichos, foram utilizadas para que as crianças pudessem compartilhar sua forma de ver a família tanto com os terapeutas e a equipe como com a avó/bisavó. Momentos individuais entre as crianças e os membros da equipe, durante aos quais se recorreu a desenhos, também foram adotados para que as crianças pudessem expressar sentimentos que tinham receio de revelar à avó.

Buscou-se também oferecer a Luíza um espaço onde ela pudesse pensar sobre seu papel junto às crianças e empoderar-se para tomar as medidas necessárias para protegê-las. Atitudes protetivas demonstradas por Luíza – p. ex., buscar formalizar a guarda das crianças e assumir de forma clara o seu papel de cuidadora – foram conotadas positivamente (Palazzoli, Boscolo, Cechin, & Prata, 1988; Umbelino, 2003). No decorrer do tratamento, segredos como quem seria o pai de Mariana e Pedro; o fato de Mariana e Pedro estarem no grupo de risco para infecção por HIV; a prisão do pai de Vinícius e Priscila; a cirurgia de Alexandre e Luíza; e a mudança de Douglas, foram abordados cautelosamente e compartilhados com os membros do sistema familiar, na segurança do setting terapêutico, a fim de reduzir sentimentos de agressividade e ansiedade vivenciados pelas crianças.

 

Discussão

Como relatado por Fulmer (1995), em famílias em situação de vulnerabilidade social, as crianças podem vir a ser cuidadas pela pessoa da rede familiar mais disponível no momento, o que ajuda a atender às necessidades físicas, mas pode estar relacionado a impactos emocionais. A adoção informal mostrou-se frequente na história da família C., levando em consideração que Luíza, já uma bisavó e, teoricamente, em outro momento do seu ciclo de vida, cuidava de dois netos e três bisnetos, visando dar um maior apoio às crianças. A complexidade da situação que se estabeleceu demandou que diferentes aspectos fossem levados em consideração para que o processo terapêutico pudesse atender às necessidades de cada membro dessa família.

Por um lado, devemos considerar que o cuidado da avó propiciou às crianças maior segurança, afastando-as de situações adversas. A configuração da família C. possibilitou uma divisão de funções e papéis entre seus membros, oferecendo-lhes mais recursos para reagir a situações estressoras (Fulmer, 1995; Ponciano & Feres-Carneiro, 2003). Isso ficou claro pela relação estabelecida entre adultos e crianças, na qual Pedro tinha Gabriela como referência adulta, enquanto Priscila aproximava-se mais de Luíza. Essa divisão de papéis e funções parece ter contribuído para propiciar às crianças maior segurança e estabilidade, colocando cada uma delas mais próxima de um membro que exercia uma função parental.

Por outro lado, no que se refere à Luíza, é necessário considerar que a sobreposição do papel de avó ao de principal responsável apresenta desafios a que se deve atentar e que se mostram “culturalmente específicos e refletem noções ocidentais do que são relações intergeracionais apropriadas” (Campbell & Handy, 2011, p. 436-437). Entre os diversos desafios que podem ser enfrentados por essas mulheres, encontram-se conflitos com os pais biológicos de seus netos, assim como sentimentos de isolamento, falta de reconhecimento, frustração e injustiça (Backhouse & Graham, 2012, Campbell & Handy, 2011). O conflito de papeis pode, ainda, contribuir para situações como a observada na família C.: embora Luíza fosse a principal cuidadora e sentisse que as atitudes de Isabela poderiam colocar seus filhos em risco, ela não se sentia autorizada a impor limites às visitas, uma vez que sentia que Isabela era a mãe e não ela. Diante dessas diversas questões, a terapia consistiu em um importante espaço de apoio, reflexão e empoderamento para essa senhora, que exercia diversas – e, por vezes, contraditórias – funções. Dessa forma, os terapeutas precisaram trabalhar a estrutura dessa família (Minuchin, 1982) e reforçar as fronteiras entre esse núcleo familiar chefiado pela avó e o novo núcleo familiar constituído por Isabela e seu companheiro, para que ela pudesse proteger as crianças.

No entanto, embora as fronteiras entre os diferentes núcleos familiares se mostrassem inicialmente difusas, as fronteiras entre os subsistemas adulto e infantil mostravam-se excessivamente rígidas. Eram estabelecidos limites que determinavam que as crianças não deveriam ter acesso a determinadas informações ou que não deveriam ter sua “voz” considerada como a de um adulto, como se o que tivessem a dizer não fosse igualmente importante.

Em poucos momentos durante as sessões de terapia, as crianças foram estimuladas, pelos adultos da família, a expressarem seus sentimentos, predominando pedidos para que ficassem quietas ou para que “engolissem o choro”. Dessa forma, é possível dizer que as mensagens dos adultos constituíam um duplo-vínculo (Watzlawick, Beaum, & Jackson, 1967), apresentando às crianças duas demandas contraditórias: ao mesmo tempo em que seus sentimentos eram desvalorizados, as crianças eram compelidas a agir como adultos e a arcar com responsabilidades que não se mostravam de acordo com o estágio desenvolvimental em que se encontravam. Embora devamos considerar que, de certa forma, esse movimento pudesse representar uma tentativa de proteger as crianças e prepará-las para enfrentar o contexto em que viviam, não se deve ignorar os possíveis efeitos que esse “amadurecimento precoce” poderia exercer sobre o seu desenvolvimento.

