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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.23 no.2 Porto Alegre jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

A importância do pai no tratamento sistêmico da anorexia nervosa

 

The importance of father in systemic treatment of anorexia nervosa

 

 

Mara Lúcia Rossato1, I, II, III ; Douglas de Quadros da Silva2, II ; Alessandra Richter3, II

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
II Associação Gaúcha de Terapia Familiar - AGATEF
III Hospital de Clínicas de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa a tratar dos aspectos relacionados à função paterna na anorexia nervosa e da sua potencial importância dentro da terapia familiar sistêmica, após uma breve contextualização no desenvolvimento histórico do seu conceito nosológico, bem como relacionar com a figura e a função paterna na literatura científica. Há bastante informação teórica a respeito das relações intrafamiliares na anorexia, porém análises específicas da função paterna são escassas, prevalecendo os aspectos da relação mãe-filha. Abordaremos também um exemplo de caso da paciente R., diagnosticada com anorexia nervosa e tratada no grupo de Transtornos Alimentares no Centro de Atenção Psicossocial da Infância (CAPSi) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no qual consideramos o papel desempenhado pelo pai como fundamental para uma recuperação mais rápida e eficaz.

Palavras-chave: Anorexia nervosa, Terapia sistêmica, Função paterna.


ABSTRACT

This article aims to address the issues related to the paternal function in anorexia nervosa and its potential importance within its systemic treatment, after a brief background on the historical development of its nosological concept and relate it to the image and the role of the father in the scientific literature. There is a lot of information about the intra-family relationships in anorexia, but specific analysis of the paternal role are scarce, prevailing aspects of the mother-daughter relationship. We will also explore the case example of patient “R”., diagnosed with anorexia nervosa and treated in the Eating Disorders Group in the Center for Psychosocial Care for Children (CAPSi) of Porto Alegre Clinical Hospital (HCPA), linked to the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS), where we consider the role of the father as a main instrument in her quick recovery.

Keywords: Anorexia nervosa, Systemic therapy, Paternal role.


 

 

Considerações iniciais sobre a anorexia nervosa

A anorexia nervosa (AN) é um transtorno alimentar caracterizado pelo medo intenso de ganhar peso manifestado através da restrição calórica e comportamentos compensatórios tais como exercícios extenuantes, laxativos, diuréticos e indução de vômitos. Etimologicamente, provém no grego an (privação, ausência) + orexis (apetite), apesar do termo não ser necessariamente adequado, visto que a maioria dos pacientes nega a fome ao invés de perderem o apetite.

O critério diagnóstico mais utilizado é o presente no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria (APA), atualmente na 5ª edição (2013). Neste, a AN é caracterizada pela presença obrigatória de três critérios: restrição calórica que leve ao baixo peso em relação à idade e sexo; medo intenso de ganhar peso demonstrado em comportamento que o impeça apesar do baixo peso; e distorção da autoimagem corporal, influência demasiada no peso, na autoestima ou negação da seriedade da doença apesar do baixo peso. É relevante salientar que, em relação à edição prévia do DSM, a distorção de autoimagem não é obrigatória caso haja os outros sintomas listados em seguida, e a amenorreia deixou de ser critério diagnóstico pela similaridade de desfechos entre pacientes com ou sem esse sintoma. Além disso, a AN pode ser dividida em dois subtipos, restritivo e purgativo, dependendo ou não da presença de comportamento purgativo (vômitos autoinduzidos ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas).

Além desta, outros transtornos alimentares, de acordo com a mesma edição do manual, incluem a bulimia nervosa (BN), transtorno da restrição\evitação alimentar, binge eating, pica, transtorno ruminante e transtornos alimentares não-especificados (TANEs). Excetuando a BN, são diagnósticos de exceção pela sua menor prevalência e maior singularidade dos casos, e o transtorno alimentar não-especificado inclui pacientes sem critérios diagnósticos suficientes para AN ou BN. Apesar de ocasionalmente ocorrer casos de migração do padrão alimentar da anorexia para bulimia, manteremos o foco na primeira devido a diferenças substanciais no funcionamento cognitivo, psicodinâmico e familiar encontrados na maioria dos casos.

