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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.24 no.1 Porto Alegre Jan./June 2020

 

ARTIGOS

 

Parentalidade e problemas emocionais e comportamentais: análise transgeracional a partir da Teoria de Murray Bowen

 

Parenting and emotional and behavioral problems: analysis from the Theory of Murray Bowen

 

 

Élida Fluck Pereira Neto1 ; Luciana Suárez Grzybowski2, I

I Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Teorias da parentalidade associam esse subsistema ao desenvolvimento saudável ou disfuncional das crianças. Na abordagem sistêmica, Bowen teoriza sobre o funcionamento e o surgimento de sintomas na família. Assim, o objetivo deste estudo foi compreender as relações parentais a partir da teoria do autor em famílias de crianças com problemas emocionais e/ou comportamentais. O estudo de casos múltiplos foi realizado com três famílias de meninas entre seis e 11 anos. Foram utilizados Child Behaviour Check-List, Genograma e três entrevistas semi-estruturadas com cada família. Entrevistas foram gravadas e transcritas para análise temática de conteúdo com categorias a priori de conceitos Bowenianos. Reatividade e rompimento emocionais impactaram na diversidade de práticas de controle e disciplina. A teoria do autor contribuiu para a compreensão do surgimento de sintomas internalizantes, apesar da presença de estratégias parentais consistentes. Destaca-se a relevância clínica do estudo, contribuindo para discussão da aplicabilidade da teoria Boweniana na área.

Palavras-chave: Parentalidade, Desenvolvimento infantil, Diferenciação de self.


ABSTRACT

Parenting theories associate this subsystem with healthy or dysfunctional development of children. In the systemic approach, Bowen theorizes about functioning and appearance of symptoms in the family. Thus, this study aimed to understand parental relations from the author's perspective in families of children with emotional and/or behavioral problems. The multiple case study was carried out with three families of girls between six and 11 years old. Child Behavior Check-List, Genogram and three semi-structured interviews were used with each family. The interviews were recorded and transcribed for thematic content analysis with a priori categories from Bowenian concepts. Emotional reactivity and emotional cut-off impacted on diversity of control and discipline practices. The author's theory contributed to the understanding of the emergence of internalizing symptoms, despite the presence of consistent parenting strategies. The clinical relevance of the study is highlighted, contributing to the discussion of the applicability of the Bowenian theory in the field.

Keywords: Parenting, Childhood development, Differentiation of self.


 

 

Introdução

O modelo sócio-contextual da parentalidade (Belsky & Vondra, 1989) refere determinantes que influenciam as práticas parentais, como personalidade e psicopatologia dos pais, qualidade das relações conjugais, ocupação profissional parental, rede de apoio social, tempo de interação com os filhos e as características individuais da criança, como idade, gênero e temperamento (Belsky & Jafee, 2006). Esses aspectos repercutirão no exercício das atividades parentais de controle e disciplina, cuidado físico, emocional e social, e desenvolvimento dos filhos, que está presente em todas as atitudes de encorajamento e de criação de novas oportunidades (Barroso & Machado, 2010; Hoghugi, 2004).

Em relação especificamente às atividades de controle e disciplina, a forma como os pais colocam limites e estabelecem regras para os seus filhos visa promover comportamentos adequados e reduzir comportamentos considerados inadequados no contexto em que a família está inserida (Gomide, 2007; Teixeira, Oliveira & Wottrich, 2006). As práticas utilizadas pelos pais, com esse objetivo, que se mostram  inconsistentes e discordantes (Mosmann, Wagner & Sarriera, 2008; Scott, 2009), incluindo conflitos e rejeição são associadas positivamente a problemas de ajustamento na prole (Nunes, Faraco, Vieira & Rubin, 2013; Sebastião, Rodrigues, Pizeta & Loureiro, 2020; Yap & Jorm, 2015), sejam eles externalizantes (comportamentos agressivos e delinquentes) ou internalizantes (isolamento social, ansiedade, depressão, queixas somáticas) (Achenbach & Rescorla, 2001). No Brasil, estudos encontraram 10% de casos clínicos em amostra de crianças e adolescentes da região metropolitana de Porto Alegre (Mosmann, Costa, Einsfeld, Silva & Koch, 2017) e, em São Paulo, entre crianças de seis e 11 anos de Unidades Básicas de Saúde, 30,7% apresentavam sintomas internalizantes e 18,3% sintomas externalizantes (Fatori, Brentani, Grisi, Miguel & Graeff-Martins, 2018).

No campo da terapia de família, um dos autores que aborda o funcionamento da família e o desenvolvimento de sintomas por seus membros é Bowen (1978; 1991). Por meio de um conjunto de conceitos, ele compreende o desenvolvimento desses sintomas e como os pais transmitem seu nível de funcionamento diante de conflitos para os filhos. O principal conceito da teoria, diferenciação de self, diz respeito à capacidade do indivíduo de lidar com a ansiedade gerada pelo funcionamento familiar, equilibrando duas forças vitais, a individualidade e a proximidade com os membros da família (Nichols & Schwartz, 2007), em um continuum que vai das famílias com membros com um nível de individuação maior até famílias com níveis de individuação muito baixos (mais fusionadas).

