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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.22 no.1 Porto Alegre jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

A traição que caiu na rede: sofrimento alheio?

 

The betrayal that fell on the net: suffering from others?

 

 

Ana Carina Motta Klein1, I ; Helena Centeno Hintz2, II

I Universidade Luterana do Brasil, Cachoeira do Sul
II Domus - Centro de Terapia Individual, de Casal e Família

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da observação de que discussões sobre o tema da traição em tempos de redes sociais tem ganhado visibilidade no facebook, propõe-se aqui uma análise exploratória do tema a partir de uma postagem do Caso Sorocaba. Busca-se atingir os seguintes objetivos: 1) Investigar a traição na rede como um fenômeno da subjetividade contemporânea; 2) Compreender a linguagem da traição: do sofrimento ao ato e 3) Analisar a infidelidade deflagrada a partir do advento das redes sociais para a vida em sociedade. Os resultados desse artigo apontam para o mal estar do sujeito contemporâneo, descritos pelo seus excessos, explosões e desamparo. Portanto, observou-se um cenário de necessidades e de aprendizagens para os relacionamentos amorosos na contemporaneidade.

Palavras-chave: Traição, Facebook, Mal estar contemporâneo.


ABSTRACT

Based on the observation that discussions on the theme of betrayal in social networking times have gained visibility on Facebook, it is proposed here an exploratory analysis of the topic from a posting of the Sorocaba Case. It seeks to achieve the following main objectives: 1) Investigate betrayal in the network as a phenomenon of contemporary subjectivity; 2) Understand the language of betrayal: from suffering to act and 3) Analyse infidelity triggered from the advent of social networks to life in society in society. The results of this article point to the malaise of the contemporary subject, described by his excesses, explosions and helplessness. Therefore, a scenario of needs and learning for contemporary love relationships was observed.

Keywords: Betrayal, Social network, Contemporary malaise.


 

 

Introdução

As relações de casais encontram, na maior parte das vezes, um pilar central, na confiança, “Confio em ti”, é uma das frases que asseguram que a relação adquiriu uma boa qualidade. Mas o que significa esse confio em ti? Pereira (2015) tenta resumir pela ideia de confiar ao outro um pouco de si, seus pequenos ou grandes segredos; ou então com a confiança que o outro não utilizará o que sabe para fazer qualquer dano, nem trair, obtendo daí algum privilégio.

Viver a dois, pressupõe este pacto, nem sempre explícito, que vai sendo cumprido, com a expectativa de que se trate de um jogo colaborativo explicado pelo autor acima, com o típico ganha-ganha. Porém, se caso um dos jogadores percebe que sua confiança foi traída, pode retirar-se do jogo - a exemplo das situações de infidelidade. Contudo, se a traição não é tão clara, observa-se outros movimentos, pois as triangulações qualificadas através dos conflitos de lealdades, "obrigações familiares" ou até mesmo ausências de condições para a "retirada", muitas vezes faz o jogo seguir, com atravessamentos e a brusca mudança de um jogo colaborativo para um jogo competitivo.

O jogo competitivo, como explica Pereira (2015) possui como objetivo “ganhar”, mesmo que o custo seja do casal “perder”. E quando não se pode ganhar, ao menos “perder menos” é o que, o "cônjuge-traído", acaba vivendo com um sabor de vitória. Tal condição de suportar perder, diante de ser o "menos pior", fica muito difícil quando houve exposição pública da infidelidade nas redes sociais. O jogo competitivo reúne outros interesses além dos afetivos e relacionais, explicados nas cinco dimensões (Moore, In Souza & Polivanov, 2017): do que é ou pode se tornar público, da midiatização, da performatividade, da coletividade e do valor intencional. Nesse sentido, a traição adquire nos tempos de redes sociais, novos sentidos.

Diante das dúvidas envolvidas na definição do que seria infidelidade, foi realizado uma pesquisa constituída por 289 indivíduos (68 homens e 221 mulheres) através de um "Questionário de Concepções da Infidelidade". Este era constituído por 13 cenários com situações hipotéticas, com diversos parâmetros que teriam que ser avaliados numa escala de cinco pontos, se era infidelidade e qual a sua gravidade. Além de ser proposta uma avaliação em que os entrevistados pudessem ser o "autor" da infidelidade, também respondiam como juízes - avaliando a opinião do parceiro. Os resultados indicaram que ambos os sexos penalizam mais o envolvimento sexual por comparação com o afetivo e atribuem maior gravidade quando ele é continuado e não se limita a uma única relação sexual.

