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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.23 no.1 Porto Alegre Jan./June 2019

 

ARTIGOS

 

Características de personalidade de agressores conjugais: um estudo qualitativo

 

Characteristics of personality of marital aggressors: a qualitative study

 

 

Gabriela Quadros de Lima Stenzel1

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A agressão cometida pelos parceiros conjugais configura-se como o tipo de violência mais comum na vida das mulheres. No entanto, pesquisas sobre o entendimento do funcionamento psicológico e do comportamento do agressor conjugal são escassas. O presente estudo teve como objetivo conhecer as características de personalidade de agressores conjugais por meio do Método de Rorschach. Os três participantes, maiores de 18 anos de idade, detidos no Presídio Central de Porto Alegre por meio da Lei Maria da Penha, responderam aos seguintes instrumentos: Ficha de Dados Pessoais e Sociodemográficos, Entrevista MINI e Método de Rorschach. Apenas um dos participantes apresentou sintomas psicopatológicos e constatou-se que a capacidade de controle e tolerância ao estresse se mostra como uma variável importante a ser considerada quando se pensa em medidas de prevenção e intervenção com agressores conjugais.

Palavras-chave: Agressores conjugais, Personalidade, Método de Rorschach.


ABSTRACT

Aggression committed by conjugal partners is the most common type of violence in women's lives. However, research on the understanding of the psychological functioning and behavior of the marital aggressor is scarce. The present study aimed to know the personality traits of marital aggressors through the Rorschach Method. The three participants, over 18 years of age, detained at the Porto Alegre Central Prison in accordance with the Maria da Penha Law, responded to the following instruments: Personal and Sociodemographic Data Sheet, MINI Interview and Rorschach Method. Only one participant presented psychopathological symptoms and it was verified that the capacity of control and tolerance to stress is shown as an important variable to be considered when thinking about prevention and intervention measures with marital aggressors.

Keywords: Conjugal aggressors, Personality, Rorschach method.


 

 

Introdução

Estudar o fenômeno da violência doméstica contra a mulher exige esforço dos pesquisadores em função da complexidade de fatores envolvidos em tal situação de violência e a mobilização emocional que indiscutivelmente gera esta temática. As limitações se tornam ainda maiores quando o foco de estudo se direciona aos agressores conjugais. O acesso aos homens que cometeram violência contra as suas parceiras íntimas e o consentimento dos mesmos em participar de pesquisas configura-se em um obstáculo que precisa ser superado. Nesse sentido, um estudo de caráter internacional (Fulu, Jewkes, Roselli & Garcia-Moreno, 2013) ressalta que investigações com autores de violência conjugal representam um desafio metodológico, além de despertar menos interesse quando comparadas aos estudos com vítimas deste tipo de violência. Contudo, em termos da produção de conhecimento científico e acadêmico, se torna imperioso compreender a violência em todas as suas facetas, a fim de que se possam pensar em alternativas de prevenção e intervenção (Stenzel, 2014).

Do ponto de vista estatístico, pesquisas apontam que, no Brasil, cerca de 20% dos homens cometem violência contra a sua companheira ao longo da vida. Esse número aumenta para 42% na África do Sul (Barker et al., 2011; Jewkes, Sikweyiya, Morrel & Dunkle, 2011). A partir de dados como esses, identifica-se a agressão cometida pelos parceiros íntimos como a modalidade de violência mais comum na vida das mulheres ao redor do mundo (Fulu et al., 2013). Este tipo de violência acomete de forma fatal um número maior de mulheres com idade entre 15 e 44 anos do que doenças como o câncer e a malária e do que os acidentes de carro e as guerras. Assassinatos, estupros, abusos físicos, sexuais e emocionais, prostituição forçada, mutilação genital, violência racial, entre outras, são exemplos das mais variadas formas de agressão cometidas contra as mulheres (Gomes, Minayo & Silva, 2005). Como fatores de risco, a vivência pessoal e materna de violência na história de vida de mulheres é citada por estudiosos como fator que influencia para a ocorrência da violência conjugal (Leite et al., 2017; Lima & Werlang, 2011). Ainda, uma publicação recente (Leite, Amorim, Wehrmeister & Gigante, 2017) aponta que as violências psicológica, física e sexual, cometidas pelo parceiro íntimo, apresentaram alta prevalência entre mulheres usuárias dos serviços de atenção primária de saúde.

