SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número1Influência da chegada do bebê na relação conjugal no contexto de depressão pós-parto: perspectiva maternaO exercício da parentalidade após a dissolução conjugal: uma revisão integrativa índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.23 no.1 Porto Alegre jan./jun. 2019

 

ARTIGOS

 

Participação paterna no cuidado durante o primeiro ano de vida

 

Paternal involvement in child care during the first year

 

 

Vania Bustamante1

Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Bahia, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Realizou-se um estudo com o objetivo de compreender como se dá a participação paterna no cuidado durante o primeiro ano de vida em famílias de um bairro de baixa renda atendido pelo Programa de Saúde da Família. O cuidado infantil é compreendido desde uma teoria geral que integra: gênero, construção de projetos de pessoa e horizontes para as práticas de saúde. Utilizou-se o método Bick de observação da relação mãe-bebê em visitas semanais a duas famílias durante 12 meses. Encontrou-se permanências nas relações de gênero expressas em escassa participação paterna no cuidado e no trabalho doméstico, que coexiste com uma maior presença dos homens na relação com serviços de saúde, especialmente quando se trata de demandas que envolvem contato com espaços públicos como consultas médicas e compra de medicamentos. Em paralelo, os pais demonstram intenso afeto pelos filhos e, na construção social da pessoa, dão ênfase à autonomia do bebê desde a gestação. Destaca-se a necessidade de fortalecer práticas que incluam aos homens propiciando bem-estar na diversidade familiar.

Palavras-chave: Cuidado, Paternidade, Bebês, Gênero, Família.


ABSTRACT

A study on paternal participation in child care during the first year in families living in a low-income neighborhood served by the Family Health Program was carried out. Child care is understood from a general theory that integrates: gender, construction of person projects and horizons for health practices. The Bick method of observation of the mother-baby relationship was used in weekly visits to two families for 12 months. It was found permanence in gender relations expressed in scarce paternal participation in the care and domestic work, which coexists with a greater presence of men in relation to health services, especially when it comes to demands that involve contact with public spaces such as medical consultations and purchase of medicines. In parallel, fathers show intense affection for the children and, as part of the social construction of the person, they emphasize the autonomy of the baby since pregnancy. It is important to emphasize the need to strengthen practices that include men, promoting well-being in family diversity.

Keywords: Care, Paternity, Gender, Babies, Family.


 

 

Introdução

O presente estudo aborda a participação paterna no cuidado de bebês durante o primeiro ano de vida, um período considerado crucial para o desenvolvimento, que exige grandes demandas de cuidado, gera efeitos nos adultos cuidadores e nas relações entre eles, onde modos de se relacionar começam a ser construídos. É também um momento onde se concentram as ações de saúde.

Existem diversas abordagens teóricas e recortes sobre a paternidade. Em alguma medida todas estão atravessadas pela discussão sobre o surgimento de um “novo pai”, mais participativo no cuidado. Este fenômeno tem relação com as grandes transformações sociais das últimas décadas, com destaque para a maior inserção das mulheres no mercado de trabalho, onde então elas têm menos tempo para as tarefas domésticas e o cuidado de crianças, têm mais autonomia e demandam mais do companheiro (Promundo-Brasil, 2016; Cunico & Arpini, 2013; Ferreira et al, 2015). No Brasil, os estudos sobre paternidade e interação pai-criança se tornaram mais numerosos a partir do ano 2000 (Alvarenga, Gomes, Freitas & Bolsoni-Silva, 2016), e, seguindo a tendência da literatura internacional, frequentemente utilizam o modelo de envolvimento paterno proposto por Lamb, Pleck, Charnov e Levine (1985). Os referidos autores propõem pensar o envolvimento paterno a partir de três componentes: a interação atual do pai com o filho; a disponibilidade para com o filho, assim como o grau de responsabilidade assumida em relação com os filhos, o que também implica provê-los materialmente.

Nessa direção encontram-se diversos estudos sobre o envolvimento paterno durante o primeiro ano de vida. Gonçalves, Guimarães, Silva, Lopes e Piccinini (2013) estudaram a experiência da paternidade aos três meses do bebê. Piccinini, Silva, Tonantzin, Lopes e Tudge (2012) realizaram estudo qualitativo sobre o envolvimento paterno aos três meses de vida do bebê. Krob, Piccinini e Silva (2009) realizaram estudo qualitativo longitudinal sobre a transição para a paternidade. Oliveira e Brito (2009) investigaram as ações de cuidado desempenhadas pelo pai durante o puerpério. Nos quatro estudos foram entrevistados homens que estão sendo pais pela primeira vez e moram com a companheira e mãe da criança. Os citados estudos descrevem as práticas realizadas pelos homens, sempre menos presentes do que as mulheres e mais ligadas com o brincar; descrevem preocupações dos homens acerca de como cuidar do bebê e também preocupação com o cansaço da companheira. Dos citados estudos, apenas o de Oliveira e Brito (2009) teve como participantes homens de baixa renda. De fato, há uma predominância de estudos com homens de classe média, que estão sendo pais pela primeira vez e que moram com a mãe da criança.

Existe um crescente número de estudos realizados por pesquisadores da área da saúde sobre o cuidado paterno em momentos ou dimensões considerados importantes para a saúde da díade mãe-bebê, tais como: o pré-natal (Costa et al., 2009), parto (Tarnowski, Próspero & Elsen, 2005), aleitamento materno (Pontes, Alexandrino & Osório, 2009) e puerpério (Oliveira & Brito, 2009). Nos referidos estudos se dá por suposto que a participação do pai é muito importante para o cuidado do bebê e também para apoiar à mãe, para que, por sua vez, essa cuide do seu bebê. Entretanto, não há uma problematização sobre quem é o pai, nem do lugar que o cuidado do bebê tem para a saúde e bem-estar do homem. Ribeiro, Gomes e Moreira (2015) chamam a atenção sobre a tendência a naturalizar a figura do pai, como um homem heterossexual e companheiro da mãe da criança, tanto nas pesquisas quanto nas práticas de saúde, inclusive em formulações da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH). Os citados autores apontam que, na referida política, os pais mais visíveis e valorados são aqueles heterossexuais companheiros da mãe; já os “casais homossexuais” vêm ganhando visibilidade, porém ainda persiste a não inclusão de muitas outras pessoas que não se enquadram nessas categorias.

