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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.24 no.2 Porto Alegre jul.dez. 2020

 

ARTIGOS

 

Influências da transgeracionalidade em gestantes primigestas

 

Influences of transgenerationality on primigravidae pregnant women

 

 

Raquel Marques Benazzi Guirado1, I ; Ivonise Fernandes Motta2, I

I Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, a transgeracionalidade pode ser vista como essencial na formação da identidade materna e em toda sua carga psíquica, como costumes, ideias, valores, traumas, fardos e segredos que envolvem a gestante e que terão influências na construção de sua identidade. Assim, busca-se constatar e determinar as influências da transgeracionalidade nas mães primigestas, por meio de uma entrevista semidirigida, sendo feita, posteriormente, sua análise de conteúdo. A gestante selecionada tem as avós da criança vivas e presentes, tanto materna quanto paterna, o que permite diferenciar a influência que cada família exerce. A partir da entrevista, foi possível notar que a gestante sofre muita influência maternal e, realmente, a presença, as ideias e os costumes fazem-na abdicar com frequência dos seus conceitos para seguir os da família, muitas vezes trazendo frustração à nova mãe, que não se sente livre para exercer seu papel materno em seu modelo ideal.

Palavras-chave: Primigesta, Herança, Familiar, Transgeracionalidade.


ABSTRACT

In this work, transgenerationality can be seen as essential in the formation of the maternal identity and in all its psychic load, such as customs, ideas, values, traumas, bundles and secrets that involve the pregnant woman and that will have influences in the construction of this identity in constitution. Therefore, this work seeks to establish and determine the influences of transgenerationality in primigravidae mothers, by a semi-directed interview, which the content analysis was done. The selected pregnant woman has the grandparents of the child alive and present, both maternal and paternal, in order to differentiate the influence that each family has on this pregnant woman. From the interview, it is noticed that the pregnant woman suffers a lot of maternal influence, and indeed the presence, ideas and customs make the pregnant woman frequently abdicate her concepts to follow those of the family, which often brings frustration to the new mother, for not feeling free to play their maternal role in their ideal model.

Keywords: Primigravidae, Family heritage, Transgenerationality.


 

 

Introdução

A gravidez é um momento único e de união entre o homem e a mulher, mas, quase sempre recheado de alguma influência familiar. O conteúdo psíquico do casal genitor é preenchido com o repertório dos avós, e pode ser repassado para o bebê. É importante que essa nova mãe possa perceber seus valores e costumes, absorvidos com sua família, e consiga, assim, ter a sua própria maternagem, impondo limites na herança negativa e agregando os valores positivos que gostaria de ter em seu papel materno. Sabe-se que a gestação é um momento de transformação e mudança na vida da mulher, assim como a menarca, a menstruação, a adolescência e o casamento. A gestação do primeiro filho é considerada o momento de maior angústia para a gestante, devido à relação com o desconhecido, com o novo. Segundo Tedesco et al. (2004) a gestação pode ser considerada um momento único e especial na vida da mulher, caracterizada como um período em que as sensações se confundem com incertezas, inseguranças, medos e angústias.

É um momento de transição, parte natural de seu processo de desenvolvimento, e envolve a necessidade de reestruturação e reajustamento em várias áreas da vida pessoal e profissional, iniciado pela troca do papel de mulher para o de mãe. Deve-se, também, considerar a história pessoal da gestante, seu passado obstétrico, o contexto da gravidez, sua idade e seu vínculo com o parceiro, a fim de entender o que esse momento significa na vida da gestante (Baptista et al., 2006).O processo gestacional surge a partir da criança imaginária que a mãe e o pai produzem em seu inconsciente e suas fantasias, que irão escolher um nome com inúmeros significados simbólicos, como herói, esperto e calmo, o que inicia uma relação com esse bebê (Silva, 2003).

Para Winnicott (2002), nesse período de nove meses, pode-se perceber uma transformação na mulher, que passa de um tipo egoísta àquele de se preocupar com o outro, e isso também é observado em sua família, que se conecta a ela e passa pela mesma transformação. A natureza traz o bebê à mãe e ambos têm que se adaptar; ao começar a se identificar com esse bebê ainda na barriga, ocorre algo como uma regressão da mãe. Assim, ela se torna profundamente envolvida e dedicada a seu bebê. Qualificada por Winnicott (2002) como mãe suficientemente boa, tendo flexibilidade para perceber seu filho e suas necessidades, que irão oscilar durante o processo de maturação. Essa mãe tem a sensibilidade de poder “estar” no lugar de seu filho, respondendo às suas necessidades corporais e emocionais. Possui falhas, gera frustração, porém pode ser bem-sucedida ao nunca deixar seu bebê desamparado, promovendo necessidades egóicas até o momento em que este filho tenha uma mãe introjetada, que apoie seu ego. A mulher que está ligada às influências, ou aos conceitos familiares, ainda está conectada ao self familiar e, quando ela inicia essa diferenciação, fazendo uma espécie de desmame, cria seu próprio self e sua própria identidade materna. Podem ocorrer algumas falhas no aspecto “suficientemente bom” dessa mãe, de não conseguir suprir todas as necessidades do filho, mas isso faz parte dessa mãe dedicada comum. Não se trata de negar o arquétipo da grande mãe, ou seja, a mãe boa, que nutre, oferece calor, dá cuidados e protege ferozmente contra os males da humanidade, mas sim reconhecer que se trata de um ser humano e, como tal, erra e acerta constantemente (Souza Junior, 2018).

