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versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.24 no.2 Porto Alegre jul.dez. 2020

 

ARTIGOS

 

Infidelidade virtual: revisão integrativa da literatura científica

 

Virtual infidelity: integrative review of scientific literature

 

 

Rafael Diniz de Lima1, I ; Maria Alves de Toledo Bruns2, I, II, III

I Grupo de Pesquisa Sexualidadevida-Universidade de São Paulo/CNPq
II Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP-Ribeirão Preto)
III Programa de Pós-graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP-Araraquara)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A infidelidade amorosa é um fenômeno presente no cotidiano de muitos casais e apontada como um dos principais motivos para a busca por terapia de casais e para o divórcio. Com o advento da internet, a infidelidade no ambiente virtual se torna um fenômeno contemporâneo que merece investigação. Diante dessa realidade, o presente estudo buscou, por meio de uma revisão integrativa da literatura nacional e internacional, identificar o que o saber científico apresenta acerca da infidelidade virtual e suas implicações para a vida amorosa. Foi realizada uma revisão da literatura nos indexadores Bireme, Pubmed, PsycINFO e Bvspsi a partir do descritor ‘internet infidelity’ e seu correspondente em português “infidelidade virtual”. A literatura científica apresenta três grandes eixos investigativos: (1) percepção popular acerca da infidelidade virtual; (2) percepção de profissionais e propostas psicoterapêuticas; e (3) o que leva à infidelidade virtual.

Palavras-chave: Infidelidade virtual, Infidelidade, Internet, Revisão integrativa.


ABSTRACT

Loving infidelity is an unexceptional phenomenon in the daily life of couples and pointed as the main reason to seek psychotherapy and divorce. With the advent of the internet, infidelity virtual becomes a contemporary phenomenon worth investigating. Given such reality the present study– through an integrative review of national and international literature – sought to identify what the scientific literature says about virtual infidelity and its implications for love life. A literature review was carried out in the Bireme, Pubmed, PsycINFO and Bvspsi indexers with the following keywords: “internet infidelity” and its Portuguese correspondent “infidelidade virtual”. Three major investigative axes: (1) popular perception of virtual infidelity; (2) professionals' perception and psychotherapeutic proposals; and (3) what leads to virtual infidelity were identified in the literature reviewed.

Keywords: Virtual infidelity, Infidelity, Internet.


 

 

Introdução

A infidelidade amorosa é apontada como um fenômeno presente no quotidiano de muitos casais, com imensa repercussão nos relacionamentos amorosos. Quanto à conceituação de infidelidade, pode-se verificar na literatura uma ampla gama de definições. A infidelidade pode ser compreendida como qualquer envolvimento, seja sexual, romântico e/ou emocional, fora do consentimento do parceiro primário (Costa & Cenci, 2014). De modo geral, a infidelidade é conceituada como o rompimento de um contrato conjugal que estaria implícito na relação amorosa, ou seja, a infidelidade resulta na quebra da confiança pela violação das normas acordadas pelo casal (Moller & Vossler, 2015).

Um número expressivo de homens e mulheres declara terem sido infiéis em seus relacionamentos, sendo mais provável encontrar pessoas que foram infiéis do que fiéis (Goldenberg, 2006). Essa mesma autora realizou uma pesquisa, por meio de questionários e entrevistas, com 1279 homens e mulheres, na faixa etária de 20 a 60 anos, moradores da cidade do Rio de Janeiro. Nesse contexto foi constatado que 53% da amostra apontaram a traição como o aspecto mais prejudicial a uma relação. Como algumas das consequências, Pittman (1994) indica que a infidelidade pode desestruturar toda a relação conjugal, colocando em risco o envolvimento emocional existente entre os parceiros, além de sinalizar problemas da relação a dois.

Viegas e Moreira (2013) assinalam que ambos os sexos tendem a julgar e penalizar mais seus (suas) parceiros (as) diante de envolvimentos sexuais, se comparado com os envolvimentos afetivos. O julgamento se torna mais significativo quando o contato extraconjugal se mantem por mais tempo. Vale ressaltar que o ambiente do trabalho e o virtual são tidos como as principais fontes de risco para que ocorram casos de infidelidade (Glass & Staeheli, 2004).

