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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.22 no.2 Porto Alegre jul./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

O envolvimento do adolescente em semiliberdade com o ato infracional sob a perspectiva ecológica

 

The involvement of the adolescents in socio-educative measure with antisocial behavior from the ecological approach

 

 

Amanda Schöffel Sehn1, I ; Daniele Dalla Porta2; Aline Cardoso Siqueira3, II

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
II Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo teve como objetivo investigar o contexto ecológico e o envolvimento com a infração de adolescentes que cumpriam medida socioeducativa em semiliberdade. Trata-se do recorte de uma pesquisa qualitativa, na qual foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 21 adolescentes do sexo masculino, com idade entre 15 e 20 anos, que cumpriam medida socioeducativa em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, Brasil. Análise de conteúdo qualitativa evidenciou estratégias empobrecidas dos adolescentes para resolução de conflitos, bem como fragilidades no micro e exossistema. Destaca-se a ausência de relações saudáveis e estáveis em diversos âmbitos e a exposição a situações de risco desde a infância. Assim, o contexto ecológico que poderia se constituir em fator de proteção é atravessado por fatores de risco, permeando o envolvimento com o ato infracional. Atenta-se para a importância de garantir a eficácia de políticas públicas voltadas para a promoção do desenvolvimento saudável dos adolescentes.

Palavras-chave: Adolescência, Adolescente em conflito com a lei, Relações interpessoais.


ABSTRACT

This article aimed to investigate the ecological context and involvement with the unlawful activities of adolescents who are under socio-educative measure in semi-open regime. This is a fragment of a qualitative research, in which semi-structured interviews was performed with 21 adolescents, aged between 15 and 20 years who fulfill socioeducative measure in a countryside city in Rio Grande do Sul, Brazil. Qualitative data analysis showed impoverished strategies for conflict resolution, and weaknesses in micro and exosystem. It is important to highlight the absence of healthy and stable relations in many fields and the exposure to risk situations since childhood. In this sense, the ecological context that could be a protective factor is crossed by risk factors, which influence the unlawful activities. It is important to ensure the effectiveness of public policies aimed to promote the healthy adolescent development.

Keywords: Adolescence, Adolescent antisocial behavior, Interpersonal relations.


 

 

Introdução

O envolvimento de adolescentes com o ato infracional tem sido um tema bastante investigado, cujos resultados têm apontado para a importância de garantir um ambiente de desenvolvimento saudável a essa população (Baglivio, Wolff, Piquero, & Epps, 2015; Nardi & Dell´Aglio, 2012; Zappe & Dias, 2012; Widom, 2014). Nesse sentido, cabe destacar que o ato infracional praticado na adolescência corresponde ao que o Código Penal entende como crime ou contravenção. Esta conduta do adolescente é avaliada pelo sistema de justiça, momento em que é deliberada medida socioeducativa, de acordo com a gravidade da infração. A semiliberdade pode ser uma medida inicial ou uma forma de transição do regime fechado para o aberto, já que nesta condição o adolescente é privado parcialmente da sua liberdade (Brasil, 1990). Ao considerar as experiências que ocorrem desde a infância, é relevante conhecer o momento de vida do adolescente, que antecede o contato com o sistema jurídico (Baglivio et al., 2015; Zappe & Dias, 2012; Widom, 2014).

O adolescente participa de diversos ambientes, como a família, a comunidade e a escola, nos quais são estabelecidas diferentes relações com as pessoas, com os objetos e com o contexto (Bronfenbrenner, 2005). De acordo com a teoria bioecológica, o desenvolvimento ocorre por meio de processos de interação recíproca entre o indivíduo e o seu contexto através do tempo e é compreendido a partir da interação simultânea de quatro aspectos inter-relacionados, a saber: Processo, Pessoa, Contexto e Tempo – modelo PPCT (Bronfenbrenner, 1996). Em relação ao processo, são enfatizados os processos proximais que constituem os principais motores do desenvolvimento. Estes se caracterizam por formas particulares de interação entre o indivíduo e o ambiente ao longo do tempo. Já os aspectos atinentes à pessoa dizem respeito às características determinadas biopsicologicamente, bem como constituídas na interação com o ambiente (Bronfenbrenner, 2005).

O contexto é entendido como parte do ambiente ecológico, isto é, um sistema composto por microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema (Bronfenbrenner, 1996). O microssistema diz respeito às relações face a face, em que o indivíduo participa ativamente; enquanto o mesossistema se refere à inter-relação entre dois ou mais sistemas que a pessoa participa ativamente. O exossistema, por sua vez, relaciona-se aos ambientes que não envolvem a pessoa como um participante ativo. Por fim, o macrossistema traduz os padrões globais de ideologia e organização das instituições sociais comuns a uma determinada cultura ou subcultura. O quarto aspecto do modelo, o tempo, é caracterizado pelas mudanças e continuidades que ocorrem ao longo do ciclo de vida (Bronfenbrenner, 1996). Embora o contexto ecológico do adolescente seja permeado por diferentes fatores, neste estudo serão enfatizadas as relações estabelecidas na família, na escola, com os amigos e com a comunidade.