O presente estudo visa contribuir para preencher as lacunas referidas até aqui. Parte-se do entendimento, assim como Fuller (2000, p. 20), que “La paternidad no es solo una relación entre padres e hijos sino un campo en que se producen y reproducen las relaciones de género, clase, raza y etnicidad características de la sociedad”. Nesse sentido, e indo ao encontro de argumentos apresentados em um recente relatório sobre a paternidade no Brasil (Promundo-Brasil, 2016), acredita-se que é necessário um maior investimento em pesquisas que permitam compreender como está se dando a divisão de responsabilidades pelo cuidado dos filhos e pelo trabalho doméstico em famílias de diferentes classes sociais e ainda considerar que “quanto mais entendermos as atitudes e os comportamentos dos diferentes tipos de pais, mais poderemos encorajá-los enquanto cuidadores” (Promundo-Brasil, 2016, p. 130).

Assim como no trabalho de Bustamante e McCallum (2014) opta-se aqui por trabalhar com o conceito de “Cuidado”, dentro da perspectiva de uma teoria geral que, diferentemente de uma teoria unificada, “implica modos alternativos de compreensão, respeitando a complexidade dos objetos e a pluralidade das distintas aproximações científicas de um problema interdisciplinar” (Almeida Filho, 2011, p. 148). Bustamante e McCallum (2014) defendem:

...a necessidade de pensar em duas grandes maneiras de compreender o cuidado na área da saúde: de um lado o cuidado constitui um horizonte normativo que orienta as práticas de saúde; de outro ... cuidado envolve a construção cotidiana de projetos de pessoa que se dá em um marco de relações de poder (p. 673).

A primeira compreensão diz respeito ao conceito proposto por Ayres com base na obra de Heidegger; a segunda perspectiva é construída com base em dados etnográficos de um estudo sobre o cuidado infantil.  Assim, “o primeiro é um conceito inspirador para a construção de boas práticas de saúde” (p. 673); já o segundo “...nos aproxima do cotidiano, de práticas de cuidado construídas por pessoas nos mais diversos contextos” (p. 673). Ao mesmo tempo, considerando a complexidade do objeto, e visando ampliar a teoria geral sobre o cuidado, inclui-se no presente estudo a reflexão sobre cuidado e relações de gênero.

Compreendendo gênero como “... elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” (Scott, 1995, p. 21), e nesse sentido “uma forma primeira de significar as relações de poder” (p. 21), diversos estudos apontam a persistência da divisão sexual do trabalho, ou seja, “... a imputação aos homens do trabalho produtivo e às mulheres do trabalho doméstico (ou reprodutivo)” (Bruschini & Ricoldi, 2012, p. 266), com uma maior valorização do trabalho masculino. Tal permanência é identificada tanto no âmbito do parentesco quanto em relações sociais mais amplas, como o trabalho assalariado e as normas que o regulamentam em cada país (Sorj, 2013, Guimarães, Hirata & Sugita, 2011).

Para refletir sobre as desigualdades de gênero é importante trazer dados atuais, como algumas estatísticas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2010, que indicam que mães com filhos dedicam 25,9 horas semanais aos cuidados com a casa, contra 15,5 horas dos homens com filhos. E ainda, comparando homens sem trabalho remunerado com mulheres com trabalho remunerado, as diferenças persistem, pois as mulheres realizam 22 horas de trabalho doméstico, contra 12,7 dos homens (Promundo-Brasil, 2016). No relatório sobre a paternidade no Brasil faz-se referência a resultados de um estudo internacional com homens e mulheres de vários países que revelam fortes diferenças no modo como ambos percebem a participação dos homens em atividades domésticas e de cuidado dos filhos. Por exemplo, enquanto 39% dos homens declaram participar diariamente do cuidado dos filhos, para as mulheres, apenas 10% dos homens têm a referida participação. Em relação a “limpar a casa”, 49% dos homens declaram que o fazem, enquanto que, na perspectiva das mulheres, apenas 17% dos homens o faz. Quando questionadas sobre as atividades que seus parceiros fazem rotineiramente com os filhos de 0 a 4 anos, a resposta dada por 72% das mulheres foi “brincar”, seguida de “trocar fraldas” para 42% das mulheres (Promundo-Brasil, 2016).

Bustamante e Trad (2005) realizaram um estudo etnográfico sobre a participação paterna no cuidado infantil em famílias que moram em um bairro de baixa renda de Salvador, cujos resultados apontam a permanência da divisão sexual do trabalho. Foi encontrado que ter filhos é uma dimensão fundamental na vida de homens e mulheres e que, para ambos, pode motivar a formação de novos núcleos familiares. A participação paterna no cuidado de crianças menores de seis anos foi mais expressiva em três dimensões: a educação; os cuidados corporais e a preservação da integridade física. Através de entrevistas e observação participante percebeu-se que os homens deram importância à própria participação no cuidado dos filhos, considerando que se trata de uma atribuição feminina, enquanto a participação masculina é uma “ajuda” pontual e uma resposta a necessidades. Observou-se momentos em que os homens participam ativamente, evidenciando proximidade física e emocional com os filhos; porém, em todos os casos, a participação foi nomeada como “ajuda” por homens e mulheres. Também houve diferenças entre os arranjos familiares formados pelo casal e os filhos e as famílias extensas (onde convivem parentes de três gerações ou mais), com uma tendência a maior participação paterna nas famílias nucleares que tinham pouca presença de parentes no cotidiano.

Como parte de um estudo etnográfico, realizado em um bairro de baixa renda de Salvador, que visou compreender como se dá a construção cotidiana do cuidado infantil, Bustamante e McCallum (2014a) defendem que este envolve a construção de projetos de pessoa em um marco de relações de poder e que essa compreensão se aproxima dos significados e práticas construídos cotidianamente pelas pessoas. As autoras esclarecem, em diálogo com o trabalho de Rabelo (1999), que o conceito de projeto não implica necessariamente uma construção mental sobre algo que se pretende realizar no futuro, pois os projetos podem estar presentes, atualmente, através de modos de lidar com o corpo, pentear o cabelo, vestir, inclusive sem serem pensados.

De acordo com Bustamante (2013) os dados etnográficos de pesquisa realizada em um bairro de baixa renda mostraram que os adultos compreendem as crianças como seres que já nascem com a própria natureza, que pode ser “puxada” de alguém da família. Essa natureza deve ser dominada para possibilitar que a criança cresça como um ser autônomo e saiba lidar com a desvantagem da sua posição de classe. A grande importância de que a criança seja ao mesmo tempo um indivíduo singular e autônomo e uma pessoa relacional foi observada também em um estudo sobre alimentação de bebês no primeiro ano de vida na mesma região. Nas famílias pesquisadas, incluir de forma crescente o bebê na vida familiar implica também que este compartilhe os alimentos desde os primeiros meses de vida. Assim, ao comer “tudo que a gente come” o bebê se torna membro da família (Bustamante & McCallum, 2014b).

