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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.24 no.2 Porto Alegre jul.dez. 2020

 

ARTIGOS

 

Presos no cativeiro ou sintonizados na dança? Reflexões acerca da sexualidade do casal contemporâneo

 

Trapped in captivity or dancing to someone’s tune? Reflections on the sexuality of the contemporary couple

 

 

Paula Trombetta1 ; Helena Centeno Hintz2, I

I Centro de Terapia de Casal e Família (DOMUS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A sociedade atual demonstra um perfil voltado ao individualismo trazendo um novo impacto no constructo relacional do casal contemporâneo. A intimidade hoje é vista como primordial para iniciar um relacionamento, porém essa mesma intimidade acaba repercutindo no desejo erótico dos parceiros haja vista a necessidade de manutenção da individualidade. Para compreender o efeito da intimidade na sexualidade do casal moderno, o presente artigo buscou comparar duas diferentes vertentes teóricas das dificuldades sexuais dos casais por autoras que são referências na área de terapia de casal da atualidade. Para tanto, o estudo apresentou o relato de dois casos clínicos com diferenças em seus funcionamentos, mas com a mesma demanda de infrequência sexual.

Palavras-chave: Casal contemporâneo, Sexualidade, Terapia focada nas emoções, Teoria do apego.


ABSTRACT

Today's society shows a profile focused on individualism, bringing a new impact on the relational construct of the contemporary couple. Today’s intimacy is seen as primordial to start a relationship, but this same intimacy ends up having repercussions on the partners' erotic desire, given the need to maintain individuality. In order to understand the effect of intimacy on the sexuality of the modern couple, this article sought to compare two different theoretical aspects of couples' sexual difficulties by authors who are references in the area of couples therapy today. Therefore, the study presented the report of two clinical cases with differences in their functioning, but with the same demand for sexual infrequency.

Keywords: Contemporary couple, Sexuality, Emotion-focused therapy, Attachment theory.


 

 

Introdução

Amor sem sexo
É amizade
Sexo sem amor
É vontade
(Rita Lee – Amor e Sexo)

 

Amor e sexo andam juntos ou são aspectos independentes do funcionamento de um casal? Afinal, como mostra Rita Lee - são conceitos que partem de desejos diferentes. Mas o que é necessário para manter a vitalidade erótica e a segurança emocional nos relacionamentos? Ademais, é fundamental compreender como lidar com essas diferentes necessidades na sociedade contemporânea onde a individualidade se mostra central e o modelo tradicional de casamento vem sendo repensado.

Vivemos em uma sociedade onde há um incentivo para que voltemos cada vez mais à nós mesmos, visando a descoberta das nossas individualidades. Existe uma ideia de que precisamos descobrir quem somos e quais são nossas potencialidades, com isso, vemos uma demanda coletiva para explorar o novo e suas novas possibilidades. Porém, antigas necessidades emocionais humanas ainda se fazem necessárias, indo contra essa intenção atual (Lins, 2017; Johson & Zuccarini, 2010).

O amor romântico, visto como um ideal ainda hoje, nutre o contraponto da individualidade ao pregar que o amor se instaura quando dois indivíduos se transformam em apenas um, através de suas complementariedades. Lins (2017) salienta que “...o dilema atual se situa entre a vontade de se fechar na relação com o parceiro e o desejo de ser livre pra viver variadas experiências. Tudo indica que a aspiração por liberdade começa a predominar” (p. 31). Há um grande investimento no amor por parte dos casais contemporâneos, mas vemos também um aumento no número de divórcios diante desse modelo de amor e casamento (Perel, 2018).

Nossa necessidade de estar em uma relação íntima está ancorada na nossa genética conforme proposto pela teoria do apego. Ao longo da nossa evolução, as pessoas que nutriam relações profundas acabavam sobrevivendo por ter a quem proteger e por serem protegidos. Mas assim como outras características biológicas, a forma como isso ocorre varia conforme os aspectos sociais de cada cultura (Levine & Heller, 2013). Perel (2018) define bem esse dilema ao apontar que “somos contradições ambulantes, buscamos segurança e previsibilidade, mas também queremos diversidade”. Tais dilemas acabam se estendendo à sexualidade do casal. Atualmente, há um favoritismo dos terapeutas de casais a compreenderem os problemas sexuais como uma consequência dos problemas da relação, no entanto são crescentes os relatos de casais com boa comunicação e intimidade, mas que não possuem uma vida sexual ativa (p. 22).