A família é considerada um microssistema que sustenta o desenvolvimento do adolescente, pois é fundamental na educação, na orientação e no suporte, tanto afetivo quanto material, de seus membros (Costa & Dell’Aglio, 2011). Nesse sentido, o ambiente familiar pode se caracterizar como fator de risco ou proteção no que concerne ao ato infracional, na medida em que oferece - ou não - monitoramento e suporte para as ações dos adolescentes (Predebon & Giongo, 2015). Por exemplo, o número de horas que os genitores dedicam aos filhos durante a adolescência, sobretudo a qualidade do tempo compartilhado em família são fatores que podem atuar como proteção para o envolvimento com o ato infracional (Milkie, Nomaguchi, & Denny, 2015). Por outro lado, episódios familiares desfavoráveis, como violência intrafamiliar distanciamento da figura paterna e relacionamentos marcados por agressões físicas e emocionais, podem trazer sérios desdobramentos para o desenvolvimento do adolescente (Gallo & Williams, 2005). De forma semelhante, famílias com configurações monoparentais podem ser mais afetadas pelos fatores de risco, conforme destacado por Gallo e Williams (2005), pois o cuidador principal que, na maioria das vezes, é a mãe, é responsável por prover o sustento financeiro da família, cuidar e educar os filhos, sem contar, muitas vezes, com uma rede de apoio, o que pode trazer sobrecarga. Outro microssistema importante durante a adolescência é a escola, tendo em vista suas características protetivas, como o incentivo pela busca de um futuro saudável (Sehn, Dalla Porta, & Siqueira, 2015). Porém, existem circunstâncias no ambiente escolar que são favoráveis à presença de riscos aos adolescentes (Libório, Coêlho, & Castro, 2011), como a falta de relações afetivas entre professores-alunos, os estigmas e as práticas discriminatórias e a inexistência de atividades criativas e estimulantes relacionadas aos contextos sociais desses meninos. Ainda, destaca-se a ausência de comunicação e de negociação de normas e valores, as relações desrespeitosas e, por vezes, a falta de investimento, por parte dos professores, nas atividades escolares (Gallo & Williams, 2008; Libório et al.,2011). Gallo e Williams (2008) também salientam que, muitas vezes, os professores não estão capacitados para atender adolescentes com problemas de comportamento, além de não terem condições favoráveis de trabalhos, como baixos salários.

As amizades também consistem em um microssistema fundamental, visto que o relacionamento com os pares pode favorecer comportamentos de risco, como o uso de drogas, que pode se tornar frequente nos grupos durante a adolescência (Martins & Pillon, 2008; Muller, Barboza, Oliveira, Santos, & Paludo, 2009; Nardi, Jahn, & Dell’Aglio, 2014; Ragan, 2014). Além disso, o adolescente, nesta faixa etária, sente-se motivado a procurar por um grupo que se pareça com ele, sobretudo quando o relacionamento familiar e o ambiente escolar apresentam-se fragilizados (Mennis & Harris, 2011).

Em conjunto, tais microssistemas – a família, a escola e o grupo de pares – estabelecem uma interação entre si, formando o mesossistema. Esses ambientes podem se apresentar enquanto fatores de risco ou proteção para o adolescente, de acordo com a forma que as experiências vivenciadas se articulam (Libório et al., 2011). O exossistema, por sua vez, é caracterizado pelo trabalho dos genitores, e pelos conselhos de defesa e garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, por exemplo. Nesse sentido, Arpini (2003) destaca que o trabalho dos genitores, por vezes é caracterizado por serviços desvalorizados e mal remunerados, o que pode influenciar, mesmo que indiretamente, a dinâmica familiar e o adolescente. Assim como, o envolvimento com o crime e a passagem dos genitores pela prisão também podem se constituir em risco para o conflito com a lei (Arpini, 2003; Muller et al., 2009; Trifan & Stattin, 2015). Por fim, a comunidade e o bairro são permeados por uma cultura própria, que representa uma parte do macrossistema desses adolescentes, por meio do qual são aprendidos os valores, as regras e as crenças deste ambiente (Bronfenbrenner, 1996).

Em síntese, o ato infracional na adolescência é amplamente estudado na literatura, com enfoque no funcionamento familiar e nas experiências adversas na infância (Baglivio, et al., 2015; Nardi & Dell´Aglio, 2012; Zappe & Dias, 2012; Widom, 2014), na relação entre a violência familiar e o comportamento agressivo dos adolescentes que cometeram atos infracionais (Nijhof, Kemp, & Engels, 2009; Predebon & Giongo, 2015; Taylor, Merrilees, Goeke-Morey, Shirlow, & Cummings, 2015), bem como nos projetos de vida, no perfil dos adolescentes e na continuidade do ato infracional (Nardi et al., 2014; Sehn et al., 2015; Zappe & Dias, 2012). Ainda que esses estudos contribuam com dados sobre as múltiplas faces do fenômeno, há uma carência de pesquisas que abordem o comportamento infracional do adolescente a partir de uma perspectiva ecológica (Santos & Alberto, 2014; Sehn, Dalla Porta, Santos, & Siqueira, 2016).

