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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.23 no.2 Porto Alegre jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

As especificidades do casal militar: uma contribuição à psicoterapia conjugal1

 

The couple military specificities: a contribution to couple psychotherapy

 

 

Marilia Reginato Gabriel2, I; Marli Kath Sattler3, II, III

I Hospital de Aeronáutica de Canoas (Força Aérea Brasileira)
II Domus - Centro de Terapia de Casal e Família
III Associação Gaúcha de Terapia Familiar

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir sobre as especificidades do casal militar com o intuito de contribuir para o atendimento em psicoterapia desses casais. O interesse em aprofundar nesse campo da conjugalidade é devido à atuação da primeira autora no contexto militar, atendendo em psicoterapia de casal os militares de um específico braço das forças armadas brasileiras. Ao atender aos casais de militares, percebeu-se que há aspectos singulares na dinâmica conjugal atravessados pelo contexto militar. Os afastamentos temporários por missões, transferências, autorrepresentação de solidez moral, diferenças de poder, pequena rede de apoio são questões discutidas no artigo. Espera-se que esse trabalho possa contribuir para a atuação da psicologia com casais de militares, atentando para os atravessamentos do militarismo na dinâmica conjugal.

Palavras-chave: Conjugalidade, Casal militar, Militarismo.


ABSTRACT

This article aims to reflect on the specificities of the military couple with the intention of contributing to couple psychotherapy. The interest in deepening in this field of conjugality is due to the experience of the first author in the military context, attending in couple psychotherapy the military of a specific arm of the Brazilian army. The research indicates that there are singular aspects in the conjugal dynamics crossed by the military context. The temporary leave, city changes, self-representation of moral solidity, power differences, small support network are issues discussed in the article. It is hoped that this work can contribute to the work of psychology with military couples, paying attention to the crossings of militarism in the conjugal dynamics.

Keywords: Conjugality, Military couple, Militarism.


 

 

Introdução

Ser um casal, mesmo que nas mais distintas configurações, ainda é um objetivo de muitas pessoas, não tanto quanto fonte de estabilidade financeira ou meio para ter filhos, como mais antigamente, mas como um lugar emocional, de encontro de apoio e compartilhamento de momentos e emoções (Ozório, Féres-Carneiro & Magalhães, 2017). Os motivos para ser um casal e o modo de viver a conjugalidade variam no lugar e no tempo em que acontece, o que indica a importância de levar em conta o contexto cultural e histórico em que o casal se encontra (Braz, Dessen & Silva, 2005; Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt & Sharlin, 2004). Neste trabalho será considerado como contexto principal o sistema militar, o qual terá suas características principais detalhadas a seguir.

A psicoterapia de casal também surge e se transforma juntamente com as mudanças nos padrões relacionais, uma vez que atualmente é possível conversar, negociar, expor os sentimentos frente ao parceiro e a um terceiro, sem que soluções e o lugar de poder e de decisão sejam obviamente masculinos (Diniz Neto & Féres-Carneiro, 2005; Féres-Carneiro & Diniz-Neto, 2008). De certa forma, esses preceitos da psicoterapia de casal, especialmente de abordagem sistêmica, vão de encontro com o sistema militar tradicional, o que a torna um espaço ainda mais relevante para facilitar e encorajar padrões relacionais que protejam o casal e promovam bem-estar.

Ao considerar tais aspectos introdutórios, este artigo tem como objetivo refletir sobre as especificidades do casal militar com o intuito de contribuir para o atendimento em psicoterapia desses casais. O interesse em aprofundar nesse campo da conjugalidade é devido à atuação da primeira autora no contexto militar, atendendo em psicoterapia de casal os militares de um específico braço das forças armadas brasileiras. Desta forma, a presente discussão advém do entrelaçamento da literatura específica da área com a prática da primeira autora, baseada nos atendimentos clínicos, sob orientação da segunda. Foi realizada uma revisão narrativa, a qual objetiva enfocar em um conjunto de questões relativas a um tópico em específico (Ribeiro, 2014). Esse tipo de revisão é entendido como adequado para descrever e discutir um determinado assunto, de forma contextual ou teórica, baseado na compreensão crítica do autor que se propõe a analisar os materiais selecionados, sem a sistematização dos dados, comunicação das fontes e outros critérios característicos de revisões sistemáticas (Ribeiro, 2014).