Pessoas com nível de diferenciação alto sentem-se seguras de suas opiniões e convicções, enquanto são flexíveis e conseguem ouvir diferentes pontos de vista, mantendo-se conectados emocionalmente em suas relações diante de situações de conflito (Bowen, 1991). A posição “eu” diz respeito a esta capacidade dos sujeitos de posicionarem-se de forma autônoma diante da ansiedade e do caos familiar, sem a necessidade de ceder às expectativas ou críticas de outros (Sohrabi, Asadi, Habibollahzade & PanaAli, 2013). Estudos mostram que uma maior diferenciação de self está positivamente relacionada a melhor ajustamento social (Hosseinizadeh, 2014), a variáveis ligadas ao bem-estar psicológico e à capacidade de relacionamento interpessoal e negativamente associadas com transtornos mentais e sofrimento psíquico, como ansiedade e depressão (Fiorini, Muller & Bolze, 2018).

Por outro lado, em sistemas menos diferenciados, os indivíduos expressam-se de forma mais ansiosa e reativa emocionalmente, com dificuldade de regular emoções diante de situações de conflito (Kerr & Bowen 1988; Nichols & Schwartz, 2007). Os membros da família, nesta dinâmica de fusão, apresentam dificuldades de manter fronteiras claras entre si, de tolerar a opinião de outros contrárias às suas e de tomar decisões de forma autônoma (Skowron, Holmes & Sabatelli, 2003).

A reatividade emocional apresenta aspectos externos e internos, incluindo a expressão da raiva direcionada para dentro (indivíduo reconhece a emoção, mas a suprime) e para fora (expressa verbal ou fisicamente a emoção para outros), o que, por sua vez, impacta nos conflitos e relações interpessoais (Choi & Murdock, 2017). O nível de fusão do sistema pode levar ao rompimento emocional (isolamento diante do conflito) devido à dificuldade de tolerar a intensidade das emoções mantendo-se presente nas relações (Bowen, 1991; Peleg, 2014).

A forma como os pais transmitem para os filhos o nível de individuação e padrão de reatividade emocional denomina-se transmissão multigeracional (Nichols & Schwartz, 2007). Por meio do processo de triangulação (quando uma terceira pessoa envolve-se em uma relação diádica a fim de tentar aliviar o nível de ansiedade da dupla), os filhos podem herdar níveis diferentes de diferenciação (Klever, 2005).

Especificamente em relação à parentalidade, Chan (2015) descreve padrões possíveis de relacionamento diante da ansiedade crônica da família, como super e subfuncionamento da díade, quando pode ocorrer a parentalização, situação na qual a criança fica responsável emocional ou instrumentalmente por si e por seus pais (Minuchin, 1974; Winton, 2002). Ainda, conflitos entre a dupla parental e conflitos conjugais podem aparecer como mecanismos de enfrentamento da fusão (Bowen, 1991; Chan, 2015). Além disso, como consequência do nível de diferenciação dos pais, as crianças podem desenvolver-se mais ou menos em competências acadêmicas e sociais (Skowron, 2005) e apresentar mais ou menos sintomas psíquicos (Jankowski, Hooper, Sandage & Hannah, 2011).

Smith (2001) refere que a capacidade de exercer a parentalidade de forma madura e não-abusiva está associada à capacidade de regular emoções, pensar claramente sob pressão e manter um claro senso de self mantendo-se conectado com pessoas importantes (evitando rompimentos). Nesse sentido, em relação ao risco de abuso infantil e práticas de maus tratos no exercício da parentalidade, por exemplo, estudos internacionais (Skowron & Platt, 2005; Rodríguez-González & Skowron, 2015) associaram redução de risco a maiores níveis de diferenciação.

Essa associação é presente mesmo em situações de maior vulnerabilidade socioeconômica, principalmente considerando o componente de reatividade e regulação emocional da mãe (Skowron, 2005). Apesar do grande efeito da regulação emocional materna sobre o exercício da parentalidade, a relação com o contexto social e os desafios enfrentados ao longo do ciclo de vida das famílias parecem influenciar no nível de individuação da família e de seus membros. Peleg (2014) mostra que um maior número de eventos estressores na família ao longo do tempo está associado positivamente ao funcionamento mais fusionado do sistema e à triangulação multigeracional. Tais eventos incluem mortes, reprovações escolares, separações de namoros e divórcios dos pais (Dohrenwend, 2006).

Com efeito, este estudo buscou compreender os processos transgeracionais da parentalidade de famílias com crianças que apresentam problemas emocionais e comportamentais a partir da teoria da individuação de Bowen. Partiu-se da dimensão disciplinar da parentalidade, uma vez que tende a refletir momentos de conflito dentro do sistema, nos quais dados sobre os processos de triangulação e, portanto, dos níveis de individuação de self poderiam ser mais facilmente acessados e trabalhados.