As considerações sobre o cuidado infantil apresentadas aqui serão retomadas ao longo deste artigo, ao refletir sobre a participação paterna no cuidado infantil no primeiro ano de vida. Estudar este tema se justifica pela grande influência do pai em diversos aspectos do desenvolvimento e da saúde da criança (Cia, Willians & Aiello, 2005; Rempel & Rempel, 2011; Bossardi & Vieira, 2010; Gomes, Crepaldi & Bigras,2013; Paquette, 2004; Fujiwara, Okuyama & Takahashi 2010) assim como no bem-estar familiar, especialmente na medida em que a presença paterna envolva uma divisão justa das tarefas domésticas e de cuidado dos filhos (Botton, Cúnico, Barcinski & Strey, 2015).

 

Método

Participantes

A presente pesquisa foi desenvolvida em Prainha, nome fictício de um bairro do subúrbio ferroviário de Salvador, entre os anos 2010 e 2011. Assim como em outros bairros populares, Prainha possui serviços insuficientes, infraestrutura urbana precária, ruas sem asfalto, carência de espaços verdes e de lazer e presença de casas “em construção”. Predominam o baixo nível de escolaridade e de renda. Os relatos sobre episódios de violência são frequentes, incluindo violência doméstica, brigas entre vizinhos e violência perpetuada pela polícia. Ao mesmo tempo, observa-se a presença crescente de instituições − Unidade de Saúde da Família, escolas, creches, posto de polícia − e de programas sociais.

O presente trabalho está centrado no material de duas famílias que permitiram realizar observações de seus bebês, ao longo do primeiro ano de vida. Estas famílias foram contatadas através de vizinhas, com quem a autora mantinha contato há alguns anos, desde a realização de estudos anteriores no mesmo bairro. Procurou-se mulheres, atendidas pela Programa de Saúde da Família, que estivessem prestes a ter seus bebês, que tivessem uma relação com o pai da criança e que aceitassem participar do estudo. Também foram realizadas algumas visitas à Unidade de Saúde da Família do bairro, onde, usando a técnica da observação participante (Becker, 1997), foi possível ter diálogos espontâneos na sala de espera, com familiares de bebês que chegavam para consulta, e com profissionais das equipes de Saúde da Família.

Visando facilitar a leitura foram dados os seguintes nomes aos principais informantes: na família de Ivana os pais são chamados Isaura e Isaac e o irmão Igor (11 anos); já na família de Fábio os pais são chamados Fátima e Fred e as irmãs Fernanda e Fabíola.

Instrumentos e procedimentos

Utilizou-se o método Bick de observação da relação mãe-bebê, um dispositivo criado pela psicanalista Esther Bick e originariamente utilizado para a formação de psicoterapeutas, que envolve a realização de visitas semanais − de uma hora de duração, em horários fixos previamente acordados − durante o primeiro ano de vida. O observador assume uma postura silenciosa, atenta e respeitosa ao bebê e à sua família, evitando fazer anotações ou qualquer outro registro durante a visita. Após a visita, que tem duração de uma hora, escreve-se um relato detalhado, que é lido e discutido em reuniões semanais de supervisão (Oliveira-Menegotto, Menezes, Caron & Lopes, 2006). As visitas domiciliares foram realizadas por duas estudantes de Psicologia. Cada família foi visitada por apenas uma das referidas estudantes. As observações findaram quando os bebês completaram um ano. Esta estratégia foi escolhida por oferecer a possibilidade de se construir dados minuciosos e contextualizados sobre o cotidiano do cuidado a bebês no ambiente familiar.

A proposta foi realizar visitas semanais em um horário previamente agendado com a família; porém, nos dois primeiros meses, mãe e bebê não estiveram presentes em alguns dos horários agendados. Em outros momentos as visitas não aconteceram devido a feriados ou à impossibilidade das assistentes de pesquisa. Na família de Fábio foram feitas 38 visitas, sendo que o pai esteve presente em 25. Já na família de Ivana, de um total de 27 visitas realizadas, o pai esteve presente em 12.

 

Análise de dados

A análise se deu dentro da proposta hermenêutico-dialética, que, de acordo com Minayo (2014), mais que uma tecnologia de interpretação de textos, constitui um “caminho do pensamento”, uma via de encontro com as ciências sociais e a filosofia. Para a citada autora, hermenêutica e dialética apresentam-se como momentos necessários na produção de racionalidade:

A união da hermenêutica com a dialética leva a que o intérprete busque entender o texto, a fala, o depoimento, como resultado de um processo social (trabalho e dominação) e processo de conhecimento (expresso em linguagem), ambos frutos de múltiplas determinações, mas com significado específico. Esse texto é a representação social de uma realidade que se mostra e se esconde na comunicação, onde o autor e o intérprete são parte de um mesmo contexto ético-político e onde o acordo subsiste ao mesmo tempo que as tensões e perturbações sociais (Minayo, 2014, p. 228).

Em diálogo com a sequência de procedimentos proposta por Minayo (2014), inicialmente os relatos das visitas realizadas às famílias, assim como algumas visitas feitas à Unidade de Saúde da Família, foram organizados em sequência temporal. Procedeu-se a repetidas leituras do material, tendo como eixo a presença e participação paterna no cotidiano familiar e no cuidado dos bebês. Em interlocução com os relatos foi se ampliando a abrangência da fundamentação teórica e a revisão de literatura, optando-se por abandonar a proposta analítica inicial de utilizar a categoria “modos de cuidar” – onde o cuidado infantil poderia ser classificado em categorias, como realizado por Bustamante e Trad (2005). Tendo adotado uma teoria geral do cuidado, que inclui conceitos diferentes e complementares, com base na estratégia hermenêutico dialética foram identificados três temas para analisar a participação paterna 1) Cuidado no cotidiano e a divisão do trabalho doméstico; 2) O cuidado que envolve contato com serviços de saúde; 3) Cuidado e construção social da pessoa. Trata-se de recortes que se atravessam na prática e que são expressivos das três dimensões da teoria geral do cuidado incluídas no presente estudo. Em um momento seguinte − sintetizando achados dos diferentes temas − chegou-se à formulação do principal argumento deste trabalho. Ainda como parte do caminho hermenêutico-dialético espera-se que a análise final possa orientar uma vinculação estratégica com a realidade e, nesse sentido, pensar em desdobramentos para as políticas e práticas de saúde.

