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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.23 no.1 Porto Alegre Jan./June 2019

 

ARTIGOS

 

Filiação no contexto do recasamento

 

Filiation in the remarrige context

 

 

Ana Luiza Tomazetti Scholz1, I ; Cristiane Bottoli2, II

I Universidade Federal do Rio de Janeiro
II Universidade Franciscana

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho teve como principal objetivo analisar o processo de filiação em famílias no contexto de recasamento e compreender quais fatores o influenciam nesse cenário. Foram entrevistadas duas famílias com configuração familiar mãe e padrasto, onde, as mulheres tinham uma filha em idade escolar, fruto do relacionamento conjugal anterior e os homens não possuíam filhos nem foram casados anteriormente. A metodologia adotou a pesquisa qualitativa e utilizou-se dois instrumentos: Entrevista Semiestruturada com o casal e a técnica do Desenho-Estória com as crianças.  A análise dos dados revelou que o processo de filiação no recasamento está atravessado pela necessidade de nomeação desse terceiro na cena familiar pela mãe e a autorização da mesma para que a filiação padrasto-criança se dê integralmente. Destacou-se também a diferença do tempo da criança (filiação) e do adulto (conjugalidade), bem como a necessidade de uma adoção afetiva, além do desejo de ser pai e ser filha.

Palavras-chave: Família, Filiação, Recasamento.


ABSTRACT

This article principal aimed was to analyze the process of filiation in families in the remarriage context. Two families were interviewed and had the following family configuration: mother and stepfather, where, the women had a daughter in school age, fruit from the previous conjugal relationship, and the men did not have children neither were previously married. The methodology used was the qualitative research and was drawn on two instruments: Semistructure Interview with the adults and the Draw-a-Story technique with the children.b The data analysis revealed that the filiation process in remarriage is crossed by the need of nomination of this third character in the family scene by the mother as well as her authorization so that the stepfather-child filiation can occur integrally. Also, this research highlighted the difference between the time of the child (filiation) and adult (conjugality), just as the need of a affective adoption of the child, besides the desire of being a father and being a daughter.

Keywords: Family, Filiation, Remarriage.


 

 

Considerações iniciais

Atualmente, as relações familiares têm aparecido nas mais variadas configurações, não obedecendo a um padrão estabelecido, mas se construindo por meio das relações interpessoais de afeto, que podem ser estabelecidas e revisitadas de acordo com a singularidade de seus membros, o que exige uma constante compreensão e adaptação dos envolvidos na instituição família. Em decorrência das modificações familiares, vislumbram-se novas formas de compreender alguns processos que permitem o desenvolvimento da instância família, bem como da parentalidade e da filiação.

Dentre as diversas formas de ser família na contemporaneidade, destaca-se o cenário do recasamento, que ocorre quando um dos cônjuges já foi casado e passou por um processo de divórcio, separação ou até mesmo falecimento do antigo parceiro. Sobre o contexto do recasamento, pode-se considerar que, quando um dos cônjuges já tem filhos da relação anterior, ocorre novo processo de configuração familiar, o qual incide na filiação da criança em relação a esse terceiro, que passa a ser parte integrante da família.

Esta pesquisa justifica-se então, pela necessidade de a área Psicologia apropriar-se da temática da filiação, pois, fontes consultadas na literatura brasileira, utilizando os indexadores “família”, “recasamento” e “novas configurações familiares”, revelaram escassez de estudos dessa área, que é majoritariamente abordada pelo campo do Direito. Entretanto, o Direito tem se debruçado principalmente sobre a questão da filiação em casos de adoção e homoafetividade. Nesse sentido, pode-se afirmar que ocorre certa disciplinariedade do conceito de filiação, o que faz com que os aspectos psicológicos, afetivos e simbólicos envolvidos no processo de filiação não sejam considerados em sua integralidade.

Além disso, é importante ressaltar que a filiação está intimamente vinculada à parentalidade e à família. Então, discutir a filiação em famílias recompostas é fundamental, uma vez que, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2014) revela que uma a cada cinco uniões matrimoniais são realizadas sob o contexto do recasamento. Também aponta o crescimento na proporção de recasamentos no total de uniões formalizadas das famílias brasileiras, que em 2004 era de 13,7% e uma década depois de 23,6% (IBGE, 2014).

Nesse sentido, se estabelece a necessidade de analisar como se dá o processo de filiação nas famílias recompostas, no intuito de compreender quais os fatores que influenciam esse processo no cenário familiar. A partir dessa investigação pretende-se estabelecer possibilidades práticas de intervenção psicológica com as crianças e suas famílias, com a escola e outros ambientes de convívio social, para que essa configuração familiar do recasamento e seus protagonistas, sejam reconhecidos como família e legitimados em sua filiação.

 

Método

Na metodologia fez-se uso da pesquisa qualitativa, a qual busca através da coleta de dados, identificar e alcançar os objetivos propostos. Essa escolha se justifica pois, de acordo com Minayo (2003), a pesquisa qualitativa se propõe a responder questões, a partir de uma preocupação com um âmbito da realidade que não pode ser quantificável.

Considerando o desenvolvimento da pesquisa, no que concerne a seleção dos participantes foi utilizado o critério de conveniência. Este critério caracteriza-se pela seleção dos participantes a quem o pesquisador tem acesso, sem qualquer rigor na forma de seleção, considerando que os mesmos representam o tema pesquisado e podem contribuir para que os objetivos da pesquisa sejam atingidos. Desse modo, os participantes selecionados para participar dessa pesquisa foram duas famílias de classe média, compostas pela criança e casal heterossexual (mãe biológica e padrasto). As crianças têm idade entre sete (7) e dez (10) anos e os adultos, por sua vez, se encontram na faixa etária a partir dos 30 anos, que segundo dados do IBGE (2014) é o período em que ocorre um crescimento na taxa de nupcialidade e recasamentos.