Sua prevalência pontual estimada é de 0,5% em mulheres jovens, permanecendo uma condição rara, porém grave. Embora a AN também ocorra no sexo masculino, o enfoque também será em torno das mulheres devido à diferença na prevalência de 10:1 e aspectos psicodinâmicos específicos. Não existe um consenso a respeito da ascensão ou não da incidência de transtornos alimentares na atualidade. Além dos problemas de divergências metodológicas, são necessários estudos de longa duração para avaliação comparativa de incidência. No entanto, o aumento generalizado de registros de casos permite concluir que tanto a demanda quanto a atenção às intervenções de saúde para esses transtornos têm crescido. No Brasil, porém, não existem dados populacionais sobre incidência e prevalência de transtornos alimentares, e tampouco registros fidedignos do número de pacientes que recebem esses diagnósticos na rede pública de saúde.

O seu curso natural é frequentemente marcado por períodos de recaída, remissão ou transição para a BN. Em relação à mortalidade, a literatura contém taxas que variam de 0 a 21% (Freitas, 2006). Uma revisão mais recente (Steinhausen, 2002) constatou um coeficiente em torno de 5%, observando-se valores mais altos à medida que aumentava o tempo de seguimento com os pacientes.

Alguns aspectos histórico-culturais da anorexia

A anorexia nervosa foi reconhecida como transtorno alimentar no final do século XIX por relatos de Laségue (1873) e Gull (1874), embora a primeira descrição médica tenha sido feita em 1689 por Morton. Entretanto, foi a partir de 1889, com a descrição de Charcot com a idée fixe d’obesité (ideia fixa de obesidade) como motivação central da anorexia e com os estudos de Freud relacionando-a a histeria, que o transtorno ganhou repercussão clínica significativa (Cordás,T. A & Claudino, A. M. 2002). Já os seus aspectos psicodinâmicos e familiares passaram a ser mais intensamente investigados na década de 1950-60, com os estudos de Hilde Bruch, e na década seguinte foram produzidos critérios diagnósticos operacionais padronizados.

Durante esse tempo, após um intervalo de 1914 a 1940, no qual predominou o ponto de vista biológico de maneira equivocada após Simmonds ter relacionado a anorexia à disfunção pituitária, Bruch (1973) notou o desenvolvimento de duas tendências de investigação e tratamento psicoterápico. A primeira lidando principalmente com o sintoma central, o componente oral do transtorno, e seu significado simbólico; a segunda, dedicando atenção às relações interpessoais, estilo de vida e caráter inato de cada paciente, do temperamento e personalidade. A partir dos anos 60, foi-se constatando a insuficiência do método psicanalítico isolado na etiologia e tratamento da anorexia devido à complexidade da doença e também pelo seu comportamento dinâmico, podendo ser crônica ou episódica e ainda apresentar migração para outros padrões alimentares. Além disso, a própria inanição causada pela doença desencadeava alterações cognitivas secundárias. Dessa forma, nessa década começou-se a abrir caminho para a abordagem sistêmica ou biopsicossocial.

De modo geral, é consenso que a terapia familiar sistêmica seja peça fundamental, juntamente com a terapia individual, no tratamento de transtornos alimentares, em especial da anorexia nervosa. O que a caracteriza de modo especial é o fato das pacientes geralmente não se considerarem doentes e por esse motivo não procurarem atendimento por conta própria, o que já acontece com mais frequência na bulimia nervosa.

O pai das anoréxicas na Teoria Analítica

Fazendo uma breve revisão do pai das pacientes com anorexia dentro do contexto psicanalítico, pois foi a técnica mais utilizada no início, encontramos pouco material na literatura científica. A maior parte dos estudos permanece focada na questão mãe-filha, especialmente através das teorias de Winnicott a respeito da relação mãe-bebê e da oralidade. No entanto, o que verdadeiramente acarreta o comportamento anoréxico é uma espécie de desequilíbrio na relação mãe-pai-filha.