Considera-se o nascimento de um filho uma experiência familiar, pois, desde a descoberta da concepção, já existe, nos futuros pais, uma organização de fantasias e expectativas ligadas a esse bebê. Biologicamente, a gravidez começa com a concepção psicológica, dentro da qual já estão reservados padrões familiares a serem seguidos (Rappaport et al., 1981). Sabendo-se que a gravidez acarreta mudanças tanto para a mulher quanto para o meio no qual está inserida, é possível perceber que a família tem um papel importante nessa fase. A família é o vínculo das experiências em que a Psicologia e a Psicanálise estão envolvidas. Uma das grandezas da Psicanálise está em perceber o indivíduo dentro do grupo familiar, considerando o que é do coletivo e o que é individual (Poster, 1978). A gravidez e o nascimento de um filho podem trazer crise não só para a mãe, mas também para a família, gerando um trauma na fase adaptativa, em relação à chegada do bebê (Motta, 2006).

A presença de mulheres experientes e que tenham vínculo com a gestante, no caso mãe, sogra, tias, irmãs e primas, pode auxiliar durante esse período (Winnicott, 2011). Winnicott (1967) assinala que, ao se falar de um sujeito, fala-se também de sua cultura e de uma soma de suas experiências. Cultura significa o campo no qual se encontram as experiências de vida individual e das outras gerações, com destaque significativo para os mitos e a transmissão de conceitos familiares. É nela que a criatividade e a singularidade podem acontecer, pois esse singular só é possível por ter uma tradição como base.

Desde a gestação, dentro da família nuclear e de origem, ocorre uma nova configuração familiar feita pelos seus próprios membros. Cada grupo constrói sua origem e suas histórias e passa isso à nova família que inicia. Assim, essa gestante se sentirá incluída, e não solitária, pois terá uma história em comum com a família de origem, compartilhando a crença no mito de origem e confirmando a criação do mesmo tipo familiar (Gomes, 2016).

Gomes (2016) afirma que o aparelho psíquico familiar é a fusão da psique de cada indivíduo, formando assim o grupo familiar. Por ter aspectos da psique de cada um, essa nova mãe recebe, na transmissão psíquica, alianças inconscientes, espaços psíquicos comum e partilhado que permitem perceber sua herança e, portanto, conseguir se individualizar (Kaës, 2001). Entretanto, quando não ocorre a individualização, percebem-se, muitas vezes, a repetição e os conceitos familiares do grupo, inclusive os pontos negativos, como violência familiar e conjugal, abandono do filho e algumas patologias. O ser filha significa ter um potencial herdado da mãe, ligado diretamente ao cuidado materno recebido, o que inclui seu desenvolvimento e crescimento. O cuidado materno dispensado a uma filha, se for suficientemente bom, traz a ideia de que ela, mais tarde, terá condições de cuidar de si mesma e de seu filho (Winnicott, 1979/1983).

Refletindo sobre os diferentes valores da maternidade e o papel da mãe, desde a Idade Média até a atualidade, no Ocidente, Gradvohl et al., (2014) observam as mudanças decorrentes das relações biológicas e afetivas estabelecidas entre mãe e filho ao longo dos últimos anos. Apontam que o avanço tecnológico aplicado à medicina reprodutiva, também, trouxe novas configurações familiares. Neste contexto, a maternidade e a maternagem aparecem com novos vínculos biológicos e são questionados os papéis de gênero nos cuidados com os filhos. A mãe já não é a única cuidadora e responsável pela vida da criança.

Não há dúvidas de que o sujeito só existe em meios relacionais, sendo o primeiro a família de origem, no caso pai e mãe. Nessa relação, inicia-se a estrutura da personalidade, a dimensão individual do sujeito, a partir da experiência relacional acumulada, e assim se faz um diálogo entre eles, passado e futuro, unindo o individual com o familiar (Linares, 2014). Desse modo, família é a trama na qual o sujeito se constitui no início da vida, contribuindo para o psiquismo, em que os laços modelam o sujeito para as relações sociais. Trata-se de um conglomerado vincular com regras específicas; o essencial é que o papel constituinte do vínculo familiar não se conclui na infância, uma vez que os laços continuam dando continência e amparo às estruturas psíquicas do sujeito, para as quais Moguillansky (2011a) dá o nome de transgeracionalidade.

Transgeracionalidade é o processo de transmissão de conceitos, ideais, costumes, emoções e cuidados. A transmissão transgeracional é psíquica geracional e implica comportamentos e ideias que têm o predomínio da repetição e do narcisismo. Encontram-se, nas gerações, o impensável, o indizível, os costumes e as histórias. O fenômeno se inicia muito cedo e segue ao longo da vida, contemplando a transmissão de legados, crenças, mitos e padrões da família de origem para a nova constituição familiar (Schulz & Colossi, 2020). A nova geração, herdeira, traz consigo uma história já existente; é como se fosse um copo que já está meio cheio, com toda a história familiar, somente com o conteúdo que sabe da vida familiar e que irá se reproduzir em sua vida e de seus filhos (Puget, 2000).