 

Método

O estudo realizado utilizou-se de um método qualitativo, exploratório e transversal, a partir do estudo de casos múltiplos (Yin, 2005). Este artigo é um recorte teórico de uma dissertação de mestrado e condensa seus dados, destacando os achados mais relevantes para a análise em questão.

Participantes

Participaram do estudo três famílias de crianças com algum problema de ajustamento emocional e/ou comportamental. Foram critérios de inclusão da amostra as crianças terem entre seis e 11 anos (idade escolar), terem a família nuclear intacta, conviverem com pelo menos um dos avós maternos e um dos avós paternos e apresentarem problemas de ajustamento emocional e/ou comportamental prejudiciais a sua adaptação no contexto escolar, conforme avaliação da equipe pedagógica de uma escola privada de Porto Alegre. Foram excluídas da amostra famílias com crianças adotadas, de crianças com deficiência e com avós que coabitam com a criança. As características da amostra são reunidas na Tabela 1.

 

 

Instrumentos e procedimentos de coleta

Primeiramente, foi contatada uma escola privada de Porto Alegre, selecionada por conveniência, para que indicasse famílias de alunos(as) que possuíssem as características descritas para inclusão. A seguir, a coleta realizou-se a partir de três etapas, as quais ocorreram na residência dos participantes, e utilizou-se de cinco instrumentos.

A primeira etapa foi constituída por um momento individual com cada um dos pais, em que ocorreu o preenchimento de um Questionário de Dados Sociodemográficos (Pereira Neto & Grzybowski, 2018), que coletou informações como idade, profissão, escolaridade da família e queixas da escola em relação à criança. Nesta mesma fase, foi entregue para os pais o Child Behavior Checklist 4/18 anos [CBCL] (Achenbach, 1991, adaptado à população brasileira por Bordin, Mari & Caeiro, 1995) para posterior preenchimento individual. Tal instrumento tem como objetivo avaliar os problemas de ajustamento em indivíduos de quatro a 18 anos, a partir escala da subescala de competência social e outra de comportamentos e sintomas. A primeira avalia interação com pares, desempenho escolar e a participação em atividades esportivas e de lazer. Já a segunda apresenta 138 itens relacionados a uma série de comportamentos desejáveis e disruptivos, em que se faz uma classificação entre sintomas internalizantes ou externalizantes. Ambas apresentam os resultados em nível clínico ou normal de acordo com gênero e idade. Neste estudo, sua utilização buscou avaliar os problemas descritos pela escola em níveis clínicos ou não. Em seguida, foi efetuada uma Entrevista individual semi-estruturada para os pais (Pereira Neto & Grzybowski, 2018), que abarcou experiências familiares na infância, adolescência, relação com pais e irmãos e percepção da parentalidade exercida pelos próprios pais e a que eles exercitam hoje com os filhos.

Na segunda etapa, envolvendo toda a família nuclear, foi realizada a construção do Genograma (McGoldrick, Gerson & Petry, 2012) e uma Entrevista familiar semi-estruturada (Pereira Neto & Grzybowski, 2018), que teve como objetivo averiguar o funcionamento atual da família em relação à parentalidade e, especificamente, ao problema descrito pela escola. Por fim, na terceira etapa, sucederam-se encontros com os avós maternos e paternos separadamente, nos quais foi realizada a Entrevista semi-estruturada – avós (Pereira Neto & Grzybowski, 2018). Tal entrevista foi feita a fim de conhecer as experiências dos avós como pais, na infância, adolescência e adultez dos filhos, além de sua percepção sobre a parentalidade dos filhos com os netos.

Procedimentos de análise dos dados

As entrevistas foram transcritas após sua gravação em áudio para posterior análise como um estudo de casos múltiplos, tendo seus dados estudados individual e coletivamente (Yin, 2005). O Genograma (McGoldrick, Gerson & Petry, 2012) e o CBCL (Bordin,1995) foram analisados à luz da proposta dos autores. As entrevistas, por sua vez, foram analisadas a partir da análise temática de conteúdo (Minayo, Gomes & Deslandes, 2008) com categorias a priori da teoria de Bowen (1978; 1991), quais sejam: diferenciação de self, reatividade emocional, fusão, posição “eu”, triangulação, rompimento emocional e processo de transmissão multigeracional. Por fim, para apreciação em conjunto das informações coletadas pelos diferentes instrumentos, foi feita uma triangulação dos dados, sendo observadas tanto semelhanças quanto contrastes entre os casos numa perspectiva transversal.

A pesquisa seguiu os critérios éticos apresentados. O projeto recebeu a aprovação do CEP da UFCSPA sob o Parecer nº 2.828.450. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado por todos os participantes adultos e o Termo de Assentimento pelas crianças.

 

Resultados

Nesta seção, os dados coletados de cada caso são apresentados individualmente.