É relevante também fazer uma distinção entre figura e função materna/paterna, sendo a primeira simbólica e determinantes de fantasias, mais pessoal e podendo existir separada de um ente real enquanto pessoa, e a segunda necessariamente exercida de maneira direta por alguém do meio familiar, não necessariamente um genitor; por esse motivo, encontra-se maior uso da primeira em artigos de enfoque psicanalítico e da segunda em enfoques sistêmicos.

O início da relação mãe e bebê é necessariamente simbiótica. Cabe ao pai, então, romper esta simbiose. É a função paterna que deve colocar fim nesta ligação. Nas famílias das anoréxicas, percebe-se uma fragilidade do pai no exercício desta função. Para Bicalho (2014),

a função paterna é importante porque na relação simbiótica mãe e filha, ambas querem que o corpo da filha continue infantil, porque isso significa continuar ocupando a posição de filha, mas o pai olha para o corpo da filha querendo que ela amadureça e isso equilibra a relação, põe limite (p. 1).

O pai é muito importante, pois à medida que assume uma postura firme ajuda mãe e filha a estruturarem uma relação marcando a diferenciação e o espaço de um terceiro. A anorexia se relaciona com uma dificuldade de romper a simbiose e isto acarreta consequências durante a puberdade e adolescência.

“A menina quando entra na puberdade é bombardeada por diversas questões sobre o seu corpo de menina-mulher. Essa transformação física, numa mentalidade ainda muito infantil, faz com que essa adolescente se aproxime da mãe de forma dúbia: ela busca o amparo materno como um pedido de socorro e, ao mesmo tempo, considera a mãe como uma rival que ela quer e não quer se identificar” (Bicalho, 2014, p. 1).

Bruch (1962) destacou a preponderância do distúrbio de autoimagem corporal sobre a recusa alimentar dentro do caráter obsessivo do transtorno, corroborado pela história natural iniciada pelo medo de ganhar peso, pela presença eventual de purgações e, mais recentemente, pelo controle das calorias acima da simples recusa alimentar. Dessa forma, o aspecto de recusa do corpo feminino ou sensação de controle fica em primeiro plano em relação à negação da oralidade, apesar desta não ser negligenciada.

A figura materna é resumida da seguinte forma:

Assim essa figura é descrita como sendo excessivamente intrusiva em relação à criança, em especial durante as fases iniciais do desenvolvimento desta, o que lhes teria dificultado a constituição de uma identidade sólida, estável e devidamente diferenciada de sua figura materna. Os indivíduos com anorexia nervosa teriam sido bem tratados do ponto de vista físico, não de acordo com as suas próprias necessidades, mas sim de acordo com as vontades e decisões da mãe, o que os teria deixado incapazes de identificar as suas próprias sensações e ações. (Nodin & Leal, 2005, p. 201).

Segundo Lucas (2015), há a tendência de dispensar o pai nos cuidados médicos e psicológicos da filha de modo geral, inclusive nas práticas de psicoterapia analítica. Entretanto, é possível encontrar descrições dos pais de anoréxicas como distantes, passivos, emocionalmente restritos, obsessivos, melancólicos ou ineficazes.

Para que o pai consiga exercer sua função paterna, é necessário que ele seja reconhecido e que ocupe um lugar diferenciado no desejo da mãe. Portanto, é necessário que a mãe abra espaço para este pai, com aceitação. O importante é a função materna e a função paterna cumprirem o seu papel e estarem em equilíbrio independente de quem está exercendo a função. Pais que se mostrem passivos e com uma postura de aceitação com a fusão prolongada de mãe e filha, não cumprem sua função de interdição.

Na relação da figura paterna com a paciente anoréxica, Nodin e Leal (2005) apontam para a ambivalência preponderante na psique das pacientes com AN, ao realizarem um ensaio clínico utilizando um Teste de Apercepção Temática (TAT) contendo pranchas com folhas de papel escritas “Quando pensa no seu pai o que é que lhe ocorre?”. Estabelecendo uma divisão entre o conteúdo manifesto (consciente) e latente (inconsciente), verificaram um contraste marcante entre sentimentos inconscientes negativos e o nível consciente de forma positiva.