Uma pesquisa realizada por Coleta et al., (2008) constatou que 64% dos entrevistados já se envolveram em um relacionamento amoroso virtual e 30,6% se envolveram numa relação virtual e não virtual ao mesmo tempo. Outros 74% disseram que os relacionamentos virtuais não interferiam no mundo real, enquanto 24% acreditam que existe essa interferência. Aviram e Amichi-Hamburguer (2005) definem a infidelidade virtual como uma relação extradiádica com interações de cunho afetivo-sexual e de intimidade emocional no ambiente virtual.

Existe uma tendência de que grande parte dos relacionamentos estabelecidos pela internet sejam consumados no mundo real. As vivências, mesmo que on-line, parecem ser capazes de suscitar emoções da mesma maneira que em eventos reais, apesar da ausência física (Haack & Falcke, 2013).  Os autores ainda discutem as percepções dos indivíduos sobre a infidelidade virtual. A maior parte dos sujeitos entrevistados considerava infidelidade virtual como qualquer contato virtual com o objetivo de ter algo além da amizade, seja por meio de bate-papo, troca de e-mails, mensagens on-line, entre outros.

Whitty e Quigley (2008) apontam que o cibersexo é considerado tão grave para os pares quanto uma relação sexual presencial. De acordo com Mileham (2007), um dos maiores motivos apontados para se buscar uma relação via internet são problemas como a falta de investimento na relação, carência e o desejo de variedade sexual.

A infidelidade ocorrida em meio virtual costuma gerar sofrimento tal como quando ocorre em qualquer outro meio. Assim, Coleta et al., (2008) e Vieira (2012) citam a necessidade de compreender a infidelidade virtual e suas implicações nos relacionamentos humanos. Há que se ressaltar também que existe uma grande escassez de estudos que abordem tal temática. Whitty (2003) aponta que as pesquisas que avaliam a infidelidade virtual tendem a considerar o âmbito patológico do fenômeno, relacionando-a com a dependência tecnológica e com questões terapêuticas, negligenciando a compreensão subjetiva de tais vivências.

Diante da relevância da infidelidade virtual na contemporaneidade, o objetivo deste artigo é apresentar uma revisão integrativa nacional e internacional acerca desse fenômeno.

 

Método

A revisão integrativa foi realizada de acordo com o método de revisão integrativa proposto por Souzae et al., (2010). Foram seguidas todas as seis etapas essenciais para a elaboração de uma revisão integrativa: (1) Elaboração da pergunta norteadora; (2) Estratégia de busca, localização, definição de critérios de inclusão e exclusão; (3) Coleta de dados e análise da qualidade dos estudos; (4) Análise crítica dos estudos incluídos; (5) Discussão dos resultados; e (6) Apresentação da revisão integrativa.

A busca foi realizada no mês de agosto de 2019, abrangendo quatro grandes bancos de dados eletrônicos nacionais e internacionais, amplamente utilizados pelas ciências da saúde e humanas:  Bireme (Biblioteca Regional de Medicina), PubMed (National Library of Medicine), BvsPsi (Biblioteca Virtual em Saúde) e PsycINFO (American Psychological Association). Para busca dos artigos foi utilizado o descritor “internet infidelity” e seu correspondente em português “infidelidade virtual”.

Foram excluídos os artigos duplicados ou não relacionados ao tema do presente estudo. Os artigos selecionados foram lidos na íntegra pelos autores de forma independente para confirmação quanto à pertinência para este estudo. Não houve discordância para composição da amostra. A análise consistiu na redução, exposição e comparação entre os artigos com demais estudos, possibilitando a interpretação, síntese e discussão dos resultados (Souza et al., 2010).

 

Resultados

A Figura 1 apresenta o fluxograma de seleção dos estudos e extração dos dados. Foi identificado um total de 50 artigos (Bireme n=25; PsycINFO n=2; PubMed n= 22; BvsPsi n=1 ). Nesta etapa inicial foram excluídos oito artigos duplicados. Com a avaliação dos resumos, a partir da avaliação dos autores para comprovação quanto à relevância, foram excluídos 34 artigos. O principal motivo para a exclusão dos artigos foi a averiguação de que não correspondiam ao tema proposto por este estudo. Por fim, obteve-se uma amostragem final de oito artigos (Quadro 1).