Pesquisas acerca do entendimento do funcionamento psicológico e do comportamento do agressor são escassas. Uma busca em importantes bases de dados (Scielo, Pepsic e Biblioteca Virtual da Saúde) demonstrou que existem poucos estudos cuja população em foco são os agressores conjugais. Ao especificar as características de personalidade desses agressores, evidenciou-se a ausência de pesquisas com essa população. Um artigo publicado por Oliveira e Gomes (2011), apresentando o resultado de uma análise de estudos brasileiros relacionando os descritores homens e violência conjugal, destacou a importância de maior investimento em termos de investigações com métodos qualitativos junto aos autores de violência conjugal a fim de aprofundar o conhecimento sobre este fenômeno violento.

Então, este trabalho teve como objetivo conhecer as características de personalidade de agressores conjugais por meio do Método de Rorschach. Ressalta-se que esta investigação integra um projeto maior que teve como finalidade investigar características da história de vida e de personalidade de homens que perpetraram violência contra a mulher, detidos no Presídio Central de Porto Alegre por meio da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).

Breves apontamentos sobre o constructo personalidade e a mensuração do comportamento humano

Apesar da complexidade que envolve o conceito em pauta, pode-se dizer que a personalidade se caracteriza por uma série de valores que descrevem o indivíduo que está sendo estudado em termos das dimensões que ocupam uma posição central dentro de uma teoria específica (Hall, Lindzey & Campbell, 2000). Atualmente, na ciência psicológica, existem diversas teorias da personalidade. Assim, não é possível encontrar um único e universal conceito que defina este complexo constructo. Portanto, para que se possa conhecer o ser humano através de uma definição específica de personalidade, é necessário se basear em uma estrutura teórica a partir da qual o comportamento humano poderá ser compreendido. Segundo os mesmos autores, uma importante fonte de influência sobre as teorias da personalidade diz respeito à tradição psicométrica e seu foco na mensuração e no estudo das diferenças entre os indivíduos. Esta fonte de estudos proporcionou um avanço cada vez maior na avaliação e mensuração do comportamento e do funcionamento psicológico dos indivíduos.

Cattell, já em sua obra de 1975, mencionava a fase quantitativa e experimental que a análise da personalidade alcançaria. Este autor definiu a personalidade “como aquilo que nos diz o que fará um homem quando colocado em dada situação” (p. 26). Para Pervin e John (2004) “a personalidade representa aquelas características da pessoa que explicam padrões consistentes de sentimentos, pensamentos e comportamentos” (p. 23). Ou seja, o estudo da personalidade se interessa de forma significativa em observar, compreender e prever as atitudes das pessoas.

Nesse sentido, os psicólogos contam com uma importante área de trabalho que permite aos seus profissionais realizar a tarefa de compreender as características psicológicas de pessoas ou grupos, denominada avaliação psicológica (CFP, 2013). Trata-se de um processo de investigação e coleta de dados sobre fenômenos psicológicos “composto de métodos, técnicas e instrumentos, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão, no âmbito individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades específicas” (CFP, 2018). Os instrumentos ou testes psicológicos são procedimentos sistemáticos para observar e descrever o comportamento humano com o auxílio de escalas numéricas ou categorias fixas (Cronbach, 1996), conferindo, assim, maior sofisticação e qualidade para a tarefa da avaliação psicológica. Destaca-se que os testes psicológicos são ferramentas de uso exclusivo do psicólogo (CFP, 2018), tornando o processo avaliativo realizado por essa categoria profissional uma atividade que a caracteriza e qualifica. Dentre os testes validados e disponíveis para uso atualmente, o Método de Rorschach, e principalmente o Sistema Compreensivo, se destaca pela qualidade dos seus estudos psicométricos e pelo amplo reconhecimento dos psicólogos ao redor do mundo no que diz respeito aos testes que avaliam a personalidade, desde a sua criação (Nascimento, 2008, 2010).