Esta ambivalência manifesta-se, ao nível inconsciente por uma relação pouco estruturada, associada a uma vivência emocional que é predominantemente negativa e, ao nível consciente, por uma valorização afetiva e funcional muito grande que se presume ser uma defesa do tipo formação reativa. Ou seja, pressupõe-se que, frente a uma figura que é sentida como desagradável e invasora, os indivíduos elaboram um contra-investimento na representação consciente dessa mesma figura, investimento, esse, que vai no sentido oposto ao inconsciente, passando o pai a ser visto de forma muito positiva, como um amigo. (...) Verificou-se, deste modo, a nossa suposição inicial de que o pai não constitui um elemento diferenciador na triangulação edipiana nem uma figura de identificação alternativa à mãe para as raparigas com anorexia nervosa. (Nodin & Leal, 2005, p. 206).

Procurando a respeito da figura ou função paterna, encontramos fortes referências não-relacionadas diretamente a transtornos específicos e que nos permitem formular a questão acerca da evolução da função paterna ao longo da civilização e seu papel na gênese das neuroses. Leal (2010) destaca o declínio da função simbólica do pai ao longo do tempo com o advento da Modernidade, as novas configurações de família nuclear, os papéis sociais adquiridos pelas mulheres e a laicização da sociedade como um todo, utilizando os conceitos freudianos de “totem” e “tabu” e lacaniano de “Nome-do-Pai”, que citando o livro A família (1987) discorre a respeito do “declínio da imagem social do pai como responsável por uma série de efeitos tanto sociais quanto subjetivos”.

Abreu (2012), também nesse tema, a simbologia dos ícones sagrados com a figura paterna desde as sociedades primitivas até hoje. Citando Freud, no livro Totem e Tabu:

A psicanálise revelou que o animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai e isto entra em acordo com o fato contraditório de que, embora a morte do animal seja em regra proibida, sua matança, no entanto, é uma ocasião festiva – com o fato de que ele é morto e, entretanto, pranteado. A atitude emocional ambivalente, que até hoje caracteriza o complexo-pai em nossos filhos e com tanta frequência persiste na vida adulta, parece estender-se ao animal totêmico em sua capacidade de substituto do pai. (Freud, 1913, p. 145).

Nessa linha de raciocínio lacaniana, com influências da Sociologia da Escola de Frankfurt, segundo Leal (2010), há uma relação íntima entre as mudanças sociais trazidas pela nova ordem burguesa com a destituição do Rei e de Deus de seus lugares de liderança, o que acaba refletindo a nível familiar no declínio da figura do pai, que deixa também de ser responsável pela educação e liderança da família e passa a ser visto como um mero provedor, destituído do poder de autoridade que antes lhe cabia. À medida que as mulheres também adquirem independência econômica, até essa função provedora passa a ser ameaçada. Ainda segundo Leal (2010), “com a imagem desvalorizada do pai, a função paterna mostra-se sempre frágil naquilo a que se propõe realizar, a saber, a estruturação psíquica” (p. 80).

O pai das anoréxicas na Teoria Sistêmica

Sabe-se atualmente que o universo familiar de uma criança vai muito além da interação mãe–criança, pois envolve também os pais, irmãos, avós, etc. (Nunes, 2006). Analisando a família a partir dessa perspectiva, conclui-se que se trata de um sistema constituído por níveis de relações, chamado subsistemas. Segundo Minuchin (1982) cada indivíduo na família pode fazer parte de diferentes subsistemas de acordo com as funções que exerce, como o subsistema conjugal (díade-casal = função de marido ou esposa) e subsistema parental (díade-casal = função de pai e mãe), além de vários indivíduos também poderem agrupar-se em um único subsistema, como o subsistema fraternal (irmãos).