Desse modo, considera-se que o desenvolvimento dos adolescentes é permeado por processos de interação recíproca, progressivamente mais complexos, entre a pessoa e o seu contexto através do tempo (Bronfenbrenner, 1996). Frente a isso, ressalta-se a importância de investigar o contexto que os adolescentes se inserem, visto que representa um ambiente central para o desenvolvimento humano saudável, embora em alguns casos, possa se constituir em fator de risco. Sendo assim, o objetivo desse estudo foi investigar o contexto ecológico e o envolvimento de adolescentes com a prática infracional.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 21 adolescentes que cumpriam medida socioeducativa na Unidade de Semiliberdade de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, Brasil. Essa instituição atendia em torno de 25 adolescentes em regime semiaberto, sendo que a maioria dos meninos estava em progressão de medida, ou seja, anteriormente cumpria sanção em regime fechado. Quanto ao tipo de infração cometida pelos participantes, destaca-se tentativa de homicídio, roubo, furto, tráfico de drogas e porte ilegal de armas. Ainda, ressalta-se que a duração da medida de semiliberdade variou entre quatro e oito meses. Os participantes eram todos do sexo masculino e possuíam idade entre 15 e 20 anos (M=17,04; DP= 1,32). Por considerar que a delimitação da adolescência é flexível (Brasil, 1990; OMS, 2001), foi incluído um jovem de 20 anos que estava cumprindo medida sob proteção das leis voltadas para crianças e adolescentes, cujo ato infracional foi cometido antes dos 18 anos.

Procedimentos e instrumentos

Trata-se do recorte de uma pesquisa qualitativa, de caráter transversal, realizada no ano de 2013, entre os meses de abril e setembro. Todos os adolescentes que cumpriam medida socioeducativa na Unidade de Semiliberdade foram convidados a participar do estudo, considerando o tempo mínimo de sete dias na instituição. Foi realizado um encontro com os adolescentes na unidade, momento em que foi apresentado o projeto e discutidas as dúvidas. Dos 25 adolescentes que estavam na instituição durante a realização da pesquisa, quatro não aceitaram participar do estudo. As entrevistas foram conduzidas por duas pesquisadoras em uma sala cedida pela instituição e os adolescentes foram entrevistados individualmente, com duração média de uma hora. Ressalta-se que, durante as entrevistas, não houve acompanhamento de nenhum funcionário, como medida de segurança. Todas as entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas. Para a sistematização dos dados, foram utilizados códigos, dessa forma, os participantes serão referidos através das siglas P1 a P21.

Para a coleta de dados foi utilizada uma entrevista semiestruturada, elaborada e realizada pelas próprias pesquisadoras, com base no objetivo da pesquisa, com os seguintes eixos norteadores: a) trajetória de vida e b) envolvimento com o ato infracional. Foram abordadas perguntas como: “conte-nos um pouco sobre tua trajetória de vida”, “quais lembranças tens da tua infância?”, “o que te trouxe até o centro educativo?”, “como era tua rotina antes de estar cumprindo medida?”, entre outras. Destaca-se que as questões foram conduzidas de forma semidigirida e as respostas dos adolescentes foram exploradas.

Considerações éticas

O presente estudo integra uma pesquisa mais abrangente que foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da [omitido] sob o número [omitido] e atende aos preceitos éticos da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde que regulamenta as condições da pesquisa envolvendo seres humanos. A instituição, enquanto responsável pelos adolescentes, autorizou a realização da pesquisa, sendo que os adolescentes maiores de 18 anos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e os menores de 18 anos assentiram verbalmente. Cabe ressaltar que o Comitê de Ética, no qual o presente estudo foi aprovado, dispensou o Termo de Assentimento para os adolescentes menores de 18 anos, por entender que eles estavam sob responsabilidade da instituição que havia autorizado o estudo. Assim, o Comitê de Ética orientou que o assentimento verbal era suficiente para garantir a participação dos adolescentes menores de 18 anos.

Análise dos dados

Os dados foram analisados com base na análise temática (Braun & Clarke, 2006). A leitura exaustiva e o posterior desmembramento do material permitiu a organização em temas. Duas autoras fizeram a leitura das entrevistas e a classificação dos temas foi feita de modo independente e, em caso de discordância, um terceiro pesquisador foi consultado. O índice de concordância em relação aos temas foi de 85%. Com base na literatura (Bronfenbrenner, 1996, Libório, et al., 2011, Loeber et al., 2001, Taylor et al., 2015), bem como nos eixos norteadores do instrumento, foram elencados os seguintes temas: Estratégias de resolução de conflito dos adolescentes; Caracterização do microssistema familiar – cujos subtemas são Cuidadores na infância e Qualidade das relações familiares; Engajamento no microssistema escolar, e Relação com  amigos e familiares - com os seguintes subtemas: Caracterização do microssistema - grupo de pares, e Caracterização do exossistema – Envolvimento de familiares com práticas ilícitas. Frisa-se ainda que foram escolhidas algumas vinhetas para ilustrar os temas e subtemas, priorizando as falas mais representativas. No intento de facilitar a exposição dos dados em relação ao número de participantes em cada tema foi utilizada a seguinte descrição: poucos adolescentes [1 a 4]; alguns adolescentes [5 a 8]; muitos adolescentes [9 a 12]; a maioria dos adolescentes [13 a 16]; a grande maioria dos adolescentes [17 a 21]. A inclusão dessa terminologia tem como objetivo sistematizar a exposição dos dados e foi baseada na proposta de Hill et al. (2005).