Dentro dessa teoria, Kaës (1998, p. 14) ressalta que “o inconsciente de cada indivíduo leva a marca, na sua estrutura e nos seus conteúdos, do inconsciente de um outro, e, mais precisamente, de mais de um outro”. Dessa forma, o material da vida psíquica da família é transmitido por gerações. Ainda, segundo o autor, as principais transmissões estão relacionadas a “aquilo que não se retém, aquilo de que não se lembra: a falta, a doença, a vergonha, o recalcamento, os objetos perdidos, e ainda enlutados” (p. 9). Assim, o que é transmitido não tem a possibilidade de alteração e de elaboração por um outro. Essas identificações, muitas vezes, alienantes, estão ligadas a vergonhas familiares ocultas ou conflitos ainda não elaborados vividos por gerações antecedentes (Moguillansky, 2011a). A transgeracionalidade pode não beneficiar a geração seguinte, porque se encontra num estado de “suspensão” – situação que poderia ser trazida para um processo de metabolização e de integração dos conteúdos, possibilitando uma transferência pouco criativa (Kaës, 1998). Pode, inclusive, criar obstáculos para a formação do sujeito, ao torná-lo hospedeiro de uma história que não lhe pertence, mas tem origem em gerações anteriores (Padilha & Barbieri, 2020).

Além dos aspectos negativos e alienantes, a família também transmite pontos positivos, como “aquilo que ampara e assegura as continuidades narcísicas, a manutenção dos vínculos intersubjetivos, a conservação e complexidade das formas e da vida: ideais, mecanismos de defesa, identificações, certezas, dúvidas” (Kaës, 2001, p. 9). Essas transmissões ocorrem em relações diretas, nas quais se têm espaço para a metabolização e, assim, o material se torna positivo e é repassado às novas gerações, recebendo o nome de intergeracionalidade (Trachtenberg et al., 2005). O mecanismo clássico de transmissão é aquele em que os avós depositam inconscientemente seus desejos, esperanças e fantasias em seus netos e filhos. Dessa maneira, quando os filhos engravidam, convertem-se em atores de dramas familiares de seus pais e vivenciam as expectativas deles, não suas próprias (Silva, 2003).

Quando o progenitor, no caso uma mãe, invade a mente de sua filha gestante, trazendo segredos de uma situação vivenciada apenas por ela, ocorre uma relação parasitária na qual a filha é entretecida com a dolorosa e clivada história de sua mãe, tornando-se cativa da sua própria história. A receptora, no caso a filha gestante, pode terminar por alienar o seu próprio psiquismo e se identificar com essa história, que não lhe pertence, como forma de cumprir uma finalidade narcisista própria de pertencimento familiar e de identificação parental (Trachtenberget al., 2005). Seu bebê já nasce com a missão de cumprir os preceitos e legados da família, e esse conceito pode ser observado desde a gravidez. A mãe passa, pelo inconsciente, toda a estrutura familiar que aprendeu, e ele já nasce com a carga genética dos costumes familiares (Puget, 2000). A constituição psíquica do bebê se alimenta e necessita do narcisismo e dos desejos inconscientes dos pais, o que, muitas vezes, é o desejo dos avós, trazendo a continuidade das gerações. Com frequência, esse conceito geracional, de herança e de potencial herdado, torna-se parte do indivíduo, que não se reconhece no âmbito individual, mas somente no familiar.

O conceito de potencial herdado da família, no caso a transgeracionalidade, seria o self familiar no qual se constitui o potencial de cada família, que dará origem a cada self individual. O self central de cada pessoa é o seu potencial herdado da família, que dará continuidade à existência dela. Nele, pode-se incluir o conceito de mãe suficientemente boa, que, como visto anteriormente, é a que alimenta a onipotência de seu filho. Por isso, o bebê, com as reiterações da força da mãe ao seu ego fraco, tem a possibilidade de construir seu verdadeiro self. A mãe que não alimenta essa onipotência e foca apenas em seu próprio eu e em suas necessidades não é suficientemente boa (Winnicott, 1979/1983).

Percebe-se, então, dois caminhos possíveis para a mãe: exercer o seu self individual, pois teve uma mãe suficientemente boa, e conseguir, assim, se diferenciar do self materno e familiar, criando sua própria identidade materna; ou quando não se teve uma mãe suficientemente boa e por medo de permitir que sua identidade apareça, utilizar o falso self e passar a ter uma identidade materna condizente com o self familiar e com o que é esperado por essa família. Quando o self individual está habitado por outro, a experiência é de ser o outro, e não si mesmo, e a gestante se sente como a própria mãe ou avó, e não como ela mesma. Se isso ocorrer na infância, a mulher não conseguirá ter uma estrutura psíquica própria e autônoma (Silva, 2003).