 

Figura 1. Fluxograma de identificação, exclusão e elegibilidade dos artigos para revisão integrativa.

 

 

No que tange à origem dos artigos, três são de origem estadunidense (Hertlein & Piercy, 2008; Hertlein & Piercy, 2012; Russel & Clayton, 2014); dois de origem inglesa (Whitty, 2003; Whitty & Quigley, 2008), um indiano (Mao & Raguram, 2009), um iraniano (Isanejaad & Bagheri, 2018) e um brasileiro (Haack & Falcke, 2013). Esse achado indica que o tema ainda é pouco estudado na literatura, e especialmente no contexto brasileiro, em que foi encontrado apenas um artigo que traz a infidelidade virtual como objeto de investigação.

Quanto à metodologia utilizada,uatro artigos utilizam métodos quantitativos (Whitty, 2003; Whitty & Quigley, 2008; Russel & Clayton, 2014; Isanejaad & Bagheri, 2018). São estudos que apresentaram cenários hipotéticos de infidelidade em suas amostras e fazem suas análises a partir de escalas. Esse modelo metodológico costuma ser eleito, considerando a dificuldade de homens e mulheres falarem abertamente sobre a infidelidade, sendo esse tema tabu em muitas culturas, além de que, habitualmente, essa experiência tem o potencial de trazer implicações psicológicas significativas àqueles que a vivenciaram. Tal método, não exige um contato direto com o pesquisador e propicia um maior anonimato, podendo ser esses motivos as justificativas para se eleger metodologias quantitativas para o estudo da infidelidade.

Dois artigos apresentavam metodologias mistas (Hertlein & Piercy, 2008; Haack & Falcke, 2013), em ambos os trabalhos os participantes foram expostos a cenários de infidelidade propostos pelos pesquisadores, sendo realizada uma entrevista posterior para averiguar as percepções acerca do fenômeno. E dois estudos apresentavam metodologia qualitativa (Mao & Raguram, 2009; Hertlein & Piercy, 2012). Esses métodos se mostram relevantes para se discutir os sentidos e significados que homens e mulheres atribuem ao fenômeno, possibilitando uma análise de cunho subjetivo das temáticas.

Para uma melhor apresentação dos artigos selecionados nesta revisão integrativa, os resultados dos estudos foram agrupados em três categorias que contêm as sínteses de suas convergências e divergências: (1) percepção popular acerca da infidelidade virtual (2) percepção de profissionais e propostas psicoterapêuticas (3) o que leva à infidelidade virtual.

Percepção Popular acerca da Infidelidade Virtual

Whitty (2003) é a primeira autora a apresentar contribuições acerca de como homens e mulheres vivenciam, percebem e conceituam a infidelidade ocorrida na internet e possíveis diferenças dessa vivência se comparada com o contexto off-line. Sua investigação contou com 468 homens e 649 mulheres entre 17 e 70 anos (idade média de 30 anos) que responderam a um questionário que apresentava cenários de infidelidade, para que cada participante apontasse o que considerava ou não ser infiel.

A partir de sua investigação, Whitty (2003) compreendeu que homens e mulheres consideravam atos ocorridos na internet como passíveis de serem interpretados como infidelidade da mesma forma que contatos reais. Cabe dizer que o contato sexual propriamente dito sempre foi o fator mais relevante para a conceituação de infidelidade.

Os participantes dessa mesma pesquisa ainda demonstraram que contatos na internet são passíveis de serem interpretados como ameaçadores a um relacionamento amoroso estabelecido, uma potencial fonte de ciúme e possíveis desentendimentos entre os casais (Whitty, 2003). Portanto, essa investigação abre campo para pensarmos a infidelidade para além de contatos reais, ampliando o contexto de investigação da temática.

Outro dado significativo na investigação de (Whitty, 2003) é que a amostra analisada julgava que trocas que denotavam um caráter romântico eram vistas como mais significativas do que o acesso a pornografia em contextos digitais. Ou seja, a demonstração de afeto por uma terceira pessoa na internet rompia com a noção de fidelidade dos indivíduos analisados, sendo a pornografia compreendida como menos significativa na escala do que é considerado pelos participantes como infidelidade. Tais dados abrem campo para pensarmos na pornografia como algo presente no cotidiano de homens e mulheres, não visto como uma quebra de contrato de exclusividade sexual e afetiva.