Família 1

A família nuclear é composta por Luciane, filha única de Juliane e Luciano. O nome da menina, escolhido pela mãe, é uma junção do nome dos pais. Ela frequenta o terceiro ano do ensino fundamental, os pais têm ensino superior completo e trabalham em suas áreas de graduação. Luciano é o mais novo de três irmãos. O do meio, Pedro, sempre morou com os pais e faleceu por complicações no tratamento de um câncer, aos 42 anos. Teve problemas com abuso de drogas e era o “patinho feio” [Luciano] [sic] da família. A irmã mais velha está afastada do mercado de trabalho há 12 anos devido ao diagnóstico de Transtorno Depressivo Maior e a um câncer de intestino [Figura 1].

 

 

O pai de Luciano, José, também tem câncer e está em tratamento. Teve problemas com abuso de álcool e hoje está em remissão. A mãe de Luciano, Ana Maria, descreve o marido com um homem ignorante e violento. Luciano refere que a violência vivida pela família foi pior durante a sua infância, quando lembra de ver a mãe chorando e do pai chegar alcoolizado em casa: “Se ele chegasse em casa e a gente [irmãos] tivesse acordado a gente apanhava dele” [sic].

Em relação aos processos de triangulação na família, Luciano é descrito como o filho mais desejado do pai e com quem José conseguiu estabelecer uma relação mais próxima afetivamente, o que repercutiu em um relacionamento, também, menos violento em comparação com a situação dos irmãos mais velhos de Luciano. Segundo a mãe, Luciano é o “homem da casa” [sic], tendo assumido uma função parental desde a adolescência. Segundo o filho, ele é o único que o pai respeita, o que pode ter contribuído para essa função que Luciano desempenha na família.

Ainda em relação ao contexto de violência, a reatividade emocional de José, expressa por meio da agressividade, denuncia a dinâmica familiar mais fusionada. Ana Maria revela sua reatividade emocional predominantemente por meio de críticas e discussões, mas também com expressão da raiva de forma física e agressiva. Nos momentos em que os filhos demonstravam comportamentos que se assemelhavam aos do marido ou quando as estratégias de disciplina que utilizava, de orientação e diálogo, não funcionavam, a reatividade surgia em comportamentos violentos psicológica (apontava semelhanças dos filhos com o pai em tom de desprezo e ameaça) ou fisicamente. Em certa ocasião, deu um tapa em Luciano “porque ele tava falando assim comigo, como se ele fosse o pai dele” [sic].

Em relação ao processo de transmissão multigeracional, Luciano parece apresentar melhor nível de individuação, em comparação aos irmãos, sinalizados por maior autonomia emocional e financeira, melhor funcionalidade em termos conjugais e de carreira. Luciano descreve sua posição “eu”: “Eu sempre fui bem aberto, eu chego e falo direto com a pessoa. Até hoje sou assim, se tem que falar alguma coisa, não gosto de falar pelas costas, chego e falo” [sic].

A parte materna da família de Luciane é composta pelo casal de avós, com origem de famílias grandes do interior do Estado, e por quatro filhos. Juliane é fruto de uma gestação trigemelar, na qual uma menina morreu poucos dias antes do parto. Hoje, os três filhos têm ensino superior completo.

Segundo Juliane, todos os irmãos apresentam uma relação próxima com os pais, porém ela é a única que frequenta a casa diariamente: “Não fico mais de um dia sem ver o meu pai e a minha mãe, não consigo, ou ligo, ou vou lá” [sic]. Refere que sua ligação é maior com o pai, Juvenal, que também descreve essa proximidade com a filha e com a neta: “Eu não me sinto eu sem a Lu [Luciane] perto” [sic].

Em relação aos aspectos de controle e disciplina, Juvenal relata que na época deles, os pais não eram muito de conversar, e a esposa, Diana completa: "Mas o que eles falavam, a gente ouvia" [sic]. Essas descrições sugerem famílias com poucos conflitos e discussões. Com os filhos, o casal parece reproduzir esse padrão. Juliane refere que os pais nunca utilizaram castigos físicos, mas que o pai tinha forma única de agir: “A gente [irmãos] se lembra que detestava isso, mas sempre numa briga a gente um tinha que abraçar o outro ou ficar perto do outro por um tempo” [sic].

Considerando tais dados, o funcionamento familiar parece oferecer pouco espaço para a individualidade. Juliane questiona-se constantemente sobre suas condutas, ao mesmo tempo em que idealiza o padrão dos pais, o que sugere uma dificuldade de assumir a posição “eu”.

Na família nuclear, por sua vez, os pais referem que Luciane chora muito para ficar na escola nos primeiros três ou quatro meses do ano, desde o primeiro ano, mostrando grande tristeza e saudade dos pais, mesmo quando afastada deles por curtos períodos. De acordo com os resultados do CBCL, as respostas sinalizaram um nível clínico de sintomas internalizantes, ou seja, as dificuldades de Luciane interferem de forma significativa em seu funcionamento cotidiano, trazendo sofrimento. Tanto Luciano quanto Juliane apresentaram os mesmos sintomas durante suas infâncias, indicando uma reprodução transgeracional da dinâmica fusionada.

