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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.23 no.1 Porto Alegre jan./jun. 2019

 

ARTIGOS

 

Negociação sexual conjugal

 

Couple sexual negotiation

 

 

Cristina Schüssler1 ; Eduardo Lomando2

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com base na proposição inédita do conceito de Negociação Sexual Conjugal (NSC), uma comunicação conjugal alternativa à monogamia compulsória sobre a sexualidade singular, o objetivo deste artigo é descrever e testar a associação entre a NSC e a incidência de infidelidade conjugal. A pesquisa é de natureza quantitativa, de caráter exploratório e de associação, com a utilização do método survey online. Participaram desta 537 pessoas que estavam ou estiveram num relacionamento no momento da pesquisa. Sentir desejos por outras pessoas além do(a) parceiro(a) foi associado com infidelidade, ao passo que expressá-los ao(a) parceiro(a) e negociá-los no relacionamento não foram associados à infidelidade. Ser mulher, casada e heterossexual foram aspectos associados a não sentir desejos por outras pessoas e não os revelar quando sentidos. Ser homem e não heterossexual foi associado a revelar desejos sexuais ao parceiro. Os cinco processos sugeridos da NSC (percepção, exposição, negociação, ações e impacto) mostram-se possíveis de serem vividos.

Palavras-chave: Sexualidade, Infidelidade, Negociação, Conflito conjugal.


ABSTRACT

From the original proposition of the Couple Sexual Negotiation (CSN) concept, an alternative couple communication to compulsory monogamy on unique sexuality, the purpose of this article is to describe and evaluate the association between the NSC and the incidence of infidelity. The research was quantitative, exploratory and it tested association. An online survey method was used and 537 people who are/were in a relationship were assessed. Having sexual desire towards others besides partner was associated with infidelity, while expressing them to the partner and negotiate them in the relationship were not associated with infidelity. Being a woman, married and heterosexual were associated with not having sexual desire to wards other people and not to disclose them when felt. Being a non-heterosexual man was associated with expressing sexual desires towards others to partner. The five suggested processes of CSN (perception, exposure, negotiation, actions and impact) stated its possibility to be experienced.

Keywords: Sexuality, Infidelity, Negotiation, Conflict conjugal.


 

 

Introdução

Conceituar qualidade conjugal tem sido um esforço complexo devido ao grande número de   aspectos que compõem um relacionamento (Mosmann, Wagner & Féres-Carneiro, 2006). Um desses aspectos que a caracterizam é sexualidade conjugal, ainda percebida como tabu e geradora de conflitos. Apesar disso, a sexualidade tem sido discutida e negociada dentro das relações de forma mais clara e aberta. Mudanças históricas, especialmente ligadas ao movimento feminista, tais como o controle de concepção, abriram espaço às práticas sexuais prazerosas e ao descolamento da procriação (Medeiros & Oliveira, 2015). Essas transformações podem oportunizar uma redefinição dos contratos sexuais dos casais e, por consequência, do conceito de sexualidade conjugal (Freire, 2013). Com base nesse contexto, questiona-se: estaria a presença ou não dessa negociação da sexualidade conjugal associada às situações de infidelidade ou ela é um aspecto independente desse processo relacional?

No Ocidente, a conotação de promiscuidade às relações sexuais foi fortemente marcada por reformas políticas e religiosas judaico-cristãs, uma vez que esta compreende a família como “um núcleo estável formado pela união entre homem e mulher, indissolúvel, patriarcal e verticalizado, tendo o homem como o centro e provedor da família” (Souza & Rêgo, 2013, p. 185). Essa estrutura tradicional é um mecanismo sexista que dava (e ainda dá) poder aos homens de controlarem suas esposas para que não tivessem filhos com outros homens. Caso elas tivessem, estes eram considerados bastardos, e não herdeiros legítimos. Além disso, os homens podiam exercer sua sexualidade em prostíbulos ou até serem polígamos, ou seja, a suposta conjugalidade (gamia) para uma só pessoa (mono) era mais aplicada às mulheres do que aos homens (Giddens,1992).