Ao atender os casais de militares, aqui delimitados como um dos membros do casal sendo militar de carreira, percebeu-se que há aspectos singulares na dinâmica conjugal atravessados pelo contexto militar, ao mesmo tempo em que se observa a existência de semelhanças com o que se espera de casais de forma mais genérica. Assim, surgiu o interesse em compreender os elementos singulares do casal militar baseado na experiência profissional e na literatura nacional e internacional. Espera-se que esse artigo possa contribuir para o trabalho da psicologia com casais de militares, atentando para os atravessamentos do militarismo na dinâmica conjugal.

 

Uma breve introdução ao contexto militar

Na revisão realizada por Bóia (2014), o contexto militar possui particularidades em comparação ao meio civil. Um dos aspectos que mais se destacam é a hierarquia e a disciplina, princípios norteadores do militarismo. Para tanto, aspectos relacionados à dedicação exclusiva e integral, o comprometimento em dar a própria vida em serviço da proteção do seu país, exigem, de certo modo, uma forma ímpar de lidar com os sentimentos, com incentivo a que sejam negados. Além disso, essas características implicam em não haver horário ou período para o trabalho, sendo chamados em quaisquer momentos, imperando as necessidades do país. Inclusive, os militares têm um sistema de regulação de trabalho completamente diferente da sociedade civil, no qual não há remuneração por hora extra, por exemplo, mas sim por disponibilidade integral (Santana, 2013). As implicações desse funcionamento com alterações constantes da rotina impactam na vida do cônjuge, sendo este também militar ou não, e também para a família.

Outro aspecto a ser destacado é o sentimento de irmandade, sendo o quartel considerado uma segunda família, a qual, às vezes se complementa a família do militar, mas também pode competir com esta, havendo implicações para a dinâmica conjugal e familiar (Bóia, 2014). Silva (2013) destaca um “modelo de família militar”, entendendo que a “Família Militar” engloba por vezes as relações internas da casa (cônjuge, filhos, parentes), internas à caserna (relações do quartel) e entre elas. Embora seja uma vida de muitos sacrifícios, o sistema militar também oferece oportunidades importantes para o militar e sua família (Bóia, 2014). Há subsídios de moradia e possibilidade de crescimento na carreira, bem como a garantia de pensão para a esposa quando o militar morre, além de haver um sistema de saúde para atender exclusivamente os militares e seus dependentes (Bóia, 2014).

Com relação aos deslocamentos, como missões em outros locais do país ou em outros países, nas quais os militares passam dias ou meses distantes das famílias, esses são considerados normativos para a vida do casal que vivência o militarismo (Bóia, 2014). Mesmo considerando que os deslocamentos são esperados, não se pode descartar o caráter estressor deste tipo de atividade, tanto para o próprio militar, como para a família (Bóia, 2014; Oliveira, 2017).

Outro aspecto que deve ser considerado é a presença da mulher nas forças armadas. Somente a partir de 1980 a mulher pode ingressar no sistema militar, sendo que até a atualidade a mulher não tem alistamento obrigatório como os homens aos 18 anos, podendo ingressar nas forças somente a partir de um certo nível hierárquico (D’Araújo, 2003). Isso significa o quanto o militarismo ainda é um espaço predominantemente masculino, em que a mulher tem um lugar marcado, mas como de esposa e parceira do marido militar na sua carreira (Santana, 2013).

Deste modo, facilmente é possível relacionar a instituição militar com uma estrutura patriarcal de família (Santana, 2013). Os papéis são mais rígidos e baseados na divisão por gênero, ou seja, o homem teria um lugar em que garante a “lei e a ordem”, sendo o provedor, e a mulher é a mãe que cuida dos filhos, do marido e da casa, garantindo a harmonia da família. Assim como a estrutura patriarcal das famílias em geral vêm mudando, da mesma forma acontece com a estrutura das famílias militares. É perceptível que as mulheres estão se colocando como provedoras, da mesma forma como os homens também estão ocupando seus lugares enquanto pais afetivos e participativos do cotidiano da família.