Este instrumento tem sido amplamente utilizado na área clínica, jurídica e em pesquisas. Uma das principais contribuições do Rorschach consiste em proporcionar referenciais empíricos para a análise da personalidade e do funcionamento subjacente a toda atividade psíquica (Nascimento, 2010). O próprio criador do instrumento (Rorschach, 1920/1961) enfatizou o valor empírico do seu trabalho. Ou seja, o potencial do teste em avaliar de forma fidedigna o funcionamento psicológico dos indivíduos.

A partir do exposto e do evidenciado por diversos estudos (Andrés, 2004; Delgado, 2009; Echeburúa, Amor & Corral, 2009; García, 2004; Lila, Gracia & Herrero, 2012; Stenzel & Lisboa, 2017) sobre a relevância de se conhecer o funcionamento e as características de personalidade dos homens que perpetram violência contra as suas parceiras íntimas, este artigo aborda, de forma mais específica, o agrupamento de dados que se destacou na aplicação do Método de Rorschach com os agressores conjugais participantes desta pesquisa.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo três homens (João, Carlos e Vicente - nomes fictícios), maiores de 18 anos de idade, detidos no Presídio Central de Porto Alegre (PCPA) em função da Lei Maria da Penha. Os participantes foram escolhidos considerando os critérios de exclusão (apresentar transtorno psicótico e/ou fazer uso de medicação que altere a capacidade lógica e de raciocínio) e a indicação de funcionárias integrantes da equipe técnica do PCPA (psicóloga e assistente social) no que diz respeito ao possível interesse dos presos em participar dos procedimentos da pesquisa.

Instrumentos

Ficha de Dados Pessoais e Sociodemográficos para caracterização da amostra.

Entrevista MINI - Mini International Neuropsychiatric Interview (Amorim, 2000) para averiguar a presença ou não de sintomas psicopatológicos.

Método de Rorschach - Sistema Compreensivo para obter informações a respeito das características de personalidade dos participantes. O Rorschach fornece importantes subsídios para avaliar a estrutura da personalidade e o funcionamento de seus psicodinamismos. Trata-se de um método que provê um mapa confiável das operações e da organização psicológica do avaliado (Exner, 1999; Exner & Sendín, 1999).

Procedimentos

O projeto de pesquisa maior recebeu autorização da direção do Presídio Central e do Juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, assim como foi aprovado pela Comissão Científica da Faculdade de Psicologia e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sob o parecer número 746.770. Os três homens concordaram em participar da pesquisa e assinaram o Termo de Assentimento. A aplicação dos instrumentos aconteceu em um encontro de aproximadamente noventa minutos. Os protocolos do Rorschach foram classificados pela autora e o processamento dos sumários estruturais foi realizado através do programa de computador RIAP versão 5.00.137. Os escores encontrados foram analisados através da referência normativa nacional (Nascimento, 2010) e os dados foram interpretados pela autora a partir do Manual de Interpretação do instrumento (Exner & Sendín, 1999).

 

Resultados

A Tabela 1 apresenta informações a respeito das características pessoais e sociodemográficas, assim como da ocorrência de agressão conjugal e da detenção dos participantes, coletadas através de uma ficha de dados elaborada para uso específico neste estudo.

 

 

Com relação aos dados obtidos por meio da Entrevista MINI, destaca-se que não foram evidenciados sintomas psicóticos nestes homens, assim como os mesmos não estavam apresentando prejuízo na capacidade lógica e de raciocínio em função do uso de medicação. O único participante que apresentou sintomas psicopatológicos foi João: Episódio Depressivo Maior com Características Melancólicas Atual, Episódio Hipomaníaco Passado, Transtorno de Pânico com Agorafobia Atual, Fobia Social, Abuso de Álcool Atual, Transtorno de Ansiedade Generalizada Atual. Este participante foi orientado a relatar sobre seus sintomas nas entrevistas de triagem com a equipe técnica de saúde do Presídio, além de ter sido encaminhado pela pesquisadora para a referida equipe. Traços de Personalidade Antissocial não foram identificados em nenhum dos participantes. João estava preso há apenas dez dias quando participou deste estudo. Por esse motivo ainda não tinha sido avaliado pela equipe de saúde do Presídio.