 

Resultados

1) Estratégias de resolução de conflito dos adolescentes

Este tema apresenta as estratégias que os adolescentes utilizavam para resolver as situações conflitivas. De modo geral, foi observado que os meninos tinham dificuldade para a resolução de conflito, o que parecia estar relacionado ao envolvimento com a infração da lei. Poucos adolescentes se descreveram como pessoas calmas, mas caso fossem “incomodados” ou “estressados” não pensavam no que faziam e, geralmente, tinham uma reação violenta, como brigar, bater e discutir: “Sou uma pessoa calma, só se ficarem ao ponto de eu me estressar daí brigo, alguma coisa eu faço [...] na hora eu não penso em nada, penso em fazer o que eu tenho que faze e já era” [sic] (P2). Nesse sentido, quando questionado sobre seus defeitos um adolescente respondeu: “Meu defeito é não pensar, eu acho” [sic] (P5). Outro aspecto destacado pelos meninos foi a rivalidade entre grupos de um mesmo bairro ou comunidade. Parecia haver disputa de poder entre eles quanto a venda de drogas, por exemplo, sendo que a resolução dessas desavenças se dava com uso de violência: “[Eu] tava de briga tipo eu tava vendendo [drogas] e aquele lá do outro lado queria ser mais que eu, aí eu tava que já tava tudo de guerra já” [sic] (P20).

Alguns meninos também relataram ser “nervosos” e “ansiosos”, visto que no momento de resolução de desavença eram impulsivos, agindo imediatamente: “Eu era agitado, era nervoso, era bravo, não podia passa ninguém me olhando que eu já cobrava ‘ó o que que tá me olhando’ né” [sic] (P3). Um menino quando perguntado sobre como resolvia seus conflitos, respondeu: “Atiro neles [nos inimigos]” [sic] (P6). Nesses casos, identifica-se dificuldade dos adolescentes em manejar determinadas situações, o que, muitas vezes, acabava por se caracterizar em um conflito que tinha a violência como saída possível, constituindo-se em um ato infracional: “Aconteceu porque um piá que cada vez que me via queria me dar tiro, aí eu peguei e cobri ele” [sic] (P11); “Eu fico bem, pode me incomodar, pode querer brigar comigo o quanto for, eu não faço nada, mas se partiu pra cima e deixar pra mim, eu não penso duas vezes, só vou com maldade no coração” [sic] (P20).

2) Caracterização do microssistema familiar

2.1 Cuidadores na infância

Muitos adolescentes relataram que foram criados por ambos os genitores, no entanto, as práticas parentais pareciam frágeis e inconsistentes: “Quando eu era pequeno, a minha mãe e o meu pai sempre me propuseram coisas boas [...] daí chegou uma certa idade eu achei que eu já podia me mandar em mim mesmo, que eu não precisava mais deles[sic] (P19).

Ainda, alguns meninos apontaram que foram criados apenas pela mãe. A ausência do pai na trajetória desses adolescentes estava relacionada ao falecimento, abandono da família ou desconhecimento da figura paterna: “O meu pai, eu não conheço. Até agora a pouco... Nessa saída [da instituição de semiliberdade] que eu saí, que eu vi ele, que ele foi lá pra ver como é que eu tava” [sic] (P16). Em contrapartida, um adolescente mencionou ter sido criado pelo pai em decorrência do falecimento da mãe: “Bá eu fui criado com o meu pai né, a minha mãe é falecida, eu tinha um ano e meio quando ela faleceu. Eu fui criado com o meu pai, mas nunca me dei bem com ele” [sic] (P15). Poucos participantes mencionaram que foram criados por outras pessoas. Nesses casos, os avós foram os principais cuidadores citados: “Eu não fui criado pela minha mãe, nem pelo meu pai. Fui criado pelos meus avós. Quando faleceu a minha vó, fiquei com o meu vô, aí faleceu o vô e eu segui tocando a vida, trabalhando, segui sozinho” [sic] (P17).

Outro aspecto mencionado por três adolescentes diz respeito à perda de algum familiar significativo, como fator que permeou o envolvimento com o ato infracional: “Um ano depois que ele [pai] morreu, fiz a minha primeira bronca, caí por tentativa de homicídio. Dei num cara, ele deu na minha mãe, [...] daí eu peguei um machado e dei nele, uma machadada na cabeça” [sic] (P9).

2.2 Qualidade das relações familiares

Os adolescentes relataram opiniões divergentes quanto à qualidade da relação familiar. Muitos adolescentes descreveram que tinham uma relação boa com os genitores e os irmãos, evidenciando a ausência de brigas e problemas: “Não sei, [a relação com a família] é boa, é assim nunca tive uma má relação com eles né, nunca tive incomodação com eles né sempre me trataram bem, me deram educação sempre, tranquilo” [sic] (P1). Em contrapartida, muitos meninos mencionaram o contrário, ressaltando que a relação com a família era difícil. Nesse sentido, os contextos familiares caracterizavam-se por vulnerabilidade, nos quais havia presença de fatores de risco, como pai e mãe que faziam uso de bebida alcoólica/drogas, violência intrafamiliar, entre outros aspectos: “Minha infância foi bastante complicada porque meu pai bebia, era alcoólatra, daí batia na minha mãe, [...] a gente de madrugada tinha que sair de casa e ir pro meio da rua pra não ver eles brigando e coisa” [sic] (P8).