 

As especificidades do casal militar

Dentre as características militares que teriam mais impacto na vida familiar e conjugal, Silva (2013) indica como principais: transferências territoriais frequentes e separação temporária da família, autorrepresentação de solidez moral e obediência acima de qualquer direito ou dever pessoal. Cada ponto destacado será detalhado a seguir, buscando entender melhor o impacto na dinâmica conjugal, considerando aqueles casais que vivem um relacionamento heterossexual, no qual o homem é militar.

Inicialmente, com relação às transferências de cidade, estas acarretam uma dificuldade de adaptação a cada novo lugar e emprego para os cônjuges, especialmente se são civis (Silva, 2013). Silva (2013), a partir de pesquisa realizada com 19 casais heterossexuais de militares do exército brasileiro (cuja amostra incluiu casais em que o homem é militar, casais em que ambos são militares, bem como casais em que apenas a mulher é militar) e de revisão de literatura da área, destaca as implicações da vida militar para as mulheres. Nos casos em que o homem é militar e a mulher civil, primeiramente, há a concepção de que a esposa deve acompanhar o marido no decorrer das movimentações pelo território brasileiro, o que acontece a cada dois ou três anos em muitos casos e, portanto, a família viveria em trânsito constante. Outro aspecto é de que a mulher teria a função de unir a família, cuidar da casa, do marido e dos filhos, mesmo que trabalhe.

Segundo Oliveira Adão (2010), há predominantemente dois grupos de esposas de militares, o primeiro seria de esposas dos oficiais mais antigos (superiores), que parecem se adequar mais aos projetos dos maridos, enquanto o segundo grupo é composto de esposas mais jovens, que estabelecem uma relação social mais ampla, tendo mais possibilidade de realizar os seus próprios projetos. Talvez essa diferença possa ser explicada pelo fato de os militares mais antigos mudarem com mais frequência de cidade, assumindo cargos de alto comando, bem como vir de um momento histórico em que o trabalho feminino pouco era reconhecido. Outra característica apontada por Silva (2013) é a frequência em que as esposas, mesmo não sendo militares, são filhas ou parentes de militares, da mesma forma em que os filhos seguem a carreira dos pais ou casam com pessoas ligadas ao militarismo (filhos ou próprios militares).

Estes dados são reforçados por Santana (2013), a qual entrevistou seis esposas de militares da força aérea brasileira, que viviam um relacionamento heterossexual com duração entre sete e 30 anos. As esposas relataram o quanto os valores militares invadiam a organização familiar, na qual havia uma rigidez no cumprimento das regras e da hierarquia, dizendo que o marido era “certinho” (p. 48). Na criação dos filhos as diferenças dos papéis ficam mais evidentes, na qual o maior poder é do pai militar, tomando as decisões sozinho, colocando a esposa no mesmo nível hierárquico que os filhos. Segundo a autora, essa disparidade acarreta em conflitos conjugais, bem como em sentimentos negativos para a esposa como solidão, cansaço, aborrecimento.

A pesquisa de Santana (2013) também indica aspectos citados como positivos pelas esposas. A estabilidade financeira é um dos pontos mencionados, mesmo que alguns militares passem frequentemente por avaliações e por reengajamentos, até alcançar a estabilidade de fato. Ser disciplinado, solidário e cuidadoso são aspectos identificados como positivos nos maridos e advindos da vida como militar. Observando os pontos citados como positivos e negativos inseridos no contexto militar, compreende-se que, para as esposas, a disciplina é positiva, enquanto a hierarquia, negativa – sendo que, para o militarismo, disciplina e hierarquia regem o sistema (Santana, 2013).

Com relação às separações temporárias por missão, estas implicam na ausência do militar no núcleo familiar, bem como nos retornos à família, exigindo de todos uma grande adaptação (Najera, et al., 2017). Segundo a autora, o cônjuge que permanece em casa necessita tomar as tarefas e responsabilidades daquele que saiu para uma missão, o que é mais evidente quando o casal tem filhos. Quando o militar retorna, novamente a família precisa realocar os papéis: este movimento é conhecido como “família acordeão”, definido por Minuchin e Fishman (1990) como aquela família que um dos pais permanece afastado de casa por longos períodos, enquanto o outro assume todas as funções adultas da casa, e que, ao regresso, tem a tarefa de retomada de suas atribuições originais. Esse movimento de concentração e de distribuição é percebido especialmente com relação ao cuidado dos filhos, evitando que haja alguma privação devida a ausência do pai ou da mãe (Minuchin & Fishman, 1990).

