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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.24 no.1 Porto Alegre jan./jun. 2020

 

ARTIGOS

 

Contribuições de Murray Bowen à terapia familiar sistêmica

 

Murray Bowen's contributions to systemic family therapy

 

 

Ana Flávia Nascimento Otto1, I, II ; Maria Alexina Ribeiro2, I

I Universidade Católica de Brasília – UCB
II Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta um ensaio teórico sobre as contribuições de Murray Bowen para a Terapia Familiar Sistêmica. Apesar de ser um dos pioneiros da psicologia sistêmica, suas obras nunca foram publicadas em português. Dada a importância da teoria de Bowen para o campo da terapia familiar, este trabalho visa discutir alguns aspectos teóricos e práticos que podem ajudar os profissionais no trabalho com famílias. A partir da descrição dos sistemas emocional, afetivo e intelectual, apresentam-se os oito conceitos de Bowen, com destaque para a diferenciação do self e sua importância na proposta terapêutica boweniana. São ressaltadas duas características distintas da Terapia Familiar Sistêmica de Bowen: a diferenciação do self do terapeuta e a terapia familiar com um só membro da família.

Palavras-chave: Terapia familiar, Murray Bowen, Diferenciação do self.


ABSTRACT

This article is a theoretical essay on Murray Bowen's contributions to systemic family therapy. Despite being one of the pioneers of systemic psychology, his works were never published in Portuguese. Given the importance of Bowen's theory for the field of family therapy, this work aims to explore some theoretical and practical aspects that can help professionals in working with families. From the description of the emotional, affective and intellectual systems, eight concepts of Bowen's theory are presented, highlighting the self differentiation and its importance in the Bowenian therapeutic proposal. Two distinct characteristics of Bowen's Systemic Family Therapy clinic are highlighted, the differentiation of the therapist's self and family therapy with a single family member.

Keywords: Family therapy, Murray Bowen, Self differentiation.


 

 

Introdução

O Pensamento Sistêmico contribuiu para uma nova forma de compreender a construção do conhecimento, sobretudo no que tange às ciências humanas. Esse paradigma propõe uma oposição total à ciência tradicional. A epistemologia tradicional parte de três pressupostos: a simplicidade, a estabilidade e a objetividade. A simplicidade refere-se à crença de que, ao conhecer a parte, compreende-se o todo. Dessa perspectiva surge a noção de causalidade linear, ou seja, todo efeito possui uma causa. Já para o pressuposto da estabilidade, o mundo está posto; assim, é possível determinar, prever, reverter e controlar os fenômenos. Por sua vez, a objetividade remete à ideia de que é possível separar a subjetividade do pesquisador do resultado da pesquisa, alcançando a realidade de fato (Vasconcellos, 2005).

A epistemologia sistêmica ou ciência novo-paradigmática compreende que o mundo é complexo. Parte, portanto, da contextualização dos fenômenos e do entendimento de que as relações têm causalidade circular, ou seja, são causa e feito em si mesmas. O mundo não é compreendido como estável; pelo contrário, é instável e está em constante vir a ser. É indeterminado, imprevisível, irreversível e incontrolável. A objetividade é ilusória, porque o conhecimento científico é uma construção social. Assim, não é possível separar a subjetividade do pesquisador para enxergar a realidade de fato. O que existe são múltiplas versões da realidade (Vasconcellos, 2005).

A partir desse pensamento científico foi desenvolvida a Terapia Familiar Sistêmica, que compreende o ser humano no contexto de suas relações. As famílias, nessa abordagem, são sistemas vivos que funcionam como um conjunto coeso, inseparável e interdependente. Não existem relações unilaterais entre os seus componentes; as partes de um sistema estão relacionadas de tal modo que uma mudança em uma delas provocará uma mudança nas outras e, consequentemente, no sistema como um todo. Dessa forma, o problema não é mais do indivíduo, e sim do sistema familiar. O agravo é apenas um sintoma que denuncia a necessidade de mudança na forma como o sistema está interagindo (Nichols & Schwartz, 2007).

Uma das teorias mais importantes na construção da Terapia Sistêmica Familiar foi a Teoria Sistêmica de Bowen. Como uma das escolas iniciais, o teórico estruturou bases importantes para a compreensão do sintoma no sistema familiar e para a construção de intervenções mais eficazes (Nichols & Schwartz, 2007). É fundamental entender a sua teoria de forma aprofundada. Nessa perspectiva, este artigo é parte do resultado do levantamento bibliográfico realizado para elucidar o referencial teórico apontado e visa esclarecer, de forma resumida, os principais aspectos da Teoria Familiar Sistêmica de Bowen – TFSB.

A teoria familiar sistêmica de Murray Bowen

Murray Bowen (1993) propôs uma teoria de desenvolvimento humano que inclui ― além do contexto familiar multigeracional, social, cultural e histórico ― a evolução da espécie humana, uma vez que grande parte do funcionamento humano, para Bowen, é determinado pelos mesmos princípios naturais que regem outras formas de vida, principalmente no que se refere aos processos emocionais (Bowen, 1993). Na visão boweniana, o ser humano tem, como produto da história evolutiva da espécie, três sistemas de funcionamento que se inter-relacionam: o emocional, o afetivo e o cognitivo ou intelectual.

 

 

O sistema emocional é o mais ligado ao biológico; é primitivo, instintivo, automático e inconsciente. O nível afetivo decorre do processo evolutivo; ele elabora o nível emocional, trazendo-o para o consciente por meio de representações cognitivas, transformando emoções em sentimentos. Esse nível tem forte influência nas relações sociais, pois o seu funcionamento é, em grande parte, responsável pela atração que os seres humanos sentem entre si. Já o sistema cognitivo ou intelectual refere-se às ideias, à razão e à capacidade de auto-observação e julgamento. É o que permite ao homem ter autocontrole, por trazer um olhar mais objetivo sobre o comportamento determinado pelo seu sistema emocional. Esse nível representa o último grau da escala filogenética, sendo uma característica distintiva própria e específica da espécie humana (Kerr & Bowen, 1988).