No que se refere à comunicação, identificaram-se segredos protetivos: Luíza não contava aos netos que estavam no grupo de risco de contágio de HIV, o porquê de seus bisnetos não poderem mais ver a mãe, que ela e o marido realizariam uma cirurgia ou que Douglas se mudaria por estar em risco na comunidade. Pode-se identificar o objetivo de proteger as crianças atrelado à ideia de que elas não saberiam como lidar com essas revelações, que as mesmas lhes trariam mais sofrimento. No entanto, como bem reforça Papp (1994), ao perceberem a existência de um segredo, crianças podem tornar-se ansiosas e confusas, frequentemente culpando a si mesmas por esses sentimentos. Ao tentar explicar o que não compreendem, criam mitos e fantasias, que podem manifestar-se por meio de comportamentos sintomáticos. Diversos comportamentos das crianças da família C. podem ser relacionados a essa tentativa de ‘explicar o inexplicável’. Quando Douglas foi agredido e mudou-se para a casa de sua tia, Pedro não sabia que ele estava se mudando, o que pode ter contribuído para seu comportamento agressivo e choroso. A tensão criada pelo segredo pode tê-lo feito temer pelo rompimento dessa relação, sem conseguir decifrar o porquê de sua angústia.

Além dessa tensão manifestada pelas crianças, os segredos parecem ter contribuído para a dinâmica familiar de outras duas formas: a aprendizagem de um padrão comunicacional marcado pela omissão de informações, bem como uma sensação de insegurança em relação aos relacionamentos. Mariana, por exemplo, não revelava as saudades que sentia de sua mãe por temor de que a avó ficasse triste ou brava. Daniela não contava à avó o que acontecia na casa da mãe, talvez por lealdade a esta. Esse comportamento fez com que as meninas não acessassem recursos importantes para lidarem com os desafios que enfrentavam: o apoio, a compreensão e a proteção de seus cuidadores. A impossibilidade de se comunicar de forma aberta prejudica a intimidade e a resiliência familiar (Walsh, 2006), contribuindo para a situação de vulnerabilidade e para um sentimento de solidão. Este pode ter justamente reforçado a insegurança que essas crianças demonstravam em seus relacionamentos.

Essa insegurança pode ser bem compreendida se considerarmos que essas crianças vivenciavam uma realidade em que pessoas significativas se afastavam de seu convívio sem quaisquer explicações. O contato com os pais era encerrado, os avós desapareciam e retornavam, sem que elas pudessem ter certeza de que não haviam feito nada de errado para causar esses afastamentos e gerando um estado de insegurança, que era demonstrado de diferentes maneiras por elas. Mariana relacionava-se com as pessoas de forma muito afetuosa, por vezes, não compreendendo os limites e roubando para poder agradar a alguém. Pedro, através da agressividade demonstrada, parecia expressar tanto a necessidade de querer manter distância em seus relacionamentos pessoais como, de certa forma, de controlá-los. Conforme sugeriram Passmore et al. (2007), segredos na família podem contribuir para o desenvolvimento de padrões de apego ansiosos e evitativos, cujas manifestações assemelham-se aos comportamentos demonstrados por Mariana e Pedro.

É importante que, no sistema familiar, tenha-se claro o quão importante são as informações para os diferentes subsistemas (Brown-Smith, 1998; Imber-Black, 1994, Rober et al., 2012). Por mais que a presença de segredos na família seja, de certa forma, inevitável e possa inclusive auxiliar no estabelecimento de fronteiras entre os subsistemas, deve-se tomar especial cuidado quanto aos segredos que implicam a criança diretamente.

 

Considerações finais

Os segredos, presentes na dinâmica familiar e, em diversos momentos, no próprio contexto terapêutico, mostraram-se relevantes para a forma como os membros relacionavam-se entre si e para seu desenvolvimento, em especial no que se refere ao comportamento das crianças. Mariana, Pedro, Daniela, Vinícius e Priscila, todos apresentavam diferentes comportamentos perante essa realidade: distanciamento, agressividade, medo do abandono. Os segredos mantidos por essa família, que vivia uma situação de vulnerabilidade social, mostraram-se como fatores de risco adicionais a todas as dificuldades enfrentadas. Os segredos minavam e obscureciam seus recursos, impedindo que contassem com o apoio uns dos outros e reforçando sentimentos de insegurança e isolamento.

Espera-se que este estudo possa contribuir para ilustrar e compreender as possíveis repercussões dos segredos familiares em famílias em situação de vulnerabilidade social com crianças. Há espaço, na literatura nacional, porém, para que esse tema seja aprofundado e para que se elucidem as possíveis consequências do segredo e as formas de trabalhá-lo no ambiente terapêutico. Fazem-se necessários estudos longitudinais, qualitativos e quantitativos, que abordem tal tema no contexto social brasileiro a fim de melhor instrumentalizar terapeutas familiares.

 

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Endereço para correspondência
Klaus E. Cavalhieri
Life Science II, Room 229A, Southern Illinois University – Carbondale
Carbondale, IL, EUA, CEP: 62901
E-mail: klauscavalhieri@gmail.com

Enviado em: 30/11/2016
Aceito em: 07/03/2017

 

 

1 Doutorando em Psicologia Clínica na Southern Illinois University – Carbondale.
2 Psicóloga, Doutora em Psicologia pela UFRGS, com especialização em terapia de famílias pelo Domus. Professora do Departamento de Psicologia Clínica da UnB.
3 Psicóloga do Serviço de Atenção Psicológica da Universidade Federal de Santa Catarina, mestranda do Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFSC, com especialização em terapia relacional sistêmica pelo Familiare.
4 Psicóloga, Doutora em Psicologia pela Unicamp e Professora Titular da Universidade Federal de Santa Catarina.

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