Outro aspecto relevante na investigação é que grande parte dos contatos que se iniciam pela internet tendem a passar para o contexto real, nesse sentido poderíamos pensar a infidelidade virtual também como um indicador de um contato pessoal entre os envolvidos, ou como um meio usado para intermediar novos relacionamentos amorosos ou como busca de parceiros(as) para relações extraconjugais. É importante dizer que homens e mulheres diante de uma suspeita de infidelidade buscam nos recursos digitais um meio para a descoberta do fenômeno, sendo esse processo marcado por um sofrimento significativo na vida de tais indivíduos (Lima, 2019).

Whitty e Quigley (2008) conduziram uma investigação com o objetivo de entender como homens e mulheres compreendem a infidelidade na internet. Participaram desse estudo 112 estudantes de graduação de psicologia, sendo 61 mulheres e 51 homens, entre 18 e 44 anos de idade. Os participantes responderam a um questionário que continha cenários de infidelidade e os classificavam de acordo com o que consideravam ou não infidelidade.

A amostra não considerou os relacionamentos online como os mais perturbadores em seus relacionamentos. Para os colaboradores, por não haver regras claras do que seja infidelidade virtual, era difícil conceber o quanto isso poderia ser impactante na relação. Scheeren et al., (2018) apontam para a ausência de diálogo entre os casais em relação à infidelidade. Os casais não determinam entre si o que é ou não infidelidade, o que pode culminar em problemas posteriores, podendo haver uma quebra de contrato por conta da ausência de fatos.

Além disso, ainda consideraram esses participantes que os relacionamentos virtuais poderiam estar relacionados a uma maior liberdade para a fantasia sexual. Tais resultados são discordantes da investigação de Whitty (2003), que aponta os comportamentos online como passíveis de interferirem negativamente na vida a dois por serem vistos em igualdade emocional aos relacionamentos reais.

Um dos aspectos que podemos citar como hipótese para resultados opostos é o fato de o estudo de Whitty e Quigley (2008) ter como amostra estudantes de psicologia, o que poderia afetar as percepções destes sobre o fenômeno, já que possuem um arcabouço maior para a interpretação de aspectos emocionais e simbólicos, para além de um entendimento amparado no senso comum. Além disso a infidelidade virtual traz em sua conceituação elementos subjetivos dos sujeitos, mostrando a multiplicidade de sentidos que o fenômeno pode assumir.

O estudo brasileiro de Haack e Falcke (2013) se debruçou também na investigação de concepções de homens e mulheres acerca da infidelidade virtual, tendo como amostra 86 usuários de internet, sendo 42 homens e 44 mulheres, entre 18 e 55 anos de idade. Participaram do estudo pessoas que tinham relacionamentos mediados e não mediados pela internet, sendo feita uma comparação quantitativa e qualitativa entre os grupos. A metodologia utilizada pelas autoras foi quantitativa com delineamento comparativo, com os dados analisados por meio de estatísticas descritivas e inferenciais. Foi realizado também um questionário sobre a infidelidade para que os participantes expusessem suas concepções, sendo as perguntas abertas analisadas pelo método da análise de conteúdo.

Quando indagados sobre quais comportamentos eram considerados infidelidade, 96,4% responderam ser o fato de ter relações sexuais, 94,4% beijar na boca, 75,9% flertar com outra pessoa, 54,2% se relacionar pela internet; e não houve diferença entre os grupos com relações mediadas pela internet ou relações não mediadas (Haack & Falcke, 2013). Em concordância com Whitty (2003), os participantes desse estudo consideraram relacionamentos pela internet como traição, evidenciando a influência de relacionamentos online na vida cotidiana.

No que tange ainda à infidelidade virtual, 70% do grupo que tinha relacionamentos mediados pela internet e 83,3% do grupo que tinha relacionamento não mediados pela internet responderam que consideravam infidelidade o(a) parceiro(a) manter contatos virtuais com outra pessoa, por conta da possibilidade de um envolvimento emocional e a intenção de trair, sendo considerado uma falta de comprometimento com a relação. Outro achado do estudo é que pessoas que estão em um relacionamento mediado pela internet têm uma maior tendência a ser infiéis se comparadas com indivíduos com relações não mediadas pela internet (Haack & Falcke, 2013).