Como o self individual está contido no self familiar, o mais importante seria que ele se diferenciasse da massa indiferenciada, que é o ego familiar. Esse processo de diferenciação é longo e difícil, um produto de várias gerações, tendo a compreensão dos complexos padrões da interação familiar, os quais se constituem principalmente por meio de triângulos, ou seja, relações entre três pessoas, ou de um terceiro em uma relação dual, como um emprego, um objeto ou até mesmo um animal (Cerveny, 2014). Dessa forma, quando não ocorre a diferenciação, a linguagem familiar se torna mais significativa do que a própria voz materna e impõe a essa mãe uma série de termos sobre como agir e como ter afeto pelo próprio filho. Ainda considerando o conceito transgeracionalidade, a mãe deve tentar se individualizar do self familiar, pois o psiquismo materno é o que faz o psiquismo do filho. Logo, se não se tem a individualização, os conceitos geracionais serão transmitidos desde a gravidez a infância. A ausência dessa mãe, como ser único de sua maternagem, marca o vazio no psiquismo da criança, que se sustentará somente pelo grupo. Assim, a psique materna tem a função de modelar o bebê a partir de seus conceitos, permitindo-se diferenciar dos familiares e criando seus próprios conceitos, pois a mãe é a porta-voz do filho, mas deve passar a ele a individualidade, e não somente a carga geracional (Trachtenberg et al., 2005).

Não há dúvidas de que o sujeito só existe em meios relacionais, sendo o primeiro a família de origem, no caso pai, mãe e filhos. Nessa relação, inicia-se a estrutura da personalidade, que seria a dimensão individual do sujeito a partir da experiência relacional acumulada, permitindo um diálogo entre eles, passado e futuro, e unindo o individual com o familiar (Linares, 2014).

A família de origem é o sistema relacional de maior relevância no que diz respeito à construção da identidade e da personalidade. Como a família está em constante mudança, consequentemente a personalidade pode se alterar ao longo dos anos. Quando um casal inicia sua vida conjugal e decide fundar uma família, ele se isola do mundo externo, que voltará a ser desfeito e externalizado quando o filho necessitar do social, como ocorre muito na adolescência. No mesmo raciocínio, as figuras parentais também podem mudar de acordo com o ciclo vital familiar. De início, podem ser mais autoritários e com o passar dos anos se tornarem flexíveis, porém a organização permanece a mesma, e o papel que cada um exerce será de acordo com a estrutura familiar (Linares, 2014).

O sujeito começa a existir no psiquismo materno, antes mesmo de nascer, no imaginar da mãe, que institui no filho os paradigmas sociais nos quais deseja envolvê-lo. Percebe-se, então, que entre as gerações circulam os desejos, as ideias e as tradições familiares, que serão determinantes na individualidade de cada um, incluindo esse ser nos vínculos familiares preexistentes (Moguillansky, 2011a).

Considerando o conceito de transgeracionalidade, a mãe deve tentar se individualizar do self familiar. Sem a individualização, os conceitos geracionais serão transmitidos desde a gravidez à criança. A ausência dessa mãe, como ser único de sua maternagem, marca o vazio no psiquismo da criança, que se sustentará somente pelo grupo. Assim, a psique materna tem a função de modelar o bebê a partir de seus conceitos, ao permitir-se se diferenciar do familiar e criar seus conceitos, pois ela é a porta-voz do filho, mas deve passar a ele a individualidade, e não somente a carga geracional (Trachtenberg et al., 2005).

A mãe está presente na relação com seu filho como avó e/ou bisavó, com toda sua história e relação, com as questões do meio em que viveu e, se houver a diferenciação dessas histórias, ela consegue exercer o seu próprio cuidado materno (Silva, 2003).

 

Método

O método da pesquisa é de estudo de caso. Ventura (2007) explica que o estudo de caso visa à investigação de um caso específico, bem delimitado, em um determinado tempo e lugar, para fazer uma busca circunstanciada de informações. O caso relatado é o de uma gestante primigesta, com idade de 32 anos e 35 semanas de gravidez, com gestação de baixo risco, casada, com outras mães influentes na família, e sem diagnóstico de psicopatologia. Os dados foram coletados a partir da aplicação de uma entrevista semidirigida com a gestante e, posterior, análise de conteúdo.

Entrevista

A gestante entrevistada, nome fictício Flora, foi selecionada por indicação de sua ginecologista obstetra, que concordou com a realização da pesquisa. A pesquisadora entrou em contato telefônico para agendar a entrevista com Flora. A entrevista foi realizada na residência da gestante, por essa se sentir mais confortável. A entrevistadora dirigiu-se, à noite, à casa da participante. O encontro transcorreu de forma tranquila e com bastante receptividade por parte da entrevista.

Após as apresentações, a pesquisadora explicou sobre a pesquisa e como ela iria ocorrer. Flora compreendeu, leu e assinou o termo de consentimento, mostrando-se ansiosa para o início da entrevista. Assim, muitas informações foram descobertas como uma forma introdutória ao que a pesquisa se propunha. A seguir, os resultados da entrevista são apresentados.

 

Resultados e Discussão

Flora, 32 anos, casada, primigesta, com 35 semanas de gestação, reside no interior de São Paulo. Sua residência fica a cinco horas da sua família, onde residia anteriormente. Mora com seu marido em uma das casas de sua sogra. A família do marido é de sua cidade atual e reside próxima ao casal. O contato com a família de Flora é menos intenso, devido à distância. O filho é do sexo masculino e o nome ainda não foi definido, embora os pais tenham duas opções. A gestante relata também que muitas vezes acredita que, quando o bebê nascer, irá dar um nome distinto desses já escolhidos. Quando relata os nomes, descreve um sonho no qual o filho tinha um ano e ainda não tinha nome definido, então ela perguntava qual nome ele gostaria de ter, e ele respondia um outro nome, que não era nenhum dos dois escolhidos pelos pais. Nesse momento, ela tem uma risada nervosa, ainda desconfortável com a falta de identidade do filho. Também relata que o quarto do bebê ainda não está pronto, assim como a mala da maternidade. Flora é profissional liberal e trabalha 13 horas por dia, o que, para ela, é um dos fatores de não conseguir executar todas as tarefas que gostaria em relação à gravidez.

