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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.22 no.1 Porto Alegre jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

Atuação da psicologia no âmbito da violência conjugal em uma delegacia de atendimento à mulher

 

Psychological intervention and conjugal violence at a women's police station

 

 

Samira Mafioletti Macarini1, I, II ; Karla Paris Miranda2

I Polícia Civil do Estado de Santa Catarina
II Escola Superior de Criciúma (Faculdades ESUCRI)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo teve como objetivo caracterizar a violência conjugal denunciada por mulheres em uma delegacia de proteção à mulher. Realizou-se uma pesquisa documental, através da análise de boletins de ocorrências registrados no período de agosto de 2012 a agosto de 2015 e que foram encaminhados ao serviço de psicologia da instituição. Os resultados apontaram predominância de denúncias envolvendo mulheres e homens na faixa dos trinta anos, que estavam em um relacionamento estável, que possuíam pelo menos um filho em comum e, no momento do registro, encontravam-se separados de corpos. Houve predomínio da violência psicológica e física. O estudo também constatou alto índice de desistência do processo criminal por parte das mulheres, apontando para o aspecto cíclico da violência conjugal, além de múltiplos fatores envolvidos nesse fenômeno. Os dados auxiliam na compreensão da dinâmica da violência conjugal a partir de uma perspectiva sistêmica, podendo-se pensar em estratégias de enfrentamento e prevenção.

Palavras-chave: Violência conjugal, Lei maria da penha, Violência doméstica.


ABSTRACT

The study aimed to characterize conjugal violence denounced at a women's police station. A documentary research was carried out, through the analysis of bulletins of occurrences registered from August 2012 to August 2015 and which were sent to the psychology department of the institution. The results showed a predominance of reports involving women and men in the 30-year age group who were in a stable relationship, which had at least one child in common and, at the time of the registration, were separated from each other. There was a predominance of the psychological and physical violence. The study also found a high rate of relinquishment of the criminal process by women, pointing to the cyclical aspect of marital violence, as well as multiple factors involved in this phenomenon. The data can help in understanding the dynamics of conjugal violence from a systemic perspective, and also looking for coping strategies and prevention.

Keywords: Conjugal violence, Maria da penha law, Marital violence.


 

 

Introdução

A violência conjugal, no presente estudo, será entendida a partir do que é discutido por Batista, Medeiros e Macarini (2017), como um fenômeno que engloba as violências que ocorrem no contexto das relações afetivas e amorosas, notadamente vinculada aos casais heterossexuais. Segundo as autoras, esta definição faz-se necessária, uma vez que outros termos como “violência doméstica”, “violência intrafamiliar” e “violência de gênero”, muitas vezes, acabam sendo usados para falar das violências que são cometidas contra as mulheres como um todo, sem considerar o contexto relacional em que elas ocorrem.

Nesta perspectiva, as mesmas autoras (Batista et al. 2017) ressaltam algumas características do fenômeno da violência conjugal, como o fato de a mesma tratar-se de uma questão de gênero, possuindo uma estreita relação com a histórica desigualdade de poder existente entre homens e mulheres na sociedade. Além disso, é enfatizada a necessidade de compreender a violência conjugal como um fenômeno que vai além da dicotomia dos envolvidos e da lei, mas como um processo interacional e cíclico, no qual todos os envolvidos constroem e sustentam o modo violento como a relação se estabelece ao longo do tempo.  A partir dessa compreensão, segundo as autoras, é possível pensar em intervenções que vão além de exclusivamente dar atenção à pessoa tida como vítima e punir àquela tida como agressora, podendo-se focar também na relação que se mostra disfuncional e na autonomia dos sujeitos para o pleno exercício do direito e da cidadania.

A violência conjugal vem sendo estudada, em torno dos últimos quarenta anos, como um fenômeno que deixou de fazer parte apenas dos problemas íntimos de um casal, ou mesmo, dos medos e anseios da própria mulher, e passou a ser, também, um foco de intervenções e cuidados das áreas da saúde pública, assistência social e justiça (Andrade, 2007). Algumas mudanças foram fundamentais para que ocorressem tais evoluções no que se refere aos direitos das mulheres em situação de violência, dentre elas, no Brasil, destaca-se a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), a qual foi elaborada para criar mecanismos que visam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher; tendo como foco prevenir, punir e erradicar tal fenômeno no país.

A Lei Maria da Penha define, em seu Art. 5º, como “violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Além disso, especifica também que tais atos podem ocorrer no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto. No Art. 7º são definidas as formas possíveis que a violência pode se manifestar, a saber: física, psicológica, moral, patrimonial e/ou sexual.

No Brasil, destaca-se também a recente Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), a qual altera o Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, bem como passa a considerar esse tipo de crime como hediondo. Ou seja, tal legislação passou a considerar ainda com maior gravidade os assassinatos cometidos por homens contra suas companheiras atuais ou passadas, incluindo também relacionamentos ocasionais. A sanção desta lei mostra que, cada vez mais, o problema da violência conjugal tem sido visto como algo sério e que precisa ser prevenido e combatido na sociedade atual.