A coleta de dados da pesquisa foi desenvolvida através de dois instrumentos: a entrevista semiestruturada com os adultos e a técnica do desenho-estória com as crianças. Sobre a escolha pela entrevista semiestruturada com os adultos, pode-se afirmar que essa escolha busca obter informações de forma mais livre, bem como resultados que não estão condicionados à uma padronização de respostas. Com o objetivo de potencializar essa interação, com os adultos, pai/mãe biológico da criança e padrasto/madrasta, optou-se por realizar a entrevista com os dois participantes juntos, no intuito de obter um maior número de informações e, ainda, perceber possíveis convergências e divergências relacionado às respostas da entrevista. Além disso, outro fator importante na escolha por realizar a entrevista dessa maneira é a possibilidade de perceber aspectos referentes à conjugalidade do casal.

Com as crianças, por sua vez, a escolha pela técnica do desenho estória (D-E) se justifica por esta ser uma técnica de investigação sensível e que busca acessar as informações de forma vertical e focal (Trinca, 1976). Levando em consideração os objetivos dessa pesquisa, foi solicitado à criança que fizesse dois D-E, primeiramente, o desenho de sua família e ao finalizá-lo, contasse uma estória sobre o mesmo. Enquanto a criança conta a estória sobre o desenho, o pesquisador realizou perguntas à criança, com o objetivo de perceber como ela compreende sua família, o processo de recasamento de seu pai/mãe biológico e outros aspectos referentes ao D-E que puderam contribuir para a coleta de informações que se relacionam com os objetivos da pesquisa.

Após, foi solicitado que a criança fizesse um desenho de seu padrasto/madrasta e falasse, posteriormente, sobre o desenho através de uma estória. Esse D-E irá possibilitou que o pesquisador conhecesse como a criança percebe esse novo membro da sua família, a partir do contexto de recasamento. Além disso, permitiu que a criança pudesse falar – a partir das interrogações do pesquisador – sobre seus sentimentos acerca de seu padrasto/madrasta, como é o convívio entre eles, se realizam atividades juntos, entre outros. Esses desenhos, acompanhados de duas estórias, tiveram como objetivo permitir que a pesquisadora pudesse compreender quais os fatores que influenciam o processo de filiação diante de famílias recompostas e identificar como as crianças percebem esse terceiro nesta nova configuração familiar.

Tanto a entrevista semiestruturada quanto a aplicação da técnica do D-E foram gravadas. As mesmas foram transcritas para melhor compreensão dos dados coletados e os desenhos analisados em conjunto com as estórias transcritas. Aqui é importante ressaltarmos que, os instrumentos para coleta de dados foram aplicados sem tempo pré-determinado e foram realizadas devoluções aos participantes sobre os resultados da pesquisa.

Após, os dados foram dispostos em categorias de análise, as quais contemplam aspectos específicos que foram discutidos nesse trabalho e atendem ao objetivo de analisar como ocorre o processo de filiação em famílias recompostas, no intuito de compreender quais os fatores que influenciam nesse processo. Reitera-se que a pesquisa não buscou fazer estudos de caso no sentido de uma análise estrutural, pois não é esse o objetivo, no momento. Foram utilizados alguns recortes das entrevistas e da técnica do D-E para possibilitar pensar a dinâmica da filiação no recasamento.

A partir do material analisado definiu-se duas categorias. A primeira: Do tio ao amigo da mamãe: a importância da nomeação do terceiro para o processo de filiação, destaca o atravessamento das questões conjugais sob o processo de filiação; a relação das mulheres com a nova conjugalidade diante da destituição do primeiro casamento e a maneira como elas nomeiam o companheiro para suas filhas. Também apresenta o modo como as crianças foram percebendo o processo de recasamento e se relacionando com a nova cena familiar.

A segunda categoria, denominada: ‘É que as vezes no impulso, eu me deixo levar e chamo de filha né’: A relação padrasto-criança no processo de filiação, objetiva compreender as principais características e dificuldades que a relação de filiação convoca. Destaca as interações que ocorrem entre padrasto e filha na nova configuração familiar; o processo de identificação, de angústia, além das principais dificuldades e atividades por eles vivenciadas.

Para a realização desta pesquisa foram respeitadas as exigências éticas do estudo com seres humanos, conforme a resolução CNS nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde e a Resolução Nº 016/2000, do Conselho Federal de Psicologia (CFP). A mesma foi aprovada pelo comitê de ética sob o número 70437417.2.0000.5306.

 

Resultados e discussões

Com o objetivo de facilitar a compreensão dos dados analisados e preservar o termo de confidencialidade, as duas famílias participantes serão tratadas por nomes fictícios. A primeira família é composta por: Marta (mãe), Joana (filha) e Carlos (padrasto). Marta e Carlos estão juntos há pouco mais de dois anos e vivem em um contexto de recasamento, morando na mesma casa, acerca de um mês. Marta já estava separada de seu primeiro marido, Alberto, há alguns anos quando o mesmo veio a falecer. Ela conheceu Carlos um ano após a morte do ex-marido. O casal encontra-se na faixa dos quarenta anos, sendo que Joana tem 10 anos completos. A segunda família é formada por: Elisa (mãe), Clara (filha) e Milton (padrasto). Elisa e Milton vivem em um contexto de recasamento há três anos, porém, moram na mesma casa há pouco mais de um ano. Elisa tem 4 filhos do primeiro casamento, no entanto, apenas Clara, de 7 anos, que é a filha mais nova, mora com o casal. A mãe já estava separada do primeiro marido há um ano e meio quando começou a namorar Milton.