O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA (Registro 028-09).

 

Resultados

Cuidado, gênero e divisão sexual do trabalho

Fátima e Isaura têm em comum o fato de serem proprietárias da casa em que moram. Ambas têm filhos de uniões anteriores e os atuais maridos se mudaram para morar com elas; entretanto, existem diferenças significativas entre as duas. Isaura sempre morou na mesma rua, tem vários parentes que moram perto, como os irmãos e o pai que ocupa um lugar de destaque na comunidade. A renda familiar é proveniente de trabalhos eventuais de Isaura como cabeleireira e dos rendimentos de Isaac, que reveza entre períodos de emprego formal e outros em que fica desempregado e realiza atividades remuneradas no bairro (construção, barbearia, etc.).

Como é habitual em bairros populares de Salvador (McCallum & Bustamante, 2012), a casa de Isaura foi construída na laje da casa do pai e uma de suas irmãs construiu a própria casa na laje de Isaura. A família extensa de Isaura (irmãs, irmãos, cunhadas/os, sobrinhos/as, pai de Isaura) tem livre acesso à casa da mesma. Isaac tem pouca permanência no ambiente doméstico e se movimenta bastante pela vizinhança. Igor, de 11 anos, é o filho mais velho de Isaura que, com frequência, está presente nas visitas e participa do cuidado, entregando objetos solicitados pela mãe ou permanecendo com a irmã enquanto Isaura realiza outras atividades.

A dinâmica do cotidiano familiar de Ivana pode ser entendida a partir do conceito de rede de malha estreita, tal como descrito no clássico estudo de Bott (1976) realizado com famílias na Inglaterra, onde, por existir um grande número de pessoas próximas e que têm contato entre si, é mais fácil que o cuidado seja dividido entre diversos parentes, acarretando que marido e mulher demandem menos um do outro.

Fábio mora com os pais, Fátima e Fred, e com Fernanda (12) e Fabíola (8), filhas de uniões anteriores de Fátima. Fred, por sua vez, mantém pouco contato com os outros seis filhos de relacionamentos anteriores. A família habita uma área distante das famílias de origem e a presença de parentes é escassa na casa deles. Fátima trabalha produzindo peças de artesanato. Nos primeiros meses de vida de Fábio, Fátima está unicamente voltada para os cuidados domésticos e familiares e Fred está desempregado. A dinâmica familiar é marcada por diversos conflitos entre o casal, com as crianças, e também com vizinhos. Nas poucas vezes em que familiares − mãe e irmã de Fátima, mãe de Fred − aparecem em visitas, isso não parece trazer ajuda nas tarefas cotidianas. Tal fato indica que se trata de uma rede de malha frouxa (Bott, 1976), onde são poucas as pessoas com quem os membros da família nuclear têm contato e essas pessoas pouco se conhecem e interagem. Nesse sentido, Fátima relata que Fred é de outra área do subúrbio, que mudou há pouco tempo para morar na casa dela em Prainha e que não tem conseguido fazer muitas amizades no bairro.

Nos primeiros meses de Fábio, Fred permanece perto dele realizando atividades como monitorar o sono e a respiração ou carregá-lo em alguns momentos. Não foi vista troca de fraldas, nem momentos de dar banho ou alimentação. Fred também não foi visto preparando refeições, nem lavando roupas. Ele se queixa de que a esposa passa muito tempo nessas atividades e que para lavar as roupas não usa a máquina de lavar que ele comprou para ela. Assim, embora presente, a participação de Fred é pouco expressiva em relação ao volume de trabalho que precisa ser feito em casa.

Já Isaac, com frequência, não está em casa; às vezes, porque está trabalhando; outras, porque fica com os amigos do bairro. Em várias visitas, quando está em casa, Isaac fica um tempo perto da filha, faz carinho e sai de casa, depois retorna e sai novamente. Durante as visitas Isaura se mostra tranquila e, a maior parte das vezes, está assistindo TV com Ivana por perto. Isaura não se queixa do marido.

O modo como Isaac e Fred se relacionam com o cuidado cotidiano dos filhos está ilustrado pelos seguintes relatos, em que ambos carregam brevemente o bebê e prontamente o entregam à mãe:

Isaac entrou ao quarto e pouco depois voltou com Ivana em braços. Ivana estava dormindo no quarto. Isaura pergunta se a bebê acordou sozinha ou foi o pai que a acordou. Ele diz que acordou sozinha e já vai entregando Ivana para ficar no colo da mãe. Isaura faz uma expressão como de quem não acredita no que o marido está falando, mas acolhe a bebê no colo. (Relato de campo)

No início da visita Fred estava em casa com Fábio e Fátima tinha saído. Fábio se mexeu um pouco e começou a despertar. Fred ficou observando o filho que levantou a cabeça novamente e riu. Nessa hora, Fred o pegou e comentou “acordou né Fabinho?”. Fábio ficou aconchegado no colo do pai e não reclamou. Nesse instante, Fátima chegou e começou a relatar dificuldades com a filha mais velha. Fred nem esperou Fátima sentar direito e disse “Toma ele Fátima”; ela hesitou e ele insistiu: “Toma logo mulher”. Ela fez uma cara feia para ele e pegou Fábio. (Relato de campo)

Em ambos os relatos, o fato de o bebê estar sendo carregado pelo pai parece responder a uma necessidade e é muito rápido. No caso de Fábio, e de acordo com a menor disponibilidade de ajuda familiar, é mais necessário que Fred participe no cuidado.

Isaac e Fred são tidos como provedores nas suas famílias, especialmente com relação aos bebês, e ambos parecem assumir esse compromisso. Frequentemente Fátima refere que solicitou a Fred comprar algo para Fábio e que este o fez, ou então que está aguardando Fred comprar: desde adquirir um carrinho de bebê usado por dois reais − pois não tinham dinheiro para comprar um novo − até comprar o remédio ou a roupa solicitada. O seguinte relato − que registra um momento durante a visita de uma irmã de Fátima com quem o casal tem uma boa relação − ilustra como “o marido” é considerado aquele que deve prover o filho:

Fer, a irmã de Fátima se dispôs a trocar as fraldas de Fábio, estranhou a falta de lenços umedecidos “Como lenço de pano, Fátima? Usa o lenço umedecido”. Fátima respondeu: “Você vai comprar, ‘meu marido’? Acabou ontem.” Em seguida Fátima fala: “Vai Fer, você é o homem da casa”. Todos os presentes riem. Em outro momento da visita, Fátima comenta que as fraldas também estão acabando. Fred diz “Não se preocupe, seu marido vai comprar”. Vai até Fer, a empurra brincando e os dois riem (Relato de campo).