No que diz respeito aos dados coletados a partir do Método de Rorschach, todos os protocolos foram considerados válidos e nenhum dos participantes apresentou risco de suicídio atual. A Tabela 2 apresenta a estratégia de interpretação do Rorschach indicada para cada um dos três protocolos dos participantes da pesquisa.

 

 

As informações apresentadas na Tabela 2 apontam que os dados referentes ao grupo Controles (Capacidade de controle e tolerância ao estresse e Estresse situacional) se destacam nos três protocolos estudados. Desta forma, este é o grupo de informações que apresenta as características mais relevantes e essenciais para a compreensão do funcionamento psicológico atual dos participantes desta pesquisa. Assim sendo, optou-se por explorar estes dados, já que a amplitude e complexidade das informações coletadas por meio do Método de Rorschach não poderiam ser analisadas em sua integridade neste trabalho. A análise do grupo Controles do protocolo dos três participantes da pesquisa será descrita de forma resumida a seguir.

Caso João

 

 

 

Os resultados encontrados (apresentados nas Tabelas 3 e 4) sugerem que este participante se sente sobrecarregado, recebendo mais estímulos desconfortáveis do que seus recursos psíquicos são capazes de suportar para gerar respostas adaptativas. Tal sobrecarga pode predispor João a um funcionamento ineficaz, pois ele pode colocar em prática decisões pouco ajustadas às exigências reais das situações que vivencia. Portanto, este participante corre o risco de apresentar formas impulsivas de pensamento e de ação. Indivíduos com esses escores tendem a experimentar dificuldades diante de situações novas. Portanto, quanto mais nova e complexa for a realidade, mais confuso João pode se sentir, reagindo de forma inapropriada. Os resultados do teste indicam que João torna-se vulnerável diante de situações de aumento de tensão. Essas dificuldades se manifestam de forma evidente nas relações interpessoais. Os dados decorrentes do Método de Rorschach ainda indicam que João vem sofrendo certo desconforto de forma contínua e não apenas situacional.

Caso Carlos

 

 

 

No caso de Carlos, as informações encontradas (expostas nas Tabelas 5 e 6) indicam que o estresse situacional está proporcionando mais demandas em suas capacidades de adaptação do que é normalmente necessário ou ele está acostumado a enfrentar. Este excesso de estresse está sendo imposto a uma sobrecarga de estímulo crônico pré-existente, resultando em prejuízo significativo das suas capacidades de autocontrole e criando uma tendência acentuada para a impulsividade no que ele pensa, diz e faz. É provável que este participante tenha dificuldade para funcionar de forma eficaz na maioria das situações e apresente dificuldades na atenção, concentração e perseverança diante de novos obstáculos. As relações interpessoais são diretamente prejudicadas em função dessas características.

Caso Vicente

 

 

 

Vicente, de acordo com os resultados encontrados por meio do Método de Rorschach (apresentados nas Tabelas 7 e 8), apresenta um nível de tolerância adequado diante das tensões da vida cotidiana, de modo que apenas diante de ocasiões de estresse intenso, prolongado ou inesperado a capacidade de controle de Vicente pode fracassar de maneira expressiva. Ou seja, Vicente possui recursos para tomar decisões e as colocar em prática. No entanto, o participante pode apresentar sérias dificuldades no manejo de muitas situações do dia-a-dia em função da intensa vivência de desamparo. Essas vivências interferem e prejudicam sua capacidade de estabelecer e manter relacionamentos interpessoais considerados saudáveis.