Apesar dos avanços na legislação, a violência conjugal ainda é considerada um grave problema a ser enfrentado no país e no mundo. Conforme pesquisa realizada pelo Instituto Data Senado no ano de 2015, em média uma em cada cinco brasileiras já sofreu algum tipo de violência doméstica ou familiar, índice que permanece praticamente inalterado desde 2009. Além disso, aproximadamente metade das entrevistadas relatou conhecer alguém que já sofreu este tipo de violência.

A violência conjugal como um fenômeno ciclíco e interacional

A violência no âmbito conjugal tem sido apresentada como um fenômeno cíclico, ou seja, que se manifesta sob a forma de ciclos e que vai se modificando em forma de espiral e se intensificando ao longo do tempo. Tal ciclo possui, em seu padrão de funcionamento, quatro principais fases: a da tensão, da agressão, de desculpas e de reconciliação (Hirigoyen, 2006).

A fase da tensão é caracterizada pela irritabilidade do homem, em que a violência dele se manisfesta por olhares, mímicas, atitudes ou pelo timbre da voz. A mulher, por sua vez, procura acalmar a situação, renunciando aos seus desejos e procurando satisfazer o companheiro. Na segunda fase, da agressão ou explosão, o homem começa a perder o controle e apresenta comportamentos violentos através de gritos, insultos, ameaças, quebrando objetos da casa e, muitas vezes, chegando a agredir a mulher fisicamente. Esta violência física vai se dando de forma gradativa ao longo dos ciclos, começando por empurrões, passando por tapas e podendo chegar a homicídios em casos mais graves. Neste momento, após ser agredida, a mulher sente-se entristecida, impotente e com raiva do seu companheiro, sendo esta a ocasião em que ela busca forças para registrar uma denúncia da agressão sofrida (Hirigoyen, 2006).

A terceira fase, a das desculpas, ocorre quando o homem procura anular ou minimizar seu comportamento, por estar arrependido ou não, justificando-o através de meios externos (raiva, bebida, problemas do trabalho), bem como fazendo promessas de que irá mudar e que as agressões não irão se repetir. A mulher, por sua vez, acaba ouvindo a fala do companheiro e o perdoa, acreditando que não deve romper o relacionamento. Por fim, na fase da reconciliação, também chamada de fase de lua de mel, o homem apresenta-se agradável, atencioso, gentil, carinhoso, procurando agradar a companheira. Já a mulher, acaba ficando esperançosa e volta a acreditar que ela é capaz de mudar o companheiro, já que os dois estão vivendo relativamente bem. É nesse momento que, em geral, a mulher acaba retirando e desistindo da sua queixa na delegacia (Hirigoyen, 2006).

Além de cíclico, o presente artigo busca compreender a violência conjugal a partir da perspectiva sistêmica como um fenômeno interacional, porém sem desconsiderar a questão de gênero. Isso quer dizer que a compreensão do fenômeno da violência conjugal deve ir além da visão dualista, na qual a mulher é tida como vítima, passiva, e o homem como agressor, ativo. Segundo Colossi e Falcke (2013), a perspectiva sistêmica prioriza os aspectos relacionais na compreensão do fenômeno da violência conjugal, sem desconsiderar as possíveis relações de gênero como uma das bases para a ocorrência da violência em tal contexto.

A perspectiva sistêmica focaliza as interações conjugais e considera a violência conjugal como a manifestação de uma dinâmica relacional específica, ou seja, como uma expressão da conjugalidade, em que homens e mulheres são co-atores, de certa forma, do estabelecimento do fenômeno violento. Ressalta-se que não se trata de culpabilizar as vítimas pela violência, mas compreender os diferentes papéis adotados por homens e mulheres em seus relacionamentos e a forma como ambos atuam na manutenção do comportamento violento na relação (Colossi & Falcke, 2013; Falcke et al., 2009).

Nesta perspectiva, as intervenções para prevenir e combater a violência conjugal devem se dar nas relações e interações, e não apenas na mulher vista como vítima e/ou no homem tido como agressor. Assim, o foco será na modificação de padrões relacionais disfuncionais, buscando-se desenvolver novas estratégias de resolução de conflitos, as quais devem ser mais saudáveis e que não utilizem o comportamento violento (Colossi & Falcke, 2013; Falcke et al., 2009).

Vale mencionar também a compreensão proposta por Carvalho-Barreto et al. (2009), que procurou explicar a violência conjugal a partir do olhar sistêmico da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. Os autores destacam a violência conjugal como um fenômeno com múltiplas dimensões e interação de diversos fatores, buscando compreender tais fatores em quatro níveis: 1) pessoal, que engloba as características biológicas e psicológicas do indivíduo; 2) processual, que compreende as relações interpessoais; 3) contextual, que envolve a rede de apoio social, a comunidade e a cultural; e 4) temporal, o qual corresponde à intra, inter e transgeracionalidade.

Isso significa dizer que os fenômenos relacionais precisam ser compreendidos a partir dessas quatro dimensões. Neste modelo, considera-se igualmente importante as características individuais de cada componente da relação violenta e os aspectos específicos do estabelecimento do relacionamento, bem como deve-se considerar a realidade social e cultural na qual as famílias estão inseridas. Esta abordagem, portanto, não trata dos fenômenos em uma lógica de causa-efeito, tampouco se propõe a buscar um único responsável pela situação, mas considera múltiplos elementos como constituintes dos padrões relacionais (Carvalho-Barreto et al., 2009).