O lugar de Isaac como provedor da família está presente nos relatos de Isaura. Ela faz comentários sobre a contribuição da Isaac na renda familiar e sobre o acesso que ela tem aos rendimentos do marido – inclusive por ser ela quem vai buscar o dinheiro do seguro desemprego dele. Isaura faz referência a Isaac ter comprado remédios para Ivana e, mesmo mencionando que deixou de comprar uma vitamina para a filha, por ser muito caro, ela nunca se queixa sobre falta de dinheiro.

Os resultados trazidos aqui vão ao encontro de outros estudos sobre a participação paterna no cuidado infantil, onde o lugar do homem-pai como provedor tem destaque (Freitas et al., 2009; Ferreira et al., 2015; Silva, Marcolino, Ganassin, Santos & Marcon, 2016; Botton et al, 2015) e toma um lugar prioritário em relação às tarefas domésticas e aos cuidados básicos com o bebê (Castoldi, Gonçalves & Lopes, 2014).

Relação com serviços e práticas de saúde

O primeiro ano de vida é um momento em que várias ações de saúde, desenvolvidas na Estratégia de Saúde da Família (ESF), estão previstas. Trata-se também de um dos recortes previstos na Política de Assistência Integral à Saúde do Homem, no que diz respeito a promover a paternidade participativa (BRASIL, 2009). Dentre as ações desenvolvidas no PSF considera-se o acompanhamento pré-natal e o que os profissionais denominam “puericultura”, que inclui o incentivo ao aleitamento materno, acompanhamento de peso e das vacinas. É recomendável a realização de visitas domiciliares ao recém-nascido e à sua família, e isto é verbalizado pelos profissionais. A importância destas ações no cotidiano das equipes se expressa na necessidade do preenchimento e envio mensal de dados sobre a cobertura de assistência pré-natal a mulheres grávidas que moram na área de cobertura da unidade e também dados sobre aleitamento materno exclusivo nos primeiros meses do bebê.

A importância de incluir o pai no aleitamento materno é um tema presente na Unidade de Saúde da Família. Um dia, durante uma visita por parte da pesquisadora, percebeu-se um cartaz onde aparece uma mulher amamentando um bebê e um homem junto, ambos com expressão afetuosa e também uma frase sinalizando sobre a importância do apoio dado pelo pai para possibilitar o aleitamento materno. O cartaz foi mencionado no diálogo com uma agente comunitária de saúde (ACS). Ela comentou: “É para incentivar o pai a participar do aleitamento, isso é bom para a mãe e o bebê” [sic]. Contudo, como será visto a seguir, essas reflexões e mensagens não estavam presentes no cotidiano da assistência.

Ambas as famílias relatam que não receberam visitas domiciliares de profissionais da ESF. Nos dois casos a família fez várias visitas à unidade de saúde para realizar exames – como o “Teste do pezinho” – tomar vacinas, e também para o acompanhamento com profissionais de medicina e enfermagem. Em várias oportunidades as famílias obtiveram respostas às suas demandas na unidade de saúde da família. Já em momentos considerados “de emergência” foi preciso procurar serviços fora do bairro.

A contribuição de Isaac envolve a compra de remédios, assim como acompanhar na procura por serviços fora do bairro. Isaura conta sempre com a ajuda das irmãs e Isaac pouco participa das decisões. Já Fred tem uma participação mais expressiva. Ele leva o filho na Unidade de Saúde da Família para fazer os primeiros exames e realizar consultas. Inclusive, nas primeiras semanas, leva Fábio sozinho, pois Fátima está se recuperando do parto. Frequentemente Fred se mostra favorável a seguir as recomendações dos profissionais de saúde, especialmente em relação ao aleitamento materno exclusivo nos primeiros meses. Por exemplo, durante uma conversa em que Fátima se pergunta se seria bom dar chá a Fábio − na época com dois meses − Fred diz que ela deve seguir as recomendações do médico. Porém, Fred parece conhecer pouco sobre o que está envolvido no aleitamento dos bebês, assim como descrevem outros estudos sobre a participação paterna no aleitamento (Pontes, Alexandrino & Osório, 2012).

As opiniões de Fred são influenciadas também pelo desconforto que as situações lhe causam. Um dia que Fábio tinha tomado uma vacina e estava chorando muito, Fred se queixou e disse que Fátima deveria esperar até o filho completar um ano e dar todas as vacinas de vez para que o bebê não sofresse nos primeiros meses. Nesse momento disse ainda: “dá logo o peito a esse menino” [sicI], considerando que isso ajudaria a acalmar Fábio. Este relato parece apontar pouco conhecimento de Fred sobre as recomendações de vacinação.

A participação de Fred é expressiva no contato com serviços de saúde fora do bairro. Ele acompanha Fátima nas consultas de Fábio em um hospital do centro da cidade. Fátima refere que não conhece essa parte da cidade e não conseguiria chegar sozinha. Fred também esteve bem presente quando Fábio foi hospitalizado aos dois meses devido a um problema respiratório. Fred passava o dia no hospital, e como só estava permitido um acompanhante, apenas Fátima passava a noite com o filho. Fred relatou que foi bem difícil ver Fábio doente e que, em uma ocasião, ele precisou ser firme com os médicos: “No hospital morreu uma criança. Fátima tinha feito amizade com a mãe dele. Queriam que Fátima e Fabio ficassem no mesmo quarto em que o menino tinha morrido. Eu falei com os médicosVocês têm que mudar eles de quarto, a minha mulher não vai passar por isso’. E eles fizeram a mudança de quarto” [sic].

A participação paterna, especialmente no caso de Fred, mantém relação com a visão do pai como aquele que representa a sua família em um espaço social maior, sem necessariamente implicar divisão de tarefas e preocupações com a companheira, assim como Sarti (2011, p. 47) aponta:

Não é, portanto, necessariamente o controle dos recursos internos do grupo doméstico que fundamenta a autoridade do homem, mas sim seu papel de intermediário entre a família e o mundo externo, em seu papel de guardião da respeitabilidade familiar. O fundamento deste lugar masculino está numa representação social dos sexos, que identifica o homem como a autoridade moral da família perante o mundo externo.