Lima (2019) conduziu uma investigação que teve como objetivo avaliar o que homens e mulheres compreendiam por infidelidade virtual e as possíveis implicações desta para os relacionamentos amorosos. Para tal, o autor elegeu a metodologia fenomenológica de pesquisa, tendo em vista a busca pela compreensão dos significados e dos sentidos atribuídos pelo individuo ao fenômeno analisado. Foram entrevistados cinco mulheres e dois homens que consideravam que seus(as) parceiros(as) foram infiéis virtualmente.

Os achados desse estudo nos mostram que a infidelidade virtual foi interpretada com uma relação extraconjugal mediada por alguma mídia virtual. Os meios digitais são usados também como recursos para descoberta da infidelidade, os participantes utilizaram-se das redes sociais para buscar evidências da infidelidade do(a) parceiro(a).

Outro fator relevante na investigação de Lima (2019) é o aprofundamento da compreensão do termo virtual. A partir das concepções filosóficas de virtual apontadas por Levy (1996), o autor analisa como homens e mulheres conceituam o fenômeno.

Levy (1996) apresenta uma concepção na qual virtual vai muito além da mera mediação dos recursos digitais. Para esse autor, virtualizar é potencializar o fenômeno, ou seja, aquilo que tem potência, mas não é materializado. O que foi possível compreender é que homens e mulheres atribuíram ser virtual uma situação onde o principal marcador era o intermédio da internet, considerando este o principal critério conceitual de virtual para amostra. Se pensarmos a partir das noções apresentadas por Levy (1996), a infidelidade virtual não é apenas um contato mediado pela internet, onde situações como um desejo por um terceiro, uma fantasia com outro alguém, poderia ser vista também como uma virtualização, ou qualquer possibilidade de relação potencial, mas não materializada. Apesar disso, a internet pode sim virtualizar a infidelidade, pois torna possível a potenciação do fenômeno: homens e mulheres podem vivenciar trocas afetivas sexuais por meio de tais recursos independente de ter necessariamente havido a materialização dos corpos.

Levy (1996) abre campo principalmente para mostrar que as noções do termo virtual sempre existiram independente de qualquer recurso digital e pensar tal fenômeno apenas na esfera da mediação de tecnologias passa a ser uma limitação de tais conceitos, pensar, fantasiar é tão virtual quanto uma troca mediada por recursos digitais.

Como foi possível observar, os estudos de Whitty (2003), Whitty (2008), Haack e Falcke (2013) e Lima (2019) apresentam a infidelidade virtual como um fenômeno capaz de trazer implicações significativas nos relacionamentos amorosos, potencializando as compreensões de infidelidade, que no cenário contemporâneo vai além da questão do contato físico. Ser infiel virtualmente, a partir das investigações analisadas, é praticar qualquer ato que rompa o contrato estabelecido entre os pares, ou até mesmo contato que seja compreendido como uma demonstração de afeto para além de uma relação estabelecida.

Percepção de Profissionais e Propostas Psicoterapêuticas

Hertlein e Piercy (2008) conduziram um estudo com o objetivo de identificar como psicólogos clínicos compreendem a infidelidade virtual e como suas estratégias psicoterapêuticas variam de acordo com gênero, idade e religiosidade. Participaram do estudo 241 homens, 256 mulheres e sete participantes não relataram o sexo. Na faixa etária de 20 a 78 anos (média de 51 anos), os participantes responderam a um questionário de cenários de infidelidade e posteriormente participaram de uma entrevista onde falariam abertamente sobre as respostas dadas.

Como resultado foi possível observar que o sexo e a idade do terapeuta interferiam na forma como lidavam com a infidelidade virtual. Terapeutas mais jovens apresentaram uma maior tendência a focar o tratamento em questões ambientais, e psicoterapeutas mulheres tendiam a focar em aspectos psicodinâmicos da relação (Hertlein & Piercy, 2008).