Em relação às questões disciplinares, ambos os pais referem o diálogo como principal estratégia para lidar com a filha, já que percebem Luciane muito responsiva às orientações e conversas. Entretanto, diante dos sintomas da menina, os pais referiram muita ansiedade, dúvidas sobre como agir e brigas conjugais sobre a situação, que dão indícios sobre a reatividade emocional do casal.

Família 2

Maria Clara é filha única de Laura e Gustavo e frequenta o primeiro ano do ensino fundamental. Laura tem ensino médio incompleto e hoje dedica-se a cuidar da filha e da casa, enquanto Gustavo, com ensino médio completo, trabalha como motorista. A mãe de Laura teve seis filhos de três casamentos, sendo Laura a filha mais velha do terceiro casamento da mãe [Figura 2].

 

 

Os pais dela separaram-se quando ela tinha 12 anos, devido a situações de infidelidade conjugal por parte do marido, e o pai morreu assassinado aos 52 anos. À época de sua morte, Laura já não tinha contato com o pai há vários anos. O casal sempre trabalhou fora e a mãe de Laura refere a sogra como apoio nos cuidados cotidianos com os filhos. Dessa forma, Laura diz ter recebido pouca atenção dos pais na infância e adolescência: “O meu pai me ajudava muito a estudar, só que como a gente era em três e eu era a mais velha, então acabava ficando meio de lado. Então, as vezes eu me sentia um pouco só” [sic].

Essa impressão de solidão acirrou-se com o divórcio dos pais no início de sua adolescência, além do consequente sentimento de abandono, e contribuiu para o rompimento com o pai. Ao mesmo tempo, a mãe também se ausentou mais nessa época, trabalhando para sustentar, agora, sozinha a família.

Em relação às práticas de controle e disciplina, Laura lembra de serem baseada em castigos físicos, como palmadas e chineladas, principalmente na infância. Segundo Laura, essas práticas, juntamente com a falta de diálogo, aproximaram-na da avó e da irmã mais velha e contribuiu para um distanciamento emocional de seus pais.

Gustavo, por sua vez, vem de uma família de quatro irmãos homens. Um deles é fruto de uma traição do pai durante o casamento com a mãe, com quem nenhum dos irmãos mantém contato. O pai faleceu aos 50 anos e a mãe hoje tem um novo companheiro. Gustavo mantém uma relação distante com os irmãos, já desde a infância, tendo sido criado com o papel de filho único. Sobre essa distância, ele diz: “Eu já tentei muito me aproximar deles. Mas eu acho que, como eles não foram criados comigo, o pai largou eles muito cedo, então tinham um sentimento [negativo] por causa disso” [sic].

Em relação ao processo de triangulação, a família descreve que Gustavo era muito próximo dos pais, embora tenha se aliado à mãe diante das traições conjugais do pai. Durante a infância, não gostava de se afastar dos pais, isolando-se em relação aos pares: “ele [filho] ficava nervoso quando o pai dele saia. A gente brigava. O pai dele era muito mulherengo. Ele via a gente” [mãe de Gustavo] [sic].

No que diz respeito à família nuclear, os pais descrevem Maria Clara como uma menina inteligente e carinhosa, porém agitada e com dificuldade de manter a atenção, levando suas responsabilidades escolares como uma brincadeira. Os resultados da escala comportamental do CBCL não indicam um nível clínico de sintomas. Entretanto, a escala de competência sinalizou, um nível clínico de dificuldades na área social, que diz respeito ao envolvimento da criança em grupos e organizações, frequência de contato com os amigos e comportamento na relação com pares e com familiares. Estas dificuldades são semelhantes às apresentadas pelos pais na infância e adolescência, já que Laura referia poucos amigos por sofrer bullying e Gustavo mantinha-se muito envolvido com seus pais e, portanto, afastado dos pares.

Ainda em relação ao funcionamento familiar, percebe-se que Gustavo distancia-se da esposa e da filha, abrindo espaço para envolvimento de sua mãe. A participação de Gustavo surge nos momentos em que sua mãe e Laura “não dão conta” [sic] de lidar com Maria Clara: “Quando eu tô em casa sempre tem uma coisinha ou outra pra fazer, mas daí eu procuro tá mais atirado, descansando. Eu sou assim. Então, sempre é com a Laura, ela que cuida dessa questão [rotina e tarefas da filha]. Quando tem alguma coisa que elas [a mãe e a esposa] não conseguem realmente, daí eu vou lá e participo” [sic].

O casal descreve não gostar do envolvimento da avó, interpretando que ela os desautoriza. Laura e a sogra referem que Laura demonstra dificuldade em manter as regras e castigos da filha em momentos de conflito, muitas vezes, revertendo suas decisões, ilustrando sua dificuldade em assumir a posição “eu”. Diante desse contexto de inconsistência e da distância de Gustavo, Laura sente a necessidade de apoio e procura a sogra para compartilhar sua ansiedade. Ela refere que é muito próxima da sogra, que é “como uma mãe pra mim” [sic], já que oferece aconchego e orientações que a sua mãe nunca lhe ofereceu.