Cuidado e construção social da pessoa

Ambos os pais se mostram afetuosos com os filhos e manifestam que gostam muito da companhia deles. Durante as visitas, especialmente nos primeiros meses, Fred comenta as manifestações de Fábio e procura dar sentido às mesmas, mostra-se atento e busca dar conforto ao filho. Já Isaac parece estar menos presente no cotidiano, porém, ao chegar, dá atenção à filha, brinca e conversa com ela.

No caso de Fábio são frequentes as brincadeiras relacionadas com a “masculinidade” do bebê. Em numerosas visitas, mulheres e homens brincam com a presença da pesquisadora dizendo que esta é a namorada de Fábio. Fred comenta, em várias ocasiões, que o filho dele é forte, “um touro” e muito “namorador”. Fred também comemora os avanços de Fábio no desenvolvimento (na comunicação, nos movimentos, entre outros). O prazer de Fred ao estar perto do filho foi visível em várias visitas: “Fábio (um mês) está deitado de barriga para cima em um colchão no chão com Fred bem perto dele. Fred faz ‘gracinhas’ para o filho, que gosta muito e ri sem parar. Isso empolga mais Fred que não para de brincar”(Relato de visita).

Segundo Fátima, Fred “baba” por Fábio, apesar de já ter vários outros filhos mais velhos. Fátima, que geralmente se queixa da pouca ajuda que recebe de Fred, reclama do que considera um maior interesse do filho pelo pai: “Fábio é doido pelo pai, de mim ele só quer o peito” [sic]. Ao mesmo tempo, o lugar de Fred como aquele que proporciona momentos prazerosos parece ser reforçado por Fátima, que propicia e valoriza os momentos de pai e filho juntos, especialmente as saídas para outros bairros, momentos em que ela não está presente. Por exemplo, um dia Fátima relata que Fabio, com nove meses, tinha ido assistir ao jogo do Bahia com o pai e que voltou muito feliz.

Na casa de Ivana o mais comum é a breve presença de Isaac. Ele fica um pouco em casa e com Ivana e depois sai, ou então chega quando o tempo da visita está prestes a finalizar. Isaac interage com Ivana falando frases como: “Oh, sua maluquinha” ou “Que malcriação é essa?” [sic], mostrando objetos − um passarinho que está na gaiola ou o próprio rosto dele, que Ivana gosta de manipular − e colocando-a em situações desafiadoras – como ficar em pé com três meses de idade. Isto pode ser pensado como uma aposta na “agência” da bebê, entendida como um ser que tem as suas próprias vontades presentes desde o início, ainda durante a gravidez. Igualmente é o pai quem traz para a filha os maiores estímulos vindos de fora da casa, como o dia em que oferece um siri para Ivana (na época com 11 meses) brincar:

Isaac chega com um amigo trazendo um balde cheio de siri. Ele pega um siri, prende suas patas, de maneira que não há possibilidade de o mesmo machucar ninguém, e entrega o animal para a bebê. A menina, que está no colo da mãe, pega o bicho sem nenhuma hesitação, e todos comentam sobre a coragem dela. Ivana abre a boca, e a pata do bicho fica na boca da menina. Todos dão risada. Alguém comenta: ‘Se dé [sic] a essa menina pedra cozida, ela come. Que menina é essa?! (Relato de visita).

Ivana não é elogiada por “namoradora”, o que se reforça nela é sua disposição para enfrentar desafios e fazer coisas que a tornam parte da família − “se derem pedra essa menina come” [sic] −; isso se relaciona com a importância do compartilhamento de alimentos com a família como parte da construção social da pessoa – que é ao mesmo tempo um indivíduo singular e uma pessoa relacional (Bustamante & McCallum, 2014b). Incentivar a autonomia e resposta aos desafios e ao mesmo tempo a obediência é uma dimensão da construção social da pessoa bastante presente em bairros populares de Salvador, como já mostrado por Bustamante (2013).

A grande alegria que os pais vivenciam no contato com os bebês, e a disponibilidade para brincar com eles, encontradas aqui, vai ao encontro dos achados de outros estudos (Gonçalves et al., 2013; Krob et al., 2009; Oliveira & Brito, 2009; Ferreira et al., 2015; Paquette, 2004).

 

Discussão e considerações finais

Construir uma relação afetiva próxima com o filho coexiste com o lugar do homem, provedor e responsável pela família em espaços públicos, como o preconizado pelos serviços de saúde. A dimensão que permanece excluída é a participação no cotidiano do cuidado, ou seja, nos cuidados básicos e no trabalho doméstico, o que não parece incomodar aos pais participantes do estudo.

Diferente do que apontam os estudos de Piccinini et al. (2012), Oliveira e Brito (2009) e Ferreira et al. (2015), que referem que os homens gostariam de participar mais do cuidado, porém não o fazem porque trabalham muitas horas, em Prainha não foram ouvidos comentários semelhantes. Inclusive, acredita-se que a situação empregatícia dos homens tem pouca influência na participação dos cuidados básicos. Nos primeiros meses ambos estavam desempregados; enquanto Fred ficava muito tempo em casa, Isaac passava mais tempo na rua, coincidindo com o fato de ele ter muitos amigos e parentes morando perto.

Também não parece haver uma relação clara entre a qualidade da relação conjugal com a mãe da criança e a participação paterna no cuidado, como descrito por Falceto, Fernandes, Baratojo e Giugliani (2008), Menezes e Lopes (2007) e Planalp e Braungart (2016). Isso porque Fred está mais presente em momentos do cotidiano do que Isaac, apesar Fátima se queixar constantemente dele, o que não acontece em relação a Isaac. A participação paterna no cotidiano do cuidado parece ter mais relação com a a família extensa que, no caso de Isaura, está bastante presente, tornando menos necessária a atuação do marido no cuidado cotidiano. Estes achados vão ao encontro de um estudo sobre a participação paterna no cuidado de crianças menores de seis anos em um bairro de baixa renda em Salvador, onde se encontrou maior participação paterna no cuidado em famílias nucleares ao compará-las com famílias extensas (Bustamante & Trad, 2005).

Os dados apresentados levam a argumentar que a persistência da divisão sexual do trabalho e do cuidado com os filhos não é apenas uma disposição dos homens, mas um fenômeno relacional construído cotidianamente nas relações entre homens e mulheres, reforçado pelos serviços de saúde que os assistem, e transmitido aos bebês desde o início da vida.

Assim como Tarnowski, Próspero e Elsen (2005), acredita-se que pouco se avançou quanto à participação do pai na arena da saúde reprodutiva, à despeito do esforço que representa a implementação da PNAISH (Ribeiro, Gomes & Moreira, 2015). A disposição dos homens para participar, em alguns aspectos, do contato com práticas e serviços de saúde é uma dimensão que segue a lógica hegemônica, e que poderia ser aproveitada para propiciar uma maior participação masculina no cotidiano do cuidado. Para isso, é preciso ter uma escuta atenta aos homens como Fred que, quando se faz necessário, levam os bebês aos serviços de saúde.