Os autores do estudo, Viegas e Moreira (2013) sugerem que a maior penalização pontuada para o envolvimento sexual continuado - e não pontual, poderia estar relacionado com o componente relacional, mais do que com a repetição do componente sexual em si. Mas afirmam que esse deve ser o foco de futuros estudos. Observa-se, portanto, nessa pesquisa, uma multiplicidade de formas dela ocorrer, porém, com degraus de intensidade.

De qualquer forma, a infidelidade é considerada uma das experiências mais difíceis, complexas e exigentes para os casais, apresentando-se como a principal causa de procura para terapia de casais (Viegas & Moreira, 2013). Porém segundo esses autores, a perturbação maior não é decorrente dos devidos acontecimentos, mas dos significados atribuídos a experiência da infidelidade. Essa constatação passa a ser um divisor de águas na exploração dessa temática, que implica em elucidar a linguagem da traição: do sofrimento ao ato, ela está tecida na história dos homens e na sua cultura.

Ao avaliar as questões da fidelidade/infidelidade no espaço das redes sociais, tem se observado que aí se incrementa aspectos que geram novos significados aos relacionamentos. Santos e Cerqueira-Santos (2016) recapitulam que hoje é possível se relacionar com alguém num nível de intimidade afetivo e emocional, a partir de um contato virtual de cunho sexual, por exemplo.  A partir daí os casais precisam revisar o contrato estabelecido para eles, elucidando o que compreendem sobre ser um ato de infidelidade, pois no contexto da internet, nem sempre a relação virtual se concretiza no encontro físico. Assim, para algumas pessoas, esse flerte virtual já se configura uma traição, enquanto para outras, a mesma só se configura em meio físico, no toque, nas relações sexuais, beijos, etc. Haack e Falcke (In Santos e Cerqueira-Santos, 2016) apontam que os sujeitos que se relacionam virtualmente podem ser mais infiéis do que aqueles que se relacionam pessoalmente. Tal fato se justifica pela facilidade em iniciar e finalizar tal relação, sem complicações ou entreveros.

Portanto, nos dias atuais, quais são os significados atribuídos e vivenciados na traição? Seguindo na linha do tempo de acordo com o provérbio latino: "apressa-te lentamente", chegou-se ao século XXI onde a traição amorosa é cena de reality show. A experiência da traição apontada como uma das mais dolorosas experiências humanas ganhou um palco e plateia. (Black, 2002; Santos & Cerqueira-Santos, 2016). Tem se assistido através das redes sociais, inúmeros casos em que o flagrante é filmado e jogado para a platéia de milhões e milhões de internautas, que passam a dar as suas opiniões e comentários, julgando o caso como se fossem sua propriedade particular.

A análise que será percorrida abordará a traição na rede como um fenômeno da subjetividade contemporânea. Os seus significados serão pensados a partir da discussão que evoca quem é o sujeito contemporâneo, seu mal-estar e especificamente a cena da dor da traição exposta.

Inicialmente, propõe-se pôr um zoom para a definição de contemporaneidade.

O tema da linguagem da traição só pode ser analisado a partir de um lugar na história. Mas como avaliar e compreender o sujeito e suas intempestividades numa época, em que justamente se orgulha de seus feitos narcísicos, onde em algum momento da história se é devorado pela construção que alienadamente cada sujeito participa e tem sua vez, como canibais, consumidores dos dados das redes sociais?

Nietzche, filósofo da transição século XIX para o século XX, situou a sua exigência de "atualidade", a sua "contemporaneidade" em relação ao presente, pressupondo desconexão e dissociação. Quer dizer, que a lição proposta foi perceber, que realmente pertence ao seu tempo aquele que não coincide perfeitamente com este. Essa brecha, é vista como um anacronismo, que capacita esse perceber e apreender o seu tempo. Isso tão pouco significa que se pode fugir a esse tempo. As dimensões do oculto, do invisível, do amorfo e do inapreensível são elementos para a construção do contemporâneo (Angamben, 2009).