Outro dado relevante dessa investigação é que os terapeutas consideraram os homens mais propensos a serem viciados em sexo enquanto viam essa mesma vivência como atípica para a população feminina, havendo então uma demarcação da questão de gênero no que tange às vivências sexuais. Tais aspectos poderiam levar esses terapeutas a considerarem os homens até mesmo mais propensos a serem infiéis, colocando um marcador de gênero significativo para a questão da sexualidade, e corroborando o senso comum, que tem uma tendência a ver a infidelidade masculina como algo menos problemático do que a infidelidade feminina.

No que diz respeito à definição do que é para esses terapeutas ser infiel, o contato sexual foi o principal marcador para caracterizar a infidelidade. No que se refere à infidelidade virtual, no entanto, foi possível observar que eles consideravam o aspecto subjetivo de tais vivências, ou seja, para eles o que era infidelidade virtual variava de casal para casal, sendo esses os critérios que adotaram para suas intervenções. Diante do exposto, temos mais um aspecto relevante na pesquisa do fenômeno, que é a própria conceituação, não havendo um consenso sobre o que seja infidelidade virtual nem mesmo entre terapeutas que lidam diretamente com a temática.

As propostas terapêuticas apresentadas por Hertlein e Piercy (2008) demonstram que os vieses que afetam o tratamento são a experiência com a tecnologia, o histórico de relacionamento pessoal ou as crenças pessoais sobre o impacto da internet no comportamento sexual de uma pessoa. Os terapeutas avaliados ainda ressaltaram a importância de se procurar e receber supervisão regular para se atentar a vieses que podem estar operando na clínica.

Outro aspecto fundamental no tratamento da infidelidade virtual foi apontado pela investigação de Mao e Raguram (2009), que a partir de um estudo de caso que tinha como objetivo avaliar como a infidelidade impactava a vida dos casais indianos e suas possíveis implicações nos relacionamentos amorosos. Os autores apontam para uma necessidade de responsabilização de suas ações por parte de quem foi infiel virtualmente e, principalmente, a aceitação dos sentimentos de quem se sentiu traído, já que é muito comum em casos de infidelidade virtual a não validação dos sentimentos do outro. A pessoa infiel costuma apresentar uma postura defensiva de não assumir a infidelidade por não ter havido o contato físico, sendo essa uma constante no relato de parceiros que foram infiéis virtualmente; tendem a não considerar seus atos como infidelidade dado que não houve um contato físico entre os pares (Lima, 2019).

No que tange à conceituação do fenômeno, a amostra apresentou uma grande discordância, usando os mais diversos critérios para caracterizar a infidelidade virtual. De modo geral, houve um destaque para a questão do segredo e da quebra do contrato entre os parceiros (Hertlein & Piercy, 2008).

A discrepância na conceituação da infidelidade é comum nas investigações, o que pode refletir o mesmo em relação a investigações da infidelidade virtual. Parker e Wampler (2003) apontam para o fato de que cada pessoa tem uma definição própria do que significaria ser infiel no relacionamento e, como podemos observar, isso se refletiu também em uma amostra com profissionais que lidam com a temática. Hertlein e Piercy (2008), Mao e Raguram (2009), e Hertlein e Piercy (2012) ressaltam a importância dos terapeutas avaliarem os critérios de cada casal para a infidelidade, respeitando sua singularidade e se adaptando suas intervenções de acordo com cada caso, delimitando o fenômeno, compreendendo e validando os sentimentos de ambos os parceiros.

Infidelidade Virtual e seus Determinantes

Clayton (2014) realizou uma investigação que tinha como objetivo analisar as possíveis relações entre o uso da rede social Twitter e a infidelidade. Participaram do estudo 581 usuários, com idade entre 18 e 67 anos. Muitos casais se envolviam em discussões devido ao uso dessa rede social. Os resultados deste estudo sugerem que o uso ativo do Twitter pode levar a uma maior quantidade de conflitos relacionados ao Twitter entre parceiros românticos, o que, por sua vez, leva à infidelidade, dissolução e divórcio.