Destaca-se que, apesar de os sistemas apresentarem autonomia e especificidade, eles funcionam completamente interligados, influenciando um ao outro como um todo humano. Reações emocionais podem iniciar reações sentimentais, que podem incitar pensamentos. O processo oposto também pode ocorrer, partindo-se do cognitivo e gerando reações emocionais humanas (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

O grau de utilização desses três sistemas varia conforme a circunstância e, de pessoa para pessoa. Quanto maior a ligação entre o emocional e cognitivo, maior a governabilidade automática dos fatores emocionais sobre a vida do indivíduo, e maior o grau de fusão entre o indivíduo e as pessoas que o rodeiam. Isso aumenta a vulnerabilidade a enfermidades físicas, emocionais e sociais, e diminui a capacidade de manter um controle consciente sobre a própria vida (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Apesar de os sistemas afetivo e cognitivo serem aquisições mais recentes no processo evolutivo da espécie e terem alcançado destaque no funcionamento dos seres humanos, o nível emocional continua tendo maior influência no comportamento humano. Ele é o primeiro que regula o funcionamento das pessoas tanto em ordem de antiguidade evolutiva quanto de importância. É responsável pelas funções instintivas e pelas automáticas, próprias do sistema nervoso autônomo. Por isso, tem a maior capacidade de mobilizar, influenciando o funcionamento biológico, psicológico e social do indivíduo, e é o ponto de partida dos problemas psíquicos mais graves (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

O sistema emocional está intimamente ligado e circunscrito ao corpo humano, e, por isso, as dificuldades somáticas são entendidas como reflexos de alterações que ocorrem nesse nível. É importante ressaltar que, apesar de o sistema emocional estar contido em um corpo individual, só é possível compreendê-lo em conjunto com as relações do indivíduo com a família e com os demais sistemas do seu contexto. Isso acontece porque o funcionamento do sistema emocional é determinado pela interação de duas forças vitais: a do pertencimento, que promove o contato com os semelhantes; e a da individuação, que atua na separação entre as pessoas, incrementando a autossuficiência (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

A força do pertencimento motiva os indivíduos a manter um sentido de conexão emocional e seguir as orientações de outros membros do sistema emocional. Inclina os indivíduos a fazer parte do grupo e a seguir o ritmo dele. Da mesma forma como o indivíduo recebe diretivas do grupo, os outros membros recebem orientações acerca de como se relacionar com ele. Por outro lado, a força da individuação é a capacidade de o indivíduo funcionar de forma competente, baseado nos próprios princípios, sem ser governado pelas demandas e pressões do grupo. Essa força decorre da habilidade humana de raciocinar e, portanto, diferenciar emoções de pensamentos (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Ambas as forças se encontram enraizadas biologicamente e estão presentes em todas as pessoas. A intensidade na qual cada uma delas se expressa é fortemente influenciada pelos processos de aprendizagem. Quando o bebê nasce, encontra-se completamente fusionado com sua família, em especial com quem exerce o papel materno. A força vital que atua em sua plenitude nesse momento é a força do pertencimento. O bebê é completamente dependente de seus cuidadores. À medida que ele cresce, começa a atuar a força da individuação, e, durante todo o seu desenvolvimento, a criança experencia ambas as forças, de forma a atingir a fase adulta com independência e autossuficiência. Essa independência não significa que a força do pertencimento deixe de atuar na fase adulta; pelo contrário, ela continua atuando, mas existe um equilíbrio entre pertencimento e individuação. Para Bowen, é desse equilíbrio que surge o bem-estar – quando o indivíduo consegue tomar suas próprias decisões, mantendo sua participação no grupo (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Segundo Bowen (1993), é o intercâmbio entre essas forças que regula o comportamento humano. A presença de disfunções físicas, emocionais e sociais está intimamente ligada aos ajustes que os indivíduos fazem para adaptar-se às necessidades do seu sistema relacional. Nesse sentido, a família, pela sua natureza, é o sistema em que as pessoas estão mais conectadas emocionalmente, formando uma unidade emocional. Como afirma Kerr (2000, p. 1), “Os membros de uma família são afetados tão profundamente uns pelos outros em seus pensamentos, sentimentos e ações que parecem viver sob uma mesma pele emocional.” Dessa forma, os indivíduos na família agem de tal forma interdependentes que a mudança no funcionamento de uma pessoa é seguida de mudanças recíprocas nas demais. Essa interdependência atravessa gerações, formando uma rede intergeracional de relações na qual se dá a interação das forças vitais de pertencimento e de individuação.

As pessoas que têm a força do pertencimento mais solicitada pelo sistema relacional apresentam uma forte tendência a buscar aprovação dos outros membros, o que prejudica os processos de resolução de conflitos e tomada de decisões. Consequentemente, esses indivíduos tendem a manter relacionamentos fusionados, caracterizados pela invasão de espaços pessoais, intolerância a diferenças de pensamentos, sentimentos e condutas (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Os oito conceitos da Escola Boweniana

Com base nessa perspectiva evolutiva das relações familiares e em suas pesquisas de campo, Bowen elaborou sua teoria com oito conceitos-chave. A figura 2 apresenta os oito conceitos da teoria de Bowen.

 

 

Os oito conceitos não são independentes; eles estão entrelaçados entre si, sendo necessário conhecer cada um para compreender a Teoria de Bowen em sua totalidade e profundidade e, consequentemente, aplicá-la na clínica com segurança (Nichols & Schwartz, 2007). Este artigo destaca o conceito sobre o qual todos os demais conceitos se apoiam: o conceito de diferenciação do self.