Esses subsistemas se organizam através de fronteiras que definem quem participa, quando e como. Cada indivíduo pertence a diferentes subsistemas, nos quais tem diferentes níveis de poder. A função das fronteiras é de proteger a diferenciação do sistema. Assim, para o adequado funcionamento da família, é imprescindível que as fronteiras dos subsistemas sejam nítidas, ou seja, que as linhas de responsabilidade e autoridade sejam bem definidas e claras para todos os membros. Assim a aglutinação de seus membros será impedida, caracterizando uma família com bons níveis de saúde. Segundo Dorfman e Rossato (2016), as famílias das pacientes com transtornos alimentares caracterizam-se como tendo “um sistema rígido e fusionado, mas ao mesmo tempo com pouca intimidade” (p. 167). Dessa forma, há pouco espaço para abertura para os próprios problemas e demonstração de afeto, apesar da simbiose mãe-filha. Ainda segundo as autoras, o pai costuma exercer uma posição passiva, ficando geralmente ao encargo da mãe todas as decisões familiares. Mesmo que o pai esteja presente fisicamente, ele não demonstra ter autonomia. Segundo Palazzoli (1998) geralmente o marido é silencioso, não impedindo que a mulher seja controladora, implicante e invasiva. A mulher é percebida como vítima, mas ao mesmo tempo provocadora, pois além de deixar claro o seu grande sofrimento, conquista vitórias que o marido tem que tolerar.

O desempenho falho da função paterna dentro de um sistema familiar é determinante na gênese e manutenção da anorexia. Um pai periférico ou fraco mantém-se à sombra da mãe, que não o permite entrar e se impor na díade mãe-filha para estabelecer o corte necessário na simbiose inicial, fundamental para o processo de individuação/separação que proporciona o amadurecimento e ingresso na vida adulta da adolescente. Segundo Busse (2004) o transtorno frequentemente acontece como uma reação a uma crise de autonomia e independência. Por isso a anorexia é uma doença de início preponderante em mulheres na puberdade ou adolescência, ainda que os sintomas orgânicos manifestem-se de modo tardio, pois o funcionamento psíquico da paciente (e da família) já continha sinais de comprometimento nas suas fases iniciais da vida. Dorfman e Rossato (2016) afirmam que “a sintomatologia parece representar a única saída na tentativa de se constituir enquanto um ser único e separado, buscando algum controle” (p. 167). A paciente utiliza o próprio corpo como forma de autoimposição, ao mesmo tempo em que nega a própria feminilidade mostrando comportamento pueril ao preferir obsessivamente um corpo esguio e não perceber a amenorreia como anormal.

A família caracteriza-se por um padrão relacional inadequado, mas com esfoço em aparentar harmonia, a custa de encobrir conflitos, por vezes graves, particularmente no sistema conjugal. A mãe possui um superenvolvimento com a filha evidenciando um controle exagerado. Simultaneamente, apresenta um distanciamento do marido. A busca por ficar magra representa uma tentativa de controle do próprio corpo, na direção de romper o vínculo exagerado com a mãe, uma vez que o pai não obteve sucesso nessa tarefa.

Sanchez (2006) utilizou o Instrumento de Vínculo Parenteral (PBI) para avaliação das relações parenterais em pacientes com transtornos alimentares de modo geral, constatou um padrão de relação mãe-filha de “Controle Sem Afeto” e pai-filha de “Controle Sem Afeto” ou “Negligente”, enquanto os grupos controles apresentaram predominância do padrão “Ótimo” para ambas as relações. Apesar de não se poder concluir especificamente a respeito da função paterna em anorexia nervosa, corrobora a tese de sua disfunção generalizada dentro do sistema familiar.

Destacam-se, na abordagem sistêmica, os elementos dos quais depende a qualidade das interações familiares, ou seja, a coesão e a adaptabilidade. Coesão refere-se à ligação emocional que os membros da família têm uns com os outros e o nível de independência que eles sentem no sistema familiar. Já a adaptabilidade diz respeito à habilidade da família em mudar em resposta a um estresse situacional e desenvolvimental, como descobrir que o filho tem transtorno alimentar, e conseguir modificar as relações e hábitos da família visando à melhora de um dos membros da família (Turnbull & Turnbull, 2001).