O presente trabalho busca compreender como a intimidade impacta na sexualidade do casal contemporâneo através da comparação e diferenciação entre duas diferentes vertentes explicativas das dificuldades sexuais dos casais por autoras que são referências na área de terapia de casal nos dias de hoje. O título do presente trabalho lança luz às ideias desenvolvidas pelas autoras. Esther Perel, autora do livro ‘Presos no Cativeiro’ reflete sobre nosso modelo de casamento e separa o amor do sexo. Já, Susan Johnson expõe seus anos de estudos diante da Terapia Focada nas Emoções (EFT) que tem por base a Teoria do Apego de Bowlby. Ela entende que somente uma relação com uma base segura e parceiros emocionalmente abertos permite que o casal explore suas fantasias eróticas. A fim de enriquecer a integração das teorias, iremos dispor de resenhas clínicas para discussão. Os casos ilustrados se referem a dois casais jovens, de longa data, com filhos e com infrequência nas relações sexuais. De um lado, um casal com conflitos constantes, problemas de comunicação e funcionamento reativo. Do outro, um casal com boa intimidade, comunicação assertiva e funcionamento resiliente. Porém, ambos com as mesmas demandas sexuais.

Será que estamos presos em um cativeiro mantendo a esperança de ter a segurança e emocional e satisfação sexual com uma mesma pessoa ao longo da vida ou apenas não estamos conseguindo sintonizar os passos de dança entre apego emocional e sexualidade do casal?

O Casal Contemporâneo

O amor é comumente associado à invariabilidade, como se ele se mantivesse o mesmo independente da época e cultura. Porém, seu conceito, significado e forma variam conforme os valores de cada sociedade (Lins, 2017). Logo, qual o entendimento de amor para os casais que vivem no ocidente nos dias de hoje?

Levine & Heller (2013) salientam que vivemos em um período onde a ideia de depender do outro em um relacionamento adulto é prejudicial. Os autores relembram que essa mesma ideia ocorreu sobre o relacionamento dos pais com os filhos – e que hoje compreendemos melhor a importância do apego entre eles, pois acreditam que essa ideia está equivocada. Muitos autores contemporâneos retratam através dos livros de autoajuda a ideia de que você é o único responsável pela sua felicidade e, da mesma forma, não deve ser o responsável pela felicidade do outro. Os autores enfatizam ainda a ideia vigente de que “...se o seu parceiro age de um jeito que solapa sua sensação de segurança, você deve se mostrar capaz de se distanciar emocionalmente da situação, “manter o foco em si mesmo” e ficar em equilíbrio. Se não consegue fazer isso, pode ser que haja algo de errado com você” ... (p. 35).

Uma das transformações em relação ao amor, ocorrida nesses últimos tempos, contrapõem justamente esse impasse entre dependência versus independência. Há ainda um desejo de estar em um relacionamento fechado, porém há cada vez mais um receio em perder a sensação de individualidade diante da relação, característica essa tão predominante na nossa atual sociedade. O momento instiga que as pessoas se voltem mais para si mesmas em busca de respostas, autoconhecimento e satisfação pessoal. Porém o amor romântico ainda estabelece a prerrogativa de que essa satisfação só estará completa no outro (Lins, 2017). “A premissa básica que embasa esse ponto de vista é de que o relacionamento ideal é aquele entre duas pessoas autossuficientes que se unem de uma maneira madura e respeitosa e, ao mesmo tempo, mantêm fronteiras claras” ... (Levine & Heller, 2013, p. 35). Neste ponto é importante relembrar as características do amor romântico. Conforme Lins (2017) aponta, ocorre uma idealização da outra pessoa a partir da projeção do que se espera do ser amado. Assim o relacionamento acontece através da frustração das expectativas criadas por aquela pessoa que diante da convivência diária acaba mostrando a realidade negada.

Nossa sociedade vive em constante transformações, portanto, é natural haver diferentes visões e linhas de pensamentos ao mesmo tempo. Dessa forma, coabitam formas mais tradicionais e modernas de se relacionar. Ainda hoje, os relacionamentos amorosos ocupam um lugar de deveras importância e existe um desejo geral de que o amor adulto dure. Vieira e Stengel (2010, p. 158) refletem que “o desejo de segurança convive com a liquidez pós-moderna que percebe os compromissos como prisões e estimula a ruptura do relacionamento caso este esteja requerendo sacrifícios do indivíduo”. O mundo moderno traz um arsenal de inseguranças a partir da ênfase dada ao individualismo, com isso, as pessoas tendem a buscar através das relações amorosas uma maior sensação de segurança. Entretanto, essa relação precisa contemplar os objetivos individuais do sujeito para que assim não sinta que esteja perdendo ou aprisionado. Ou seja, o casal moderno vive um paradoxo de busca por estabilidade e segurança através de uma outra pessoa, ao passo que, necessita preservar suas individualidades (Vieira & Stengel, 2010).

De acordo com Perel (2018b) a proximidade e intimidade emocional passou a ser um aspecto central nos casamentos dos dias de hoje. Antigamente se buscava essa conexão após muitos anos de relação, mas hoje a compreensão é de que só pode haver matrimônio se já houver franqueza emocional entre o casal. O parceiro passou a ser visto como a principal relação emocional.  “Primeiro colocamos amor no casamento. Depois colocamos sexo no amor. E em seguida associamos a felicidade conjugal com a satisfação sexual” (p. 47).