A diferenciação do self trata da habilidade das pessoas de autorregular suas emoções, ou seja, de aumentar sua individuação sem deixar de pertencer ao sistema familiar. É um processo contínuo e dinâmico que ocorre ao longo de todo o desenvolvimento. Reflete o grau que o indivíduo modula de forma adaptativa ao pertencimento e à individuação nas relações interpessoais e equilibra o funcionamento dos sistemas emocional e intelectual. Dessa forma, como demonstrado na Figura 3, é um conceito multidimensional por referir-se tanto ao aspecto interpessoal ― forças vitais – quanto ao intrapessoal – sistemas emocional, afetivo e intelectual (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

 

 

Bowen descreve esse constructo como uma escala teórica que vai do nível mais baixo de indiferenciação (0) ao mais alto (100), estratificados de 25 em 25. Para ele, não existem indivíduos no 0 ou no 100, e apenas um número muito pequeno de pessoas estariam acima de 60. Ao propor uma escala, o teórico eliminou a necessidade do conceito de normalidade ou saúde, pois há indivíduos em índices baixos na escala que não apresentam sintomas psicológicos e outros situados nos graus superiores que desenvolvem sintomas em condições de forte estresse. Bowen salienta, contudo, que aqueles que se encontram na região mais baixa são mais vulneráveis ao estresse, e a recuperação dos sintomas se dá de forma mais lenta e difícil do que para as pessoas que se encontram na parte mais alta da escala (Kerr & Bowen, 1988).

Isso ocorre em razão de um princípio vital apontado por Bowen: o equilíbrio entre o dar e receber amor, atenção e aprovação. Se um sistema de relações consegue manter um equilíbrio confortável entre dar e receber, ele não apresenta sintomas. A ansiedade e as tensões surgem quando acontecem situações que desestabilizam as relações. Quando esse desequilíbrio se torna crônico, surgem os problemas, sejam físicos, emocionais ou sociais. Nessas situações cruciais e desestabilizantes torna-se possível observar o self básico das pessoas (Kerr & Bowen, 1988).

Um ponto importante é diferenciar o self básico do self funcional. O funcional é a expressão do self nas relações; é o que cada um entrega de si mesmo. Ele depende completamente do contexto e varia de acordo com o grau de self básico do indivíduo, o qual representa o self propriamente dito. Este sim, objeto da escala de diferenciação de Bowen, tem seu grau definido principalmente na infância e se consolida na fase adulta. Portanto, o self básico é estável e não sofre influência do sistema relacional do adulto. Assim, o grau de diferenciação de uma pessoa está intimamente ligado à família de origem, principalmente na relação entre os subsistemas filial e parental. Ele depende do grau de diferenciação alcançado pelos pais, que, por sua vez, foi determinado pelas histórias familiares das gerações anteriores; pelas situações estressantes que a família enfrentou durante o desenvolvimento do indivíduo; e, por último, pelo nível de vinculação da família com outros sistemas potencialmente estabilizantes, como a família extensa, que pode ampliar o ambiente onde a ansiedade pode circular sem se fixar em algum membro da família (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Nesse aspecto, um nível de diferenciação mais alto reflete uma maior facilidade do indivíduo de lidar com as circunstâncias da vida. As pessoas com maior diferenciação têm menos fusão emocional nas relações íntimas e, por isso, não necessitam investir energia para manter-se nos relacionamentos, direcionando seus recursos para a conquista dos próprios objetivos. Elas conseguem distinguir os sentimentos dos pensamentos, baseando grande parte de suas decisões em uma análise racional da realidade. Além disso, sofrem menos influência das pressões familiares e conseguem resolver os conflitos por meio de uma comunicação congruente e franca. Um alto grau de diferenciação do self potencializa, dessa forma, o contato profundo com o outro, de maneira duradoura, estável e equilibrada (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Por outro lado, nos indivíduos em níveis inferiores da escala, as emoções e os sentimentos prevalecem sobre os processos racionais na maior parte do tempo. Essas pessoas têm dificuldade de distinguir os sentimentos dos objetivos e, por isso, embasam suas decisões mais importantes no que sentem. Além disso, quanto menor o grau de diferenciação, mais fusionada está a pessoa a outros membros do sistema, formando um self comum que faz com que a pessoa interaja a partir do seu self funcional ou pseudoself, ou seja, ela expressa o seu self básico no nível solicitado pelas suas relações pessoais (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Na relação conjugal, a fusão alcança sua maior intensidade. As pessoas tendem a buscar parceiros com o mesmo nível de diferenciação. Esse é um ponto fundamental na TFSB, porque a intensidade da fusão entre os cônjuges vai depender do nível de diferenciação de cada um antes do casamento, ou seja, do grau de diferenciação de suas famílias de origem. Bowen descreve esse processo por meio dos conceitos: processo emocional da família nuclear; triangulação; processo de projeção familiar; processo de transmissão multigeracional; posição dos irmãos; e corte emocional. O autor destaca como a indiferenciação vai evoluindo através das gerações e se intensificando até o surgimento de sintomas (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Outro conceito fundamental para a compreensão da teoria de Bowen é o triângulo. Considerado a molécula dos sistemas emocionais, é a menor configuração relacional estável. Uma relação entre duas pessoas tolera pouca tensão, sendo necessário envolver uma terceira para tornar-se estável. Assim, em um triângulo, suporta-se mais tensão porque é possível caminhar em torno de três relacionamentos. Se o estresse for alto demais para um triângulo, ele envolverá outras pessoas, formando uma série de triângulos interligados. Esse processo, apesar de criar um alívio por espalhar a tensão, inibe os esforços para solucionar o conflito original. Além disso, o triângulo cria a figura do excluído, pois sempre há uma aliança entre dois. Essa posição é muito difícil de ser tolerada pelas pessoas, e a possibilidade de ficar nesse papel gera um aumento da ansiedade e do conflito (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Em períodos de tranquilidade, duas pessoas se aliam e ficam confortavelmente íntimas, enquanto o terceiro fica, desconfortavelmente, na posição externa. Os aliados (posição interna) excluem o terceiro, enquanto este trabalha ativamente para aproximar-se de um deles. Se uma tensão leve a moderada surgir entre os aliados, o mais desconfortável aproximar-se-á do externo. Um dos aliados originais passará, então, a ocupar a posição externa, e o que estava nesta posição tornar-se-á um aliado. E novamente o ciclo se inicia com o excluído tentando aliar-se, e os aliados agindo para mantê-lo excluído (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Nesses níveis de tensão, o triângulo geralmente apresenta um lado conflituoso e dois lados harmoniosos, sendo o conflito inerente ao funcionamento triangular, não representando, na maioria das vezes, o problema responsável pela formação do triângulo. Já em níveis altos de tensão, a posição externa é a mais desejada. Se existir um conflito grave entre os aliados, um deles buscará a posição externa, fazendo com que o excluído lute com o outro aliado. Se o que busca a posição externa for bem-sucedido, ocupará a posição mais confortável, a de assistir às outras duas pessoas lutarem. Quando a tensão diminuir, volta-se para o ciclo do triângulo anterior, com a posição interior sendo a mais desejada. A formação dos triângulos é natural em todo o desenvolvimento familiar; todavia, dependendo da tensão dos conflitos e da forma como os sistemas lidam com eles, pode contribuir significativamente para o surgimento e a manutenção de problemas clínicos. Nesse aspecto, compreender seu funcionamento é fundamental para um bom diagnóstico, entendendo o sintoma no seu contexto, e para a efetividade de intervenções terapêuticas (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