Na construção social atual, apesar das conquistas sociais contra o patriarcado, a configuração monogâmica ainda é imposta como compulsória para ambos os gêneros. Não obstante a lógica sexista ainda existir, ou seja, um sistema sexo-gênero que converte a sexualidade biológica em produto da atividade humana, transformando “fêmeas” humanas em “mulheres domesticadas” (Rubin apud Piscitelli, 2004, p. 137), o direito reconhece como legítimo qualquer união ou filiação fora de um casamento ou união estável. Entretanto, ainda não se abre uma discussão legal para configurações que divergem dessa regra (Souza & Rêgo, 2013). Na atualidade, o conceito de monogamia compulsória também inclui uma ideia romântica de que é possível encontrar uma totalidade e uma complementaridade em uma única pessoa. Isso é ensinado desde muito cedo e perpetua-se nas instituições sociais ocidentais, tais como a escola, a família, a religião e as redes de amizade. Enfatiza-se que a energia conjugal, amorosa e sexual deve ser investida somente em uma única pessoa, a tão sonhada “alma gêmea”, “cara-metade” ou “meia laranja”.

Além dessas regulações sociais, não existem evidências biológicas ou antropológicas de que a monogamia seja natural no comportamento dos seres humanos. Ao contrário, existem evidências da configuração polígama dos macacos, parentes mais próximos da raça humana, assim como da escolha da fêmea pelo macho no momento da cópula (Janson, 2010). Ou seja, a configuração monogâmica é uma construção social, um arranjo humano para organizar os relacionamentos, que para muitos pode funcionar bem, mas não deve ser considerado uma obrigação necessária a todos, especialmente porque os relacionamentos se caracterizam cada vez mais pela diversidade de elementos constitutivos. Um desses elementos da conjugalidade que atinge diretamente essa configuração é a sexualidade, uma vez que a monogamia compulsória tende a ainda impor crenças possessivas e proibitivas aos casais.

A sexualidade não é mais um subproduto dos relacionamentos, ela é um dos aspectos básicos dentro das relações. A conjugalidade contemporânea caracteriza-se pelo sentimento amoroso, e não mais pela instituição do casamento, que até pouco ainda era fundamental. A sexualidade no casal contemporâneo é cada vez mais presente, e esse ritual privado pode ser colocado em risco caso não se diversifique (Bozon, 2003). Assim, pergunta-se: qual lugar ocupa a sexualidade, o desejo, o tesão e a satisfação sexual no contexto da conjugalidade?

Para Rohden (2001), ainda existem diferenças de gênero sobre esse tema. Após observações etnográficas e análise de documentos, a autora diz que a sexualidade masculina ainda é lógica, física (no que diz respeito à função erétil), orgânica e independente de relações ou afetos. Já para as mulheres, a sexualidade é um fenômeno complexo, intrigante e relacional. Entretanto, apesar dessas diferenças binárias de gênero, uma das características da sociedade moderna é a expansão da reflexividade institucional. Com base nela, as pessoas estão mais capazes de reescrever suas próprias maneiras de sentir, ver e vivenciar suas vidas, criando referenciais internos próprios em ambos os gêneros (Giddens, 1992). Poderia essa abertura complementar as diferentes formas de sentir e viver a sexualidade conjugal, abrindo espaços para que as pessoas possam falar de uma forma menos generificada e menos binária sobre a sexualidade dentro de seus relacionamentos? Apesar de não se ter a resposta para essa pergunta, a intimidade de um relacionamento pode ser um indicativo desse caminho.

A intimidade entre qualquer casal, compreendida como a reciprocidade de promoção de bem-estar, respeito, suporte material, apoio emocional e segurança (Rizzon, Mosmann & Wagner, 2013), é fundamental para estabelecer e fortalecer o vínculo e proporcionar maior prazer. A intimidade solidifica o relacionamento, assim como abre espaço para que os membros do relacionamento possam alimentar a relação com fantasias e desejos (Weid, 2010). É por essa razão que um dos principais aspectos que danifica a intimidade, ferindo a confiança do relacionamento, é a infidelidade.