A triangulação com a mãe de Gustavo também foi percebida pelas próprias trocas na fala da avó, que em diversos momentos confundiu o filho com a neta e respondeu perguntas em relação à parentalidade do filho, com respostas em relação à nora. Tal contextualização do caso sugere um funcionamento fusionado na família, que também aparece como conflitos conjugais segundo Laura e a mãe de Gustavo. Na conjugalidade, Gustavo refere que Laura tem ciúmes dele, o que gera discussões quando ele organiza momentos com os amigos. Assim, ele opta por se afastar dos amigos para não criar conflitos conjugais e refere ter poucos momentos fora de casa sem a esposa e a filha. Tais achados corroboram a avaliação de fusão familiar e a repetição transgeracional.

Família 3

Luisa frequenta o primeiro ano do ensino fundamental e é a segunda filha de Marcelo e Margarida, ambos com ensino médio completo. O irmão mais velho de Luisa, Wagner frequenta o segundo ano do ensino fundamental. Margarida trabalha como auxiliar administrativo e Marcelo é porteiro [Figura 3].

 

 

Marcelo e Margarida são os filhos caçulas de suas famílias de origem. Os pais de Marcelo se separaram quando ele era criança e a mãe teve um novo relacionamento. Marcelo refere que o padrasto adotou ele e os irmãos e descreve como o funcionamento do padrasto o impactou: “Quando a gente fazia alguma coisa errada, ele ficava meio caladão assim, ficava meio quieto pro meu lado, nem falava comigo. Eu já sentia naquilo ali que eu tinha feito alguma coisa errada. A mesma coisa que eu faço com eles [Wagner e Luisa], eu só me retiro, isso aí eu sei que eu puxei um pouco dele. Até com a Margarida pra não brigar com ela, pra não discutir com ela, eu fico quieto. Vou lá, me sento, boto o radinho num ouvido, fico parado, só escutando, pra não brigar, não gosto muito de brigar” [sic]. Além disso, Marcelo tem sintomas depressivos e é descrito como o filho mais distante da mãe.

Já Margarida é a quinta filha de um casal, também separado, desde seus cinco anos. A família já teve diversas perdas em sua geração: a irmã de Margarida por uma complicação no parto de suas filhas gêmeas, um irmão faleceu devido a um infarto fulminante e outro assassinado aos 14 anos em um assalto. O pai de Margarida teve um novo relacionamento após a separação e teve uma filha, com 23 anos hoje, com quem Margarida e os irmãos não têm contato. Ela descreve o pai como muito ausente ao longo de sua vida, assim como seu avô materno que “fazia filho e ia embora” [sic].

A mãe de Margarida mora sozinha e ajuda a cuidar dos netos nos turnos inversos à escola. Em comparação à família de Marcelo, a família de origem de Margarida mantém conexões mais presentes entre seus membros, principalmente após a morte prematura da irmã mais velha, que acionou a avó e os irmãos a ajudarem a criar as gêmeas. Ainda assim, a mãe de Margarida relata um distanciamento emocional na relação com os filhos. Margarida refere: “Eu guardava muito pra mim [os problemas na infância e adolescência], até hoje, sou muito de guardar as coisas pra mim. Fico sofrendo sozinha num canto, mas não desabafo” [sic], indicando funcionamento parecido com o marido. Ambos reconhecem e explicam este distanciamento afetivo das mães em momentos de conflito por medo de preocupá-las ou magoá-las.

Por outro lado, em relação à parentalidade, a reatividade emocional de Margarida também aparece por meio de críticas, gritos e discussões. Descreve tentar estabelecer um diálogo com os filhos em primeiro lugar, porém, diante do comportamento de birras ou desafios deles, responde com punições emocionais ou castigos físicos, como palmadas e puxões. Conforme as palavras de Margarida: “Ela [Luisa] é meio birrenta ‘mãe chata, mãe feia", daí eu falo ‘tu vai falar assim com a mãe, então tá, a mãe não vai mais falar contigo então, tu não vai te arrumar, não vou mais conversar contigo’” [sic].

É possível perceber semelhanças nas famílias de origem do casal, já que ambos são filhos mais novos e vieram de famílias com condições socioeconômicas bastante precárias, com mães muito trabalhadoras e pouco presentes. Ambos referem que se criaram sozinhos, com o apoio das irmãs mais velhas. Assim, os dois têm o perfil de lidar com os problemas sozinhos, funcionamento que Luisa, progressivamente, tem assumido. No caso de Marcelo, parece predominar o distanciamento emocional, enquanto para Margarida, aparecem situações de rompimento, mas também momentos de expressão da raiva para fora. De qualquer forma, o sistema parece apresentar nível de funcionamento mais fusionado.

Em relação à família nuclear, a família descreve Luisa como uma criança que se emburra quando as coisas não ocorrem como gostaria, sendo autoritária e testando limites. Os pais acrescentam que a filha é independente e tem o temperamento forte das mulheres da família de Marcelo.

 

Discussão

Nesta seção, os três casos pesquisados serão abordados a partir dos pressupostos teóricos de Bowen, contrastando suas semelhanças e diferenças.