Do tio ao amigo da mamãe: a importância da nomeação do terceiro para o processo de filiação

Durante as entrevistas, destaca-se uma semelhança na fala das mães, que ao apresentar o novo parceiro as filhas referem-se a ele como tio ou amigo. Essa nomeação, contudo, desloca esse terceiro de um lugar afetivo ocupado em relação à mulher, e possivelmente, à criança, para um espaço não determinado, um limbo.

No caso de Marta, durante os primeiros meses de namoro, os encontros com o novo companheiro ocorrem às escondidas. Ela optou por apresentá-lo como um amigo quando a filha “Ela acordou e viu ele, ela tinha ido dormir; daí ele tava lá em casa e ela viu ele na sacada. Aí ela saiu e meio assustada assim. E no outro dia ela veio me perguntar, aí eu falei que era um amigo da mãe e tal e tal e tal” [sic].

No relato de Joana, durante a aplicação da técnica do desenho estória (D-E), a situação é lembrada como a primeira lembrança que tem de seu padrasto. Ela conta que ficou muito assustada e confusa, ao ver um homem estranho em sua casa beijando sua mãe – fato esse, não mencionado por Marta na entrevista. Joana lembra que, na manhã seguinte, questionou a mãe sobre quem era o homem e sua mãe lhe disse: “É só um amigo da mãe” [sic].

Sobre isso, Macedo (2014) destaca que a filiação está diretamente veiculada à uma inscrição de lugares: lugar mãe, de pai (padrasto) e de filho. Esses lugares são atravessados por um elemento determinante para que haja simbolização, laços afetivos e sociais, os quais irão compor a cena familiar: o desejo. No entanto, quando esse novo personagem não é inscrito na cena como alguém possível de ser desejado, há uma impossibilidade de nomeação desse terceiro enquanto padrasto.

O mesmo atravessamento ocorre com Elisa, quando, após vários meses de namoro e convívio com sua filha, leva Milton para morar na sua casa, ela diz para Clara que ele é um tio que vai passar a morar com elas. Porém, ao ser questionada quanto ao fato de a filha saber se eles eram um casal, Elisa responde que a menina, de fato, não sabia que eles estavam em um relacionamento. No entanto, ao entrar na conversa, Milton conta, sorrindo: “Ela sabia já...haha” [sic].  Ele sorriu por lembrar que foi Clara quem perguntou se ele queria ser namorado de sua mãe.  Nesse momento, Elisa relata: “O que aconteceu foi que um dia ela me chamou e disse: ‘Mãe, sabia que o Milton é apaixonado por ti?’ E daí ela disse assim ‘E eu quero saber se tu quer namorar ele!’” [sic], e Milton completa: “Foi ela (Clara) que deu um basta naquela situação...” [sic].

Em relação a busca de nomeação dos lugares filiais, Cardoso (2005) aponta a existência de um conjunto de fatores da filiação que depende da criança. O autor afirma que é ela quem transforma seus genitores ou responsáveis em pais ou, pelo menos, os convoca para isso. Essa convocação parte de Clara, ao questionar qual é o verdadeiro lugar ocupado por aquele tio que está morando com elas, também surge em Joana e é apresentada por Marta: “Eu fui falando pra ela ‘É um amigo da mãe’, mas depois de um tempo ela falou ‘Mas vocês não são só amigos! ’” [sic].

Destaca-se que o reconhecimento dos lugares e do outro, além de ser fundamental para o desenvolvimento da criança, também é um dos pilares da filiação. No entanto, quando esse terceiro é colocado como um ‘amigo’ ou um ‘tio’ percebe-se que pode estar havendo a imposição de uma barreira, a qual pode dificultar o processo de filiação entre as crianças e seus padrastos. Porém, o que é percebido através das entrevistas e da técnica do D-E é que, mesmo que as mães tenham nomeado para as crianças os padrastos como ‘um tio’ ou ‘amigo’, tanto Joana quanto Clara reconhecem neles uma posição de afeto, cuidado e proteção, ou seja, de filiação.

No D-E, Joana desenha Carlos ao seu lado na cena, eles estão sorrindo e com a mesma posição de braços, como se estivessem em sintonia. Clara, por sua vez, não desenha Milton, no entanto, enquanto desenha sua família ela fala das brincadeiras, do tempo que passa com ele, de como Milton lhe ajuda nos temas de casa e brinca de boneca com ela. Além disso, Clara faz um desenho acolhedor de Milton, no qual ele se encontra de braços abertos, como em uma posição de abraço, ou melhor, como se Milton estivesse indo abraçar Clara, a qual também desenha em Milton uma camiseta que tem um grande coração no centro.

Diante disso, compreende-se que a filiação, independentemente de ser biológica ou não, é, irrefutavelmente, afetiva, uma vez que surge a partir de uma construção cultural e afetuosa constante, através da convivência e da responsabilidade. A esse respeito Pereira (2000), afirma que “O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue” (p. 252). Similarmente, Brito (2008) destaca que as novas construções de paternidade e filiação independem de um relacionamento conjugal, o qual pode ser rompido e desfeito, enquanto o vínculo de filiação “deve ser indissolúvel” (p. 25).