Perceber o que há de contemporâneo na traição, implica em sentir-se, portanto nesse lugar que quer falar de um tema-palavra, com o impacto de ser natural e, por isso, parecendo estar explicado suficientemente. Porém ao ouvir uma certa inquietação advinda da brecha, encoraja-se para seguir caminhando rumo a novas interpretações (Horstein, 2003; Polivanov, 2017).

Assim vê-se, que a interpretação está intimamente ligada a uma questão de fundo, que é a compreensão não somente do sujeito na linguagem que o representa e da sua relação com o mundo e os seres. Mas também com a posição do sujeito no contexto do funcionamento da cultura a partir de reflexões sobre parâmetros de sociabilidade e historicidade (Angamben, 2009; Horstein, 2003).

Para entender o sujeito contemporâneo, recorre-se, então, às clássicas referências de tempo e espaço. O tempo? Encontra-se perdido. No mundo virtual, existe apenas um estado de tempo: o instantâneo, o agora. Sem antes e depois, haja visto que as memórias não são necessárias diante do espaço nas nuvens para armazenar. A compreensão da perda da dimensão do tempo, fica claro, quando percebe-se que esse sujeito que vive a experiência do não-controle, só tem espaço. O espaço infinito da rede virtual. Porém, sem fronteiras para demarcar, sustentar ou lhes atribuir referências do que singularmente o pertence (Birman 2001; Horstein, 2003).

A compreensão trazida no artigo de Panachão (2008) sobre o surgimento de patologias vinculadas a super adaptação leva a refletir que: "... cada discurso sociocultural se acha regido pela aspiração inerente de adequar os sujeitos ao ideário em vigência", ou seja, a adequação acrítica e absoluta aos modelos culturais predominantes. Ditas patologias parecem tão familiares, que podem cegar diante do que está sendo visto, já que respondem ao esperado nessa época e lugar. Essa constatação aponta a estreita relação com as problemáticas ligadas às formas de alienação próprias de cada período (Panachão, 2008).

Diante desse exercício de distanciar-se para elucidar, todos os sujeitos estão desafiados a pensar na linguagem da traição na cultura contemporânea. O que antes, a traição apontava para a privação do cuidado, ou de valores sociais de compromisso e confiança, hoje aponta para o amor descartável, o desmantelamento das relações e a ilusão da apropriação do outro. Ou seja, os indivíduos sofrem na nossa cultura da pós-modernidade, uma ansiedade ligada às diferentes formas e perspectivas de se relacionar amorosamente. Segundo Santos e Cerqueira-Santos (2016) o caráter cada vez mais superficial e até mesmo banalizado dos relacionamentos e vínculos são observáveis no cotidiano relacional.

Na obra Amor Líquido de Baumann (2004), esse reconhecido sociólogo se diz inspirado no personagem DerMann - herói do romance de Robert Musil. DerMann é o homem sem vínculos: não possui ligações do tipo indissolúveis e definitivas. Como um ser desligado, precisa apenas conectar-se, sem grandes delongas e envolvimentos pesados ou confusos - como seriam os relacionamentos autênticos.

O herói retratado é o cidadão da líquida sociedade moderna, que usa falar em conectar-se ou conexões ao invés de relacionar-se ou relacionamento. O autor analisa que um relacionamento, que se apresenta por exemplo, como indesejável, mas impossível de romper, como a situação mais traiçoeira que se possa imaginar.

Nesse momento a dicotomia das relações virtuais em contraponto com as relações antiquadas, dominam um cenário em que as relações virtuais são fáceis de entrar e sair, assegurando uma sonhada e idealizada liberdade diante da armadilha de relacionamentos autênticos, pesados, lentos e confusos.