O serviço de Psicologia no atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica

Atualmente, o profissional da psicologia está presente nos mais diversos contextos de atuação, incluindo as delegacias de atendimento à mulher em situação de violência conjugal. Vale destacar que no Estado de Santa Catarina, onde foi realizado o presente estudo, a Polícia Civil conta com psicólogos em seu quadro de carreira, denominados “psicólogos policiais”, sendo um de seus campos de intervenção as delegacias especializadas, denominadas de “Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso” (DPCAMI´s).

O psicólogo que atua no âmbito da violência conjugal deve ter como base para sua prática as referências teóricas e técnicas elaboradas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). Um aspecto importante mencionado em tais documentos é que o profissional deve conhecer a rede de atendimento local, bem como os problemas que ela enfrenta, respeitando as especificidades dos serviços e dos profissionais que participam (Batista et al., 2017).

Conforme referência técnica elaborada pelo CFP (2012) para orientar a atuação de psicólogos no atendimento à mulher em situação de violência (CREPOP), o profissional da psicologia, geralmente, trabalha em conjunto com outros profissionais da rede. Dessa forma, deve-se ressaltar a importância do trabalho integrado realizado de forma fidedigna e ética, já que, por toda complexidade que há na questão da violência conjugal, necessita-se de atendimento multidisciplinar. Dessa forma, um dos desafios para esse atendimento mais específico, é a associação dos serviços da rede pública para a realização do atendimento à demanda. As diretrizes para a atuação das equipes partem de normas provenientes de instituições como o Ministério da Saúde, a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) e o Ministério do Desenvolvimento Social, os quais disponibilizam orientações gerais para a implantação dos serviços.

A rede de atendimento no âmbito da violência conjugal é composta por diferentes serviços, os quais, conforme já mencionado, devem atuar de maneira integrada. Dentre esses serviços, pode-se citar: Serviços de Saúde, Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, Hospitais, Casa Abrigo, CREAS, CRAS, Coordenadoria da Mulher, Conselho Tutelar, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Municipal da Mulher, Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Organizações não governamentais (ONGs), entre outros (CFP, 2012).

O psicólogo, independente da área em que esteja atuando, é um dos profissionais que contribui para a promoção dos Direitos Humanos, relacionando-se com as áreas da saúde, educação, social, privada, políticas públicas e demais áreas. Quando se trata da atuação deste profissional na realidade das mulheres em situação de violência conjugal, a relação com as políticas públicas é quase que obrigatória, constituindo um diálogo entre o Estado e a sociedade, para atender os direitos fundamentais dos envolvidos.

A Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, é considerada como uma das principais referências para a atuação do psicólogo, e de outros profissionais que atuam nessa realidade, já que esta é considerada uma lei completa e esclarecida. As intervenções realizadas em cada caso recebem todo o suporte legal de uma rede completa para atendimento. Assim, considera-se que o psicólogo que atua nessa área deve ter um conhecimento mínimo a respeito da referida legislação e sobre os demais direitos garantidos às mulheres em situação de violência.

Geralmente o profissional de psicologia que atua no âmbito da violência conjugal deve possuir também conhecimento na área da psicologia jurídica, a qual é uma especialidade da psicologia que relaciona as práticas e saberes psicológicos com a área do direito. Essa ligação entre as duas áreas aconteceu pois, tanto o psicólogo quanto o profissional da área de direito, trabalham no mesmo objetivo: o comportamento humano.  O trabalho do profissional da psicologia aliado à área jurídica acarreta um grande crescimento no campo de atuação dessa área, já que a psicologia contribui para o campo investigativo, nas avaliações e perícias (Rovinski & Cruz, 2009).

Como princípios norteadores da prática profissional, o documento elaborado pelo CFP (2012) ressalta que a atuação do psicólogo deve estimular o protagonismo das mulheres e a compreensão da violência como um fenômeno multidimensional. A esse respeito, Batista et al. (2017) tecem uma crítica ao foco dado no documento, já que alertam para a necessidade de a Psicologia se propor a ir além daquilo que a legislação brasileira prevê, questionando a dicotomia que é reforçada nos serviços ofertados pela rede de atendimento. Mais especificamente, as autoras questionam o foco demasiadamente assistencial dado à mulher, que é vista como vítima e, ao mesmo tempo, o foco punitivo dado ao homem visto como autor. Assim, apontam que uma possibilidade de atuação do profissional da Psicologia é  contribuir para que as mulheres em situação de violência conjugal consigam promover transformações individuais e relacionais, ou seja, mudanças no âmbito pessoal e também no que diz respeito ao seu relacionamento conjugal.

Nesse sentido, Batista et al. (2017) ressaltam a necessidade de desjudicialização dos conflitos e relatam sobre a importância de trabalhos que incluam o parceiro da relação conjugal, com o objetivo de discutir com homens e mulheres sobre a construção social da identidade de gênero e sua relação com a violência na relação conjugal. Tais intervenções, segundo as autoras, poderiam promover mudanças no nível individual e relacional, bem como poderiam ser um caminho para mudanças mais profundas na cultura e na sociedade no que diz respeito ao tema da violência conjugal.