Um estudo que exemplifica essa especificidade foi o realizado por Bóia (2014), com 13 esposas de militares do exército português, com o objetivo de conhecer o impacto da participação dos militares portugueses numa missão internacional para a dinâmica do casal. Cabe ressaltar que, mesmo que as forças armadas portuguesas estejam constantemente envolvidas em operações de paz, entre outras missões que envolvem a União Europeia, a cultura militar se aproxima da vivida no Brasil (Oliveira, 2017). A pesquisadora verificou que mudanças na dinâmica do casal iniciaram ainda na preparação para a missão, passando pela separação e finalizando em um processo que a autora chamou de reintegração. Foram percebidas algumas dificuldades das esposas, geralmente relacionadas com o afastamento emocional, bem como dificuldades na comunicação, especialmente quando as missões eram em locais sem acesso a telefone e internet. No entanto, a maior parte dos relatos indicam aspectos positivos da missão para o casal, como sentir um fortalecimento na relação de casal, com um aumento da intimidade a partir de troca de sentimentos e afetos, empatia, proximidade, desde antes da partida até a reintegração. O estudo destaca a importância dos meios de comunicação para a manutenção da relação do casal durante a missão e o apoio social dos amigos e familiares. Características individuais das esposas também contribuem para que o afastamento não tenha tanto impacto na dinâmica conjugal, como ter uma atitude positiva com relação à missão, bem como ter experiência de outras missões.

Ainda sobre contexto dos afastamentos por missões, Santana (2013) indica que, devido ao sentimento de solidão vivenciado pelas esposas no início do casamento, os casais acabam engravidando do primeiro filho. De certa forma, percebe-se que os militares casam mais cedo comparado com outros casais, e também engravidam em um período mais curto que outros casais. Na pesquisa realizada por Santana (2013), o tempo entre conhecer-se, namorar e casar teve variações de um mês a um ano. Compreende-se esse movimento pelo fato de os homens entrarem adolescentes ou muito jovens nas forças armadas, um lugar muito diferente da sociedade civil, com valores e regras muito rígidas, buscando apoio emocional no casamento. Também se pode explicar por parecer haver um status mais valorizado para aqueles que têm esposa e filhos, bem como ganhar o direito, com acréscimo financeiro, de realizar as transferências juntamente com a companheira. No início do casamento, a expectativa de estarem mais próximos pode ser muito frustrada com as missões, sendo que o filho preencheria esse espaço (Santana, 2013).

Outro ponto a ser destacado é o de autorrepresentação de solidez moral. O casal compreende que precisa adotar comportamentos frente à comunidade militar, buscando tanto uma boa convivência, no caso das vilas militares e clubes, por exemplo, bem como para preservar a imagem do familiar militar (Silva, 2013). Além disso, a esposa, em determinadas situações, deve fazer ações públicas para grupos de militares e também participar de ações filantrópicas. Também se espera que a esposa tenha ações como estar presente em eventos militares, ter uma convivência positiva com outras famílias, ser comedida, ter uma vida discreta e ainda vigiar a conduta de outras mulheres, e ainda entender e seguir as prescrições militares, como relações hierárquicas (Silva, 2013).

Com relação aos casais em que ambos são militares, Najera, et al. (2017) aponta que são casais que recebem menos atenção, mas que representavam, em 2014, 11,7% dos casamentos dos militares nos Estados Unidos. Na pesquisa de Silva (2013), marido e esposa que são militares têm rotinas parecidas, o que implica em uma compreensão mútua sobre as características do trabalho, passando boa parte do dia no quartel, e no restante do dia passam com filhos e cuidando da casa. Quanto a essas últimas atividades, os casais contam com familiares ou funcionários, e também dividem entre si a responsabilidade como buscar e levar os filhos para a escola, fazer compras e ajudar as crianças nas tarefas escolares. A autora ainda destaca que se evidenciou na pesquisa a preocupação das mulheres quanto ao exercício da maternidade, por não se sentirem inteiramente disponíveis para os filhos. Adiciona-se a esta preocupação o desempenho como esposa de militar, mesmo sendo também militares, quando os maridos ocupam cargos de chefia e se espera que a esposa participe das cerimônias militares e se reúna com as outras esposas dos colegas do marido (Silva, 2013).