Dois adolescentes enfatizaram que os genitores pareciam se colocar de modo indiferente na relação familiar, visto que não haviam regras estabelecidas quanto à rotina: “Como que eu vou te dizer, criado assim, minha mãe não dava bola muito, quando ela era casada com o meu pai, eu ficava na rua até tarde com os amigo, ia pro colégio de manhã, vinha do colégio” [sic] (P13). Esse aspecto também foi relatado por poucos adolescentes, no que tange o conhecimento da mãe e/ou do pai acerca do envolvimento do filho em atos ilícitos: “Dos 12 anos pra baixo, eu ficava em casa só, eu não saia a minha mãe não deixava eu sai, mas depois eu comecei a fazer o que eu queria” (P2); “A mãe? É a mãe sabia assim [do envolvimento com o ato infracional], só que eu não ficava em casa, eu ficava na rua e coisa na rua, porque ela não gosta dessas coisas” [sic] (P18).

3) Engajamento no microssistema escolar

Este tema trata sobre o fraco engajamento dos adolescentes nas atividades escolares. Muitos meninos relataram que frequentavam a escola anteriormente ao cumprimento da medida socioeducativa: “Iá [no colégio], eu estudava de noite. Por isso que eu avancei de... eu tava com 14 anos e tava na primeira série ainda” [sic] (P17). Por outro lado, poucos meninos mencionaram que não iam à escola antes de estar na instituição de semiliberdade: “Só lambrava, só queria bagunça não estudava, é isso” [sic]  (P5).

Apesar da frequência, o interesse dos adolescentes parecia não estar voltado para as tarefas escolares, mas para brincadeiras, jogos e outras atividades: “Eu ia no colégio, jogava bolita de gude, essas coisas” [sic] (P7). Além disso, três adolescentes relataram que mesmo indo à escola, não permaneciam nas aulas e fugiam: “Lembro muita pouca coisa dos estudo, eu ia no colégio e tudo mas não dava bola pra aula, ficava mais na esquina, esperava até a hora do recreio pulava o muro e saia, é isso aí que me lembro” [sic] (P3); “Tenho bem poucas [lembranças] do colégio, eu fui umas 2, 3 vezes no colégio. Daí fugia do colégio, daí ia pro meu tio que vendia droga” [sic] (P4).

Também parecia haver influência do grupo de pares no fato de frequentar ou não a escola: “Até a segunda série, eu ia direitinho, depois eu já não ia muito, eu começava a matar aula, tudo, andava com os outros” [sic] (P9). Poucos participantes mencionaram que abandonaram os estudos para trabalhar: “Abandonei pra trabalhar, de louco, abandonei [o colégio], não quis mais” [sic] (P10). Ainda, conforme o relato dos meninos, a família demonstrava ter conhecimento da rotina dos adolescentes e, em alguns casos, parecia não incentivar a permanência ou a inserção na escola: “A minha mãe trabalhava pra campanha às vezes assim e muito tempo ela ficava na campanha, aí eu não estudava em lugar nenhum. E ninguém falava nada da... da justiça ninguém dava em cima, ninguém dava bola” [sic] (P17).

4) Características da rede de apoio dos adolescentes

4.1 Caracterização do microssistema - grupo de pares

Muitos adolescentes mencionaram a influência do grupo de pares na prática do ato infracional: “Bãi fui me criando com os amigos, depois fui passando pra festa, depois eu fui crescendo e é só festa depois, e é só em festa, festa e dava briga. Foi aí que eu caí na FEBEM [regime fechado]” [sic] (P5). Alguns meninos ressaltaram a curiosidade junto aos amigos, como uma característica que os levou ao envolvimento com o ato infracional. Nesse sentido, um participante descreveu: “Adolescência tipo bá, antes eu era calmo. Quando vi, comecei me envolver com os cara do meu bairro, fui querendo fica por curiosidade, querer aparece. Tá se conhecendo, saindo de noite, essas coisas [...]  assaltava, fazia tudo no meio” [sic] (P8). Ainda, o ato infracional foi relacionado à adolescência, como um período de curiosidade e novas descobertas: “Nasci na igreja, depois de adolescente, comecei sair com a gurizada, me envolver. Saí da igreja, me envolvi em briga e mais briga e acabei tentando uma tentativa de homicídio e fui preso, mas foi a primeira e a última” [sic] (P10).

Alguns adolescentes mencionaram como ocorreu o envolvimento com o ato infracional e de que modo isso se associava ao grupo de pares. Parecia haver um encadeamento de ações, no qual o adolescente se engajava, e culminava no ato infracional. Tal aspecto é ilustrado por um menino: “Conheci com os piá convidando pra brincar, fui, gostei, comecei só saí, mudei completamente. Conheci amizades, fui ficando de farra. Primeiro começamos fumar maconha, depois se envolver em briga, confusão. Envolvi numa briga, dei um tiro e me pegaram” [sic] (P21).

4.2 Caracterização do exossistema – envolvimento de familiares com práticas ilícitas

A maioria dos meninos também descreveu que seus familiares haviam se envolvido em práticas ilícitas e passaram pelo sistema prisional: “Todos [foram presos], meu irmão mais velho, minha irmã mais velha, eu, menos a outra, a menor” [sic] (P12). Dentre os membros da família, os adolescentes mencionaram tios, irmãos, pai, mãe e padrasto: “O meu tio, tava comigo preso, daí ele saiu e eu fiquei. E o meu irmão saiu agora esses dia da cadeia... e o meu tio também, o meu outro tio, irmão desse meu tio tava preso também” [sic] (P2); “Meu pai acho que teve, ele teve preso quando eu era bem pequeno, [...] eu me lembro de ter ido visitar ele uma vez no presídio” [sic] (P9).