Exemplos desse tipo de atividade são os grupos reflexivos com homens em situação de violência conjugal, bem como a realização de mediação de conflitos entre os envolvidos na relação em que há violência conjugal. Segundo Batista et al. (2017), as delegacias especializadas poderiam se constituir em um espaço de intermediador das demandas do casal, indo além da natureza criminalizatória e punitiva atribuída à esta instituição. Porém, as autoras apontam que, muitas vezes, os próprios envolvidos se negam a conceber o ambiente policial sem focar a lógica criminalizatória.

Diante das considerações apontadas, o presente estudo teve como objetivo caracterizar a violência conjugal denunciada por mulheres, que passaram pelo serviço de psicologia, em uma delegacia de atendimento à mulher do sul do Estado de Santa Catarina.

 

Método

Local do estudo

O estudo foi realizado em uma Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI) do Sul do Estado de Santa Catarina. Dentre outros âmbitos, a instituição é responsável pelo atendimento à mulher em situação de violência, contando com um Serviço de Psicologia composto por três Psicólogas Policiais. Os boletins de ocorrência (BOs) envolvendo crimes que envolvem lesões de menor gravidade ou crimes que dependem da representação criminal da mulher (ex: ameaça, dano, injúria, calúnia, difamação), são encaminhados pela autoridade policial para o referido setor. O atendimento à mulher pelas psicólogas envolve o acolhimento e escuta, orientações psicojurídicas, encaminhamentos para outros órgãos e possibilidade de mediação entre as partes (caso seja interesse da mulher).

Amostra

Esta pesquisa tratou-se de um estudo documental de amostragem não probabilística. A amostra foi composta por boletins de ocorrência (BOs) encaminhados ao serviço de psicologia de uma delegacia de proteção à mulher de um município do sul de Santa Catarina, no âmbito da Polícia Civil, onde são registradas as denúncias de violência doméstica. Foram considerados critérios de inclusão para a análise dos dados: 1) BOs registrados entre o período de Agosto 2012 a Agosto 2015; 2) BOs encaminhados ao serviço de psicologia da delegacia e 3) BOs que envolveram situação de violência doméstica, em que a vítima e o autor possuem, ou já possuíram, envolvimento amoroso. Ao todo, foram analisados 665 casos de violência doméstica atendidos pelo referido serviço de psicologia.

Instrumentos

Foi utilizada uma tabela elaborada pelos pesquisadores para caracterizar individualmente os casos, registrando-se as seguintes categorias: a) Local onde foi feita a denúncia; b) Idade dos envolvidos no BO; c) Número de filhos em comum entre os envolvidos; d) Tempo de relacionamento entre as partes;  e) Tipo de relacionamento  (casamento, união estável ou namoro); f) Situação do relacionamento no momento da denúncia (se estavam separados ou não); g) Tipo de violência sofrida; h) Resultado do atendimento no serviço de psicologia: representar criminalmente contra o autor, assinar um termo de desistência ou optar por realizar uma mediação na presença da outra parte envolvida a fim de buscar um acordo possível.

Procedimentos

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisas das Faculdades Esucri, sendo aprovado sob o parecer nº 081257/2015. A pesquisa seguiu as Resoluções 466/12 e 251/97 do Conselho Nacional de Saúde, sendo respeitado o sigilo das informações e a confidencialidade dos dados, já que as pessoas envolvidas não foram identificadas ao longo do estudo. Após esta aprovação, com o auxílio da tabela de categorias de análise, os dados foram tabulados em uma planilha de banco de dados por meio do software Statistical Package for Social Sciences (SPSS).

 

Análise dos dados

Os dados foram analisados com o auxílio do software SPSS, realizando-se análises descritivas (média, desvio padrão e cálculo de frequência).

 

Resultados e discussão

Características da denúncia

Inicialmente, visando uma análise mais descritiva das denúncias realizadas, buscou-se identificar qual a delegacia em que as mulheres atendidas buscaram auxílio para efetuar os registros dos BOs, sendo verificado que a maior parte (88,5%) procurou a própria delegacia de proteção à mulher. Já os outros locais disponíveis no município em que a pesquisa foi realizada para o referido registro, sendo duas delegacias de bairro e uma central de plantão policial, foram responsáveis por apenas 11,5% dos BOs atendidos no serviço de psicologia.

Ressalta-se que no Estado de Santa Catarina a mulher em situação de violência pode procurar qualquer uma das delegacias de Polícia Civil disponíveis para efetuar o registro do BO. No entanto, os dados obtidos no presente estudo apontam para a importância de uma delegacia especializada no atendimento à mulher, visto que possivelmente esta especificidade faz com que as mesmas sintam-se mais à vontade e tenham mais confiança para procurar auxílio e efetuar a denúncia. Nesse sentido, Santos e Izumino (2005) discorrem sobre a importância das delegacias de atendimento à mulher, visto que se tornaram um lugar de referência para as mulheres em situação de violência e sugerem uma capacidade das mulheres em reagir e resistir à violência.