A terapia familiar no tratamento da anorexia nervosa

A teoria sistêmica está fundamentada no fato de que o homem não é um ser isolado, ele é ativo e reativo nos grupos sociais aos quais pertence (Minuchin, 1982). Ainda segundo o autor, o homem influencia e é influenciado pelo contexto em que vive. Assim pode-se presumir que os sintomas da anorexia nervosa são influenciados pelo ambiente na qual a paciente está inserida.

Entendemos que a anorexia indica dificuldades na tríade pai, mãe e filha. Caracterizando-se por serem famílias aglutinadas e com padrão rígido de funcionamento, possuem tendências a terem muitas dificuldades de assimilar mudanças, dificultando, portanto, a diferenciação dos seus membros. As mães são extremamente controladoras e os pais periféricos. Geralmente apresentam conflitos na relação do casal e as pacientes enredadas ficando trianguladas neste conflito conjugal. Na tentativa de parecer uma família harmônica e perfeita, tendem a evitar conflitos, acarretando dificuldades e distorções na comunicação.

O principal objetivo da terapia familiar é auxiliar os membros da família a melhorarem o nível de diferenciação do eu. Geralmente os membros estão em fusão uns com os outros, e por mais que digam que estão separados, as relações entre eles estão emaranhadas. Minuchin (1985), afirmou que as famílias das anoréxicas tem uma característica predominante: estão embaraçadas a tal ponto em que as fronteiras são muito fracas para proteger os indivíduos que fazem parte do sistema. O conceito de diferenciação do eu está relacionado com a maneira com a qual o indivíduo vai se diferenciando emocionalmente de seus pais, esse processo acontece na adolescência, pois é nessa época da vida em que os jovens se deparam pela primeira vez com a chance de conquistar sua independência. As sessões de terapia devem ocorrer de forma que os papéis dos membros do sistema sejam bem definidos, desfazendo-se os emaranhados. A função do terapeuta de família é ajudar a anoréxica e a família, facilitando a transformação do sistema familiar. Segundo Minuchin (1982), esse processo tem três passos essenciais: O terapeuta se une à família, ocupando uma posição de liderança; ele descobre e avalia a estrutura familiar, e cria circunstâncias que permitirão a transformação dessa estrutura. Facilitando a comunicação, a terapia se propõe a possibilitar que o casal se depare com seus conflitos na tentativa de buscar resolução. Neste sentido, o terapeuta redefine as fronteiras, clarificando os subsistemas conjugal e parental. As mudanças são positivas para todos os membros da família, mas principalmente para a anoréxica que pode ser liberada da triangulação com o casal. Além disso, procura-se produzir alterações na estrutura de funcionamento familiar, reforçando o exercício da função parental, validando a participação do pai e ajudando a mãe a investir energia em si mesma e no casal, permitindo que a filha possa dirigir-se no sentido de buscar autonomia.

Consideramos que a participação do pai na terapia familiar é de vital importância, pois, buscando-se a transformação de um pai periférico para um pai atuante e valorizado pela mãe, contribuirá de forma inequívoca para que a anoréxica não necessite mais utilizar o próprio corpo para tentar se diferenciar e fugir do controle materno, deixando de ficar triangulada ao casal. Busca-se também uma definição nítida de hierarquia e fronteiras, para que a filha possa exercer seu real papel dentro do sistema, assumindo sua autonomia.