A infidelidade, segundo os dicionários de língua portuguesa, seria uma falta de exatidão ou de verdade, traição, falta de respeito, falta com o que se deveria estar comprometido, transgressão ou ainda ruptura. Nas relações conjugais, ela pode ser um padrão de comportamento de um ou de todos os membros, marcada por carência afetiva ou conflito conjugal e expressada num caso extraconjugal. Porém, a infidelidade conjugal também pode ser exercida e percebida de outras maneiras. Por exemplo, quando um dos membros coloca a carreira profissional em primeiro lugar, demonstra frieza, egoísmo ou outros comportamentos destrutivos, o que pode ser percebido pelo(a) parceiro(a) como uma traição (Gottman, 2014). No estudo de Viegas e Moreira (2013), a infidelidade é percebida de forma mais grave quando há envolvimento contínuo, sexual ou até mesmo deliberado, sendo um dos maiores motivos para a procura de terapia de casal.

Apesar de a infidelidade estar relacionada a casos extraconjugais, casais que praticam o swing percebem que a fidelidade está relacionada com a cumplicidade e as regras internas da relação (Weid, 2010). A autora entrevistou 13 casais praticantes do swing e relatou que cada casal determinava e combinava suas próprias fronteiras sexuais e afetivas, podendo modificá-las com o passar do tempo. Ser infiel é quebrar acordos, fazer algo fora do combinado prévio, mentir ou esconder algo do(a) parceiro(a). Ser infiel não é abster-se de relações extraconjugais, afinal de contas estas são negociadas e praticadas por esses casais. A reciprocidade, igualdade, sinceridade, confiança, comunicação aberta e a sexualidade voltada para o prazer sem tabus são alguns dos objetivos que os relacionamentos contemporâneos têm buscado. Dentre estes, alguns casais estão diferenciando as práticas sexuais de exercer a sexualidade com quem se ama ou se estabelece um vínculo conjugal. Essa antiga oposição entre amor e sexo, fruto das discussões feministas, traz aos casais que praticam swing uma sensação de estarem se mantendo exclusivamente amorosos, mas sexualmente polígamos (Silvério, 2014).

Logo, a adição de uma terceira pessoa, a prática do swing e o poliamor são configurações alternativas à monogamia compulsória encontradas para preservar relações conjugais, dando um espaço ampliado para sexualidade, fantasias, desejos, tesão e, até mesmo, o amor (Pilão & Goldenberg, 2012). Enquanto o swing é um estilo de vida mais relacionado à sexualidade, o poliamor é visto como uma opção de relacionamento livre, sem imposições, mentiras, ciúmes, sem sentimentos de posse, mas, sim, de igualdade e partilha. Vivenciar a sexualidade de forma livre pode, nesse ponto de vista, representar a manutenção de um relacionamento (Santos, 2010).

Salem (1989) relata que os casais igualitários têm o desafio de se perceber como dois e, ao mesmo tempo, como um ser individual. Esse estilo de vida narra a autoidentidade particular de cada pessoa envolvida, no qual é possível dividir e negociar com seu(sua) parceiro(a) seus desejos e fantasias sem medo de julgamento ou culpa por estar realizando algo proibido ou errado (Santos, 2010).

Após a análise dessa literatura, compreende-se infidelidade como uma ruptura de acordos, limites e regras preestabelecidas dentro de qualquer relacionamento. A infidelidade pode ser um produto não só de aspectos deficitários do relacionamento, mas também uma alternativa às regras restritivas da monogamia compulsória em relação à sexualidade.

Levando em consideração que a sexualidade humana é uma mescla de instintos biológicos, hormônios e construções sociais, não poderia ela ultrapassar as configurações relacionais que a monogamia compulsória tenta frear? Seria frear ou proibir a única forma de lidar com a sexualidade que não é contida dentro dos relacionamentos? Poderia uma negociação ou comunicação sobre a complexidade da sexualidade do casal diminuir o índice de infidelidade nas relações conjugais?

Como não foi encontrada na literatura nacional uma definição conceitual sobre esse tipo de negociação, sugere-se a expressão “Negociação Sexual Conjugal” (NSC), isto é, a ideia de uma comunicação alternativa à monogamia compulsória sobre a sexualidade singular de cada membro do casal com fins de negociar as práticas sexuais conjugais e melhorar a satisfação sexual do casal. Seria uma conversa aberta sobre sexualidade com o(a) companheiro(a) para melhorar a relação sexual, com resolução dentro do próprio relacionamento ou até mesmo com outras pessoas. A NSC pode incluir tanto o subsistema singular de cada membro quanto o sistema conjugal. Sugere-se cinco processos: (1) percepção pessoal de desejos que ultrapassam os limites da sexualidade conjugal, (2) exposição ao(a) parceiro(a), (3) negociação das percepções, emoções e atos gerados pela exposição, (4) ações resolutivas do casal e (5) impacto do processo na satisfação sexual conjugal. A partir disso, questiona-se: existe uma associação entre os três primeiros aspectos da negociação conjugal e a incidência de atos de infidelidade, tais como envolvimento afetivo, beijos ou “ficar” e relação sexual? As hipóteses levantadas são de que: (1) haverá associação entre a percepção pessoal de desejos que ultrapassem os limites da sexualidade conjugal dos três atos de infidelidade; 2) haverá associação entre exposição ao(a) parceiro(a) e os três atos de infidelidade; e 3) haverá associação entre a negociação das percepções, emoções e dos atos gerados pela exposição e pelos três atos de infidelidade.