Vale mencionar também que a delegacia onde foi realizado o presente estudo possui atendimento durante 24 horas por dia, em regime de plantão, o que acaba por facilitar o acesso, já que a mulher pode procurar a instituição no momento em que toma a coragem para realizar a denúncia. Além disso, conforme mencionado, no Estado de Santa Catarina, esta modalidade de delegacia conta com profissionais da área da Psicologia para o atendimento às vítimas, tornando o atendimento mais especializado e técnico.

Além das delegacias de proteção à mulher, a vítima também pode contar com outros órgãos para buscar auxílio jurídico, como o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Judiciário. Além disso, ainda há outros órgãos públicos que também prestam alguns tipos de atendimentos especializados para as mulheres vítimas de violência conjugal, como os serviços de saúde e hospitais públicos, que além de atender a vítima, fornecem serviços de contracepção de emergência, em casos de estupro; o serviço de abrigamento, que presta acolhimento às mulheres e seus filhos; o Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) e o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), cujo serviço é de oferecer ajuda psicológica e social; o Instituto Médico Legal (IML), onde se realizam os exames de corpo de delito e outros exames periciais.

Perfil dos envolvidos na violência conjugal

Outra variável analisada foi a idade média da mulher que fez denúncia na delegacia, assim como do suspeito de ter realizado a violência denunciada, no momento do registro do BO.

Conforme os dados obtidos na pesquisa, a idade das mulheres variou de 13 a 71 anos, apresentando uma média de 35,39 anos de idade (DP = 11,30). Vale ressaltar que as mulheres menores de 18 anos são representadas legalmente pelos pais ou responsáveis.  Já a idade do homem variou de 17 a 76 anos, com uma idade média de 39 anos (DP = 11,85). Nos casos em que o homem é menor de 18 anos, o mesmo poderá responder por um ato infracional, conforme é previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990).

Estes dados obtidos na presente pesquisa corroboram com os resultados de um estudo realizado em um município de Minas Gerais, em que foram analisados 392 BOs de violência doméstica. Nesse caso, a idade média das vítimas foi de 33,28 anos, enquanto a dos suspeitos foi de 35,55 anos de idade (Sousa, Nogueira & Gradim, 2013). Por outro lado, a pesquisa realizada pelo Data Senado em 2015 indicou que 66% das vítimas reconhecem ter sido violentadas pela primeira vez até os 29 anos. Estes dados indicam que, possivelmente, as mulheres procuram ajuda após algum tempo da primeira agressão, havendo a possibilidade de já terem sido agredidas mais de uma vez antes de registrar um BO.

De maneira geral, verificou-se também que a violência doméstica não possui idade para ocorrer, já que os envolvidos apresentaram idades bastante variadas, havendo uma tendência maior para a faixa de 21 a 50 anos de idade, onde se concentram cerca de 81,5% das mulheres que efetuaram as denúncias.

Características do relacionamento conjugal

Quanto aos dados relacionados às características do relacionamento existente entre os envolvidos no BO, foram analisadas as seguintes variáveis: tempo de relacionamento, tipo de relacionamento, presença de filhos e situação da união no momento do registro.

Em relação às informações relacionadas ao período de tempo em que as partes mantiveram algum tipo de relacionamento amoroso (namoro, casamento ou união estável), verificou-se uma média de dez anos de relacionamento (DP = 8,92 anos). Conforme pode ser verificado na Figura 1, percebe-se que a denúncia, em 42,4% dos casos, foi realizada já no início do relacionamento, ou seja, nos primeiros cinco anos. Esse dado aponta que, em boa parte dos casos, a mulher já faz a denúncia no início do ciclo de violência, tentando, de certa forma, sair do contexto violento.

 

 

Outro resultado que chama atenção é um leve aumento da porcentagem de denúncias realizadas após o período de 20 anos de relacionamento, sendo 14,30% do total. Esse dado parece indicar o que aponta a literatura a respeito da crise da meia idade e do ninho vazio, momento em que os filhos possivelmente já saíram de casa e a mulher decide colocar um fim na violência presente no relacionamento conjugal (Carter & McGoldrick, 1995). Muitas vezes, a mulher não realiza uma denúncia contra o suspeito em função de possuir filhos e do medo de não conseguir criá-los sozinha, já que é dependente financeiramente do marido (Hirigoyen, 2006). Na presente pesquisa, das mulheres que informaram se possuíam ou não filhos (N=478), 64,4% relataram possuir um ou mais filhos com o suspeito de tê-la agredido.

Também foi analisada a variável ‘tipo de relacionamento entre os envolvidos no momento da denúncia’, a qual foi categorizada da seguinte forma: se os mesmos eram casados, companheiros ou namorados. A esse respeito, verificou-se que 45,4% dos sujeitos mantinham uma relação de casamento, 43,7% mantinham uma união estável e apenas 10,9% eram namorados. Nota-se aí, que a violência conjugal aconteceu, conforme os documentos analisados, na maior parte das vezes em relacionamentos amorosos considerados mais sólidos, já que totalizam 89,1% do total. Estes dados obtidos na presente pesquisa também corroboram com os verificados no estudo de Sousa et al. (2013) em um município de Minas Gerais, em que mais da metade das denúncias (54%) também foram realizadas por mulheres envolvidas em relacionamentos de maior comprometimento.