A gestação não foi planejada ou desejada, então, de início, ela demorou quatro meses para descobrir e acreditar na nova fase de sua vida. No dia da entrevista, relatou já ter aceitação, e hoje desejar ser mãe. A participante declarou ter sentido algumas dores físicas, já superadas. Relatou ter como angústia a impotência – o lado emocional mais difícil é o fato de perder o controle de sua vida e ter que viver tudo sozinha, pois as mudanças nessa fase são em seu corpo.

Sobre sua família e a gravidez, Flora se emocionou e falou que esperava receber apoio da família, mas que isso não aconteceu e foi uma frustração para ela. A família não esperava sua gravidez. Sua mãe queria que ela focasse na profissão e tinha muitas expectativas para ela, que é a única filha mulher entre três irmãos. Flora relatou que foi um trauma, e ainda o é, falar da gestação e do filho para sua família, sobretudo para sua mãe e sua avó, que não compreendem suas decisões tampouco os cursos de amamentação, as rodas de gestante e o quarto montessoriano. Acham que tudo é desnecessário e moderno e que apenas elas sabem o que é certo para o bebê, pois sabem como é ser mãe. Isso a deixa angustiada, pois acredita que cada uma faz a maternidade pensando no que é bom para si.

Quando falou da família do marido, apresentou outro semblante, trazendo a ideia de surpresa pelo acolhimento que teve e que, hoje, se sentia amparada por eles, sobretudo por sua sogra, que tenta vivenciar tudo com ela. Nesse momento, Flora se tornou emotiva, percebendo-se que há um pouco de culpa no relato da sua mãe. Disse que a mãe também trouxe boas influências, como os comportamentos e o modo de criação do filho. Apesar das palavras não trazerem acolhimento, Flora pensa em ser uma mãe como a dela, em ter um parto normal e abdicar de sua vida pelo filho, que é a ideia que sua mãe sempre lhe passou. Já de sua sogra, Flora disse que gostaria de ter o acolhimento e a paciência. Como aspectos negativos, citou a ideia fixa de sua mãe sobre a melhor maternidade ser a dela e ter tentado lhe impor isso; quanto à sua sogra, citou o fato de ela não ter rotina e mimar demais todos ao redor.

Sobre a relação com a mãe e com as avós, Flora disse que com a mãe é cautelosa. Tem de pensar antes de falar, para não gerar discussão, o que a incomoda, pois só queria ter o seu acolhimento. Com sua avó paterna, de início, durante a infância, disse ter sido difícil, embora, com o tempo se vincularam e hoje sente seu amor incondicional. Coma avó materna sempre foi mais ligada. Porém, a avó sempre foi muito preocupada com limpeza e, assim que soube que seria bisavó, veio à cidade e quis lavar todas as roupas do bisneto.

Flora chora ao falar da família e disse que, apesar das dificuldades atuais com a mãe, acredita que a relação delas, após a gravidez, mudou para melhor. Tenta valorizar o que a mãe fez por ela e tem medo de o filho carregar esses sentimentos ruins da avó, que são dela, pela frustração de não receber apoio materno.

Foi possível perceber que, com a dimensão racional, a gestante lida bem, consegue ter a mãe perto, porém tem muita mágoa pela falta de empatia e apoio, também porque não sabe como resolver isso. Já tentou falar com a mãe uma vez, mas elas discutiram, sendo que Flora falou tudo o que sentia e a mãe pediu perdão, porém as críticas continuam, e ela não sabe como colocar os limites necessários para não sofrer mais.

Para finalizar a entrevista, perguntou-se sobre o seu papel materno, se ela se sentia realizada com ele, o que mudaria em sua vida. Respondeu que não se sentia pronta ainda, que faltava paciência para esse momento. Gostaria de ter o parto normal, como sua mãe, mas que também queria ser diferente dela, na parte emocional, e conseguir ser amiga de seu filho – algo que sua mãe não fez com ela.

 

Análise e Discussão do Caso

Dentro da narrativa de Flora, tendo o segundo item da pesquisa como base, no qual as perguntas estão relacionadas à gestação, pode-se iniciar a análise pela dificuldade de a gestante se perceber grávida. No sentido afetivo emocional, pode-se referir a falta materna, tanto dela como filha quanto da mãe. Sabe-se que as relações familiares são as primeiras a influenciar a nova mãe, desde a sua gestação. Flora, mesmo estando no último trimestre, momento em que deveria ter uma conexão maior com seu filho, parecendo ainda estar conectada ao papel de filha. Nessa reflexão, percebe-se que Flora não consegue ainda exercer o que Winnicott (2002) chama de mãe suficientemente boa, pois está completamente ligada à sua mãe, que também não soube exercer esse papel de maternal, deixando a gestante desamparada nesse processo frágil e transitório, que é a gravidez.