O reconhecimento da filiação e a tentativa das meninas de inscreverem esse terceiro enquanto participante da cena filial, também se evidencia na entrevista de Elisa: “E aí um dia ela me disse assim: ‘Ah, agora eu tenho dois pai né mãe?’. E daí eu disse ‘É, tu tem teu pai e tem teu tio também, que cuida de ti né’. E aí no dia dos pais ela disse assim, que ia ter que fazer dois presentes” [sic]. Esse fato, somado a atitude de Joana, de questionar que Carlos não era apenas amigo da mãe, reitera a necessidade/desejo que as meninas têm de que suas mães as autorizem a chamá-los de pais ou padrastos. Elisa reconhece essa necessidade da filha e destaca: “Eu acho que ela tá esperando assim ó, que eu chegue e diga pra ela: Ó, tu pode chamar ele de pai, entende!” [sic].

Diante disso, pode-se refletir que essa nomeação/autorização faz parte de uma construção de diálogo e trocas entre a mãe e a criança. Segundo Pereira (2000) a filiação não é um dado e sim um estado que é construído. Facchin (2001) destaca que nesse constructo existe uma autoridade parental, a qual não se refere a um poder propriamente dito, mas sim, a uma relação entre a criança e seu cuidador primário, que revelará um conjunto de circunstâncias que caracterizarão o exercício desses direitos e deveres correspondentes à parentalidade e à filiação.

A autora supracitada reitera que, mesmo diante dessa autoridade parental, os filhos não são um objeto passivo da mesma, e sim “destinatários do exercício deste direito subjetivo, na modalidade de uma dupla realização de interesses do filho e dos pais” (Facchin, 2001, p. 223). Assim, uma das análises possíveis diante da realidade apresentada é de que a criança irá buscar, em seu cuidador primário – nos casos analisados, a mãe – a autorização para que elas possam nomear esse novo personagem, por quem se sentem vinculadas a um processo de filiação enquanto pai/padrasto.

Essa relação remete à cena primária do nascimento e desenvolvimento do sujeito, quando é a mãe/cuidador quem introduz o terceiro na cena, uma vez que a mesma já está representada nela. A esse respeito, Jerusalinsky (2014) destaca que o Eu dos bebês é uma instância que precisa ser constituída, bem como a relação do mesmo com o mundo e com o outro. Segundo a autora esse laço é constituído com o outro, primeiramente, a partir da mãe, que desloca seu olhar do bebê, voltando-o para seu parceiro, e posteriormente, nomeando-o para a criança como pai/cuidador.

Entende-se que a nomeação é determinante para que o processo de filiação seja inscrito na cena familiar como legítimo. Isso porque a filiação pressupõe a existência de um desejo de ser pai e de ser filha. Nessa perspectiva Jerusalinsky (2010) afirma que a ação que permite que o desejo se constitua “é o fato de que Outro coloque em jogo uma marca (o Nome), que aliena o sujeito de seu objeto, que o separa: essa marca é da ordem da linguagem. Linguagem não mais como função psicológica, mas sim como estrutura que captura o sujeito e o situa em relação à cultura” (p. 19).

Nesse sentido, quando buscamos compreender o processo de filiação e de recasamento a partir do que estabelecido como marca da linguagem e sua inscrição na cultura através da cena primária, consideramos que há uma importante diferença entre as cenas. O que se apresenta como diferença entre o contexto de recasamento e o contexto da cena primária é que, na situação da cena primária quem ocupa, ou melhor, assume a posição de protagonista no processo de nomeação é a mãe/cuidador, uma vez que a criança se encontra em um estado caracterizado como sendo perverso e polimorfo. Esse estado se refere, entre vários outros elementos, a uma posição de passividade da criança frente ao mundo e aos desejos, ou seja, existe nessa cena alguém que deseja pela criança antes que ela possa vir a desejar por si própria (Jerusalinsky, 2014).

Quanto ao processo de filiação e o desejo de nomear que ocorre no contexto recasamento, com crianças um pouco maiores, há uma significativa diferença, porque são elas que desejam e convocam o olhar deste terceiro, não a mãe. A partir dos dados analisados percebeu-se que as crianças possuem um estado ativo frente à nova cena familiar, ao questionar o lugar desse terceiro, mesmo que ainda precisem da autorização de suas mães para nomeá-lo como padrasto.

Uma das questões que emerge dessa análise é a razão pela qual tanto Marta como Elisa não conseguem nomear os companheiros como marido ou padrasto para as filhas. Talvez isso ocorra devido ao pouco tempo de recasamento - Marta está com novo companheiro há dois anos, mas, moram juntos há um mês, e Elisa tem um relacionamento de três anos e mora junto há um ano.  Outra hipótese está associada aos atravessamentos deixados pelo casamento anterior, já que Marta estava separada há um ano quando o ex-marido faleceu e ela se envolveu com o novo companheiro. Já Elisa, está separada há quatro anos, mas, não se sente completamente desligada do primeiro casamento, nem pronta para assumir seu novo relacionamento, por acreditar que o ex-marido não irá aceitar. Ela fala da dificuldade de diálogo com o ex-marido sobre o novo casamento e da culpa por não conseguir assumir integralmente sua nova relação.

Brown (2007) destaca que na família constituída em recasamento, com filhos de um relacionamento anterior, é muito difícil que o cônjuge divorciado consiga desligar-se emocionalmente, por completo, do casamento anterior, e que sempre existirão questões de ordem da parentalidade a serem resolvidas. Evidencia a necessidade de delimitar as fronteiras entre o casamento anterior e a nova conjugalidade, para minimizar os atravessamentos dessa relação.

As autoras Bernardi, Dias, Machado e Féres-Carneiro (2016) recordam que o recasamento é uma relação que se apoia no desejo de superar uma experiência de perda anterior e de construção uma nova história. Contudo, para que isso ocorra é preciso que haja a destituição da primeira relação conjugal. Destaca-se ainda que o recasamento, quando se refere à bagagem emocional, é composto por pelo menos três dimensões: a família de origem; as questões do primeiro casamento e o processo de separação; o período necessário para que uma nova conjugalidade se estabeleça.