Outra variável analisada foi a situação da união no momento da denúncia, ou seja, se quando a mulher procurou a delegacia para efetuar o registro do BO, ela declarou estar separada de corpos ou não do suspeito. Os resultados encontrados evidenciaram que na maioria dos casos (69,2%,) o casal já estava separado, sendo esta tentativa de separação, muitas vezes, o motivo das agressões perpetuadas pelo autor, já que ele não aceitava a decisão da mulher de se separar. 

Estes resultados evidenciaram que as vítimas realizam maior número de denúncias após a separação do casal, possivelmente um momento em que ela se sente mais segura, já que, nesse caso, as ameaças proferidas podem ser mais difíceis de serem cumpridas por parte do suspeito.  Esse dado também parece indicar que as mulheres que ainda estão no relacionamento conjugal, ou seja, não estão separadas, acabam tendo mais dificuldade de procurar a delegacia para denunciar o suspeito.

Nesta mesma perspectiva, pode-se citar um estudo realizado por Zancan, Wasserman e Lima (2013), o qual teve como objetivo compreender a percepção de mulheres sobre a violência sofrida pelo parceiro íntimo. Dentre os principais resultados, os autores identificaram que a violência representa para as mulheres o medo das constantes ameaças, sendo que a permanência no relacionamento se dá em função da esperança de que o cônjuge mude seu comportamento.

A esse respeito, Hirigoyen (2006) discorre sobre a vulnerabilidade feminina, relatando que a dificuldade apresentada pelas mulheres para deixar um cônjuge deve ser compreendida levando-se em conta a situação da mulher na sociedade atual e as relações de dominação e submissão que ainda se impõem. Ademais, pesquisas apontam que o medo é o principal fator que faz com que a mulher não denuncie as violências sofridas no relacionamento (Data Senado, 2015).

A partir dos dados obtidos, pode-se discutir que, na maior parte das vezes, ou a mulher denuncia o parceiro logo no início do relacionamento, ou espera primeiramente ter coragem para se separar do suspeito, e então após a separação, é que esta mostra coragem para denunciar a (as) violência (violências) que sofre, ou vêm sofrendo.

Tipo de violência presente no relacionamento conjugal

Quanto aos tipos de violência denunciados pelas mulheres que registraram o BO e que, após, passaram pelo serviço de Psicologia, verificou-se uma variedade de crimes citados. Vale ressaltar que pode ser incluído mais de um tipo de crime em um mesmo BO, sendo que foram denunciados um total de 845 crimes nos BOs analisados na presente pesquisa.

Conforme pode ser verificado na Tabela 1, mais da metade dos BOs encaminhados ao serviço de psicologia envolvem o crime de ameaça contra a mulher, totalizando cerca de 470 denúncias. Em segundo lugar, aparecem os registros de injúria (n = 116), casos em que as mulheres são ofendidas verbalmente. Outros dois crimes bastante denunciados foram a lesão corporal (n=105) e a perturbação da tranqulidade (n=68).

 

 

É importante destacar que os casos mais graves de lesão corporal eram encaminhados diretamente para o cartório para abertura de Inquérito Policial, conforme prevê a Lei Maria da Penha, devido a sua urgência e gravidade. Diante disso, muitas vezes, não eram encaminhados para o serviço de psicologia da delegacia e, por esse motivo, não fizeram parte da amostra da presente pesquisa. Tais casos eram atendidos por um psicólogo em um segundo momento, após a tomada de providências jurídicas, pelo CREAS. Este fato explica que, apesar de alto, o número de registros de lesão corporal na referida delegacia era ainda muito maior.

Os dados obtidos na presente pesquisa corroboram com os resultados de um estudo realizado por Carneiro e Fraga (2012), em que foram analisados os registros de ocorrências, inquéritos policiais, processos e sentenças judiciais dos crimes enquadrados na Lei Maria da Penha, envolvendo mulheres vítimas de violência doméstica em São Borja, no Rio Grande do Sul, nos anos de 2009 e 2010. Os autores também identificaram que os crimes que mais ocorreram foram ameaça, em primeiro lugar, seguido de lesão corporal, vias de fato e injúria.

Um outro estudo realizado por Gadoni-Costa, Zucatti e Delláglio (2011), em que foi apresentado um levantamento de casos atendidos no setor de psicologia de uma delegacia para a mulher na região metropolitana de Porto Alegre, também foi verificada a predominância de casos envolvendo a violência psicológica, seguida da violência física. As autoras tecem ainda uma discussão a respeito do entrelaçamento das violências, já que, em geral, elas se misturam de diferentes maneiras.

No presente estudo, verificou-se que a maior parte dos casos atendidos no serviço de psicologia da delegacia de proteção à mulher, são de violências do tipo psicológica e moral. Aí, vê-se a importância de levar o conhecimento sobre a Lei Maria da Penha a todas as mulheres de forma mais aprofundada, pois tendo o conhecimento correto sobre a Lei, as vítimas podem realizar a denúncia antes mesmo de acontecer uma agressão física.