Para os casais em que ambos são militares parece haver uma preocupação para que ambos estejam alocados em organizações militares da mesma cidade ou próximos. Monteiro (2001) explica que, no exército dos Estados Unidos, 36.000 soldados em serviço são casais de dupla carreira militar. Por isso, foi criado o Programa de Casais Militares Casados (Married Army Couples Program), o qual enfoca nas transferências dos casais, pois os dados da instituição indicavam que um terço da força pediria baixa, caso as transferências em dupla não ocorressem (Monteiro, 2001).

A pesquisa de Silva (2013) ainda explora um tipo de casal minoritário, quando somente a esposa é militar. Geralmente as mulheres são parte de quadros ligados à administração e à saúde, o que significa que são pouco transferidas de cidade em cidade. O estudo indica que, nesses casos, a rotina de trabalho da esposa é o organizador da rotina da família, desde o momento da formação militar, geralmente em uma cidade específica do país, até a designação da cidade em que ela irá servir, o que, na maioria das vezes, somente se torna de conhecimento após o término do curso de formação (Silva, 2013). Nos casos pesquisados, os casais contam com funcionários para auxiliar nos cuidados da casa, e o marido assume a maior parte das responsabilidades domésticas, considerando que a esposa tem uma carga horária maior de trabalho. Mais uma vez, nesse caso, destaca-se a grande preocupação da esposa em estar mais afastada do cotidiano dos filhos. A autora discute que essa configuração familiar não corresponde a tradicional divisão de tarefas (Silva, 2013), o que pode ser visto também como uma tendência em casais de outros contextos (Jablonski, 2010).

 

A psicoterapia do casal militar

A partir das pesquisas relatadas sobre as especificidades dos casais militares, é possível refletir sobre questões presentes na psicoterapia de casal que se aproximam de tais peculiaridades. Com a experiência clínica de atendimento de casais no contexto militar, torna-se relevante considerar, em um primeiro momento, qual dos membros do casal é militar, ou se ambos são militares. De acordo com as pesquisas citadas, há mais implicações descritas para as mulheres civis casadas com militares, em comparação com o inverso (Bóia, 2014; Santana, 2013). Esse perfil, mulher civil e homem militar, pode trazer consigo uma dinâmica conjugal em que há uma demarcação mais fixa dos papéis que cada um ocupa, a qual se aproxima de uma divisão tradicional comumente vista em casais de outros contextos (Jablonski, 2010). O que se deve ter atenção aqui é a maior rigidez dentro de cada papel, impulsionada pelas constantes mudanças de cidade, com a possibilidade cada vez menor de a mulher construir um espaço mais autônomo.

Na psicoterapia, conflitos advindos desse formato são comuns, sendo que, além da rigidez dos papéis, percebe-se que, muitas vezes o marido ocupa ou lugares extremos de controle e autoridade ou de pouco poder em casa, invertendo sua posição vivida dentro do quartel. Esses aspectos de imposição de autoridade ou de omissão frente a decisões devem ser identificados na psicoterapia, buscando, juntamente com o casal, diferenciar aspectos que devem ficar dentro da caserna, mas não se estender para dentro de casa. Além de identificar o perfil, criar modos de equilibrar o poder ou de conseguirem conversar sobre as decisões também pode ser uma tarefa importante da psicoterapia de casal. Por exemplo, em alguns casais percebe-se que o marido militar controla o dinheiro, tem um papel profissional claro, e ao mesmo tempo começa a se incomodar com a pouca ação da esposa (civil) em busca da construção de sua carreira ou de uma mínima contribuição financeira. Inclusive Najera et al. (2017) destaca que o desemprego não desejado da esposa é um dos maiores estressores para o casal militar, depois das separações extensas. Por sua vez, a esposa parece se sentir sozinha, sem apoio, e responsável única pelo cuidado da casa e dos filhos. Outro exemplo em que há uma inversão para um polo extremo à autoridade é quando a esposa usa o dinheiro da família indiscriminadamente, adquirindo dívidas, ou pouco se preocupando com o bem-estar do casal, e o marido não se sente capaz de ter uma voz mais ativa para juntos organizarem-se financeiramente.