O objetivo deste artigo, portanto, também é descrever as frequências das respostas sociodemográficas e associá-las aos três primeiros processos da NSC.

 

Método

Participantes

Esta pesquisa foi composta por 537 pessoas, com a idade média de 32,8 anos (S=10,4), que estão ou estiveram num relacionamento afetivo-sexual durante o período mediano de 4 anos (percentis 25 e 75). A maioria das pessoas é do estado do Rio Grande do Sul (79,9%). O perfil de pessoas respondentes é, em sua maioria, de mulheres cisgêneras (68,2%) de raça branca (83,6%), que trabalham de 20-40 horas (67%) e ganham até seis salários mínimos (74,8%). Homens cisgêneros representaram 31% dos participantes, seguidos de homens trans (0,4%) e mulheres trans/travestis (0,2%). A grande maioria dos(as) participantes tinha nível escolar médio (28,8%), superior (39,8%) ou pós-graduação completos (30,6%). Com relação à orientação sexual, foi pedido aos(às) respondentes que marcassem numa escala likert de sete pontos o quanto se percebiam exclusivamente heterossexuais (1) ou exclusivamente homossexuais (7). A maioria considera-se exclusivamente heterossexual (58,7%), enquanto 11,9% exclusivamente homossexual, entretanto, houve pontuação em todos os outros 5 pontos da escala: 2 (9,1%), 3 (7,8%), 4 (4,7%), 5 (2,3%) e 6 (6,4%).

Instrumentos

Por tratar-se de uma Pesquisa de Levantamento (Gil, 2010; Lakatos & Marconi, 2010), foram desenvolvidos três questionários: um sociodemográfico, outro sobre infidelidade e um último sobre NSC. Os questionários totalizavam 24 perguntas, construídas com base na literatura específica. Foi utilizado o software de acesso público Google Drive Formulários. A maioria das perguntas era de múltipla escolha ou escolha composta, e duas questões eram abertas, para os participantes justificarem suas respostas. As perguntas do segundo e terceiro questionários estão descritas nos resultados.

Procedimentos

Coleta de dados

Os questionários, inicialmente, passaram por um teste-piloto para averiguação da compreensão da linguagem e organização dos itens on-line. Após, a pesquisa foi divulgada para preenchimento on-line por meio dos perfis de Facebook dos pesquisadores, sendo reforçado seu compartilhamento pela rede social. Dado por encerrado o prazo para coleta, o software Google Drive Formulários gerou uma planilha eletrônica com as respostas.

Análise dos dados

As variáveis quantitativas com distribuição normal foram descritas por média e desvio padrão; as com distribuição não normal foram descritas por mediana, percentil 25 (P25) e percentil 75 (P75); as variáveis categóricas foram descritas como frequências simples (n) e relativas (%). Para verificar existência de associação entre variáveis categóricas, foi utilizado o teste Qui-Quadrado. Na verificação da diferença de médias de idade entre as variáveis relacionadas à infidelidade e negociação, foi utilizado o teste t de student para amostras independentes ou Análise de Variância (ANOVA), dependendo da quantidade de grupos. Para verificar a diferença na duração do relacionamento entre as variáveis relacionadas à infidelidade ou negociação, utilizou-se o teste de Mann-Whitney ou o teste de Kruskal-Wallis, dependendo da quantidade de grupos. Para todas as análises, foi considerado um nível de significância de 5% (p<0,05). As análises estatísticas foram realizadas no programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 18.0 (SPSS INC., IBM Company, Chicago, EUA).