Segundo Hirigoyen (2006), a violência psicológica, em geral, precede a violência física e é responsável por trazer grandes desgastes à mulher. Este tipo de violência é definido como uma série de atitudes e de expressões que visa negar a maneira de ser do outro, considerando-o como um objeto, e tem por finalidade desestabilizar e ferir a outra parte. Tais atitudes buscam obter a submissão, o controle e o poder sobre o outro. Apesar de ser uma forma de violência bastante grave, no âmbito jurídico, muitas vezes, ela é mais difícil de ser visualizada, uma vez que acaba não deixando marcas físicas como provas para um eventual processo jurídico.

Atendimento no Serviço de Psicologia

O atendimento à mulher no serviço de psicologia em que o presente estudo foi desenvolvido visa realizar um acolhimento e escuta psicológica sobre a situação vivenciada pela mulher em situação de violência conjugal, buscando uma intervenção que estimule seu empoderamento e protagonismo frente à tomada de decisão sobre sua situação de vida e também sua tomada de consciência sobre seu papel no relacionamento conjugal. Além disso, a mulher é orientada sobre os seus direitos legais enquanto vítima de violência e encaminhada aos serviços da rede multiprofissional conforme a necessidade verificada, como CREAS, Núcleo de Prevenção à Violência, Clínicas de Psicologia, Núcleos de Saúde da Mulher, Centros de Atendimentos Psicossociais (CAPs), Defensoria Pública, Casas da Cidadania, entre outros.

Após a devida orientação e atendimento, a mulher pode optar por três decisões possíveis: 1) Representar criminalmente contra o suspeito, ou seja, manifestar o desejo de abrir Inquérito Policial contra o mesmo; 2) Assinar um termo de desistência e aguardar um prazo decadencial de seis meses para representar criminalmente contra o suspeito; e 3) optar por realizar uma Mediação na presença do suspeito, a fim de buscar um acordo pacífico entre as partes.

Quanto ao resultado do atendimento no serviço de psicologia na citada delegacia de proteção à mulher, verificou-se que 70% das vítimas preferiram desistir momentaneamente do procedimento criminal, tendo ciência de um prazo decadencial de seis meses para a abertura de um possível Inquérito Policial, caso seja de seu interesse. Vale mencionar que os casos de lesão corporal, conforme é previsto na Lei Maria da Penha, exigem a abertura de Inquérito Policial independente da vontade da mulher.

A esse respeito, vale citar um estudo realizado por Jong, Sadala e Tanaka (2008), o qual teve como objetivo descrever a experiência de doze mulheres vítimas da violência doméstica que registraram queixa na delegacia e que desistiram do processo contra seu agressor. De uma maneira geral, os autores verificaram que as participantes descreveram sentimentos ambíguos em relação ao suspeito, como afetividade, raiva, humilhação e medo; reconhecendo que são humilhadas e dominadas. A desistência foi compreendida a partir de uma concepção de reprodução da estrutura familiar (modelos vivenciados na infância), a qual estaria condicionada a fatores econômicos e sociais da mulher. A conclusão das autoras é de que as mulheres apresentam resistência em utilizar os recursos jurídicos no âmbito penal para se defender da violência conjugal e, quando o fazem, com grande frequência, acabam desistindo da denúncia.

Batista et al. (2017) questionam se a mulher, ao procurar uma delegacia de polícia, de fato encontra as respostas que busca para a resolução do conflito conjugal. As autoras chamam a atenção para o fato de que as desistências de dar continuidade ao processo criminal (quando a lei prevê a desistência) ocorrem em grande número, levantando a hipótese de que muitas mulheres acreditam que tão somente a confecção de boletim de ocorrência já será suficiente para alterar a conduta do companheiro, encerrando os episódios de violência. As autoras apontam ainda que, possivelmente, o principal desejo dessas mulheres é de que a violência cesse, sem que haja necessidade de maiores intervenções jurídicas, como um processo criminal ou uma separação judicial.

Vale mencionar também que, pensando no ciclo da violência conjugal (Hirigoyen, 2006), no momento em que a mulher busca a delegacia para efetuar o registro, ela se encontra na fase da explosão, em que a violência acabou de acontecer e ela apresenta raiva do seu agressor. Após algum tempo esse sentimento vai diminuindo e ela passa a pensar na possibilidade de perdoar o seu agressor ou até mesmo já tomou alguma atitude para romper o relacionamento e cessar a agressão. Nesse momento ela é chamada novamente na delegacia e acaba, muitas vezes desistindo da denúncia.

No presente estudo, em 20% do total de casos analisados, as mulheres optaram por representar criminalmente contra o suspeito. Dessa forma, é assinado um termo de representação, o qual possibilita que seja aberto um inquérito policial contra o suspeito e, ainda, que a mulher possa fazer a solicitação de medidas protetivas. Nesses casos, segundo Batista et al. (2017), sentimentos ambivalentes entram em cena, uma vez que o desejo parece ser o de solicitar que, de alguma forma, a Justiça se coloque ao lado da mulher, destacando, antes das questões legais, os valores que ela acredita serem necessários para sua qualificação como pessoa. Ressalta-se, aqui, o papel crucial do empoderamento da mulher, que após decidir processar criminalmente o seu agressor, terá que percorrer um longo caminho até a audiência judicial e manter-se firme em sua decisão.