Poucos participantes relataram que os familiares faziam uso de álcool ou outras drogas durante suas infâncias e adolescências. Destaca-se que alguns meninos mencionaram episódios envolvendo o consumo de substâncias pelo pai/padrasto e situações de agressão dirigidas à mãe, por motivo como ciúmes: “Bá a minha infância foi... foi bastante complicada porque bá meu pai bebia, ele era alcoólatra, né, daí batia na minha mãe” [sic] (P8). Um adolescente relatou que o irmão consumia drogas: “Só o meu irmão que usava, usava droga” [sic] (P2) e outros mencionaram o consumo de familiares próximos: “Daí ia pro meu tio que vendia droga, sabe, eu ficava com ele lá, daí teve um dia que eu fugi de casa e fui pra casa dele, daí lá eu comecei a usar droga, rouba” [sic] (P4). Nesse sentido, a proximidade dos adolescentes com atos infracionais e o consumo de substâncias lícitas/ilícitas parecia ser bastante natural e corriqueiro, já que, em alguns casos, isso demonstrava ser uma situação vivenciada na rotina da família: “Eu vi né, o envolvimento com o pai e a mãe ali e acabei me envolvendo junto e daí a mãe foi presa, depois o pai, quando vê eu continuei tocando pra frente a droga, quando vê eu me abalei” [sic] (P12); “O meu pai vendia [drogas], eu tinha facilidade, sempre fui criado no meio disso né” [sic] (P16).

 

Discussão

Considerando o objetivo de investigar o contexto ecológico e o envolvimento de adolescentes com o conflito com a lei, a partir dos resultados foi possível identificar uma interação entre os fatores pessoais com o micro, o meso e o exossistema do adolescente. Quanto às características pessoais, verificou-se certa dificuldade de resolução de conflitos dos adolescentes deste estudo, que estavam cumprindo medida socioeducativa de semiliberdade, visto que quando haviam desentendimentos entre os pares, as divergências eram resolvidas com uso de violência. Nesse sentido, o diálogo não costumava ser uma ferramenta muito utilizada por esses adolescentes, em parte, devido à ausência de recursos internos (psíquicos) para lidar com os acontecimentos no mundo externo. Ressalta-se que a ausência de diálogo como estratégia de resolução de conflito também pode ser entendida como uma característica da adolescência, pois nessa faixa etária são comuns atitudes mais impulsivas (Loeber et al., 2001). Nesses casos, o uso da violência pode ser uma forma disfuncional de resolução de conflito, pois o adolescente parece não ter um repertório com outras possibilidades de comportamentos para manejar seus conflitos (Loeber et al., 2001). Ainda, os adolescentes parecem retratar uma curiosidade em relação a novas experiências, característica que também pode ser atribuída a faixa etária em que se encontram, a adolescência (Vasters & Pillon, 2011). No entanto, destaca-se que por estarem inseridos em um contexto, muitas vezes, marcado pela violência, é provável que no desejo pelo novo não prevaleça a busca por oportunidades que poderiam se constituir em proteção, já que estas são a minoria.

Além das características individuais, as vivências no microssistema familiar repercutem no desenvolvimento dos adolescentes. Apesar de a presença dos genitores ser fundamental para a criação dos filhos (Zappe & Dias, 2012), apenas a presença física não é garantia de práticas parentais eficazes (Harris-McKoy, 2016). Assim como o número de horas que os pais despendem com os filhos, a qualidade desses momentos pode se constituir em fator de proteção para o consumo de substância ilícitas e o envolvimento com o ato infracional (Milkie et al., 2015), por exemplo. Embora a maioria dos adolescentes deste estudo tenha sido criado pelo pai e pela mãe, experiências difíceis também foram experimentadas no microssistema familiar, como separações, brigas e violência intrafamiliar, o que está em consonância com outros estudos, envolvendo adolescentes em conflito com a lei (Nardi & Dell’Aglio, 2012; Nijhof, et al., 2009).

Desarmonia e violência no ambiente familiar também tem sido apontados pela literatura como fatores associados a comportamentos de risco na infância e na adolescência, juntamente com características como ser do sexo masculino, viver em ambiente com discórdia, receber cuidados parentais inadequados, ser criado por genitores agressivos e ter nível socioeconômico desfavorecido (Arpini, 2003; Nardi, et al., 2014; Gallo & Williams, 2005; Van Ryzin & Dishion, 2013; Taylor et al., 2015), o que corrobora os dados do presente estudo. Como exemplo, estudo realizado por Trifan e Stattin (2014) identificou uma relação entre a hostilidade em casa e em outros contextos. Mais especificamente, os autores apontaram que os jovens que vivenciam situações hostis no ambiente familiar acabam agindo de modo hostil na escola. Tais aspectos assemelham-se as vivências dos adolescentes do presente estudo, visto a fragilidade das relações estabelecidas tanto na família quanto na escola. Destaca-se, ainda, a importância da família como modelo, ao considerar que a violência é produzida nas relações sociais e interpessoais e pode ser transmitida intergeracionalmente (Santos, Marin, & Castoldi, 2013).