 

Discussão

Estudos realizados com agressores conjugais (Moraes & Ribeiro, 2012; Rosa et al., 2008) demonstram que estes homens entendem que a sua ação agressiva é desencadeada pelo comportamento da companheira, como o cuidado inadequado com os filhos e o comportamento dominador por parte delas. Quando os agressores atribuem para si as causas da violência cometida, mencionam o uso da bebida alcóolica e os problemas financeiros como motivos da sua agressividade. Contudo, a responsabilidade pelo ato violento ainda é deslocada para a mulher, que, por se preocupar com o uso do álcool e a condição financeira acabam por pressionar os seus companheiros, resultando na violência doméstica (Rosa et al., 2008). Pode-se compreender este tipo de situação citada (pressão das companheiras para resolver os problemas) como possíveis desencadeadoras do estresse sentido pelos homens no seu cotidiano, corroborando a ideia de que o acúmulo de tensão não é bem gerenciado por agressores conjugais, conforme evidenciado por meio do Método de Rorschach. Com relação ao uso do álcool, apenas um dos três participantes apresentou sintomas ligados ao uso dessa substância. Contudo, considerando a amostra reduzida deste estudo, a presença dessa sintomatologia já se mostra relevante. Ressalta-se que João, o participante que faz uso abusivo de álcool, é um dos dois participantes desta investigação que assassinou a sua companheira. Nesse sentido, convém salientar que o estudo de Padovani e Williams (2011) constatou o uso de substâncias psicoativas por grande parte dos agressores conjugais participantes da pesquisa, indicando a probabilidade maior da violência advinda de adictos, assim como o aumento da severidade da violência cometida. Desta forma, segundo os autores, intervenções para essa população devem levar em consideração a necessidade do tratamento paralelo do uso abusivo ou dependente de substâncias psicoativas. Parece que o abuso de substâncias por parte de João incrementou as suas dificuldades ao longo dos últimos tempos, assim como os demais sintomas apresentados por meio da Entrevista MINI (sintomas de ansiedade e depressão).

A pesquisa de Moraes e Ribeiro (2012) também corrobora com as ideias anteriormente descritas, pois constatou que os homens utilizam o fato de estarem sob o efeito do álcool como uma justificativa para a agressão cometida, já que ficam fora de controle. Além do uso do álcool, também aparecem como justificativas possíveis o fato de que a violência cometida é uma forma de resposta ou punição ao comportamento inadequado da mulher, além da força física natural do homem, que em contato com a fragilidade feminina torna a agressão mais grave. O significado encoberto pelas desculpas apresentadas neste estudo, segundo os autores, é de que não havendo a intencionalidade da agressão, os homens não se sentem os únicos responsáveis pela violência. A mesma pesquisa ainda demonstrou a concordância dos agressores com os termos da Lei Maria da Penha. Entretanto, estes manifestaram sua opinião de que a Lei deveria ser aplicada somente nos casos considerados graves, e relataram que consideram os seus próprios casos passíveis de serem resolvidos no ambiente doméstico.

Em contrapartida, dados analisados pelo Departamento de Justiça da Catalunya demonstram que a concepção de que os diferentes tipos de violência acontecem em função de transtornos psíquicos ou efeito de álcool e outras drogas por parte do agressor é um mito, enraizado e reforçado pelo senso comum, mas que não se confirma a partir da investigação empírica do Departamento em questão (Delgado, 2009). Nessa mesma direção, Andrés (2004) aponta que diagnósticos psicopatológicos em agressores conjugais não são frequentes, mas na grande maioria dos casos é possível identificar alterações psicológicas na área do controle dos impulsos e da raiva, além de déficit na capacidade de empatia e expressão das emoções. Echeburúa et al. (2009) acrescentam a presença frequente de distorções cognitivas, déficits em habilidades de comunicação e resolução de problemas, assim como baixa autoestima. Os autores reforçam a informação de que quadros clínicos são menos prováveis, mas quando presentes costuma-se identificar alcoolismo e transtornos de personalidade. No que diz respeito ao uso de substâncias, entende-se que este não é um fator que explique a violência e os maus tratos em sua totalidade, mas que pode acionar uma predisposição para condutas violentas derivadas de atitudes previamente hostis (Andrés, 2004; García, 2004).