Birman (2001) ensina que são três os registros que marcam o mal-estar do sujeito contemporâneo: o corpo, a ação e a intensidade. O corpo é considerado o bem supremo. Não há nada equiparado a ele quanto ao prestígio conferido, tanto da ciência quanto das mídias. Parece que todos os outros bens desapareceram ou relativizaram, nem mesmo a alma, nem Deus, competem com ele. O culto ao corpo, portanto, cria o sintoma de inúmeras queixas corporais. O fato é que se está sempre em dívida com o corpo, faltosos em fazer tudo o que pode ou que se deveria fazer, pois oportunidades e promessas não param de chegar. O corpo é a “caixa de ressonância privilegiada do mal estar” (Birman, 2001, p. 69).

O mal estar incide também na ação.  ...o ser interiorizado no registro do pensamento se transforma no ser exteriorizado e performático, que quer agir, antes de mais nada” (Birman, 2001, p. 82). Sem pensar, a ação se impõe. Sem ao menos saber o que dizer, o sujeito age. Essa é marca da indeterminação e da hiperatividade que se impõe. “... pode-se dizer que as individualidades seriam marcadas pelo excesso que as impele, inequivocamente para a ação” (Birman, 2001, p. 82).

Assim o que tem se destacado no comportamento contemporâneo é a explosividade, que revela a impossibilidade de conter o excesso, o terceiro registro do mal-estar contemporâneo.

Pode-se afirmar assim, que os limiares para irrupção e de falta de controle da vontade diminuíram sensivelmente nas individualidades, que ficaram cada vez mais assujeitadas e à deriva das imposições do excesso. Com isso o psiquismo não mais o regula como deveria, que se presentifica necessariamente então no psiquismo de maneira incoercível(Birman, 2001, p. 114).

 A traição que cai na rede é o protótipo do mal-estar contemporâneo (Birman, 2001; Souza & Polivanov, 2017). A exposição da dor sofrida, impossível de ser contida, pela sua intensidade, ou melhor, pelo excesso, só encontra o caminho da ação: exposição na rede. O sujeito contemporâneo está desnudo, impotente ao confrontar-se com algo dimensionalmente, maior que ele.

 

Metodologia

Para a apresentação dessa discussão pesquisou-se no Facebook um episódio de traição amplamente veiculado na rede.

A traição exposta na rede, tem sido, recorrente, exemplificada e nomeada, com nome de pessoas, ou melhor, personas onlines e lugares ou networked selves (Bolter, In Souza & Polivanov, 2017). Escolheu-se o caso "Traição de Sorocaba", ocorrido em 2010 como material de análise devido: a) à atualidade da temática, o que fornece uma amostra das discussões recentes sobre a traição na rede; b) à quantidade de elementos presentes no relato que se pode explorar durante a análise e c) ao fato de ser uma publicação pública, o que nos fornece a possibilidade de uma problematização científica.

A discussão, nesse estudo tem o objetivo de apresentar o caráter real de uma experiência que possui tonalidades fictícias, caracterizadas pela mediação sociotécnica da rede virtual, o que gera a dimensão coletiva da persona num complexo meta-coletivo (Souza & Polivanov, 2017).

Este é um artigo exploratório cujos objetivos formulados para a discussão evocam quem é o sujeito contemporâneo, seu mal-estar e especificamente a cena da dor da traição exposta, que originaram os eixos para a análise e discussão: 1 - A traição na rede como um fenômeno da subjetividade contemporânea; 2 - A linguagem da traição: do sofrimento ao ato e 3 - A infidelidade deflagrada, a partir do advento das redes sociais para a vida em sociedade.

Manchetes no facebook:

Mulher que expôs amante do marido na internet deve pagar R$ 67,8 mil

- O que restou do polêmico vídeo de traição na web - Divórcio, humilhação, fama instantânea e um possível processo contra agressão são os desdobramentos do caso Sorocaba

- O caso Sorocaba, traição e humilhação

- Mulher que expôs traição na internet é condenada a indenizar amiga em R$ 67 mil