Sem o acolhimento materno, muitas vezes, pode ser difícil assumir o papel de mãe. Flora parece declarar essa dificuldade. Entretanto, afirma querer ser uma mãe diferente da que teve, o que leva a pensar na negação do jeito de ser da mãe.

A gestação é um evento complexo, principalmente no terceiro trimestre, quando se apresenta ansiedade com o parto e os momentos finais de sua organização (Maldonado, 2005). No caso de Flora, parece realmente existir essa ansiedade pelo parto e por querer seguir o que sua mãe lhe passou, isto é, o parto normal, porém a conexão com a gravidez não existe. Ela parece não se mostrar conectada ao filho, por não ter definido o seu nome nem o quarto ou as malas para a maternidade. Levando-se em conta que a gestação, além das mudanças físicas, é também um resgate das relações parentais (Borsa, 2006), essa possível desconexão de Flora com seu filho pode ser considerada natural na medida em que se percebe a relação entre ela e a mãe. As bases para a construção materna têm início na infância, na interação com as figuras femininas, especialmente com a mãe (Carlesso et al., 2020). O modelo materno é repetido e imitado, mas muitas vezes pode ser negado e nunca replicado. Durante todo o processo de entrevista, a relação materna se mostrou complicada e sem acolhimento.

Ainda na segunda questão da entrevista, na qual se pergunta sobre sintomas físicos da gestação, Flora ainda não se sente grávida pela questão corporal. Ela se preocupa com o corpo e demonstra isso na entrevista e no teste. Ela quer o parto normal, para voltar ao seu corpo rapidamente, faz pilates e exercícios para não engordar, tentando demonstrar cuidado com a gravidez, porém, inconscientemente, trata-se de uma necessidade de retomar sua vida anterior e uma negação à gravidez.

Sobre essa questão corporal, pode-se avaliar Flora a partir do conceito de psicossomática de Winnicott, para o qual o corpo seria essencial para a psique, na medida em que é considerada organizadora do imaginário e do funcionamento corporal. Do ponto de vista do indivíduo, para o autor, o self e o corpo sempre estariam sobrepostos, e, com isso, a psique teria que se regular com o corpo a ponto de proporcionar saúde (Winnicott, 1954a/1988).

Winnicott resguarda a dualidade da psique e da soma, na qual uma é independente da outra, mas convém lembrar que as duas, em sua natureza, estão intimamente ligadas e, operando juntas, têm tendência ao amadurecimento humano. No caso de Flora, a aparente desconexão corporal e a falta de identidade corporal e sexual podem trazer a ideia de desintegração. Um corpo integrado revela uma psique integrada, na qual se realizam ideias, projetos, entre outros. Sem essa integração, há uma dissociação, como parece ser o caso de Flora. Ela está ancorada no corpo e não compreende que o corpo está em mudança pela gravidez, e assim vive a angústia de querer ser mãe, mas não conecta o corpo com a psique, sem identificação com a maternidade.

Winnicott (1979/1983) explica que a integração da soma e da psique, corpo e mente, é o processo de personalização. Quando bebê, esse processo não existe e é satisfeito pela mãe, que o acolhe e o protege antes de ele mesmo poder fazê-lo. Sem essa proteção, a criança tem invasões ambientais, denominadas pelo autor como angústias impensáveis. Flora parece manter angústias impensáveis, sem condição de mudar, paralisada na situação em que a mãe não lhe deu acolhimento, e, como forma de proteção, preocupa-se muito com o corpo, não conseguindo se integrar com a psique e a gravidez. Isso traz um enorme sofrimento a ela, que se dissocia do corpo e não mantém uma unificação saudável entre corpo e mente.

Tendo em vista essas questões, pode-se começar a pensar no sujeito e, ao falar de um sujeito, fala-se de cultura, em uma soma de suas experiências. Cultura significa o campo em que se encontram as experiências de vida pessoal e das outras gerações, com importância maior aos mitos e à transmissão de conceitos familiares; assim, adentra-se ao terceiro item da entrevista, cujo tema central é a família na gestação.

Nesse sentido, vale a pena realçar que, para Winnicott (1979/1983), a base das tradições vem da mulher. Mulher é a mãe reconhecida desde os primeiros estágios da vida e está submersa na corrente transgeracional como guardiã dos mistérios da vida familiar. Por isso, está sempre dividida entre passado (mãe que a gerou), presente (ela mesma) e futuro (seu bebê). Nessa linha, identificada com a mãe, ela está sempre no mesmo lugar de significado familiar, cuidando dessa família e transmitindo seus conceitos. De acordo com essa passagem de Winnicott (1979/1983), pode-se suspeitar que Flora não se identifica e não se conecta com o filho pela falta de conexão com sua mãe e suas avós, o que traz a preocupação, em termos de família. Como exercer o papel materno sem ter as bases familiares?