Fragmentos clínicos: Paciente R

Com intuito de ilustrar o que foi discorrido a respeito da importância do pai na terapia para o tratamento de transtornos alimentares, contaremos o caso de R., 12 anos, acolhida no Programa de Transtornos Alimentares do Centro de Atenção Psicossocial da Infância (CAPSi) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (Termo de consentimento encontra-se arquivado junto à documentação do hospital). R. foi encaminhada ao programa por meio da unidade básica de saúde e, após ser triada pela equipe de Residência em Psiquiatria da Infância, foi incluída no programa com diagnóstico presuntivo de anorexia nervosa. Nesse programa, uma equipe multiprofissional forneceu atendimento em diversas áreas: clínica, psicoterapia individual, psicoterapia de família, psiquiatria, nutrição, psicoterapia de grupo, grupo multifamiliar, grupo de nutrição, grupo de terapia ocupacional e recreação, serviço social e acompanhamento da equipe de enfermagem do CAPSi.

R. apresentava uma história recente de mudança de comportamento, com controle rígido da dieta através de cálculo das calorias consumidas diariamente, inclusive escondendo alimentos fornecidos, e irritabilidade com a família. Segundo a mãe, os sintomas iniciaram após ela ter sido reprovada no exame de admissão para uma escola bem conceituada, no qual queria muito ingressar a fim de receber educação forte e conquistar o sonho de seguir carreira no Magistrado. A mãe procurou ajuda médica após perceber o emagrecimento intenso da filha e descobriu o programa de transtornos alimentares por intermédio da mídia, lendo uma reportagem em um jornal local. No início do programa de tratamento, entretanto, ela já havia recuperado parcialmente seu peso e já apresentava índice de massa corporal limítrofe para sua idade.

Sua família era constituída pelos pais e ela, somente. A mãe trabalhava no laboratório de um grande hospital, e o pai era engenheiro de uma instituição pública. Desde a primeira entrevista, a paciente demonstrou agressividade verbal contra a mãe, com tentativas de menosprezá-la perante o pai. A mãe, por outro lado, tentava exercer todo o controle sobre a filha, desde a merenda escolar, roupas e até fazendo resumos das matérias escolares para ela estudar para as provas. O pai, por sua vez, encaixava-se no padrão periférico. No relacionamento conjugal, era distante da esposa. Os dois mostravam-se muito diferentes em personalidade e gostos. Além disso, não compartilhavam os rendimentos nas despesas da casa, assumidas quase exclusivamente pela esposa. Geralmente a renda do pai era utilizada com seus gastos individuais e viagens internacionais que fazia sozinho na maior parte das vezes.  A mãe vestia-se de forma simples, e parecia não se importar tanto com a aparência. O pai, ao contrário, demonstrava se importar bastante com sua forma de vestir e sua aparência física, além de ser adepto a esportes radicais e alimentação saudável.

Outro fato bastante representativo era a organização dos espaços da casa. O banheiro do quarto do casal era completamente ocupado com pertences de quando R.  era criança e, portanto, sem possibilidade de utilização. A porta do quarto dos dois e de R., ficava constantemente aberta, denotando falta de privacidade. Isso pode ser tomado como símbolo do lugar no meio do casal desempenhado pela filha dentro do sistema familiar, que foi também objeto da terapia.

R. nunca escondeu seu desprezo pela família materna, com quem tinha medo de ser identificada pelo motivo dos seus membros serem semelhantes à mãe fisicamente, obesos e com prevalência de doenças crônicas como diabete ou hipertensão. Por outro lado, era evidente a triangulação com o casal, com o qual a relação afetiva era intensa, apesar de pouco íntima, e de caráter sedutor. Em entrevista com a família, pediu-se à paciente para organizar na sala a posição em que cada um dos três deveria permanecer ao colocarem-se em pé. Ela prontamente ficou justaposta ao pai e posicionou a mãe atrás e distante dos dois. Durante as demais entrevistas, sempre se posicionava entre o casal e bastante próxima ao pai. Eram evidentes as dificuldades conjugais, no entanto, a partir de discussões com a equipe, priorizou-se na terapia familiar, o trabalho em relação à função parental, redefinindo os papéis de pai e mãe. Ressaltou-se apenas a importância do casal ter um espaço de privacidade e intimidade conjugal, estimulando-se programas sem a presença da filha, uma vez que nunca mais haviam saído sozinhos após o nascimento de R, na ilusão de manter a unidade e harmonia familiar. A mãe era uma pessoa extremamente ansiosa e indicou-se tratamento individual. Com o decorrer do tempo e com certa dificuldade, a família conseguiu esvaziar o banheiro e fechar porta dos quartos, criando fronteiras mais claras.