Sobre a parentalidade, Chan (2015) descreve mecanismos e padrões possíveis de relacionamento diante da ansiedade crônica da família [fusão], em que a criança recebe uma quantidade maior de ansiedade dos pais, reduzindo a sua energia para perseguir seus próprios interesses e objetivos, o que parece surgir de forma mais evidente na família de Luciane. As famílias pareceram apresentar mecanismos de conflito conjugal e disfunção em um dos cônjuges também, embora estejam mais claramente identificáveis nas famílias de Maria Clara e Luisa.

Na família de Maria Clara, o casal parece estar reproduzindo o mecanismo da geração de seus pais, que tiveram conflitos conjugais, com presença de ciúmes e brigas. Conflitos entre a dupla parental, que aumentam a tensão em torno da criança, e conflitos conjugais, que resultam em um hiperfoco na criança por parte de um dos cônjuges e distanciamento do outro em relação à criança também são mecanismos de enfrentamento da fusão (Kerr & Bowen, 1978).

Na família de Luisa, Marcelo aparece como um cônjuge mais disfuncional devido aos sintomas depressivos. A disfunção de um dos cônjuges também sinaliza o padrão de funcionamento mais fusionado do sistema (Bowen, 1991). Marcelo tende a expressar a raiva para dentro e distanciar-se emocionalmente, o que é compatível com o que a literatura descreve sobre a expressão da raiva para dentro mediar o desenvolvimento de sintomas depressivos (Choi & Murdock, 2017). Esse funcionamento repercutiu nas estratégias que Marcelo usa para lidar com a educação dos filhos, distanciando-se deles e da esposa e, possivelmente, sobrecarregando-a e favorecendo atitudes mais reativas. Ele foi o único que referiu uma estratégia de afastamento emocional para lidar com momentos de conflitos, descrevendo a dificuldade de manter-se presente na relação com eles nestas situações. Isso é condizente com a descrição da literatura sobre o rompimento ser uma forma de enfrentamento da fusão do sistema (Bowen, 1991; Fischer, 2006; Sohrabi et al., 2013).

No caso da família de Luciane, por sua vez, foi possível identificar de forma clara o padrão de repetição transgeracional do funcionamento familiar por meio do mecanismo de desenvolvimento de problemas emocionais na filha como enfrentamento da fusão do sistema. Esta família demonstrou práticas educativas de controle e disciplina consistentes, tendo predominado o diálogo, entre pais e filha, diferentemente do que os estudos sugerem de que práticas inconsistentes e discordantes estão relacionadas a sintomas internalizantes e externalizantes (Mosmann, Wagner & Sarriera, 2008; Nunes et al, 2013; Yap & Jorm, 2015; Scott, 2009). A teoria, portanto, contribui para a compreensão destes sintomas integrada no funcionamento fusionado dos sistemas familiares de origem e das características de diferenciação dos pais.

De modo geral, a diversidade de práticas educativas de controle e disciplina foi grande entre as famílias e as gerações, porém castigos físicos estiveram presentes em momentos mais desafiadores da criança. Nestes casos, os pais compreendiam que nada mais tinha dado certo, o que sugere que essas punições foram utilizadas em momentos de grandes conflitos e maior ansiedade, como resultado de maior reatividade emocional. Conforme proposto por Smith (2001), a capacidade de exercer a parentalidade de forma madura e não-abusiva é associada a níveis reduzidos de reatividade emocional, o que se mostrou um desafio para os pais das famílias de Luisa e Maria Clara. Ainda, corroborando esta análise, Laura demonstrou evidente dificuldade em assumir a posição “eu”, ilustrada pela postura de recuar no estabelecimento de castigos de privação ou na manutenção de regras.

Dessa forma, percebe-se que aspectos da parentalidade como práticas de controle e disciplina apareceram relacionadas ao padrão de fusão do sistema, por meio da reatividade e do rompimento emocionais. Práticas mais inconsistentes ilustraram as dificuldades dos pais em se posicionarem de forma autônoma, tendo atitudes mais baseadas na emoção e menos na razão (Skowron, Holmes & Sabatelli, 2003).

Nesse sentido, práticas educativas abusivas refletem menor nível de individuação e promovem funcionamento mal adaptativo do sistema. Então, indivíduos que se envolvem em maus tratos tendem a descarregar ou se afastar emocionalmente de seus filhos na tentativa de manejar a ansiedade e reduzir a agitação e a excitação (Rodríguez-González & Skowron, 2015; Skowron & Platt, 2005).

É possível identificar esse mecanismo de funcionamento na família de origem do pai de Luciane. Luciano não reproduz a fusão familiar desta forma, porém, apesar de sua tentativa de assumir uma posição “eu”, sua função parental na família de origem denuncia o funcionamento familiar mais fusionado. Na família nuclear, a dinâmica fusionada aparece predominantemente por meio do desenvolvimento de problemas emocionais na filha. Entretanto, segundo a mãe de Luciano, o casal apresenta conflitos devido ao comportamento explosivo dele, já tendo cogitado a separação. Esse dado sugere que os sintomas da menina tiram o foco de conflito do casal, amenizando a ansiedade do sistema (Bowen, 1991).