Nesse sentido, Costa e Dias (2012) reiteram a importância, no contexto do recasamento, de considerar o tempo transcorrido entre o divórcio e a nova conjugalidade, bem como a forma como os membros da família vivenciaram esse processo. Barbiero e Baumkarten (2015) definem a formação da conjugalidade no recasamento como um processo complexo que envolve diferentes níveis de relacionamento e contextos. Reforçam que cada um dos parceiros deve recriar sua realidade individual, buscando novas referências comuns com o novo companheiro e uma identidade conjugal.

Féres-Carneiro e Neto (2010) consideram que a construção de uma identidade conjugal não é uma tarefa fácil, uma vez que envolve disposição, diálogo, tempo e compreensão. Destacam que quando há uma criança no contexto do recasamento, o estabelecimento da identidade conjugal acaba atravessada pela parentalidade e filiação da criança. Além disso, segundo Soares (2015), em famílias recasadas com filhos da relação anterior, as funções parentais antecedem a conjugalidade. O manejo das funções parentais é um processo que deve ser negociado entre os cônjuges, ao mesmo tempo em que eles precisam adaptar-se à nova conjugalidade e à construção da identidade enquanto casal. Essa, para Féres-Carneiro e Neto (2010), pode ser construída com desejos em conjunto, convivência e projetos de vida a dois.

Diante disso, quando nos propomos a analisar a dificuldade de Marta e Elisa em nomear seus companheiros para suas filhas, a partir do que os autores supracitados apontam como identidade conjugal, podemos compreender que essa dificuldade de Marta e Elisa pode estar relacionada ao fato da identidade conjugal das mesmas com seus companheiros ainda se encontra em processo inicial, visto que ambas estão há pouco tempo no contexto de recasamento, apesar de já morarem com os companheiros - Milton e Carlos. Nesse sentido, destacamos os elementos tempo e identidade conjugal, como elementos determinantes para analisarmos a dificuldade de autorização de filiação dos novos parceiros com suas filhas.

Outra possibilidade está associada ao tempo da criança (da filiação), que é diferente do tempo do adulto (conjugalidade). A criança se vincula às pessoas a sua volta com mais facilidade, sem receios prévios ou preocupações futuras, enquanto que o adulto, ao se relacionar, traz consigo sua bagagem emocional, suas perspectivas para o futuro, angústias e receios.

Segundo Jerusalinsky (2014) é fundamental conceber a diferença do tempo do adulto e da criança como uma variável a ser considerada quanto às inscrições psíquicas, o que não significa reduzir esta diferença a uma demarcação desenvolvimentista. Para a autora a constituição do sujeito convoca a inscrição em diferentes momentos lógicos, os quais não estão garantidos pelo fator cronológico.

Trata-se de uma diacronia necessária baseada no “transcurso de um tempo para que as inscrições que nele se precipitaram possam ser por ele postas à prova por meio de uma experiência que o implique subjetivamente” (Jerusalinsky, 2014, p. 25). Assim, pode-se entender que nos casos analisados, a inscrição da filiação se deu anteriormente à inscrição da nova conjugalidade, a qual ainda estava em processo de construção.

“É que às vezes no impulso, eu me deixo levar e chamo de filha né!?”: A relação padrasto-criança no processo de filiação

A inscrição da filiação no sistema familiar se dá quando o conjunto familiar, ou seja, os integrantes da cena, passam a considerar este terceiro (padrasto) como um personagem importante e significativo para o contexto familiar.  Sobre essa inscrição da filiação, destacamos o que Machado, Féres-Carneiro e Magalhães (2015) apontam como condição de parentalidade e filiação, que é a disposição constante de “suportar o que está solto, separado, dissociado, achando-se de um lado os laços biológicos e, de outro, os laços psíquicos e jurídicos” (p. 444). É nesse sentido que essa inscrição filial se apresenta como parte do conjunto de histórias, memórias e identidades que compõe a cena familiar, destacando a dissociação existente entre o biológico e o afetivo, considerando que a filiação não é necessariamente biológica, pois ela é construída ao longo do desenvolvimento da criança e também de seus responsáveis sendo então, primordialmente, afetiva.

Essa questão é demarcada ao longo das entrevistas realizadas, bem como o fato de que o processo de filiação é interposto pelo dia a dia, pela convivência e pelas relações de troca que vão acontecendo entre as crianças e seus padrastos, como pode ser percebido na fala de Milton: “Quando tô em casa é Milton pra cá, Milton pra lá. Se eu tiver que ir lá fora, ela vai lá, me chama. E se tiver que ir ali no quarto dela, ela me chama e eu vou lá. A minha atenção tá sempre com ela. Ela me enxerga e já vem correndo, me abraça né. E é aquela relação assim, como se fosse um pai de verdade né” [sic].

Verifica-se que a posição de Milton frente à convocação de Clara corrobora com o proposto por Miranda e Cohen (2012) de que, para haver filiação é necessária uma posição de adoção desse filho por parte dos pais. Também, que haja, por parte da criança, uma convocação de que eles saiam do lugar comum e passem a ser pais. É nessa relação de afeto e troca que a família se instaura, tornando-se um espaço de criação, desenvolvimento e crescimento mútuo.

Para Rodrigues, Gomes e Oliveira (2017), a família pode ser compreendida como uma organização filiativa, construída no ser-fazer, no dia a dia. É através dessa construção de lugares de cuidado e inscrição que Silva e Sólis-Ponton (2004) afirmam se dar o processo de filiação, perpassado intrinsecamente pelo desejo.