No caso em que ambos os membros do casal são militares, percebe-se menos os aspectos citados acima, uma vez que os dois têm carreiras muito semelhantes. Nesses casos, cabe entender qual tipo de organização militar ou de que quadro cada um faz parte, como saúde, combatente, administrativo, etc, pois há culturas diferentes em cada local. Por exemplo, os profissionais da saúde geralmente fazem menos missões do que os militares mais operacionais, o que pode trazer conflitos parecidos com aqueles casais em que um deles é civil.

Outro aspecto específico desses casais são as diferenças hierárquicas, em que um é mais antigo (superior) que o outro. Deve-se ter o cuidado em como essa diferença impacta o casal e, mais do que isso, qual é o olhar da família e dos colegas sobre o relacionamento. Com relação à família, essa pode criar a ideia de que o filho ou filha militar não deve se envolver com uma pessoa de menor nível hierárquico, com o sentimento de que seria um demérito para a família, ou uma inferiorização do mais antigo, por exemplo. Pode-se comparar esse aspecto a diferenças culturais ou socioeconômicas que acontecem em casais de outros contextos, o que pode ter um potencial de conflito (Braz et al., 2005). Já no trabalho, é importante considerar que os níveis hierárquicos são rigidamente demarcados, como o mais moderno deve prestar continência para o mais antigo, chamá-lo de senhor ou senhora, ou ainda terem refeitórios diferentes. Além disso, os diferentes grupos moram em vilas militares distintas e frequentam clubes militares diferentes, o que atesta a importância que possui para o militarismo a pertença em determinado nível. Assim, ter um relacionamento conjugal entre pessoas de diferentes níveis pode trazer situações de desconforto para os próprios membros do casal, para os amigos também militares, ou ainda para os familiares que possuem um maior conhecimento das diferenças hierárquicas militares. Na psicoterapia, é importante que se observe o impacto dessas diferenças e se há uma tentativa de levar para o relacionamento as diferenças de poder advindas do trabalho.

Também é necessário destacar que, para muitos casais desse contexto, há uma rede de apoio social muito pequena. De forma geral, percebe-se entre os casais a falta de apoio social, especialmente quando já possuem filhos (Dessen & Braz, 2000), no entanto, pelo fato de estarem longe das famílias de origem e de haver muitas mudanças de cidade, os vínculos de apoio são mais raros ainda. Najera et al. (2017) enfatiza que o apoio social é um dos principais fatores de proteção do casal militar, classificando os tipos de apoio social em dois: rede informal de apoio, que são os pais, amigos e membros da comunidade, e a rede formal de apoio, que são as instituições que fazem parte da organização militar, como os profissionais de saúde e assistência social.

Sobre a rede de apoio informal, percebe-se que os colegas militares, aqueles que fazem parte da “Família Militar” (Silva, 2013) são muito importantes. São esses colegas que irão conseguir apoiar o militar quando ele tiver algum problema, oferecendo apoio emocional ou “cobrindo” o colega quando ele não estiver condições de estar totalmente disponível para a organização militar, como exige o sistema. Também se observa que os militares, muitas vezes, moram na vila militar ou em bairros próximos, criando uma rede de amizade entre eles, sendo incomum militares que são provenientes de cidades e estados diferentes terem muitos amigos civis. Outra rede de apoio bastante comum é a proveniente de pessoas que participam de uma mesma igreja ou religião. É evidente o papel da religião na vida dos militares, sendo bastante presente na vida das famílias e na própria psicoterapia.