Na família de Luisa, principalmente, outro fator que parece estar relacionado ao nível de individuação dos membros do sistema é o número de eventos estressores na família. Lutos por morte, separação e divórcio permeiam a história familiar, principalmente de Margarida. A relação entre eventos estressores e o nível de fusão do sistema é descrito pela literatura (Dohrenwend, 2006; Peleg, 2014) e parece contribuir para a compreensão da reatividade e do rompimento emocionais presentes na família.

 

Considerações finais

A partir da teoria Boweniana, foi possível relacionar os conceitos com os processos parentais, compreendendo as situações disciplinares como conflitivas e mais sujeitas a reatividade emocional e rompimento. Os relatos familiares indicam que os mecanismos propostos pelo autor de enfrentamento da ansiedade familiar, como surgimento de sintoma em um dos cônjuges ou na criança e conflitos conjugais, podem ter estado presentes de forma simultânea em alguns momentos da história de vida das famílias, contribuindo para a transmissão dos níveis de diferenciação de self para as gerações seguintes.

Ainda, variáveis de personalidade e psicopatologia dos pais estiveram presentes nos casos e parecem impactar na parentalidade e em seus modelos. Na família de Luisa, os sintomas depressivos de Marcelo parecem relacionados ao seu distanciamento emocional dos filhos e da esposa nas situações de conflito, o que pode sobrecarregar a esposa no exercício disciplinar dos filhos, resultando em atitudes mais reativas emocionalmente, como práticas agressivas e de birras.

Já na família de Luciane, a psicopatologia do avô paterno claramente refletiu na forma como Luciano percebeu sua relação com o pai e em como ele procura exercer suas funções parentais com a filha. Por outro lado, neste caso, destaca-se a relevância das características emocionais e comportamentais de Luciane e de seu sintoma internalizante. É possível que o perfil da filha dê a oportunidade para Luciano exercer a parentalidade como idealiza, apenas com o diálogo e sem violência física ou psicológica, ao contrário do pai. Nesse sentido, evidencia-se o entrelaçamento de características dos pais e dos filhos, no qual uma contribui para o desenvolvimento da outra.

Em relação à repetição de práticas parentais, percebe-se que houve uma manutenção das estratégias da geração anterior por parte de Juliane e uma mudança significativa por parte de Luciano, predominando práticas da família materna. De qualquer forma, as características dos filhos podem acionar estratégias mais ou menos intensas e mais variadas do que aquelas idealizadas pelos pais, como também é ilustrado pelas dificuldades de Laura de ser consistente com Maria Clara.

Maior número de estressores de vida, como lutos, divórcios, reprovações escolares parecem estar ligado a sistemas menos diferenciados e a um processo de transmissão multigeracional mais rígido. Assim, variáveis contextuais como o desenvolvimento educacional e o crescimento socioeconômico das famílias merecem destaque, já que parecem contribuir para novas formas de lidar com a reatividade emocional, inclusive através da abertura para busca de atendimento psicológico.

Assim, destaca-se a relevância destas reflexões para a prática clínica, não apenas com crianças, adolescentes e famílias, mas também com adultos, no sentido de prevenir e promover o desenvolvimento de pais mais individuados e mais esclarecidos sobre os padrões de funcionamento de suas famílias. Conclui-se, ainda, que a articulação entre a teoria Boweniana e o modelo parental sócio-contextual contribui para uma compreensão mais ampla sobre o funcionamento familiar atual e transgeracional.

O estudo apresentou como potencialidade a investigação de um tema restrito na literatura brasileira e a proposta de relacionar a teoria de Bowen com o subsistema parental, além de coletar dados com três gerações de cada núcleo familiar, oportunizando uma visão mais ampla dos processos transgeracionais. Entretanto, na geração das crianças dos núcleos familiares pesquisados, predominaram as filhas meninas, limitando, possivelmente, os achados nesse sentido, uma vez que as gerações de pais e avós demonstraram expectativas diferentes sobre os comportamentos esperados de meninas e meninos. Um outro estudo seria necessário para aprofundar tais questões, assim como variantes culturais de contextos diversos do universo alvo desta pesquisa.

 

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Endereço para correspondência
Élida Fluck Pereira Neto
E-mail: elidafpneto@gmail.com

Luciana Suárez Grzybowski
E-mail: luciana.sgrzybowski@gmail.com

Enviado em: 16/05/2020
1ª revisão em: 26/06/2020
Aceito em: 31/06/2020

 

 

1 Psicóloga (CRP 07/21543); mestre em Psicologia e Saúde (UFCSPA); especialista em terapia sistêmica individual, de família e de casal (CEFI); especialista em saúde da criança (RIMS-HCPA).
2 Psicóloga (CRP 07/08610); doutora em Psicologia (PUC-RS); mestre em Psicologia Clínica (PUCR-RS); docente de graduação e pós-graduação (UFCSPA).

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