Este foi um estudo que utilizou um método originário da formação psicanalítica, ainda pouco utilizado em pesquisas. A posição de observador, que limita ao máximo a sua participação no ambiente, foi importante para se ter acesso aos detalhes do desenvolvimento dos bebês e do cotidiano familiar. Entretanto, pode ter dificultado o contato com os pais, especialmente no caso de Isaac, ficando mais difícil conversar em profundidade.

É preciso que, ao pensar sobre as práticas, se contemple que uma relação afetuosa com o filho pode coexistir com pouca participação nos cuidados básicos e no trabalho doméstico. Faz-se necessário considerar que a participação paterna se constrói não só na relação mais próxima de pai e mãe, quando há um casal, mas na relação com a família extensa. A participação dos irmãos mais velhos tem grande importância e requer ser estudada. Defende-se também a relevância de se estudar a participação masculina no cuidado, não somente a participação paterna, para assim avançar na desnaturalização das relações familiares e de cuidado.

Destaca-se a contribuição conceitual do presente estudo ao fazer um uso significativo e fecundo da teoria geral do cuidado, inicialmente proposta por Bustamante e McCallum (2014), integrando dois modos complementares de compreender o cuidado, e que aqui foi enriquecida ao incluir a discussão sobre gênero e cuidado. Isto configura uma ampliação da perspectiva dominante no plano nacional e internacional, o conceito de envolvimento paterno, ao possibilitar a inclusão do contexto familiar, sócio-histórico e cultural onde a participação paterna se constrói.

 

Referências

Almeida Filho, N. de. (2011) O que é saúde?. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.         [ Links ]

Alvarenga, P., Gomes, Q. S., Freitas, L. M. A., & Bolsoni-Silva, A. T. (2016). Modelos teóricos e instrumentos para a avaliação da relação pai-criança. In L. V. de C., Moreira, E. P., Rabinovich, & P. C. S. do V., Zucoloto. (Orgs.), Paternidade na sociedade contemporânea: O envolvimento paterno e as mudanças na família (pp. 195-214). Curitiba: Juruá         [ Links ].

Ayres, J. R. C. M. (2009). Cuidado e reconstrução das práticas de saúde. In J. R. C. M. Ayres. Cuidado: Trabalho e interação nas práticas de saúde (pp. 41-74), Rio de Janeiro: Cepesc; UERJ/IMS; Abrasco.         [ Links ]

Becker, H. (1997). Métodos de pesquisa em ciências sociais. (3a ed.) São Paulo: Editora Hucitec.         [ Links ]

Bosardi, C. N. & Vieira, M. L. (2010). Cuidado paterno e desenvolvimento infantil. Revista de Ciências Humanas, 44(1), 205-221.         [ Links ]

Bott, E. (1976). Família e rede social. Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

Botton, A., Cúnico, S. D. Barcinski, M., & Strey, M. N. (2015). Os papéis parentais nas famílias: Analisando aspectos transgeracionais e de gênero. Pensando Famílias, 19(2), 43-56.         [ Links ]

Brasil (2009). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem. Ministério da Saúde. Brasília, DF. Recuperado em 10 abril, 2018, de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt1944_27_08_2009.html.         [ Links ]

Bruschini, M. C. A., & Ricoldi, A. M. (2012). Revendo estereótipos: O papel dos homens no trabalho doméstico. Revista Estudos Feministas, 20(1), 259-287.         [ Links ]

Bustamante, V. (2013). Cuidado e desenvolvimento em crianças escolares de Salvador. Estudos de Psicologia (Campinas), 30(4), 507-515.         [ Links ]

Bustamante, V., & McCallum, C. (2014a). Cuidado e construção social da pessoa: Contribuições para uma teoria geral. Physis, 24(3), 673-692.         [ Links ]

Bustamante, V., & McCallum, C. (2014b). Feeding practices, healthcare and kinship during the first year of life. Estudos de Psicologia (Campinas), 31(3), 425-435.         [ Links ]

Bustamante, V., & Trad, L. (2005). Participação paterna no cuidado de crianças pequenas: Um estudo etnográfico com famílias de camadas populares. Cad. Saúde Pública, 21(6),1865-1874.         [ Links ]

Castoldi, L., Gonçalves, T. R., & Lopes, R. de C. S. (2014). Envolvimento paterno da gestação ao primeiro ano de vida do bebê. Psicologia em Estudo, 19(2), 247-259.         [ Links ]

Cia, F., Williams, L. C. de A., & Aiello, A. L. R. (2005). Influências paternas no desenvolvimento infantil: Revisão da literatura. Psicologia Escolar e Educacional, 9(2), 225-233.         [ Links ]

Costa, de O. S., Ferreira, J. G., Silva, da P. M. P., Ferreira, J. M., Seabra, R. da A., & Fernando, V. C. N. (2009). A participação do homem no acompanhamento da assistência pré-natal. Cogitare Enfermagem, 14(1), 73-78.         [ Links ]

Cúnico, S.D., & Arpini, D.M. (2013). A família em mudanças: Desafios para a paternidade contemporânea. Pensando Famílias, 17(1), 28-40.         [ Links ]

Falceto, O. G, Fernandes, C. L, Baratojo, C., & Giugliani, E. R J. (2008). Fatores associados ao envolvimento do pai nos cuidados do lactente. Revista de Saúde Pública, 42(6), 1034-1040.         [ Links ]

Ferreira, F. H., Wernet, M., Marski, B. de S. L., Ferreira, G. I., Toledo, L. P. N. de, & Fabbro, M. R. C. (2015). Experiência paterna no primeiro ano de vida da criança: Revisão integrativa de pesquisas qualitativas. Revista Eletrônica de Enfermagem, 17(3), 1-12.         [ Links ]

Freitas, W. de M. F., Silva, A. T. M. C. da, Coelho, E. de A. C., Guedes, R. N., Lucena, K. D. T. de, & Costa, A. P. T. (2009). Paternidade: Responsabilidade social do homem no papel de provedor. Revista de Saúde Pública, 43(1), 85-90.         [ Links ]

Fujiwara, T., Okuyama, M., & Takahashi, K. (2010). Paternal involvement in childcare and unintentional injury of young children: a population-based cohort study in Japan, International Journal of Epidemiology, 39(2), 588-597.         [ Links ]