Então, levando em consideração a interpretação dos resultados obtidos por meio do Método de Rorschach referentes ao grupo Controles, destaca-se que a capacidade de controle e tolerância ao estresse alude à aptidão do indivíduo para utilizar seus recursos psicológicos disponíveis, formular e levar a cabo suas decisões e a agir de maneira eficaz para si mesmo. Desta forma, de acordo com o manual do instrumento (Exner & Sendín, 1999), é possível afirmar que uma pessoa possui capacidade de controle e tolerância ao estresse apropriada quando, na maioria das vezes, é capaz de iniciar e manter a direção de suas condutas. Estas variáveis dizem respeito, portanto, aos recursos psicológicos disponíveis para que as pessoas sejam capazes de direcionar suas condutas para o enfrentamento adequado de desconfortos causados pelo aumento da tensão por causas internas ou externas.

No que diz respeito ao estresse situacional, este conjunto de variáveis se refere, segundo os mesmos autores, aos momentos nos quais a capacidade usual de controle se altera temporariamente, devido, por exemplo, a presença de sentimentos dolorosos. Este aumento de tensão se origina em ocasiões especialmente difíceis ou estressantes que estão acontecendo no ambiente do indivíduo e que lhe afetam de forma significativa. Destaca-se que a saúde mental de uma pessoa não é atestada pela ausência de problemas, mas pela sua capacidade para enfrentá-los e resolvê-los. A presença de fatores que geram estresse no cotidiano da vida das pessoas é algo esperado, como, por exemplo, conflitos de trabalho, congestionamento no trânsito, demandas sociais complexas, etc. Apesar de situações como essas já intensificarem o uso dos recursos psicológicos, geralmente esses problemas podem ser resolvidos sem comprometimento da organização psicológica. No entanto, experiências estressantes que adquirem maior significado e que não são solucionadas em pouco tempo podem resultar em intenso sentimento de impotência e em uma sobrecarga que pode interferir de forma acentuada no funcionamento psicológico do indivíduo. Tal situação gerará condutas menos eficientes e elaboradas, e o aumento do desconforto interno provocará na pessoa a sensação de ser incapaz de resolver os problemas ou de estar arriscando perder o controle (Exner & Sendín, 1999). De forma resumida, o conjunto de recursos psicológicos ao qual o indivíduo pode recorrer para manejar o estresse influencia, em grande medida, a qualidade de sua adaptação a si mesmo e ao ambiente (Weiner, 2000).

A análise dos dados evidência que João e Carlos apresentam sérios prejuízos no que diz respeito às suas capacidades de controle e tolerância ao estresse (situacional e a longo prazo). Os resultados demonstram que os mesmos não possuem recursos psíquicos disponíveis para lidar com a sobrecarga de tensão em situações de alta complexidade. Pode-se, portanto, relacionar essa informação com o fato de ambos terem sido violentos com as suas companheiras ao ponto de assassiná-las. Além disso, Carlos encontra-se em cárcere privado a cerca de um ano, precisando dar conta dessa situação de forte estresse como consequência do seu comportamento. João, preso há menos de um mês, também precisará encontrar formas de suportar tamanha fonte de desconforto emocional. Por outro lado, Vicente evidenciou possuir recursos disponíveis para manejar situações estressantes, estando essa condição em risco somente em situações de prolongado desconforto em função da sobrecarga de tensão. Desta forma, pode-se compreender que Vicente se tornou violento quando não encontrou mais formas de tolerar a angústia constante em função do sentimento de desamparo que reexperimentou em sua história de vida através do abandono da companheira. Vicente tentou de todas as formas que sua ex-companheira não abandonasse o filho do casal, verbalizando que a frustração de ela não ver e não ter contato com o filho era insuportável por já ter vivenciado isso em sua vida, já que foi abandonado pelo pai biológico e adotado pela sua avó. Evidencia-se que as maiores dificuldades dos três participantes da pesquisa dizem respeito ao estabelecimento e manutenção das relações interpessoais. Nesse sentido, as relações íntimas amorosas servem de palco para a expressão das mais diversificadas dificuldades de relacionamento, inclusive para a expressão da violência.