Considerações éticas

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Uniritter (Parecer 1.519.444) e seguiu as diretrizes da ética em pesquisa formalizadas na Resolução n. 466/2012. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi fornecido ao participante de forma virtual e ressaltou claramente a natureza voluntária e anônima da pesquisa, a possibilidade de interrupção e retirada das respostas, assim como os objetivos, benefícios, métodos, potenciais riscos e as minimizações destes. Somente depois de confirmar o aceite é que o participante passava a responder os três questionários. Não houve identificação pessoal dos respondentes.

 

Resultados

Associações entre infidelidade e NSC (percepção, exposição e negociação)

Dos 537participantes, 360 (67,7%) responderam que têm desejo sexual por outras pessoas além daquela que se relaciona/relacionava. Houve associação entre o fato de os(as) participantes terem esses desejos por outras pessoas, mesmo estando num relacionamento, com o fato de terem tido relações de infidelidade que envolvesse afeto, beijos e sexo. Da mesma forma, houve associação entre não ter desejos por outras pessoas com o fato de não terem tido relações de infidelidade que envolvessem atos de afeto, beijos e sexo (Tabela 1). Esses resultados confirmam a primeira hipótese.

 

 

Os(as) 360 participantes que responderam de forma afirmativa a pergunta sobre NSC da Tabela 1 (percepção dos desejos que ultrapassam o relacionamento) seguiram para a próxima questão, em que foi perguntado se essas pessoas já haviam falado sobre seus desejos por outra pessoa para seu(sua) parceiro(a). Aproximadamente, metade dos(as) participantes (46,1%) respondeu que havia compartilhado essa percepção, mas não houve associação entre repartir essa percepção e os atos de infidelidade (Tabela 1). Ou seja, falar ou não para o(a) parceiro(a) sobre os desejos sexuais que ultrapassam o relacionamento independe dos atos de infidelidade. Esse resultado refuta a segunda hipótese da pesquisa.

Dos 166 participantes que responderam afirmativamente à pergunta sobre a exposição ao(à) parceiro(a), um pouco mais da metade (107 pessoas, 64,4%) afirmou que havia conversado e negociado os desejos com o(a) parceiro(a). Não foi encontrada nenhuma associação entre o processo de negociar/conversar com os atos de infidelidade (Tabela 1). Novamente, isso demonstra que essas variáveis são independentes, refutando a terceira hipótese.

Para compreender melhor os motivos que fazem os(as) participantes a não exporem ou não negociarem suas fantasias, seus desejos e seu tesão por outras pessoas com o(a) parceiro(a), direcionamos aqueles(as) que haviam respondido “não” para as duas perguntas abertas. Nelas, foi pedido aos(às) participantes que descrevessem os motivos que os(a) fizeram não falar ou negociar a fantasia/desejo/tesão por outra(s) pessoa(s) para a seu(sua) parceiro(a).

Todas as respostas foram lidas, e os principais motivos foram selecionados a partir de suas repetições e sentidos nas frases. Dos 196 participantes que responderam que tinham desejo, mas não falavam ao(à) parceiro(a), 178 responderam que os principais motivos foram vergonha, medo de rompimento do relacionamento, ciúmes, receio de gerar conflitos (“brigas”), insegurança, respeito e julgamento. Dos 59 participantes que relataram falar sobre os desejos, mas não discutir dentro da relação, 50 responderam que os principais motivos que os(as) levaram a não seguir com essa negociação sexual foram a falta de compreensão, o medo de rompimento do relacionamento, os pontos de vista divergentes, o machismo e o ciúmes de seus parceiros.

Associações entre atos e graduação de infidelidade

A associação entre a graduação subjetiva de infidelidade e os atos de infidelidade foi testada. Todas as variáveis apresentaram associações (Tabela 2). Houve associação entre o fato de os participantes não se considerarem infiéis e não terem cometido atos de infidelidade. Houve associação entre os participantes considerarem-se pouco infiéis e terem cometido atos de infidelidade que envolvessem afeto/carinho e beijos/carícias sem sexo. Houve associação entre os participantes considerarem-se bastante infiéis e terem cometido atos de infidelidade que envolvessem afeto/carinho, beijos/carícias sem sexo e relação sexual. Por fim, houve associação entre os participantes considerarem-se totalmente infiéis e não terem cometido atos de infidelidade que envolvessem afeto/carinho, beijos/carícias sem sexo e relação sexual.