O terceiro conceito de Bowen trata do processo emocional da família nuclear. Nesse ponto, salienta-se que a família é um sistema natural, que age como um todo coeso, como um organismo vivo. Os membros da família são ligados por conexões emocionais profundas, expressas em sequências de comportamento interacional, chamadas padrões. Quando, por exemplo, um membro começa a movimentar-se no sentido de uma disfunção, outra pessoa da família começa a contribuir mais em um movimento de compensação (Papero, Frost, Havstad & Noone, 2018; Rodríguez González & Kerr, 2011).

Existem quatro padrões básicos de relacionamento que governam o sistema familiar. Os sintomas se desenvolvem no padrão que estiver mais ativo, devido a um nível de tensão elevado e prolongado (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

O primeiro padrão refere-se ao conflito conjugal, ou seja, a ansiedade familiar é externada na relação do casal. Cada um se concentra no que está errado com o outro, tentando controlá-lo, enquanto o outro resiste ao controle. O segundo padrão concerne à disfunção em um cônjuge. A relação é baseada na submissão de um dos cônjuges ao outro. Em períodos de baixa tensão, eles vivem em harmonia; contudo, quando a tensão se eleva, o autocontrole do subordinado aumenta o grau de ansiedade, podendo desenvolver problemas físicos, mentais ou sociais (Papero et al., 2018; Rodríguez González & Kerr, 2011).

O terceiro padrão é o comprometimento de um ou mais filhos. A ansiedade dos pais concentra-se em um dos filhos, com quem eles se preocupam excessivamente. À medida que os pais focam na criança, a criança se concentra nos pais, passando a ser mais reativa aos irmãos e às necessidades e expectativas dos genitores. Esse processo dificulta a diferenciação do self da criança, tornando-a mais suscetível a internalizar as tensões familiares. O último padrão trata da distância emocional, que é associada aos demais padrões. Nesse caso, os membros se distanciam um dos outros para evitar o conflito, reduzindo a intensidade dos relacionamentos. O risco nesse cenário está relacionado às pessoas se isolarem demais (Papero et al., 2018; Rodríguez González & Kerr, 2011).

Outro conceito de Bowen descreve o processo de projeção familiar, ou seja, como os pais transmitem seus níveis de diferenciação do self aos filhos. Pais e filhos constituem um triângulo fundamental. Entre irmãos, um deles tende a estar mais envolvido emocionalmente com os pais, reagindo ao aumento da tensão parental com comportamentos que atraem a atenção dos genitores, os quais respondem concentrando-se na criança. Assim, a tensão parental diminui, e os pais assumem uma posição de cooperação para tratar o “problema” do filho. Quando esse triângulo se torna fixo, desponta uma dificuldade na distinção do self da criança, tornando-a menos diferenciada que seus irmãos, além de mais vulnerável ao desenvolvimento de sintomas. Ademais, se o processo de projeção for muito intenso, a criança poderá desenvolver muita sensibilidade à ansiedade familiar, adquirindo um nível de diferenciação do self na fase adulta inferior ao dos pais (Papero et al., 2018; Rodríguez González & Kerr, 2011).

O quinto conceito trata do processo de transmissão multigeracional, um dos principais e mais utilizados conceitos de Bowen, a ponto de sua abordagem ser conhecida como escola transgeracional. A inclusão das gerações anteriores no escopo de análise da terapia familiar ampliou o olhar de terapeutas e pesquisadores, por compreender que interações realizadas antes mesmo do nascimento de um indivíduo influenciam o seu desenvolvimento. É importante ressaltar que, para Bowen, não só as dinâmicas multigeracionais das famílias com as quais o indivíduo se relacionou ou relaciona devem ser consideradas, mas também aquelas das quais ele nunca fez parte. Dessa forma, o terapeuta deve investigar até a quarta ou quinta geração anteriores, a depender da necessidade e do conhecimento da família sobre a sua história (Nichols & Schwartz, 2007).