Vinheta do Caso da Traição em Sorocaba

 V. é a mulher traída de Sorocaba que fez de seu drama pessoal um reality show. Postou, para os seus amigos um vídeo entre ela e J.C., a ex melhor amiga e amante de seus marido, o revendedor de carros C.. Em entrevista para o Fantástico (Rede Globo) admite que num momento de raiva publicou o vídeo da briga contendo agressões verbais e físicas com a ex amiga e amante de seu marido. O vídeo vazou, foi parar na rede social. Inicialmente V. diz querer vingança. Porém, passados três anos, em uma entrevista afirma que “Não me vinguei, apenas foi a maneira que encontrei para resolver a situação" [sic]. Uma opinião de uma moradora da cidade a respeito do episódio, retrata o impacto das pessoas: “Não entendo qual a necessidade de expor uma traição dessa forma, em rede nacional. Fiquei chocada. No interior todo mundo se conhece [sic]". Os relatos trazem a opinião do filho mais velho de C., ex de V.: Os comentário e piadas, são sempre relacionados à virilidade do pai, que viveu por cinco anos entre duas mulheres bonitas da elite sorocabana. Uma delas com título de Miss Sorocaba. Continua: Outro dia uma caminhonete cheia de mulheres passou aqui na frente da loja  e gritou: Seu C. pistola de outro. O rapaz não condena o pai e vê com naturalidade a traição Uma delas com título de Miss Sorocaba.

 

Análise e discussão

1 - A traição na rede como um fenômeno da subjetividade contemporânea

A imersão cotidiana dos sujeitos em plataformas digitais, gerou as chamadas networked selves ou selves em rede, denominado pelo autor Bolter (In Souza & Polivano, 2017). O termo cunhado refere aos processos de autoapresentação e constituição desse sujeito criado, que transforma e transforma-se na mediação sociotécnica - também chamadas relações virtuais.

 Assim, Moore et al., (In Souza & Polivanov, 2017, p. 4) vão propor que as personas online estariam ligadas a cinco dimensões: do que é ou pode se tornar público, da midiatização, da performatividade, da coletividade e do valor intencional.  De modo resumido, destaca que a primeira diz respeito ao potencial real que se tem a partir das mídias digitais de serem conformados, a partir dos sujeitos, públicos que vão de “amigos íntimos e próximos a uma audiência pública massiva e global, permitida pelo ato do compartilhamento” (2017, p. 3), o que não valeria apenas para celebridades, mas também “sujeitos comuns”, como o caso de Sorocaba. A ideia de midiatização se refere à percepção dos sujeitos já terem naturalizado a ideia que os perfis operam necessariamente sob uma espécie de censura das empresas (sites de redes sociais, aplicativos, games etc.), instituindo uma agência que é negociada entre o pessoal, o corporativo e o institucional.

A dimensão da performance explicado por Souza e Polivanov (2017), implica nas ações como, postar textos, imagens, curtir e reagir aos conteúdos alheios, compartilhar postagens, etc.  Todas elas são modos de performatizar nossas identidades nessas esferas (semi) públicas. Assim, o lugar do sujeito nesse jogo competitivo (Pereira, 2015) não é mais uma "parte" de um coletivo, mas ocupa um lugar na dimensão coletiva da persona um complexo meta-coletivo:  "Em cada público, o indivíduo é um nó, mas eles estão simultaneamente orbitando nós de outras redes" (Souza & Polivanov, 2017, p. 5).

A última dimensão do valor intencional diz respeito às finalidades envolvidas nas personas online, seja para relações pessoais, profissionais ou visando um público mais amplo (ou todas juntas). Recuero (In Souza & Polivanov, 2017, p. 5) aponta quatro grandes valores disputados em sites de redes sociais em termos de capital social: popularidade, visibilidade, autoridade e reputação. Assim, cada ação performática pode contribuir ou não para a construção de tais valores: “Os sites de redes sociais constituem, portanto, espaços que possuem recursos por meio dos quais os usuários articulam a maneira como desejam se apresentar aos demais ...”.

O casamento que se afirmou na modernidade como o locus da vida comum e ponto de partida para a formação da família, hoje vive num momento marcado pelo aprofundamento do individualismo. Trata-se de uma impermanência relativa que exige para sua sobrevivência, a aceitação das heterogeneidades, descontinuidades e efemeridades das relações (Perlin, 2006, Souza & Polivanov, 2017). Seria nesse contexto que a traição tem inaugurado uma perspectiva aceitável ou até mesmo de contestação? Os parceiros, nessa configuração relacional efêmera vêem-se apontados para as suas fragilidades humanas? Da infidelidade praticada à exposição da dor da traição sofrida via redes sociais, o fenômeno ganha proporções irrefreáveis.