A terapia se processou, na maior parte do tempo, com a família completa e algumas sessões apenas com o casal. O pai compareceu em todas as sessões, mostrando-se bastante participativo e empenhado nas mudanças. A mãe também foi bastante participativa, mas, embora reconhecendo a necessidade, demonstrou maior dificuldade em mudar.

O tratamento foi eficaz, com R. mostrando boa percepção do seu próprio transtorno e melhora dos sintomas alimentares, apesar de continuar por mais tempo com os comprometimentos nas relações intrafamiliares.

Após o período de um ano em tratamento intensivo, a paciente já estava em condições de  ter alta do programa, com a recomendação que seguisse em psicoterapia individual, mesmo que em outro serviço, e que o casal continuasse em terapia conjugal.

 

Considerações finais

O caso de R. obedeceu ao padrão familiar de anorexia nervosa, visto que os próprios pais reconheceram similaridades de funcionamento familiar nos sistemas dos outros pacientes participantes do programa durante as entrevistas multifamiliares. A função paterna estava explicitamente comprometida, com ausência de um pai que fosse centro de autoridade ou provedor e incapaz de romper a simbiose mãe-filha, que disputavam a liderança da família. Nodin e Leal (2005) afirmam que a atitude de sedução no pai pode aparecer ao invés da frieza ou desprezo, tanto que R., por sua vez, entrava em conluio com o pai, apresentando de modo consciente uma relação afetiva e um desejo de identificação intensos. Porém, apesar de juntos fisicamente, permaneciam desconectados e distantes, de modo que a figura paterna era idealizada pela filha, enquanto esta hostilizava a mãe. Pai e filha funcionavam mais como irmãos. A anorexia, além da recusa alimentar propriamente dita, era também uma recusa do amadurecimento enquanto mulher, a qual exigiria um desenvolvimento psicossexual a fim de tornar viável a relação futura com o sexo oposto fora o ambiente familiar.

Além disso, um fator diferenciador para a eficácia do tratamento foi o fato do pai ter se disposto a comparecer em todas as sessões de família e grupos multifamiliares realizados pela equipe, o que não ocorreu com nenhum outro paciente.

De modo geral, procuramos finalizar o artigo exemplificando o que foi mostrado no processo disfuncional de formação psíquica e na estrutura relacional das portadoras de anorexia nervosa quanto à figura ou função paterna, marcada pela sua falta ou ineficácia. Devido à complexidade etiológica e envolvimento de fatores tão distintos no universo da doença como a nutrição, psicodinâmica e sistemas familiares e aspectos clínicos, o tratamento muitas vezes é um processo longo e doloroso para os pacientes e para a família. Entretanto, pode-se identificar a possibilidade e importância do pai (seja real, funcional ou simbólico) de ser também sujeito e objeto de tratamento da anorexia. Em nossa prática clínica, percebe-se que os resultados positivos manifestam-se mais rapidamente e de forma duradoura quando o pai participa ativamente do tratamento.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Mara Lúcia Rossato
E-mail: mluc@uol.com.br

Enviado em: 08/02/2018
1ª revisão em: 25/10/2019
Aceito em: 20/11/2019

 

 

1 Psicóloga, Terapeuta de Família, Coordenadora do Núcleo de Terapia Familiar da Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora, professora e supervisora do Curso de Especialização em Atendimento Clínico - Ênfase em Terapia Sistêmica de Casal e Família da UFRGS. Diretora Adjunta da AGATEF, pesquisadora, supervisora, colaboradora do Programa de Transtornos Alimentares do CAPSi do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, autora e co-autora de vários artigos.
2 Graduando em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bolsista de extensão pela UFRGS do Programa de Transtornos Alimentares do CAPSi do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
3 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bolsista de extensão pela UFRGS do Programa de Transtornos Alimentares do CAPSi do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

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