O estudo de Isanejad e Bagheri (2018), que teve como objetivo investigar a relação entre a qualidade conjugal e a infidelidade na internet, contou com a participação de 190 mulheres e 216 homens e apontou para uma possível relação entre qualidade matrimonial e infidelidade virtual. Para esses autores, insatisfação com a relação e sentimentos de solidão e a insatisfação com a qualidade da relação foram apresentados como fatores que deixaram os indivíduos mais propensos a serem infiéis virtualmente.

Isanejad e Bagheri (2018) apontam a necessidade de se dar maior atenção ao fenômeno da infidelidade virtual como uma nova forma de relacionamento extraconjugal. Portanto, para os autores, seriam necessários estudos que analisassem de uma maneira pormenorizada os motivos que levam os indivíduos a buscarem uma terceira pessoa por meio de recursos digitais.

Horizontes de Compreensão ao Fenômeno da Infidelidade Virtual

Podemos constatar a partir da revisão integrativa realizada que os artigos analisados apresentam a infidelidade virtual como um fenômeno recorrente e capaz de suscitar implicações significativas nos relacionamentos amorosos: homens e mulheres costumam ter sua dinâmica amorosa por ela afetada negativamente. Lima (2019) aponta para uma ruptura na visão idealizada que os indivíduos têm sobre seus relacionamentos e para o fato de que a infidelidade virtual pode culminar no fim do relacionamento amoroso.

Foi possível observar que homens e mulheres julgam como infidelidade vivências emocionais mediadas pela internet, mesmo com a ausência do contato físico, uma vez que representam o risco de quebra do contrato de exclusividade sexual ou emocional esperada entre os pares. Os meios virtuais parecem potencializar o fenômeno a abrir campo para que novas experiências que vão além do contato real sejam compreendidas como infidelidade. O estudo ainda ressalta a importância de pensarmos a infidelidade virtual para além dos recursos digitais, visto que Levy (1996) compreende o virtual como algo que tem potencial, mas não se materializa, possibilitando que pensemos fenômenos como o desejo, a fantasia como virtualizações. A partir de tal premissa, pensar e fantasiar com outra pessoa para além da relação estabelecida poderia ser compreendido como uma infidelidade virtual.

Como principais fatores que levariam homens e mulheres a serem infiéis virtualmente estão a solidão e a insatisfação com o relacionamento amoroso estabelecido, sendo a internet um meio onde esse indivíduo buscaria contato para possíveis relacionamentos. Sendo também a internet um dos principais recursos usados pelos casais para investigarem sobre uma potencial infidelidade de seus(suas) parceiros(as).

No que se relaciona ao tratamento psicoterapêutico, fica evidenciado a necessidade de os profissionais conceituarem o fenômeno em conjunto com seus pacientes, possibilitando a criação de um ambiente em que exista uma aceitação e valorização do sentimento do parceiro traído, podendo contribuir de maneira positiva para o trabalho com a infidelidade virtual. Por ser um fenômeno totalmente atrelado aos avanços tecnológicos, se torna necessário novos estudos no sentido de investigar como tais recursos afetam a dinâmica afetiva de homens e mulheres.

Estudos futuros poderão dar uma atenção maior ao aspecto subjetivo da infidelidade virtual, utilizando métodos qualitativos, já que os estudos revisados partem de cenários hipotéticos de infidelidade, dando maior atenção às análises quantitativas. Entender o que os indivíduos compreendem por infidelidade virtual e como tal fenômeno afeta seus relacionamentos se mostra ainda um desafio para pesquisadores dessa temática.

 

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Endereço para correspondência
Rafael Diniz de Lima
E-mail: rafaelldiniz11@hotmail.com

Maria Alves de Toledo Bruns
E-mail: toledobruns@uol.com.br

Enviado em: 12/09/2019
1ª revisão em: 12/07/2020
Aceito em: 10/09/2020

 

 

1 Mestre em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP-Ribeirão Preto). Membro do Grupo de Pesquisa Sexualidadevida-USP/CNPq.
2 Pós-doutorado em linguística pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP-Ribeirão Preto). Doutora em Psicologia Educacional pela Faculdade de Educação da Universidade de Campinas-SP (UNICAMP). Docente e Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP-Ribeirão Preto) e do Programa de Pós-graduação em Educação Sexual da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP-Araraquara). Líder do Grupo de Pesquisa Sexualidadevida-USP/CNPq.

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