Alguns autores (Echeburúa, et al., 2009; Hirigoyen, 2006) destacam que existem diferentes tipos de homens violentos, assim como diferentes motivos para o surgimento da violência. Contudo, conforme ressalta Hirigoyen (2006), como os agressores não possuem o hábito de solicitar ajuda, só é possível buscar compreender esse funcionamento e oferecer algum tipo de intervenção na esfera judicial, para onde esses homens são levados após a agressão cometida, como por exemplo, em casas prisionais onde este estudo foi realizado. A autora ainda acrescenta que a presença de um traumatismo psicológico anterior, geralmente na infância, pode fragilizar e tornar as pessoas, em geral, vulneráveis. Por exemplo, conviver com um pai agressivo para com a mãe, no caso dos homens, pode facilitar que a criança se torne um adulto igualmente violento, embora isso não aconteça em todos os casos. Nesse sentido, uma pesquisa recente (Stenzel & Lisboa, 2017) demonstra, por meio de um estudo de caso, o quanto uma história de vida marcada pelo desamparo e pela presença da violência desde tenra idade pode propiciar o estabelecimento de traumas e de prejuízos no processo de constituição psíquica. Segundo as autoras, parece improvável que se origine, na organização da personalidade, recursos psicológicos que possibilitem que os indivíduos sejam eficazes na tarefa de manejar situações de estresse ao longo da vida. Portanto, “diante de novas situações sentidas como desamparo (como a possibilidade do abandono da companheira), esses homens lançam mão da violência como alternativa protetora ao sentimento de sobrecarga de estímulos que não são capazes de tolerar” (p. 631). Martins-Borges, Boeira-Lodetti e Girardi (2014) também sugerem a compreensão de que o homicídio conjugal expressa a dificuldade do agressor em vivenciar rupturas, sentidas como abandono sem a possibilidade de elaboração psíquica.

 

Considerações finais

Tornou-se ao longo do tempo, e em função da frequência alarmante com que atos de violência acontecem em relações amorosas, imprescindível que os profissionais da área da saúde mental busquem conhecer os fatores que influenciam para o surgimento deste fenômeno. Esta demanda aponta para a importância do olhar profissional não se voltar apenas para a vítima de violência, mas também para o autor. Pesquisadores como Rosa et al. (2008) evidenciam que prevenir a violência doméstica significa também trabalhar a partir da óptica do agressor conjugal, demonstrando que homem e mulher são vítimas e autores de violência conjugal. Nesse sentido, o presente estudo constatou que a capacidade de controle e tolerância ao estresse se mostra como uma variável importante a ser considerada quando se pensa em medidas de prevenção e intervenção com agressores conjugais. Embora se trate de uma pesquisa qualitativa com uma amostra reduzida, os resultados apresentados apontam para uma das direções que merecem maior atenção dos pesquisadores e profissionais da área da saúde.

Acredita-se, portanto, que proporcionar espaços de escuta e reflexão a esses homens seja o primeiro passo no caminho da transformação daquilo que é herança do passado em patrimônio do futuro. Ou seja, é preciso oportunizar espaços de encontro em saúde mental que proporcionem vivências de respeito e de testemunho da dor que também vivenciam, legitimando e nomeando o sofrimento vivido por esses homens para que se possa iniciar a construção de outros modos de se vincular. A partir dessa diferença marcada pelo relacionamento interpessoal oferecido pelo profissional da área da saúde mental, novos recursos psíquicos podem ser criados e exercidos por agressores conjugais através do contato terapêutico. Desta forma, espera-se que não somente a capacidade de controle e tolerância ao estresse seja desenvolvida, mas tantas outras habilidades que os relacionamentos íntimos exigem para que se alcance prazer e satisfação ao invés do desamor e da violência.

 

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Endereço para correspondência
Gabriela Quadros de Lima Stenzel
E-mail: gabrielaqlima@gmail.com

Enviado em: 26/01/2018
1ª revisão em: 11/10/2018
2ª revisão em: 19/03/2019
Aceito em: 28/03/2019

 

 

1 Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

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