No caso Sorocaba, a experiência de exposição da dor da traição, ocorreu inicialmente com o compartilhamento de um vídeo caseiro, para grupos de amigos. Na fala da autora do vídeo, Sra. V., seria uma expressão de vingança, que apesar de concluir que pouco ganhou com isso, não se arrependeu [sic]. A conotação de um relacionamento competitivo entrou em vigência, com a equação resultante do perder menos quando o outro é atingido pela vingança. Assim, a publicação inicial, teria a intenção de atingir um público dirigido - midiatização dos sentimentos com a intenções de rechaço ao marido e amiga que traíram. A dimensão da intencionalidade, decomposta nos termos vistos acima, de popularidade, visibilidade, autoridade e reputação são nesse momento decisivos para o ato da postagem. Não bastava para V. somente ela ver essa cena. Os amigos em comum precisavam também. Além disso, segundo os dados da entrevista (material da internet) V. pouco se preocupou com a pirataria de sua produção caseira. E, inclusive, para os "curiosos de plantão" foi estipulado valores monetários para conseguir informações, mostrando que os resultados disso, foram além do divórcio, um boletim de ocorrência e a fama.

Dessa maneira a rede social é vista como uma ferramenta, onde a dor sofrida passa a ser escoada. Sentimentos velhos conhecidos, como a vingança e a raiva, são propulsores para o uso das redes. A linguagem passa a ser representada via imagens com comportamentos externalizantes. Devido a uma representatividade simbólica, instaurada culturalmente, a traição veiculada tem adicionado novos significados a cena: o domínio público das relações antes privadas (a midiatização, a performatividade), o julgamento coletivo "autorizado" (a coletividade) com a publicação em rede, e uma certa ilusão de um alívio da dor da traição (a intencionalidade).

2 - A linguagem da traição: do sofrimento ao ato.

A profunda e amarga dor da traição, encontra no ato de vingá-la uma força poderosa nas redes sociais. Birman (2001) é categórico ao afirmar que o mal estar incide no registro da ação, caracterizando um comportamento hiperativo do sujeito na contemporaneidade. Faz um trocadilho com o cogito de Descartes: Agir para Existir. E diante dessa análise propõe-se um novo: Postar para Existir. A publicação nas redes sociais pode ser encarada como uma granada, que tem o detonador em nossas mãos.

A explosividade como descarga de manifestações incontroláveis se definem como a melhor forma de se livrar da angústia. A intensidade e o caráter desmedido dos acontecimentos só serão elucidados na dureza das horas que sucedem o cataclisma emocional. A experiência detonadora ganha proporções inimagináveis. Número de acessos na internet, remexer de vídeos, em pouco tempo, uma legião de pessoas, passam a ser testemunhas de dramas emocionais – nossa vez de canibais.

A referência ao corpo e o lugar da sedução e consagração a ele conferido na discursividade social, geram argumentos para a facilitação de relacionamentos amorosos voláteis com repercussões sobre o poder do outro na conquista de corpos esculturais, mas não menos importante, está a vergonha de se olhar nos olhos do outro (King, 2016). Essa afirmativa encontra eco na fala do filho de C. quando ele acha muito natural a cena da traição ocorrida, pois acredita que mais de 95% das pessoas traem seus companheiros [sic]. A performatividade rompendo com a subjetividade e da experiência da intimidade como um vínculo afetivo.

Dessa forma, Birman (2001) descreve a virilidade fálica como uma experiência humana idealizada e por essa razão/ilusão, incessantemente buscada. Seria o contraponto da concepção do feminino da condição humana, que denota a essência de nossa natureza frágil e incompleta. O corpo cultuado e apresentado em sua performance representaria a busca do desejo pela tal virilidade.

O filho de C., com muito orgulho, diz que seu pai mantinha relacionamento amoroso com duas mulheres notadamente bonitas, inclusive com títulos de beleza. O atributo viril advindo com denominações de garanhão, pistola de ouro [sic] são indicadores desse cenário de identidades-viris.