Apenas 10% das vítimas, no presente estudo, decidiram realizar uma mediação com o suspeito e assinaram um termo de acordo. Nesse procedimento, com a mediação do profissional de Psicologia, as partes constroem um acordo sobre o problema em que estão vivenciando, sendo formalizado um documento que é homologado posteriormente pelo juiz da Vara Criminal responsável.

Com a realização da mediação, é possível informar as partes sobre as consequências que a violência conjugal causa em ambos, as quais são de cunho físico, psicológico e até mesmo judiciais, uma vez que se levada a denúncia adiante, gerará um processo jurídico criminal. Nesse contexto, a mediação tem o objetivo de acolher, informar e buscar um acordo onde ambos sintam-se satisfeitos e protegidos.  A mediação foca-se na comunicação, possibilitando aos envolvidos o exercício do protagonismo na reorganização da vida e de seus próprios conflitos (Nobre & Barreira, 2009).

Batista et al. (2017) consideram a mediação como uma alternativa bastante viável no âmbito da violência conjugal, visto que a judicialização dos conflitos não tem se mostrado suficiente para dar conta dos problemas de ordem relacionais, inclusive os que incluem situações de violência. Assim, as delegacias especializadas poderiam se constituir como um espaço de intermediação das demandas do casal, indo além de sua natureza intrinsecamente punitiva. Apesar dos possíveis benefícios da mediação de conflitos no âmbito da violência conjugal em delegacias especializadas, o baixo índice de mulheres que optaram por este procedimento no presente estudo, faz levantar a hipótese de que existam resistências dos envolvidos em conceber este problema como um fenômeno interacional e cíclico, em que todos os envolvidos são responsáveis por construir e sustentar o modo violento como a relação se estabelece e se mantem.

 

Considerações finais

A presente pesquisa teve como objetivo caracterizar a violência denunciada por mulheres que passaram pelo serviço de psicologia em uma delegacia de atendimento à mulher do sul do Estado de Santa Catarina, no período de agosto de 2012 a agosto de 2015.  Para tanto, foi realizada uma análise documental, com base nos boletins de ocorrência encaminhados ao referido serviço, visando traçar um perfil dos envolvidos, bem como da violência conjugal denunciada.

De maneira geral, o estudo evidenciou o caráter interacional, sistêmico e cíclico da violência conjugal, sendo que para combatê-la é necessário que seja estimulado o empoderamento da mulher e, ao mesmo tempo, a participação masculina e feminina na compreensão do papel do homem e da mulher na sociedade atual. A delegacia especializada constitui-se como um local de enfrentamento deste tipo de violência, porém, nem sempre é capaz de fornecer a resposta que a mulher busca, visto que a mera judicialização e punição dos atos considerados violentos no âmbito conjugal acaba não contemplando a complexidade do fenômeno.

Após a realização desse estudo, percebe-se que, além de políticas de enfrentamento da violência conjugal, deve-se trabalhar, também, a prevenção desta realidade. Como destacam Batista et al. (2017), a Lei Maria da Penha propõe-se a “coibir” e “prevenir” a violência doméstica e familiar, focando-se, porém em medidas de assistência e proteção às mulheres. Além disso, a lei também foca, com menor ênfase, em seu art. 8º, a implantação de meios de prevenção para tal tipo de ocorrência. Assim, considera-se que trabalhos de prevenção poderiam ser desenvolvidos em escolas, empresas, meios de comunicação, entre outros setores; discutindo-se papeis de gênero e sendo fornecidas informações sobre legislação e os direitos das mulheres no que diz respeito à violência conjugal.

Nesse sentido, os resultados do presente estudo podem contribuir no planejamento de ações que visem tanto o enfrentamento quanto a prevenção da violência conjugal, visto que foi traçado um perfil da violência e dos envolvidos, os quais deverão ser o foco de futuras intervenções e políticas públicas.

Por fim, sugere-se que o tema da violência no âmbito conjugal seja ampla e continuamente debatido na sociedade atual, discutindo-se sobre a necessidade de mudança de paradigmas que sustentam as visões sobre o papel do homem e da mulher no âmbito familiar e na sociedade como um todo. Nesse sentido, considera-se também de extrema relevância intervenções e estudos que foquem os possíveis agressores da violência conjugal. Sugere-se ainda que sejam realizados novos estudos, quali e quantitativos, com delineamento longitudinal, focando mulheres e homens em situação de violência conjugal. 

 

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Endereço para correspondência
Samira Mafioletti Macarini
E-mail: samiramacarini@gmail.com

Enviado em: 15/05/2017
1ª revisão em: 20/10/2017
Aceito em: 18/12/2017

 

 

1 Psicóloga. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e Especialista em Terapia Relacional Sistêmica pelo Instituto Familiare. Atualmente é Psicóloga da Polícia Civil do Estado de Santa Catarina. Professora do curso de Psicologia da Escola Superior de Criciúma (Faculdades ESUCRI).
2 Psicóloga.

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