A transmissão transgeracional ou multigeracional aborda a maneira pela qual padrões de relacionamento dos membros da família refletem um processo previsível e ordenado de várias gerações. É previsível devido à quantidade limitada de padrões relacionais no sistema emocional da família nuclear, sendo sua intensidade e características fortemente influenciadas pela geração anterior, com consequências previsíveis na geração seguinte. Os padrões relacionais dizem respeito às emoções, aos valores, às crenças e atitudes passados de uma geração a outra na tentativa de facilitar a adaptação ao ambiente. Nesse processo, a transmissão acontece por meio de várias camadas interconectadas, que passam desde o ensino consciente de pais para filhos até a programação automática e inconsciente de reações e comportamentos emocionais. Dessa forma, os padrões são transmitidos tanto de forma relacional quanto genética, e é na interação desse conjunto de informações que se molda a diferenciação do self dos membros da família (Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

É de se esperar que, devido ao longo período de dependência e desenvolvimento dos filhos em sistemas humanos, o grau de diferenciação do self dos filhos fosse similar ao dos pais. Entretanto, os padrões de relacionamento dos sistemas emocionais familiares nucleares geralmente resultam em pelo menos um membro de um grupo de irmãos desenvolvendo um nível de diferenciação um pouco mais elevado e outro membro desenvolvendo um nível mais baixo do que o dos pais (Bowen, 1993; Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

Como as pessoas escolhem parceiros com níveis de diferenciação compatíveis com os seus, o irmão com maior nível de distinção em relação aos pais formará um sistema familiar mais diferenciado e, portanto, com melhor capacidade adaptativa. Em contrapartida, o irmão com nível mais baixo de diferenciação formará um relacionamento menos diferenciado, e o sistema terá mais dificuldade de realizar as adaptações necessárias no ciclo de vida. Se cada irmão gera um descendente mais e outro menos diferenciado do que ele, forma-se uma linha geracional apresenta uma diferenciação progressiva (o filho mais diferenciado do irmão mais diferenciado) e uma linha que segue uma diferenciação regressiva (o filho menos diferenciado do irmão menos diferenciado). À medida que esses processos se repetem ao longo de várias gerações, a distância entre as linhas familiares vai se tornando cada vez mais acentuada (Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988; Papero et al., 2018).

Uma implicação chave do conceito multigeracional é que as raízes dos problemas humanos mais graves, bem como dos níveis mais elevados de adaptação humana, são decorrentes de um processo de transmissão multigeracional que não apenas programa os níveis de desenvolvimento de self, mas também programa como as pessoas interagem umas com as outras. Dessa forma, ao incluir as gerações anteriores na análise, é possível compreender melhor o sintoma na família nuclear, como observou Bowen (1991):

Seguir uma família nuclear por 200 anos após o casamento ou o nascimento de uma criança (...) pode nos ajudar a entender que em uma família não há anjos ou demônios: todos foram seres humanos, com sua força e fraqueza, com suas reações previsíveis de acordo com o impacto emocional do momento, cada um deles tendendo a dar o melhor de si durante sua vida (Bowen, Andolfi & De Nichilo, 1991, p. 99-100).

Esse contexto emerge uma questão: é possível fugir desse processo transgeracional? É possível apartar-se do sistema familiar? Para Bowen, a pessoa que tenta fugir de sua família é tão emocionalmente dependente quanto a que nunca saiu de casa. Essa tentativa de fuga é tratada na teoria boweniana no conceito de corte emocional, que descreve como as pessoas gerenciam seus conflitos familiares reduzindo ou eliminando o contato emocional com os membros do sistema. A estratégia pode ser tanto afastar-se da família, mantendo apenas contato esporádico, ou viver com a família, mas evitando lidar com problemas delicados (Bowen, 1993; Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

Apesar de os relacionamentos parecerem melhores se as pessoas estiverem distantes, devido à redução da tensão do sistema, os problemas estão apenas inativos e permanecem não resolvidos. A tendência é os fugitivos tentarem estabilizar seus relacionamentos íntimos criando “famílias” substitutas com relações sociais e de trabalho. O problema é que os padrões pelos quais as pessoas estão tentando escapar emergem e geram tensões em novos relacionamentos. O corte emocional não é um movimento exclusivo da pessoa que foge. Todo o sistema trabalha para que ela fique emocionalmente distante. Tanto o fugitivo, quanto a sua família podem se sentir exaustos após uma breve visita. A ansiedade pode ser tão grande que a saída dele gera uma sensação de alívio nos demais. A família não quer que seja assim, mas as reações emocionais intensas impedem o contato e dificultam a resolução dos conflitos (Bowen, 1993; Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

O sétimo conceito boweniano trata da posição de nascimento dos filhos. Em suas pesquisas, Bowen observou o impacto da posição dos irmãos no desenvolvimento e comportamento dos indivíduos. Nessa época, Walter Toman conforme citado por Bowen (1993), publicou estudos defendendo que características de personalidade são determinadas pela configuração do sistema fraternal no qual a pessoa se desenvolve. Devido à similaridade dos achados, Bowen optou por incorporar as bases teóricas elaboradas por Toman ao seu conceito de posição entre irmãos. Para ele, a ordem de nascimento dos irmãos fornece informações úteis para entender os papéis que cada um tende a desempenhar nos relacionamentos e para prever quais filhos estão mais propensos à triangulação com os pais (Bowen, 1993; Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

Nesse aspecto, Bowen (1993) ampliou a proposição de Toman, estabelecendo uma relação entre a posição de nascimento e o processo de projeção familiar. Bowen observou que os perfis esperados (como o irmão mais velho exercer posições de liderança) podiam ser modificados em função dos níveis de projeção presentes na família e em cada um de seus membros. Isso porque a projeção familiar influencia a diferenciação do self de cada indivíduo na família de tal forma que pessoas na mesma posição fraterna podem apresentar níveis e formas diferentes de funcionamento. Um exemplo é quando um filho mais velho fica triangulado entre o conflito dos pais e, por isso, em vez de se sentir confortável com a responsabilidade e a liderança, cresce nitidamente indeciso e altamente reativo às expectativas. Consequentemente, seu irmão mais novo pode assumir o a posição do irmão mais velho, preenchendo um vazio no sistema familiar. Ele é a criança cronologicamente mais jovem, no entanto desenvolve mais características de um filho mais velho do que seu irmão que está nessa posição.