 

 

Todos os participantes que tiveram relações sexuais consideradas como infidelidade (n=145; 27,3%) responderam a mais uma pergunta (múltipla escolha multirresposta) relativa à sua percepção da qualidade do relacionamento no momento do ato sexual extraconjugal. Destes, 39,3% responderam que sentiam falta de afeto/amor no relacionamento, 35,2% estavam em conflito no relacionamento, e 26,9% sentiam falta de sexo no relacionamento. Por outro lado, 34,5% sentiam-se bem no relacionamento quando do ato de infidelidade sexual.

Associações entre dados sociodemográficos e NSC (percepção, exposição e negociação)

Foram testadas associações entre os dados sociodemográficos com os três primeiros processos da NSC (percepção, exposição e negociação). Existiram associações entre ter desejos por outras pessoas e o gênero masculino e não ter desejo com o gênero feminino. A orientação sexual 01 (exclusivamente heterossexual) foi associada com não ter desejos, assim como as graduações de orientação sexual de 02, 03, 05, 06 e 07 (exclusivamente homossexual) foram associadas com terem desejo por outras pessoas além daquela que se relaciona(va). Houve associação entre não ter desejo e estar casado(a), assim como ter desejo e estar solteiro(a) (Tabela 3).

 

 

Ocorreram associações entre falar sobre os desejos por outra pessoa para o(a) parceiro(a) com gênero e orientação sexual (Tabela 3). Ser mulher foi associado a não expor suas fantasias, desejos e tesão por outras pessoas, ao passo que ser homem foi associado a expor esses desejos.

A orientação sexual 01 (exclusivamente heterossexual) foi associada com não compartilhar os desejos com o(a) parceiro(a), assim como as graduações de orientação sexual de 04, 06 e 07 (exclusivamente homossexual) foram associadas com compartilhar esses desejos. Não houve associação entre expor os desejos ao(à) parceiro(a) e situação conjugal.

Não houve nenhuma associação entre o processo de discutir e negociar os desejos que ultrapassem o relacionamento dentro da relação com nenhum dado sociodemográfico (Tabela 3). Da mesma forma, não houve associações de nenhum dos dois primeiros processos de NSC (percepção e exposição) com idade e duração do relacionamento.

Ações do processo na sexualidade conjugal

Todos os(as) participantes que responderam de forma afirmativa aos três primeiros processos da NSC (percepção, exposição e negociação) foram direcionados ao último processo: ações resolutivas do casal. A Tabela 4, a seguir, descreve estes atos e as práticas sexuais resolutivas das negociações.

 

 

Discussão

A primeira hipótese foi confirmada, a proposta de que o desejo sexual pode direcionar as pessoas para a infidelidade conjugal. Entretanto, pela associação, é possível inferir que as práticas de infidelidade podem aumentar os desejos eróticos daqueles que as praticam.

Não foram encontradas associações entre falar abertamente sobre os desejos sexuais e, caso falassem, negociar abertamente com o(a) parceiro(a) aos atos de infidelidade. Logo, falar ou negociar a sexualidade conjugal não pareceu ter efeito sobre a infidelidade nesta amostra, não sendo esse conceito (NSC) um aspecto que poderia prevenir os casais dessa problemática. Sentir desejos, falar sobre estes e os atos de infidelidade ficaram associados ao gênero masculino, ao passo que não sentir desejos, não falar mesmo ao senti-los e não ser infiel está associado ao gênero feminino. Além disso, os motivos pelos quais os(as) participantes não falaram ou negociaram abertamente com seus parceiros seus desejos sexuais levam a concluir que existe um importante atravessamento da lógica da monogamia compulsória, uma vez que esta impõe a abertura sexual como perigosa ou proibida ao relacionamento e mantém homens e mulheres em papéis estereotipados e sexistas. A associação entre o quanto infiéis os(as) participantes se percebiam e os atos de infidelidade demonstra que o que diferencia a representação de ser “pouco infiel” de “bastante infiel” são as relações sexuais. Ou seja, o ato sexual é percebido como agravante da infidelidade.