Pode-se pensar no processo de filiação no recasamento como uma escrita em conjunto, entre as crianças e seus padrastos, na qual a criança compartilha seus desejos com seus cuidadores e coloca no enredo “de alguma forma, a condição de adotado no campo do desejo do outro” (Miranda & Cohen, 2012, p. 66). Sobre isso, destaca-se a resposta de Milton: “É que as vezes no impulso né. Eu me deixo levar e chamo de filha né, e ela fica com os olhos brilhando né?!” [sic].

Nesse sentido, Morelli, Scorsolini-Comin e Santeiro (2015) afirmam que a filiação, independemente da condição biológica, é uma posição afetiva, possibilitando que a criança conviva com diferentes adultos exercendo os papéis parentais, sempre vinculados ao estado de filiação. Sobre os lugares parentais e a constituição da paternidade, Borges (2005) ressalta que a única exigência para se tornar pai ou mãe é que haja o desejo pelo filho.

Acerca do envolvimento parental no processo de filiação, Milton destaca seu envolvimento com Clara na realização de atividades e também na maneira de comunicar a ela orientações sobre suas responsabilidades e ou correções quando algo não está certo. Nesse sentido, Brito (2008) afirma que assim como a paternidade não deve ser compreendida como uma questão pontual e delimitada, a filiação deve implicar uma rede de relações, obrigações, direitos, deveres e vínculos que são estabelecidos e que convocam diversos membros da família.

Sobre a presença de crises, Carlos destaca que ao chamar a atenção de Joana e ela rebate, dizendo para ele não se meter: “Eu tinha feito alguma crítica a ela né, alguma coisa que ela não podia fazer, que tava fugindo as regras e tal, e ela foi agressiva: Tu não tem que te meter, tu não é meu pai!” [sic]. Marta também recorda dificuldades enfrentadas no início da relação entre Carlos e Joana: “Ela não dava tchau, não dava oi, virava as costas e saía. Queria chamar atenção, mas agora que ele tá morando com a gente ela brinca de ensinar o Carlos a ser mais carinhoso, porque ele só faz piada e daí ela ensina a dar boa noite, a ter que abraçar” [sic].

Entende-se que essas adaptações durante o processo de filiação podem ser, como percebidas nas entrevistas realizadas, permeadas pelo sentimento de angústia. Conforme propõe Ribeiro (2016) ao processo de vinculação podem ser atribuídos aspectos tanto positivos e criativos, como geradores de sofrimento. Recorda que é característica dos vínculos humanos a concomitância e alternância tanto do amor, como do ódio, podendo predominar a amorosidade ou não, independentemente da forma como se constituem.

A angústia está no relato de Marta quando fala das dificuldades do processo de filiação: “Dificuldade foi ela ficar irritada; tinha momentos assim que ela ficava muito irritada quando ele tava lá, ela gritava, chorava, fazia escândalo” [sic]. Sobre essa questão, Ribeiro (2016) lembra que o desconhecido, no caso a nova cena familiar, pode acirrar angústia. A autora destaca ainda que esse estranhamento refletido em irritação e choro é resultado do arsenal de defesas do eu frente ao novo, pois “[...] o apego ao que já conhecemos muitas vezes é mais forte do que imaginamos ou do que gostaríamos” (Ribeiro, 2016, p. 103).

Porém, com o tempo e a autorização de Marta e o posicionamento de Carlos, a relação de filiação foi se legitimando e a cena familiar reconfigurada: “E agora é “papito”. E aí ela começou, ela percebeu que ele se importava, eu acho que foi assim. Mas tinha momentos dessa dificuldade, que daí quando ele tava lá ela agredia, ou a mim: ela não cumpria as regras, ela procurava fazer alguma coisa pra desestabilizar o momento daí a gente acabava ficando, se estressava né, eu e ela. Mas agora eu acho que assim, a relação é outra né. Também porque o Carlos tá morando com a gente, ela agora assumiu essa coisa de que é o pai, o papito” [sic].

Entende-se que assumir essa posição, seja de pai ou de papito, é também uma posição de acolhimento da criança das modificações familiares que se apresentam ao longo do processo de filiação. Nesse sentido, Ceccarelli (2007) afirma que não há acolhimento possível para a criança sem que haja o equilíbrio de suas pulsões ambivalentes, presentes em qualquer ligação objetal.

Além disso, a ambivalência e a alternância entre o amor e o ódio fazem parte da característica dos vínculos humanos, podendo predominar um ou outro temporariamente, independente da forma como este vínculo se constitui (Ribeiro, 2016). Esses vínculos provocam tanto aspectos criativos quanto outros geradores de angústia, assim como ocorre com Joana frente à nova configuração familiar. No entanto, Marta destaca que a tensão de Joana muda quando Carlos se coloca e legitima seu papel na cena familiar: “Isso era uma coisa que a gente viveu, e aí eu acho que mudou quando o ele começou a se posicionar mais” [sic].

O posicionamento de Carlos mostra o momento em que ele, através do processo de filiação, reconhece a convocação feita por Joana e, movido pelo desejo de ser pai, inscreve na cena sua posição frente à um desentendimento familiar: “Então essa dubiedade entre ela querer uma pessoa pra brincar e achar que tu vai ta ali só pra brincar e que ela não vai ter algo que esse terceiro vá impor limites né? E aí essa foi uma questão que acho que aqui é o momento de firmar algumas posições do que que eu penso e do que que eu acho que deva ser né, sei lá, de uma criação de uma criança né” [sic].