Ressalta-se que não existem posições melhores ou piores; todas trazem aspectos positivos e negativos e são complementares no sistema (líder-seguidor). Além disso, não há determinismo quanto à personalidade dos indivíduos devido à ordem de nascimento. Existem apenas características comuns que, a depender da configuração do sistema familiar e dos processos emocionais e relacionais atuais e multigeracionais, podem ser reforçadas ou distorcidas (Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

O oitavo conceito de Bowen discute o processo emocional na sociedade. Um ponto marcante em sua teoria é a visão sistêmica. Ao mesmo tempo em que considera a formação do self individual e compreende a família como uma unidade emocional, parte do princípio de que todos os grupos sociais funcionam como sistemas naturais. Dessa forma, as organizações sociais, do trabalho à sociedade como um todo, possuem forças emocionais que, em momentos de alta ansiedade, tendem a minimizar o funcionamento racional e fortalecer o pertencimento, rumo à fusão. Esses períodos são chamados por Bowen de regressão social (Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

Em uma regressão, a sociedade tem uma perda gradual de contato com seus princípios fundamentais, recorrendo, cada vez mais, a decisões determinadas a partir do ponto de vista da emotividade, a fim de aliviar a ansiedade imediata. A regressão gera sintomas sociais como o crescimento do crime e da violência, o aumento da taxa de divórcios, uma maior polarização política, menos tomada de decisões baseadas em princípios, epidemia de usos de drogas, aumento de falências e foco em direitos em detrimento de deveres (Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

A regressão leva, ainda, a um processo de triagem no qual o fluxo da ansiedade é direcionado a grupos mais vulneráveis, assim como num processo de projeção familiar. Em momentos de ansiedade crônica, dois se unem para melhorar o seu funcionamento em detrimento de um terceiro. Geralmente, os grupos que carregam a tensão da sociedade são aqueles rotulados como doentes mentais e antissociais – a população carcerária segundo Bowen (Bowen, 1993; Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

Todas as sociedades humanas vivenciam ciclos de regressão e equilíbrio Para Bowen, o mundo atual passa por um período de regressão devido a fatores como a explosão populacional, a sensação da diminuição das fronteiras e o esgotamento dos recursos naturais. Segundo o autor, esse período se estenderá até que as consequências da decisão de seguir o caminho mais fácil ao invés de resolver as questões difíceis sejam mais insuportáveis do que lidar com as tensões e ansiedades associadas a uma tomada de decisão com um olhar de longo prazo. Além disso, para que a mudança seja profunda, todos os membros da sociedade devem necessariamente assumir uma postura responsável, aumentando a sua própria capacidade de agir com racionalidade. O indivíduo que busca alcançar a autorregulação, ou seja, uma maior diferenciação do self, é sempre consciente de sua responsabilidade para com os outros (Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

A proposta terapêutica de Bowen

Para a TFSB, a terapia deve atuar nos padrões que se desenvolvem nas famílias, a fim de neutralizar a ansiedade. Esta é entendida aqui como um processo de resposta a uma ameaça real ou imaginária que pode atuar de forma aguda ou crônica. Quando aguda, age por tempo limitado frente a circunstâncias reais e específicas. Quando crônica, forma um conjunto de ações e reações que, uma vez acionado, rapidamente se torna independente do evento estressor, propagando-se pela sua própria reação. Geralmente as famílias solucionam a ansiedade aguda com facilidade, mas o mesmo não ocorre com a ansiedade crônica (Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

A ansiedade crônica é resultante das reações das pessoas ao desequilíbrio entre as forças vitais do pertencimento e da individuação dentro do sistema relacional de que fazem parte. Isso acontece porque esse desequilíbrio produz um processo circular que se retroalimenta e conduz ao nível de funcionamento do sistema cada vez menos adaptativo. A necessidade de mais pertencimento faz os membros agirem de forma mais complementar, o que induz a atuação da força da individuação, que, por sua vez, leva os membros a reagirem uns aos outros e, assim, ativa a necessidade de mais pertencimento, dando continuidade ao ciclo. Esse aumento escalonado da ansiedade tende a se manifestar por meio de sintomas físicos, mentais ou sociais (Bowen, 1993; Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

O nível de ansiedade crônica de uma família é definido pelos níveis atuais de estresse externo e pela sensibilidade a temas específicos que foram transmitidos ao longo das gerações. O objetivo da terapia é, nesse sentido, auxiliar os membros da família a seguirem em direção a níveis mais altos de diferenciação, em que haja menos culpa, menor reatividade e maior responsabilidade por si no sistema emocional, bem como uma definição mais clara de sua individualidade em relação à unidade emocional multigeracional. Isso se dá por meio de um processo de observação, conhecimento e valorização mais consciente de si e das interações com os outros. Assim, todo o processo terapêutico é realizado no formato de uma terapia-aprendizagem, de forma que os membros das famílias possam seguir suas vidas com mais habilidade para tratar os conflitos e desafios do ciclo de vida (Bowen, 1993; Bowen et al., 1991; Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