Assim, questiona-se: é possível que uma pessoa se sinta menos traída pelo fato de o(a) parceiro ter tido uma relação de afeto ou ficado com alguém ao invés de ter tido uma relação sexual? A mentira e a falta de confiança podem ser vistas como graves atos de infidelidade, podendo levar ao término do relacionamento e a um impacto ruim nas relações parentais, caso o casal tenha filhos (Negash & Morgan, 2016). Estariam esses participantes minimizando o efeito desses atos? Além disso, as pessoas que se consideram totalmente infiéis estão associadas a não fazer carícias, beijos e não ter relações sexuais. É provável que estas não tenham compreendido a questão e trocaram a palavra “infiel” por “fiel”, pois, nas associações, se tornam contraditórias as respostas.

Sobre as percepções do relacionamento no ato da infidelidade, percebe-se que um terço das respostas refere bem-estar conjugal. Isso, apesar de mostrar-se verdadeiro pelas demais respostas, também contradiz a literatura, que relata conflito, falta de amor e problemas sexuais como preditores da infidelidade (Almeida, 2012). Isso pode indicar que as pessoas podem ter desejo por outras além daquela que se relacionam sem necessariamente ser um produto de um mal-estar conjugal. Ou seja, bem-estar no relacionamento não é, para esta amostra, um determinante para a fidelidade.

Ao mesmo tempo em que estar casado pode diminuir o desejo por outras pessoas devido à satisfação com o(a) cônjuge, pessoas que têm menos desejo podem buscar o casamento como estabilidade relacional. Da mesma forma, estar solteiro associou-se a conter desejos por outras pessoas, possivelmente por que esse fato pode ter levado à infidelidade (hipótese 01) e ao término do relacionamento. A não associação entre idade, tempo de relacionamento e os três aspectos da NSC pode significar tanto que a lógica da monogamia compulsória ultrapassa esses dois aspectos quanto que as pessoas estão negociando a sexualidade do casal, independentemente de idade ou tempo de relação.

Após os casais terem realizado os primeiros três aspectos da NSC (percepção, exposição e negociação), chama a atenção que mais da metade das pessoas, em pelo menos algum momento, não concretizou esses desejos (66,9%). Isso reforça a contraposição lógica da monogamia compulsória, uma vez que chegar a esse ponto não indica necessariamente a execução de algum ato sexual nem mesmo o término do relacionamento. Por vezes, falar abertamente sobre a sexualidade pode fazer com que o casal traga o desejo para dentro da relação e aumente os níveis de satisfação sexual. Infelizmente, esse outro conceito não foi medido. Porém, quando foi medido o impacto que a negociação sexual conjugal causou na relação, 2/4 dos(as) participantes apontaram dois níveis mais próximos à otimização da relação. Esse resultado pode apontar na direção de estabelecer outras associações da NSC com outros aspectos do relacionamento. Ao mesmo tempo, entre 12-20% dos 128 participantes que chegaram a executar algo compartilharam beijos e tiveram relações sexuais separados ou como casal com outras pessoas.

De forma geral, conclui-se que dos três aspectos iniciais da NSC testados (perceber, expressar e negociar desejos sexuais extraconjugais com o(a) parceiro(a), apenas o primeiro foi associado com os atos de infidelidade. Além disso, ser mulher, casada e heterossexual foram aspectos associados a não sentir desejos por outras pessoas e/ou não os revelar quando sentidos. Ser homem e não heterossexual foi associado a sentir e revelar desejos sexuais ao(à) parceiro(a). Os cinco aspectos sugeridos da NSC mostram-se possíveis de serem vividos, comprovando sua validade conceitual.

Pela limitação da pesquisa quantitativa, não fica claro se os atos de infidelidade ocorreram antes ou depois das negociações sexuais dos casais, aspecto que poderia indicar uma relação mais profunda. Uma pesquisa longitudinal ou qualitativa poderia explicar melhor as relações temporais dessas variáveis, que não podem ser explicadas por um teste de associação.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Cristina Schüssler
E-mail: ctnschusler@gmail.com

Eduardo Lomando
E-mail: eduardolomando@gmail.com

Enviado em: 12/03/2018
1ª revisão em: 11/10/2018
2ª revisão em: 18/06/2019
Aceito em: 21/06/2019

 

 

1 Psicóloga clínica, especialista em terapia sexual e diversidade sexual.
2 Psicólogo clínico, mestre e doutor em Psicologia Social.

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