O deslocamento de Carlos do lugar de amigo da mãe para uma posição de responsabilidade frente à Joana, através de imposição de limites e responsabilidades, promove mudança de olhar da menina para ele, como destaca Marta: “Aí eu noto que ela mudou ali entende? Eu acho que foi um marco pra ela no sentido de que daí ela passa a perceber que ele realmente assumia uma posição com ela que talvez antes ficava nessa coisa só do brincar” [sic].

O posicionamento frente à criança e ao lugar parental também pode ser percebido na fala de Milton: “Eu digo que tem as atividades pra fazer, tem responsabilidade né. De vez em quando ela dá uma desnorteada e eu digo: Não, assim não pode, não pode ser assim. E aí tá, ela concorda tudo, fica tranquila” [sic]. Nesse sentido Pittman (1994) salienta que tornar-se pai na contemporaneidade não é uma tarefa fácil, principalmente no contexto do recasamento, onde há a necessidade de uma reafirmação do lugar conjugal e parental deste terceiro.

Por outro lado, para Carlos, ser pai/padrasto ainda soa como um olhar de estranhamento em relação ao seu papel parental: “Se ela me reconhece como pai, é a representação que eu to fazendo pra ela, mas eu ainda não... Eu acho ainda uma posição estranha né. Pra mim ela é estranha. Antes de conhecer a Marta eu nunca tinha assim, como certas pessoas tem: ‘Ah eu vou um dia casar e ter filhos’, mas eu acho que agora ta numa construção assim. A gente ta aprendendo a construir juntos essa história” [sic].

De acordo com Barbiero e Baumkarten (2015), a transição para a paternidade envolve uma infinita gama de questões e transformações, que são compreendidas ao longo do tempo e elaboradas por meio do diálogo conjugal e do desenvolvimento do processo de filiação. Nesse sentido, acreditamos que Carlos se encontre no início desse processo se conhecer como pai e de assumir este papel frente a Joana. Destacamos a questão da temporalidade e desse estranhamento de Carlos frente à sua relação com Joana a partir do que Castello (2006) ressalta ao abordar a temática do recasamento, afirmando que é através da convivência com os filhos, a qual muitas vezes é uma tarefa desafiadora para os pais/cuidadores, que é possível consolidar e estabelecer os laços cruciais para o ciclo vital da família e seu desenvolvimento.

Esse estranhamento e a posição mais retraída frente ao processo de filiação pode ser percebido no desenho que Joana faz de Carlos, que é representado grande, sorrindo e de braços abertos. É como se ela estivesse solicitando que ele se coloque mais ativamente no lugar parental, acolhendo-a e construindo o processo de filiação. Sua história sobre o desenho trata de um dia que a mãe teve que trabalhar até mais tarde e ela ficou com Carlos jogando no computador, decidindo e preparando o jantar e ainda fazendo os temas de casa, solicitando sua ajuda dele sempre que necessário.

Segundo Moura e Oltramari (2005) o lugar de pai na atualidade esta atravessado por três níveis: na procriação, no estabelecimento da filiação e no exercício da autoridade ou responsabilidade parental. Deste modo, percebe-se que as funções parentais vão além dos papeis exercidos exclusivamente pelo pai e pela mãe, ou seja, das tarefas culturalmente esperadas - cuidados físicos, educação, sobrevivência, segurança.

As mesmas são posições assumidas por adultos que desejam a criança e que são continentes, sendo capazes de exercer os cuidados físicos e psíquicos, como no caso dos padrastos nas situações de recasamento (Borges, 2005). Marta destaca que pelo desenvolvimento dessas funções a relação de filiação vai se estabelecendo entre a filha e o padrasto: “Ela começou a contar que o Carlos era o padrasto dela e não sei o que. Mês passado tu começou a buscar ela sozinho né? E não sei assim, tem algumas coisas que as vezes: as brigas, as birras dos dois, mas aí eles criaram uns códigos - brincam, brigam, brincam” [sic].

Segundo Brito “a criança forma sua identidade junto àqueles que se dizem seus pais, compreendendo e construindo sua história a partir da história de sua família” (Brito, 2008, p. 47). Há um processo criativo que permeia a parentalidade e a filiação também pode ser compreendido como um espaço de investimento de afeto, tempo e interesse. Carlos conta: “Eu dei algumas aulas de violão pra ela, só que ela não gostou muito. Não que não gostasse, mas é que ela gosta de cantar. Ela achava que gostava de violão porque eu tocava, mas ela gosta de cantar” [sic].

Na fala de Carlos é possível reconhecer o processo de identificação e filiação que se inicia na cena familiar, desde o momento em que Joana acredita gostar de violão, até reconhecimento que o desejo de Joana é cantar e não propriamente tocar. E mais, que seu interesse pelo violão surgiu a partir da identificação com o padrasto e o desejo de trocas e afetos com ele.

Elisa também destaca a participação do companheiro nos cuidados com a filha: “Assim, nas atividades ele é cem por cento participativo. Muito participativo, dá pra dizer assim, que agora ela tem um pai, uma presença masculina né” [sic]. Ou seja, conforme Brito (2008) destaca, a paternidade e a filiação são melhor definidas pela verdade social e do convívio cotidiano do que pela realidade biológica.

Borges (2005) reforça que a paternidade é muito mais um processo construído na convivência com a criança, nos desafios, nas lições aprendidas com ela, nos limites e interdições inscritas, na historicidade transmitida e no afeto trocado do que uma determinação social e de gênero. Nesse sentido, Krob, Piccinini e Silva (2009) enfatizam que os principais elementos que compõe a filiação são: a participação dos pais/cuidadores na vida do filho, a orientação e aconselhamento, o ensino dos princípios morais, religiosos, educacionais e éticos, além da amizade e companheirismo.