Já quanto à rede de apoio formal, destaca-se o papel dos profissionais, especialmente da psicologia como fontes de apoio para o casal militar. Uma das tarefas da psicoterapia é auxiliar o casal a buscar construir fontes de apoio, seja de amigos ou de outros profissionais (como escola, babás e diaristas), esclarecendo que o sentimento de estar sozinhos é comum para os militares. No caso das famílias que passam por afastamentos frequentes, a rede de apoio pode ser menor ainda pelo fato de um dos membros do casal estar longe (Najera, et al. 2017), trazendo um potencial para a busca de psicoterapia. Segundo Minuchin e Fishman (1990), a família acordeão busca psicoterapia quando o cônjuge que se ausenta tem seu papel assumido por outra pessoa do modo permanente. A psicoterapia deve auxiliar a família a reintegrar o cônjuge ausente em uma posição significativa. Os autores indicam que o terapeuta, de forma educativa, mostra para a família que esta mudou, quando do retorno do militar, mesmo que os membros continuem os mesmos. Para aproximar esse movimento da experiência clínica com casais, percebe-se que muitos militares retornam de missões ou cursos de longa duração de forma diferente de quando saíram. As missões e cursos exigem muita dedicação e, por vezes, colocam o militar em uma situação difícil (instruções em campo e experiências de guerra civil, por exemplo), alterando a forma em que ele se relaciona com o mundo. Em alguns casos, os casais acabam se separando por não conseguirem sintonizar-se novamente, ou quando um deles se envolve com outra pessoa durante os afastamentos mais longos, não conseguindo retornar para o casamento.

Dessa forma, a psicoterapia de casal pode oferecer apoio e, ainda, desmitificar a representação negativa que o pedir ajuda significa fraqueza ou descontrole de seus próprios problemas. De acordo com a experiência dentro do contexto, pedir auxílio psicológico é visto como uma fraqueza, em que o militar assume que não teve êxito em controlar seus sentimentos ou resolver seus próprios problemas. No entanto, ao longo dos anos, tem se percebido uma maior busca de atendimento psicológico, com o significado de aprimoramento ou de que pedir ajuda não significa uma falha. Já a terapia de casal ainda tem sido mais indicada pelos profissionais que realizam atendimento individual e encaminham seu paciente juntamente com o cônjuge para psicoterapia de casal. Acredita-se que, aos poucos, esta modalidade seja mais reconhecida e que os militares procurem por si próprios.

As intervenções citadas na revisão de Najera, et al. (2017), caracterizadas como programas mais pontuais, mostram que o foco atualmente dado está nos aspectos positivos e nos recursos que os casais disponibilizam ou podem desenvolver para o enfrentamento dos desafios advindos do contexto militar. Nessa tendência, busca-se trazer para a psicoterapia de casal do contexto militar o conhecimento e o domínio de suas características individuais e conjugais, como potencialidades para lidar com as implicações da vida militar na vida cotidiana. Esse foco faz da terapia uma fonte de apoio e de investimento conjugal e familiar, mais do que um lugar onde os casais somente colocam suas queixas bilaterais ou do contexto militar.

Para finalizar, espera-se ter contribuído com esse artigo para o atendimento de casais advindos do contexto militar. A partir desse trabalho, o psicoterapeuta pode sentir-se mais próximo de um mundo muito particular, que guarda um modo de viver específico, e que invade as relações do militar com muita força. Também se espera que este trabalho estimule tanto os psicoterapeutas a compartilharem suas experiências, avançando no estudo das relações conjugais no contexto militar, bem como os pesquisadores que possam se atentar aos novos movimentos desse contexto a fim de subsidiar a atuação dos primeiros. Enquanto limitação desse trabalho, destaca-se o método narrativo, o qual não contempla grande parte das produções, bem como a exploração dos atendimentos de psicoterapia como fontes de dados não sistematizadas. Dessa forma, sugere-se pesquisas em psicoterapia de casal com militares, revisões sistemáticas de literatura sobre o tema e que sejam incluídos mais estudos com a participação de homens civis casados com mulheres militares.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Marilia Reginato Gabriel
E-mail: mariliargabriel@gmail.com

Marli Kath Sattler
E-mail: marlisattler@gmail.com

Enviado em: 05/07/2019
1ª revisão em: 26/11/2019
Aceito em: 06/12/2019

 

 

1 Trabalho de Conclusão de Curso de Pós-graduação em Terapia de Casal e Sexualidade da primeira autora, supervisionado pela segunda.
2 Psicóloga, especialista em psicologia clínica com ênfase em terapia de família, casal e sexualidade (Domus), mestre, doutora e pós-doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como psicóloga clínica no Hospital de Aeronáutica de Canoas (Força Aérea Brasileira).
3 Psicóloga, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente é professora, supervisora e terapeuta de casais do Domus - Centro de Terapia de Casal e Família. É membro da Associação Gaúcha de Terapia Familiar.

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