O caráter de exaltação à beleza, oculta o padecimento das relações, uma vez que ela é nutrida como um valor narcísico, que corresponde aos ideais estéticos de perfeição próprios da atualidade. Desse modo é que a linguagem atual da traição vai sendo apresentada como performance individual: Olha como eu dô conta! ...

O corpo-falo poderoso, ou então, o corpo traído, subtrai todos demais significados-sofrimentos que envolve a intimidade de um relacionamento. A linguagem do sofrimento da traição sofre a ameaça de limitar-se em uma imagem do que se perdeu ou ganhou nos corpos. Corpos maravilhosos, que na cultura ganham seus adornos para cobrir qualquer tipo de insuficiência, ganham milhares de expectadores nas redes sociais. A noção de trauma possui aí uma mudança de perspectiva. Krüger e Johanssen (2016) refere que essa é uma demanda constante da representação digital, que coloca esse corpo em risco. Explica, a exemplo disso, que o fenômeno gangbang - gênero do sexo explicito, cada vez mais requisitado, pode ser entendido como um sintoma cultural onde os homens se reúnem para evitar esse risco de fragilidade e impotência (simbólica) através do envolvimento em práticas sexuais, que colocam um outro, principalmente as mulheres, como alvos do gangbanged - no lugar de absoluta inferioridade e vitimização.

3 - A infidelidade deflagrada, a partir do advento das redes sociais para a vida em sociedade

O que leva a compreender se um comportamento foi ou não infiel, ou a julgá-lo como mais ou menos grave? O olhar dos outros. O julgamento. A rede. Nunca foi tão eficiente deflagrar a infidelidade, como agora, a partir do advento das redes sociais para a vida em sociedade. O julgamento do olho-super-poderoso das redes contextualiza o sujeito contemporâneo marcada pelo excesso, que os impele para ação (Birman, 2001; King, 2016; Steffen & Johanssen, 2016).

O julgamento dos outros sempre se mostrou negativo diante do preceito valorativo da monogamia, cuja fidelidade emocional e sexual é ou era tida como norma. Romper até então, implicava na quebra de altos valores conquistados na intimidade de um relacionamento: compromisso e confiança (Pereira, 2015; Santos & Cerqueira-Santos, 2016).  Mas agora...

A infidelidade passa a receber um controle de proporções não calculáveis com a exposição na rede. O julgamento da super tribuna de internautas podem expor os mais diferentes pontos de vistas sobre o caso em questão. Os moradores da cidade de Sorocaba brincam, mas poucos manifestam oposição ou defesa em relação aos casais envolvidos. A grande maioria critica a humilhação em praça pública, comum no século 19, e agora gerada pela divulgação do vídeo na internet (recorte entrevista Facebook). Mas a pergunta que se faz diante desse fenômeno são os impactos sobre a subjetividade. O ser humano que precisa acompanhar a velocidade tecnológica tem encontrado novos recursos para a sua expressão de sentimentos? Ou então, o contrário, a publicação na rede, seria um recurso contrário a contenção, elaboração e aprendizado emocional? A revisão de literatura estudada nesse artigo nos responde que o caminho das redes tem dificultado ou até mesmo impossibilitado o desenvolvimento emocional.

 

Considerações finais

Se o sujeito do ato contemporâneo apresenta a ótica da fragilidade emocional, daquele que pouco suporta, pouco valoriza, pouco protege a sua identidade como um bem construído e pensado, o que pensar de uma rede social? Progressões geométricas dessa distância abissal entre ser um sujeito inteiro na sua incompletude, do sujeito partido pelo sofrimento que não admite sentir.

Finalizando para novos estudos e intervenções... Amar em tempo de rede pressupõe a aprendizagem de novas exigências e novos cuidados para cada sujeito, como pessoas frágeis e desejantes!

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ana Carina Motta Klein
E-mail: anacarinamklein@gmail.com

Enviado em: 21/09/2017
1ª revisão em: 06/02/2018
Aceito em: 23/03/2018

 

 

1 Psicóloga. Docente da Universidade Luterana do Brasil – Cachoeira do Sul. Terapeuta de Família e de Casais.
2 Psicóloga. Sócia fundadora, Docente e Supervisora do Domus – Centro de Terapia Individual, de Casal e Família. Psicoterapeuta Individual, de Casal e Família.

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