Esses elementos podem ser reconhecidos no relato de Milton: “Desde o boa noite, ela não vai dormir enquanto eu não dou boa noite. Tem que ir lá dar boa noite. Mas a nossa relação, todos da família assim, é tudo 100%” [sic]. Percebe-se que o desejo da criança, em relação ao processo de filiação, é de que essa inscrição filial se estabeleça de forma estável e positiva (Brito, 2008).

Nesse sentido, a necessidade de estabilidade a qual a autora supracitada se refere, necessidade esta que é proveniente do desejo de filiação da criança com este novo membro da família, também pode ser percebida na recordação de Milton: “A Clara fica preocupada quando eu não chego, pergunta se eu vou viajar ou não. Mas é bom isso aí, eu gosto disso aí” [sic]. Estes sinais de preocupação e cuidado de Clara na fala de Milton, demonstram que há entre eles um processo de filiação em curso, uma relação filial que se estabelece no dia a dia, no diálogo e no afeto, reiterando assim nossa hipótese de que ao falarmos da filiação e processos parentais deve-se considerar o amor como propulsor principal, uma vez que “o amor não é biológico. Ele é feito do que não se toca nem se chama: afetos, fantasmas. Subjetivo, vem repleto de alma e perguntas” (Gutfreind, 2014, p. 138).

 

Considerações finais

A partir da análise das informações apresentadas nessa pesquisa, pode-se compreender que a filiação, no cenário do recasamento, está atravessada por alguns elementos importantes. O primeiro deles é a dificuldade de as mães entrevistadas em assumirem sua nova conjugalidade e, consequentemente, a nova possibilidade de filiação, para suas filhas, uma vez que nomeiam o parceiro como tio ou amigo. A dificuldade em nomear o terceiro que entra na cena familiar pode estar relacionada ao pouco tempo de destituição da conjugalidade anterior ou ao tempo recente da nova conjugalidade, considerando que eles ainda estão construindo sua identidade conjugal.

No entanto, percebe-se diferença significativa entre o tempo do adulto (conjugalidade) e o tempo da criança (filiação), em relação às possíveis interfaces das relações familiares. Ao considerar o tempo da criança, entende-se que o processo de filiação ocorre de maneira mais fluida e rápida, perpassando o desejo de inscrição do novo personagem na cena, uma vez que são elas quem convocam o novo companheiro da mãe para a parentalidade e para a filiação. Já o tempo do adulto, é mais demorado, pois, leva em consideração a bagagem emocional do casal, os medos e receios frente ao futuro e a nova conjugalidade. Ou seja, o processo de parentalidade e filiação antecede a conjugalidade quando há, na relação, filhos de um casamento anterior.

Porém, reitera-se que as filhas – Joana e Clara – apesar de convocarem o processo de filiação, ainda buscam em suas mães a autorização e nomeação deste terceiro, para que possam então conceber este processo integralmente. Diante disso, entende-se que Marta, após um período de adaptação e reformulações pessoais e conjugais, consegue nomear Carlos como seu marido, autorizando simbolicamente que Joana possa chamá-lo de pai. Elisa ainda não consegue nomear Milton como seu novo companheiro, fazendo com que Clara continue chamando-o de tio, embora, tanto Milton como Clara, já tenham ‘escorregado’ e se chamado de pai e filha.

Sobre o processo de filiação entre padrasto-criança, compreende-se que está fundado no afeto, na convivência diária e, principalmente, no desejo de ser pai e ser filha. Deste modo, a filiação pode ser percebida como um espaço relacional, onde são construídos novos papéis, repletos de descobertas, ressignificações e também crises e angústias. O processo de filiação convoca uma posição pautada no desejo de adoção filial da criança por parte do adulto. Quanto aos padrastos entrevistados percebe-se que Milton já assumiu a posição de pai de Clara, apesar de Elisa ainda não o nomear como padrasto para a filha; enquanto Carlos ainda está no início do processo de filiação, buscando compreender e se apropriar dessa posição paterna, considerando também o fato de ter se mudado recentemente para a casa de Joana e Marta.

Entende-se, portanto, que o processo de filiação é construído no dia a dia, no ser/fazer. É um processo que demanda: nomeação, cuidado, tempo, inscrição de lugares, limites, mas, principalmente, desejo. Desejo da mãe para que ela autorize simbolicamente a filiação entre o padrasto e a criança; desejo do padrasto pela parentalidade da criança; desejo da criança em inscrever esse terceiro em sua história filial. Ou seja, o processo de filiação convoca uma rede de afetos e de afetação, a qual encontra-se interligado e compartilhado entre todos membros presentes na cena familiar.

Assim, compreender como ocorre o processo de filiação no contexto do recasamento é importante para a Psicologia enquanto área do conhecimento uma vez que, ao ouvir as narrativas das famílias entrevistadas, há a possibilidade da Psicologia se reinventar enquanto ciência que é atravessada pela cultura. E como tal, buscar contribuições para que a nova forma de ser família no cenário do recasamento e de filiação na contemporaneidade possam ser legitimadas e reconhecidas, ampliando conceitos e desfazendo normativas pré-estabelecidas, repensando as práticas e as possibilidades de atuação da Psicologia frente a elas.

 

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Endereço para correspondência
Ana Luiza Tomazetti Scholz
E-mail: anascholz@gmail.com

Cristiane Bottoli
E-mail: cbotolli@hotmail.com

Enviado em: 23/08/2018
1ª revisão em: 04/04/2019
2ª revisão em: 18/06/2019
Aceito em: 25/06/2019

 

 

1 Psicóloga. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2 Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora e coordenadora adjunta do curso de Psicologia da Universidade Franciscana.

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