Inicialmente, a terapia visa reduzir a ansiedade dos clientes em relação ao sintoma, encorajando-os a perceber que o sintoma faz parte do seu padrão de relacionamento. As sessões iniciais concentram-se na coleta de informações por meio de um genograma familiar o qual, simultaneamente, fornece informações aos membros da família sobre o problema que é rastreado por meio da história da família nuclear e do sistema da família extensa. O terapeuta procura pistas sobre o processo emocional da família em particular, incluindo: padrões de proximidade e distanciamento, como a ansiedade é tratada no sistema, quais triângulos são ativados, o grau de adaptabilidade a mudanças e eventos estressantes e quaisquer sinais de corte emocional (Bowen, 1993; Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

O modelo multigeracional de Bowen vai além da visão de que o passado influencia o presente. A compreensão é de que os padrões de relacionamento no passado continuam no sistema familiar atual (Herz Brown, 1991). Assim, o terapeuta usa perguntas para encorajar os clientes a pensar sobre a conexão entre o problema atual e as maneiras pelas quais gerações anteriores lidaram com questões de relacionamento semelhantes. Rastrear os sintomas e explorar temas relacionados por, pelo menos, três gerações torna mais difícil para os indivíduos culparem-se pelas deficiências individuais. Como terapeuta e familiares veem como os padrões se repetem ao longo das gerações, é possível identificar as reações automáticas dos membros da família entre si (Bowen, 1993; Kerr, 2019; Kerr & Bowen, 1988).

Após a fase inicial, a segunda etapa focaliza os clientes adultos em questões pessoais, de modo a aumentar seus níveis de diferenciação. Os clientes são convidados a resistir ao que Bowen chamou de força do pertencimento na família. Ensinar-lhes conceitos de sistemas enquanto operam em sua própria família faz parte da terapia nesse estágio. Isso não significa tentar convencê-los a fazerem as coisas de maneira diferente, e sim incentivar os membros da família a enxergarem além dos seus preconceitos, de modo que seja possível considerarem a participação de cada pessoa nos padrões familiares. O terapeuta faz perguntas que pressupõem que o cliente adulto pode ser responsável pela sua reatividade com o outro. Os clientes são ensinados a fazer declarações pessoais sobre seus pensamentos e sentimentos, a fim de facilitar um maior senso de responsabilidade em uma relação.  O desenvolvimento de tal autofoco é considerado crucial para diminuir a ansiedade e permitir relacionamentos pessoa a pessoa, nos quais cada membro da família pode pensar sobre o papel que desempenha nas interações problemáticas (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Esta é provavelmente a técnica central na terapia de Bowen. Primeiro, o cliente é ajudado a reconhecer tanto as maneiras sutis quanto as mais óbvias de serem trianguladas pelos outros, bem como as formas pelas quais eles tentam fazer um triângulo com outros. O terapeuta usa perguntas para facilitar a conscientização dos membros da família sobre seus papéis nos triângulos familiares. Questões simples de rastreamento aberto, usando o que Herz Brown (1991) denomina os quatro W (quem, o quê, quando e onde), ajudam os clientes a se tornarem detetives em seus próprios sistemas interpessoais.

Na última fase da terapia, os clientes adultos são treinados a se diferenciar de sua família de origem. Os ganhos na diferenciação fluirão automaticamente para a diminuição da ansiedade e uma maior autorresponsabilidade dentro do sistema da família nuclear. Uma vez que os triângulos tenham sido identificados, os membros da família são ajudados a planejar maneiras de comunicar uma posição neutra para os outros, deixando a díade se comunicar diretamente uns com os outros. O objetivo é que um membro da família encontre uma posição menos reativa diante da ansiedade do outro. Isso exigirá diferentes posturas em diferentes sistemas, desde recusar-se a discutir as deficiências de outro pelas costas, até reverter a reação usual em um triângulo. Por exemplo, quando o padrão previsível no sistema familiar é manter distância entre aqueles que não conseguiram resolver seus problemas, o terapeuta ajuda um membro da família a planejar estratégias que mudam seu papel habitual de manter a evitação (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Um dos aspectos mais característicos da clínica de Bowen é a necessidade de o terapeuta passar pelo processo de diferenciação do self de sua família de origem, para ser consciente do seu próprio funcionamento emocional, de forma a evitar que isso interfira no trabalho terapêutico. Afinal, é o terapeuta quem define o sentido do processo e quem estabelece as áreas fundamentais e os pontos nodais que devem ser trabalhados pelo cliente (Bowen, 1993; Bowen et al., 1991; Kerr & Bowen, 1988).

Nesse sentido, o terapeuta precisa ter uma postura diferenciada, conectando-se à família sem ser emocionalmente reativo a ela. Além disso, para ensinar a abordagem à família, ele deve ter experenciado todo o processo e chegado a graus superiores de diferenciação do self. Dessa maneira, o profissional deve ter uma atitude calma e de interesse na investigação para que a família comece a aprender sobre si mesma como um sistema emocional. Bowen instrui os terapeutas a saírem de uma posição de cura ou de ajuda, na qual as famílias aguardam passivamente por uma melhora. A família deve ser colocada como responsável pela sua própria mudança (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

Quanto às formas de atendimento, Bowen propõe, além do atendimento de casal e família, o atendimento multifamiliar e a terapia com apenas um membro da família. Esta última é outra característica distintiva do modelo de Bowen em relação a outras escolas, visto que ele já considerava possível, desde sua primeira proposta em 1976, realizar terapia familiar com um único membro da família. Apesar de não ser sua primeira escolha, preferindo sempre o trabalho com casais, Bowen acreditava que os esforços de um adulto para ser mais diferenciado são possíveis, desde que o cliente esteja bastante motivado. Isso se deve à própria experiência do teórico em aplicar suas descobertas ao seu sistema familiar e em observar que terapeutas que se diferenciaram tornaram-se mais competentes do que aqueles que não passaram pelo processo (Bowen, 1993; Kerr & Bowen, 1988).