Alguns meninos relataram diferentes cuidadores durante a infância, com destaque para a presença de apenas um dos genitores na sua criação, o que caracterizaria a monoparentalidade. De acordo com a literatura, essa configuração pode sobrecarregar a figura parental que chefia a família, mesmo que isso não seja regra (Martins & Pillon, 2008; Muller et al., 2009; Nardi & Dell’Aglio, 2012). Na maioria dos casos deste estudo, a mãe foi mais participativa na rotina desses adolescentes, enquanto o pai foi considerado uma figura distante, sendo que, para muitos meninos, ele sequer existiu ou fez parte de suas trajetórias. Por outro lado, quando o pai se fez presente na vida dos adolescentes deste estudo, perdê-lo produziu um misto de sentimentos, que envolvia a responsabilidade pela proteção da família e a busca por justiça em relação à morte do pai. Nesse sentido, por estarem inseridos em um contexto também permeado pela vulnerabilidade social e pela violência, alguns meninos sentiam-se responsáveis pela proteção da figura materna, defendendo a mãe e se colocando em risco, no intento de proteger o microssistema familiar, por exemplo. Em parte, tal resultado associa-se ao fato de que a ausência paterna pode produzir um sentimento de rejeição e revolta, conforme verificado por Arpini (2003) e Predebon e Giongo (2015).

Quando os cuidadores estavam presentes, os adolescentes mencionaram que a qualidade das relações familiares era boa, mesmo que os genitores não participassem ativamente da vida dos filhos.  Isso pode estar relacionado à própria etapa do ciclo vital – a adolescência - momento em que o adolescente quer ter a sua liberdade e a sua privacidade respeitados. Também é possível apontar que por não conhecer outros modos possíveis de se relacionar, os meninos deste estudo consideravam satisfatórias as relações estabelecidas em suas famílias, o que leva a pensar que talvez estes adolescentes não percebiam que algumas situações poderiam ser consideradas violência, por esta ser velada. Além disso, por não conhecer outros modelos de relação, pode-se pensar que  a violência estava naturalizada no contexto destes adolescentes, não havendo estranhamento sobre os conflitos e situações de violência.

É a partir do microssistema que as crianças e os adolescentes desenvolvem interações com outros ambientes, ampliando a rede no seu mesossistema (Bronfenbrenner, 1996), o que, posteriormente, envolve a escola, os amigos e a comunidade como novas fontes de apoio (Nardi & Dell’Aglio, 2014). Especificamente no que se refere ao microssistema escolar, verificou-se que os adolescentes pareciam estabelecer uma relação instável e tumultuada com essa instituição. Destaca-se que, apesar de relatarem que frequentavam as aulas parecia haver pouco engajamento nas atividades escolares, o que mostra que esses meninos estavam mais interessados nos espaços de diversão que a escola poderia oferecer do que no conteúdo formal e na aprendizagem. Mesmo considerando essa preferência dos adolescentes como algo típico da fase, o pouco envolvimento nas tarefas escolares também pode estar relacionado à falta de relações afetivas e a dificuldade de comunicação entre professores e alunos, bem como à ausência de atividades criativas e adaptadas à realidade dessa faixa etária, conforme apontado por outros estudos brasileiros (Gallo & Williams, 2008; Libório, et al., 2011). Igualmente importante ressalta-se que, muitas vezes, a família obriga o adolescente a frequentar a escola, sem participar ativamente da sua rotina, o que também pode contribuir para o afastamento do filho em relação à escola (Pires, Sarmento, & Drummond, 2018). Ainda, a escola pode se constituir como um dos únicos espaços que o adolescente tem para brincar e se divertir em segurança, já que a maioria desses meninos moravam em bairros marcados pela violência. Assim, parece que o conteúdo formal da escola torna-se muito menos interessante quando comparado à possibilidade de interagir com os pares, por exemplo.

Dados semelhantes foram encontrados em pesquisa realizada por Martins e Pillon (2008) com adolescentes privados de liberdade. Os autores obtiveram como resultado que mais de 50% dos participantes possuíam baixa escolaridade e 50% deles não estavam estudando ao entrarem para o contexto socioeducativo. Ainda, pesquisa realizada por Gallo e Williams (2008), que retratou a dificuldade dos adolescentes infratores em permanecer no ambiente escolar, identificou que 76,9% da amostra desistiu da escola por motivos como “desinteresse” (43,2%), “abandono” (13,5%), “conflitos” (13,5%), “fracasso escolar” (5,4%) e “suspensão das aulas” (1,3%). Esses dados vão ao encontro dos resultados do presente estudo, em que a maioria dos adolescentes fugiu da escola ou abandonou os estudos.

A escola também apareceu como um espaço que favorece o contato com os pares. Frequentar a escola era uma possibilidade de trocar ideias e planos com um grupo de amigos que compartilhava de uma realidade familiar e social semelhante. E, muitas vezes, eram essas trocas grupais que contribuíam para encorajar os adolescentes a fugir e/ou abandonar os estudos. Tais aspectos ressaltam a importância de repensar os modelos escolares vigentes, para que esse espaço possa se tornar atrativo para os adolescentes, considerando os outros contextos (como o micro, meso, exo e macrossistema) que estão inseridos. Ainda, investimentos relacionados à capacitação para professores no atendimento de adolescentes com problemas de comportamento, bem como melhores remunerações e condições de trabalho também são fatores que podem contribuir para tornar a escola um espaço mais interessante para os adolescentes.