Ao falar de base familiar, pode-se associar a transgeracionalidade, que engloba o que a família passa entre as gerações, o que ela transmite de valores, os costumes e o que também vem do inconsciente. No caso de Flora, os valores familiares são contrários ao que ela diz esperar da sua maternidade e o que esperava da maternagem de sua mãe e suas avós. Ela relatou não se sentir pertencente a essa família, por não se identificar. Quando pensa em papel materno, traz a vivência de abdicação da vida, mas em nenhum sentido pensa em algo afetivo e emocional. A abdicação, para ela, parece ser algo inerente à maternidade – sente orgulho de sua mãe por isso, e é o único elo de identificação que gostaria de ter com ela. Quando reflete sobre o seu próprio papel, percebe o quanto ainda tem a percorrer antes mesmo de seu filho nascer. Confessa não se sentir pronta, e, também, não consegue se conectar com o filho.

Ao adentrar esse aspecto faltante das tradições e dos costumes familiares, identifica-se o que Winnicott (1979/1983) chama de “self individual e familiar”. No caso de Flora, observa-se que ela parece estar ainda muito ligada ao self familiar, e por isso apresenta o self indiferenciado, que seria a forma como ela se apresenta para a sua família. Como ela não se sentiu amada e acolhida pela sua família, também não se sente confortável em mostrar quem realmente é, e o seu self está conectado ao familiar, como algo único e indiscriminado.

Ao falar de self, Winnicott (1979/1983) introduz o conceito de potencial herdado, que, no caso, é o potencial de cada família, sua história, seus costumes, seu inconsciente familiar e tudo o que trata de transgeracionalidade. Flora, como já dito, parece ter um self indiferenciado, porque não consegue exercer sua maternidade da forma desejada, sempre se sentindo contrariada ou criticada por sua mãe e avós, o que a faz reproduzir o que é esperado pelos outros, por medo do aniquilamento e da falta de aceitação do outro, que, no caso, é a própria mãe da gestante. Para a sua família, o mais importante é a ascensão social, uma carreira profissional, o que faz com que Flora tenha a sua cisão quando se percebe grávida. Ela irá contra os valores familiares para se proteger. Reiterando, Flora revela não ter tido uma boa experiência materna e, portanto, não consegue criar a sua própria identidade, ficando identificada com os conceitos familiares, e não tendo a discriminação entre o que ela realmente deseja e o que é conceito herdado de sua família. Logo, muitas vezes o discurso dela se mostra contraditório e cindido, porque realmente há uma cisão em relação à ideia de mãe ideal e mãe real. Para que Flora tenha essa diferenciação de sua mãe e aceite seu papel materno como deseja, adquirindo apenas o que realmente é importante para ela, é necessário passar por um longo processo de diferenciação, para compreensão dos padrões familiares e do papel exercido por cada um. Como isso ainda não ocorreu, a linguagem familiar é mais significativa e dominante para Flora, e assim ela tem suas ações impostas pela transgeracionalidade (Cerveny, 2014).

É importante salientar que o self individual é dependente do que ocorre no início da vida do bebê, no estágio de dependência absoluta. A mãe favorece a experiência inicial de onipotência, o bebê “cria” o seu mundo. Essa experiência de onipotência seria exatamente o que auxilia o adulto a tolerar dificuldades e frustrações. Quando não se tem essa busca pela onipotência, o sujeito se submete às imposições externas. Isso é o que parece estar identificado em Flora, que não teve essa experiência infantil. Quando criança, seus pais eram rígidos e cobravam dela responsabilidades e tarefas que não eram de seu agrado. Além disso, ela teve que cuidar do irmão mais novo, e uma parte de sua adolescência foi consumida por isso, tendo que exercer um papel que não lhe cabia na época. Em associação a isso, suas avós não foram afetivas na primeira infância, pois acreditavam que Flora precisava seguir um caminho mais rígido para ter uma boa criação.

Nesse ponto, pode-se adentrar mais no âmbito da transgeracionalidade, após as considerações sobre esse aspecto do self. Dentro dessa teoria, Kaës (1998) ressalta que “o inconsciente de cada indivíduo leva a marca, na sua estrutura e nos seus conteúdos, do inconsciente de um outro, e, mais precisamente, de mais de um outro” (p. 14). O mecanismo clássico de transmissão é aquele em que os avós depositam desejos, esperanças e fantasias inconscientemente para seus netos e filhos. Assim, esses filhos, quando engravidam, convertem-se em atores dos dramas familiares de seus pais e vivenciam as expectativas deles, e não suas próprias (Silva, 2003). Na história de Flora, fica mais nítido o quanto ela está presa à estrutura familiar, e o quanto a transgeracionalidade influencia seu comportamento materno.  A gravidez veio como um peso: apesar de, no discurso racional, acreditar que o filho viria para agregar e unir a família, na parte subjetiva e projetiva, ela ainda tem dificuldade em se vincular com seu bebê, e como está cindida entre o ser mãe e o permanecer filha, como fica perceptível no quarto item da entrevista ao relatar sobre a relação de Flora com a família. A dificuldade de diálogo e de falar sobre os sentimentos, associada à carência afetiva e ausência de acolhimento nas relações pais e filhos, transmitidas entes gerações, estão presentes em 15 estudos sobre transmissão psíquica na transgeracionalidade, dos 27 revisados por Padilha e Barbieri (2020), denotando a relevância das questões nas relações familiares.