Fuller, N. (2000). Significados y prácticas de paternidades entre varones urbanos del Perú. In N. Fuller (Org.), Paternidades en América Latina (pp. 241-275). Lima: Fondo Editorial PUCP.         [ Links ]

Gomes, L. B., Crepaldi, M. A. & Bigras, M. (2013). O engajamento paterno como fator de regulação da agressividade em pré-escolares. Paidéia, 23(54), 21-30.         [ Links ]

Gonçalves, T. R., Guimarães, L. E., Silva, M. da R., Lopes, R. de C. S., & Piccinini, C. A. (2013). Experiência da paternidade aos três meses do bebê. Psicologia: Reflexão e Crítica, 26(3), 599-608.         [ Links ]

Guimarães, N. A., Hirata, H. S., & Sugita, K. (2011). Cuidado e cuidadoras: O trabalho de Care no Brasil. Sociologia & Antropologia, 1(1), 151-180.         [ Links ]

Krob, A. D. D., Piccinini, C. A., & Silva, M. da R. (2009). A transição para a paternidade: Da gestação ao segundo mês de vida do bebê. Psicologia USP, 20(2), 269-291.         [ Links ]

Lamb, M. E. Pleck, H., Charnov, E. L., & Levine, J. A. (1985). Paternal behavior in humans. American Zoologist, 25(3), 883-894.         [ Links ]

McCallum, C. A., & Bustamante, V. (2012). Parentesco, gênero e individuação no cotidiano da casa em um bairro popular de Salvador da Bahia. Etnográfica, 16(2), 221-246.         [ Links ]

Menezes, C. C., & Lopes, R. de C. S. (2007). Relação conjugal na transição para a parentalidade: Gestação até dezoito meses do bebê. Psico-USF, 12(1), 83-93.         [ Links ]

Minayo, M. C. S. (2014). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde (14a ed.). São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Oliveira, E. M. F. de., & Brito, R. S. de. (2009). Ações de cuidado desempenhadas pelo pai no puerpério. Esc. Anna Nery, 13(3), 595-601.         [ Links ]

Oliveira-Menegotto, L., Menezes, C. C., Caron, N., & Lopes, R. de C. S. (2006). O método Bick de observação de bebês como método de pesquisa. Psicologia Clínica, 18(2), 77-96.         [ Links ]

Paquette, D. (2004). Theorizing the father-child relationship: Mechanisms and developmental outcomes. human development  47, 193-219.         [ Links ]

Piccinini, C. A., Silva, M. da R., Tonantzin, R. G., Lopes, R. de C. S., & Tudge, J. (2012). Envolvimento paterno aos três meses de vida do bebê. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 28(3), 303-314.         [ Links ]

Planalp, E. & Braungart-Rieker, J. (2015). Determinants of father involvement with young children: Evidence from the early childhood longitudinal study birth cohort. Journal of Family Psychology, 30(1), 135-146.         [ Links ]

Pontes, C. M., Alexandrino, A. C., & Osorio, M. M. (2009). O envolvimento paterno no processo da amamentação: Propostas de incentivo. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, 9(4), 399-408.         [ Links ]

Promundo-Brasil. (2016). A situação da paternidade no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Promundo. Recuperado em 10 de abril de 2018, de https://promundo.org.br/recursos/tipo=relatórios.         [ Links ]

Rabelo, M. C. (1999). A experiência de indivíduos com problema mental: Entendendo projetos e sua realização. In M.C. Rabelo, P.C. Alves, & Souza, I. A. (Orgs.). Experiência de doença e narrativa. (pp. 205-227). Rio de Janeiro: Fiocruz.         [ Links ]

Rempel, R. N. L. A, & Rempel, J. K. (2010). The breastfeeding team: The role of involved fathers in the breastfeedind family. Journal of human Lactation, 27(2), Supp 2, 115-121.         [ Links ]

Ribeiro, C. R., Gomes, R., & Moreira, M. C. N. (2015). A paternidade e a parentalidade como questões de saúde frente aos rearranjos de gênero. Ciência e Saúde Coletiva, 20(11), 3589-3598.         [ Links ]

Ribeiro, C. R., Gomes, R., & Moreira, M. C. N. (2017). Encontros e desencontros entre a saúde do homem, a promoção da paternidade participativa e a saúde sexual e reprodutiva na atenção básica. Physis, 27(1), 41-60.         [ Links ]

Santos, S.M. C.B. Possibilidade e desafios do homem contemporâneo frente à conciliação entre trabalho e paternidade. In L. V. de C., Moreira, E. P., Rabinovich, & P. C. S. do V., Zucoloto. (Orgs.), Paternidade na sociedade contemporânea: O envolvimento paterno e as mudanças na família (pp. 159-172). Curitiba: Juruá         [ Links ].

Sarti, C. A. (2011). A família como espelho: Um estudo sobre a moral dos pobres. (7a ed). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Scott, J. W. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99.         [ Links ]

Silva, E. M. da., Marcolino, E., Ganassin, G. S., Santos, A. L. dos, & Marcon, S. S. (2016). Participação do companheiro nos cuidados do binômio mãe e filho: Percepção de puérperas. Revista de Pesquisa: cuidado é fundamental, 8(1), 3991-4003.         [ Links ]

Silva, M. &. Piccinini, C. A. (2007). Sentimentos sobre a paternidade e o envolvimento paterno: Um estudo qualitativo. Estudos de Psicologia (Campinas), 24(4), 561-573.         [ Links ]

Sorj, B. (2013). Arenas de cuidado nas interseções entre gênero e classe social no Brasil. Cadernos de Pesquisa, 43(149), 478-491.         [ Links ]

Tarnowski, K. da S., Próspero, E. N. S., & Elsen, I. (2005). A participação no processo de humanização do nascimento: uma questão a ser repensada. Texto & Contexto Enfermagem, 14(no. spe), 102-108.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Vania Bustamante
E-mail: vaniabus@yahoo.com

Enviado em: 09/06/2018
1ª revisão em: 20/06/2018
2ª revisão em: 11/10/2018
3ª revisão em: 06/02/2019
Aceito em: 08/04/2019

 

 

Agradecimentos:

À Adriana Correia e Marta Campos pelo importante trabalho de coleta de dados; a Nara Brito e Rebeca Almeida pela ajuda na revisão de literatura; à Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) pelo apoio financeiro para a realização deste trabalho.

 

1 Psicóloga, Doutora em Saúde Coletiva, Professora do Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Bahia, Brasil.

Creative Commons License