O grupo de pares, enquanto microssistema, teve destaque no envolvimento dos adolescentes com o conflito com a lei, visto que a maioria dos meninos relatou a presença dos amigos no ato infracional. Também identificou-se uma tendência entre os adolescentes em selecionar os amigos com base em seus comportamentos, pois o adolescente costuma buscar um grupo de pares que se assemelhe a ele em termos de características pessoais, familiares e sociais (Haynie et al., 2014). Nesse sentido, a literatura aponta que o grupo de pares pode apresentar fatores de risco para o envolvimento com a infração (Martins & Pillon, 2008; Muller, et al., 2009; Zappe & Dias, 2012) e com o consumo de substâncias lícitas e ilícitas (Nardi, et al., 2014; Ragan, 2014).

Em relação ao exossistema, as atividades dos genitores, dos amigos ou de familiares próximos dos adolescentes, também podem se constituir em fator de risco para o envolvimento com o ato infracional (Gallo & Williams, 2005; Muller et al., 2009). Dito de outro modo, o trabalho do pai e da mãe pode ser considerado um ambiente em que são estabelecidas relações, nas quais o adolescente não participa ativamente, mas pode ser influenciado por elas, mesmo que indiretamente (Bronfenbrenner, 1996). Além disso, genitores e familiares que possuem antecedentes criminais podem se tornar exemplo para os adolescentes, tendo em vista que a criminalidade praticada pelo pai e pela mãe tende a ser repetida pelos filhos, evidenciando a transmissão intergeracional de alguns comportamentos (Arpini, 2003; Gallo & Williams, 2005; Muller et al., 2009; Santos et al., 2013; Trifan & Stattin, 2015). De modo semelhante, o consumo de substâncias lícitas e ilícitas por familiares também parece reverberar na vida do adolescente, conforme mencionado por alguns participantes, coadunando com a literatura (Pereira & Sudbrack, 2008). Nesse sentido, é possível pensar que o consumo pode se tornar parte da rotina familiar e social dos meninos, em que não há questionamento ou mudança, por se considerar essa prática como algo natural. Assim, desde muito cedo esses adolescentes são expostos a fatores de risco tanto no micro, meso e exossistema como no macrossistema, o que tende a potencializar o envolvimento do adolescente com o ato infracional (Sehn, et al., 2015).

 

Considerações finais

A partir do objetivo de investigar o contexto ecológico e o envolvimento dos adolescentes em conflito com a lei, foi possível verificar que desde a infância os meninos foram expostos a situações de risco, em que assumiam uma posição passiva frente aos eventos estressores do ambiente. De certo modo, é possível pensar que a violência e o ato infracional acabam sendo uma “saída” possível, como se fosse uma estratégia de comunicação e sobrevivência frente a um contexto ecológico também violento e com poucas oportunidades.

Diante dessas questões, verifica-se que estratégias pontuais dirigidas à família e à escola – por exemplo - são fundamentais, no entanto, é necessário que as intervenções ultrapassem esses espaços e também deem conta das fragilidades sociais, como a falta de oportunidades, a ausência de condições mínimas de moradia e alimentação, dentre outros problemas que permeiam a realidade social dessa população. As questões referentes ao envolvimento do adolescente com o ato infracional não se esgotam nas reflexões acerca do contexto ecológico, mas permitem novas discussões. Ressalta-se que aspectos relacionados à medida socioeducativa, o tipo de ato infracional cometido e os projetos de vida não foram contemplados nesse estudo, sugerindo que estudos futuros avancem nessas temáticas. Dentre as limitações deste estudo, destaca-se a diversidade de infrações cometidas pelos adolescentes, sendo que não há precisão acerca de um perfil dos participantes. Além disso, ressalta-se que apenas o regime de semiliberdade foi investigado.

Em suma, os resultados deste estudo ilustram a complexidade do ato infracional na adolescência a partir da perspectiva bioecológica. Os dados ilustram que o contexto do adolescente (micro, meso, exo e macrossistema), junto com as características pessoais e os processos proximais que são estabelecidos ao longo do tempo, podem ser determinantes para o envolvimento com o ato infracional, o que evidencia que o conflito com a lei deve ser compreendido a partir de uma multiplicidade de fatores que parecem incidir na vida desses adolescentes. Ademais, compreender minimamente o contexto ecológico do adolescente em conflito com a lei permite se aproximar da realidade desses meninos e, assim propor medidas eficazes que possam se constituir em fator de proteção após o cumprimento da medida, evitando a recidiva. Assim, aponta-se para a importância de programas e políticas públicas que promovam o desenvolvimento saudável, ao mesmo tempo, salienta-se a necessidade de efetivar as leis já existentes, no intento de garantir os direitos da criança e do adolescente.

 

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Endereço para correspondência
Amanda Schöffel Sehn
E-mail: amanda_sehn@hotmail.com

Daniele Dalla Porta
E-mail: danidallaporta@hotmail.com

Aline Cardoso Siqueira
E-mail: alinecsiq@gmail.com

Enviado em: 12/06/2018
1ª revisão em: 05/09/2018
Aceito em: 25/10/2018

 

 

1 Psicóloga, mestra e doutoranda em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
2 Psicóloga, especialista em Saúde Mental, mestra em psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
3 Psicóloga, mestra e doutora em Psicologia. Docente do curso de psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

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