A ênfase da terapia de Bowen com um só membro da família está nos esforços autodirigidos do cliente para se diferenciar dos padrões da família de origem. Os esforços de um indivíduo podem modificar um triângulo que, por sua vez, repercute para mudar outros triângulos em toda a família extensa. A terapia deve seguir as etapas sequentes (Bowen, 1993):

a) Compreensão do próprio papel e do contexto do sistema emocional transgeracional. Nessa etapa ocorre a diminuição da ansiedade e dos sintomas.

b) Realização de esforços para modificar a própria posição no sistema familiar, em termos de flexibilização dos triângulos, e estabelecimento de relações pessoa a pessoa.

c) Enfrentamento da reação da família aos esforços de diferenciação, sem se deixar influenciar pelas forças emocionais que empurram para o retorno ao equilíbrio anterior do sistema.

d) Expansão dos esforços de diferenciação a outros membros da família.

Outras escolas também desenvolveram formas de terapia familiar com um só membro da família. Na década de 80, um grupo de pesquisa nos Estados Unidos realizou um conjunto de estudos para verificar a eficácia da terapia familiar estratégica breve com uma só pessoa da família. Os estudos demonstraram não haver diferença nos resultados obtidos com a presença de todos ou de apenas um membro (Foote, Szapocznik, Kurtines, Perez-Vidal, & Hervis, 1985; Szapocznik, Kurtines, Foote, Perez-Vidal, & Hervis, 1983, 1986).

Outro exemplo ocorreu no campo da terapia familiar italiana que, após a fase de purismo dos anos 70, na qual havia uma clara cisão entre terapia familiar e terapia individual, começou a abordar a redescoberta do indivíduo e a formulação de propostas de terapia individual sistêmica (Canevaro, Selvini, Lifranchi, & Peveri, 2008). Esse movimento culminou, em 2007, na publicação, pela Escola de Milão, do livro “Terapia Sistêmica Individual: manual prático na clínica”. Nesse livro, Boscolo e Bertrando (2013) defendem que a terapia sistêmica não se restringe ao contexto familiar; ela reflete um pensar sistêmico que pode ser aplicado a qualquer contexto terapêutico: individual, familiar, casais, grupos ou organizações. Os autores salientam que desde 2004, quando iniciaram a elaboração do livro, a terapia sistêmica individual já era, no âmbito do modelo de Milão, “praticada por todos, discutida por poucos e teorizada por ninguém” (Boscolo & Bertrando, 2013, pag.5). Por essa razão o livro propõe um modelo de terapia individual que funcione como ponto de partida para a prática clínica e para a produção de conhecimento científico sobre o tema.

Vale salientar também as contribuições de terapeutas formados na escola boweniana para a expansão desse modelo de atendimento. Carter e McGoldrik (2001), importantes teóricas da terapia familiar atual, propõem que o processo de coaching – termo utilizado por Bowen para tratar de terapia familiar com um só membro da família –, aborde as influências do ciclo de vida cultural e familiar e que ajude os clientes a se definirem proativamente em relação aos outros membros da família. Para as autoras, com base na experiência de ambas de mais de 25 anos em terapia familiar, o coaching ou a consultoria (termo que preferimos adotar nesse artigo) é um dos principais modos de intervenção utilizados na terapia familiar na atualidade, devido ao seu foco na conectividade de todos os sistemas e na promoção da resiliência individual e familiar (McGoldrick & Carter, 2001).

Destaca-se que Kerr, atual diretor do The Bowen Center, em entrevista realizada a Fraser, Mackay e Pease (2010), relata que a maioria de seus clientes são indivíduos ou casais. Para ele, não importa a variedade de membros da família que estão na sessão por duas razões. A primeira diz respeito à compreensão de que as famílias funcionam como unidades emocionais. Ou seja, se um membro da família mudar seu modo de se relacionar com os demais, consequentemente ocorrerão mudanças na maneira de se relacionar de todos os outros membros. A segunda razão decorre da experiência de décadas no uso da terapia de Bowen, que identificou que o progresso na diferenciação do self é mais provável de ocorrer se uma pessoa ou um casal estiver sendo atendido. A presença dos filhos dificulta o processo dos pais de olhar para seus próprios funcionamentos e buscar maiores níveis de diferenciação.

 

Considerações finais

A Teoria Familiar de Bowen é uma das principais e mais robustas abordagens de terapia familiar. Seu embasamento nas ciências naturais e no evolucionismo compreende a família como um sistema natural que funciona com as mesmas regras da natureza. A teoria criou um diálogo entre as ciências humanas e biológicas e conectou indivíduos, família, grupos sociais, sociedade e ecossistemas. De fato, a possibilidade de aplicação em setores não familiares, como organizações sociais e empresas, comprova a sua principal característica: o pensamento sistêmico.

Além disso, a pesquisa empírica e os estudos de intervenção com famílias fizeram com que Bowen desenvolvesse seus conceitos e sua abordagem terapêutica alicerçados em evidências científicas. Essa característica impulsionou o avanço da terapia familiar, seu reconhecimento como abordagem de tratamento e o seu fortalecimento como campo de investigação científica.

Este trabalho, nesse contexto, veio contribuir para a ampliação do conhecimento dos terapeutas de famílias acerca desse teórico e suas contribuições, auxiliando a discussão sobre as possibilidades de atendimento terapêutico.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ana Flávia Nascimento Otto
E-mail: anaotto30@yahoo.com.br

Maria Alexina Ribeiro
E-mail: alexina@solar.com.br

Enviado em: 25/04/2019
1ª revisão em: 18/03/2020
2ª revisão em: 05/05/2020
Aceito em: 26/05/2020

 

 

1 Mestre e doutoranda em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília – UCB, e servidora da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL.
2 Professora Doutora em Psicologia da Universidade Católica de Brasília – UCB.

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