Por fim, no quinto e último item da entrevista, relacionado ao papel materno na gestação, o sofrimento de Flora fica nítido: querer que a mãe cuide dela, mas não ter esse apoio. É comum se deparar com mulheres em que a transmissão familiar se manifesta com sofrimento e com a incapacidade de metabolizar esses legados (Carter & McGoldrick, 1995). No caso da entrevistada, ela aprendeu que criança é um fardo, quando era obrigada a cuidar de seu irmão mais novo, e ficava irritada por conta desses cuidados e por não poder viver como gostaria. Flora relata que, na época, pensou em nunca ter filhos e que, quando pensa em maternidade, a primeira palavra que vem a sua mente é “abdicar”. Nesse sentido, já se observa essa transmissão psíquica da mãe sobre o fardo da maternidade, e como ela está sentindo esse fardo. A falta de conexão com seu filho também demonstra isso. Ele não tem nome, parece não ter identidade, nem tem lugar, ainda, na família.

Flora não percebe o seu estado atual de gravidez e, durante toda a entrevista, a pesquisadora percebeu o conflito dela com a gravidez. Em certo momento, ficou implícito que Flora tem um legado familiar oculto, que ela deve seguir conforme a família espera. Fazendo uma análise oculta da entrevista, pode-se dizer que esse legado é um peso para ela, pois provavelmente a sua mãe sofreu tanto com a maternidade que esse fardo foi passado de mãe para filha. Durante toda a entrevista, a gestante tendeu a mostrar que sua mãe sofreu muito com a maternidade e teve rejeição aos filhos, por isso esperava que eles seguissem um caminho diferente do dela. Ao constatar a gravidez, Flora entrou em conflito, por não ser a filha que sua mãe esperava, e por ter que carregar esse luto familiar da maternidade. Em revisão da literatura sobre transmissão psíquica na transgeracionalidade, Padilha e Barbieri (2020) encontraram um único artigo abordando o tema da elaboração do luto transmitido entre gerações. Os autores mencionam que, de forma simbólica, a questão permeou boa parte dos estudos revisados, mas não foi explorada com vigor pelos autores revisados.

 

Conclusão

Este trabalho consistiu em um estudo de caso clínico para determinar as implicações da transgeracionalidade na maternidade. Toda complexidade do tema não pode ser contemplada em apenas um caso e seu breve relato. Assim, não é possível generalizar seus resultados para as primigestas em geral. Entretanto, o estudo cumpriu o objetivo de identificar as influências da transgeracionalidade na gestante analisada.

A análise do discurso de Flora permite observar que ela se ressente do fato de não ter planejado sua gravidez. Isso a remete à herança da mãe, cujo legado a faz não se sentir desejada na família e sofrer, pois não quer agir da mesma forma com seu filho. O comportamento da mãe a influenciou e influencia para negar a gravidez indesejada e ela quer mudar este quadro e aceitar seu filho totalmente.

Como boas influências, Flora fala sobre os comportamentos da mãe e o modo de criação dos filhos. Apesar das palavras não trazerem acolhimento, influenciada pela mãe, quer ter um parto normal e abdicar de sua vida pelo filho. A sogra oferece boas influências, pois gostaria de ter o acolhimento e a paciência dela. O fato de a mãe do marido não ter uma rotina e mimar demais todos ao seu redor, não parece ser uma boa influência que a nora queira captar.

Outra influência que Flora demonstra não desejar para si e seu filho trata-se dos valores familiares, que são contrários ao que espera da maternidade e que não encontra em sua mãe e suas avós. A transmissão psíquica é uma forte influência em Flora. Quando pensa na maternidade, a primeira palavra que vem a sua mente é “abdicar”, como entende que sua mãe fez com ela.

Para tal diferenciação, a gestante deve ter ferramentas para lidar com essas angústias e traumas. Quando não se tem ferramentas para isso, e há sofrimento, o sujeito apresenta sintomas e, assim, deve procurar auxílio familiar ou profissional para ter a possibilidade de reformular essa transmissão.

Caso Flora inicie uma terapia, o posicionamento do terapeuta será fundamental, devendo estar disponível para verdadeiramente acolher e acompanhar essa gestante. Estar junto significa compreender que a questão trazida pela gestante não é somente dela, mas da família e do ambiente, e que isso deve ser tratado e elaborado. Pela abordagem de Winnicott, a clínica psicanalítica tem a compreensão da experiência de vida, sempre mais ampliada, que somente a consciência, visando aos vínculos afetivos próximos e à história que os rodeiam. Entende-se que este estudo pode contribuir para a atuação profissional dos terapeutas sistêmicos, psicanalistas e da clínica vincular, mostrando também a vinculação entre essas temáticas e como elas podem se auxiliar ao estarem em congruência. Dessa maneira, sugere-se a efetivação de estudos adicionais nesse contexto, com amostras robustas que permitam generalizações dos resultados, para gerar ferramentas de acolhimento e clarificação das questões transgeracionais no setting terapêutico.

 

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Endereço para correspondência
Raquel Marques Benazzi Guirado
E-mail: quelbenazzi@gmail.com

Ivonise Fernandes Motta
E-mail: ivonise.motta@gmail.com

Enviado em: 16/06/2018
1ª revisão em: 28/06/2018
2ª revisão em: 23/06/2020
Aceito em: 06/11/2020

 

 

1 Mestranda do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
2 Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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