A Sexualidade do Casal Moderno

Diante desse perfil atual de relacionamento onde se busca uma forte conexão emocional ao mesmo tempo em que se mantenha o respeito das particularidades e desejos individuais, como anda a sexualidade do casal?

Com o avanço das tecnologias, há uma enorme oferta do que se fazer, de pessoas a se conhecer, de lugares a se ir. Com isso, ocorre um aumento no desejo de explorar e conhecer pessoas novas. Porém, como já visto, as pessoas ainda acreditam que encontrarão um parceiro que acompanhe essa jornada e, assim como existe uma expectativa de que esse amor dure, também existe uma expectativa de que o desejo sexual dure - todavia, a realidade se mostra diferente. Para manter o relacionamento muitas pessoas acabam abdicando da paixão e empolgação para sentir mais segurança e estabilidade. Dessa forma a energia erótica acaba sendo prejudicada (Lins, 2017 & Perel 2018a).

Umas das maiores dificuldades vividas pelos casais com tempo de relacionamento é a diminuição ou até anulação da vida sexual. Ou, muitas vezes, o sexo ocorre, mas como obrigação e não por excitação, de forma geral, isso é mais frequente com as mulheres. Estudos mostram a associação entre maior tempo de coabitação com diminuição do desejo sexual. É importante lembrar que a falta de desejo sexual só passou a ser considerado um problema, a partir do momento em que o amor e o sexo passam a ser ingredientes chaves para um relacionamento. Consequentemente, a frustração passou a se instaurar nos casais onde não atingiam tal expectativa (Ferreira, 2013 & Lins, 2017).

Um estudo buscou identificar o impacto da diferenciação do self, conceito postulado por Murray Bowen, na construção de intimidade e desejo sexual do casal. A autora aponta a diferenciação do self como um preditor do desejo, intimidade e satisfação do casal. Para as mulheres esse ponto é ainda mais intenso do que para os homens.  Ela salienta que quanto mais equiparado o grau de diferenciação do self entre os parceiros, maior o impacto na satisfação da relação. Nessa pesquisa foi identificado alguns fatores que interferem na intimidade e desejo sexual do casal: “o stress, falta de tempo e fadiga (decorrentes especialmente do trabalho e do apoio aos filhos, família de origem e rede social), e a rotina ou monotonia”. Da mesma forma, o estudou avaliou que esses mesmos fatores poderiam ser benéficos a partir da “a mudança ou quebra na rotina, e a ausência de stress ou a disponibilidade em termos de tempo e energia” (Ferreira, 2013, p. 219).

Acontece que em meio ao medo da perda de uma segurança emocional depositada na relação, muitos optam por renunciar a busca pelo prazer sexual. Não raro, alguns casais possuem um intenso amor entre si e são carinhosos, porém a sexualidade é infrequente ou nula, sendo similar a uma relação fraterna. “A questão é que pode haver prazer sexual pleno desvinculado de qualquer aspiração romântica, assim como é possível amar muito uma pessoa e não ter desejo sexual algum por ela (Lins, 2017, p. 82).

Apego e a Dança do Sexo: A Sexualidade Vista por Susan Johnson

O sexo é a emoção transmitida através dos corpos em movimento e é a partir desse entendimento que a teoria do apego se insere. Sue Johnson, referência na teoria do apego para casais e a percursora da Teoria Focada na Emoções (EFT) considera que “a emoção é a música da dança entre os amantes – ela organiza as interações” (Johnson, 2016).

Os teóricos do apego entendem que a conexão emocional segura é uma das formas fundamentais de necessidade humana. “No que diz respeito à vida sexual, o ambiente seguro torna-se pré-requisito para que o indivíduo possa sentir-se sexualmente estimulado, relaxado e conectado com o parceiro” (Steves & Roediger, 2017 citado por Rocha e Maciel, p. 227).

A EFT consiste em refletir de forma empática e validar as necessidades emocionais através de perguntas e intensificação nas colocações. O terapeuta explora junto ao casal seus ciclos de interações e relaciona suas respostas comportamentais ao sistema de apego. O objetivo final é assegurar que os parceiros estejam abertos emocionalmente e conscientes das suas necessidades emocionais, possibilitando que expressem e acolham um ao outro de forma mais assertiva (Johnson & Zuccarini, 2010).

Há uma retroalimentação entre a satisfação da relação sexual do casal e o fortalecimento do vínculo. Dessa forma, a EFT é norteada pelas seguintes ideias:

• Inserir as questões sexuais trazidas pelo casal dentro da compreensão dos ciclos de repetição das interações negativas entre eles, ativados pelo sistema de apego de cada um;

• Ressaltar a importância de validar a segurança emocional para o trabalho da sexualidade;

• Os ciclos negativos do trato sexual são averiguados a partir da explanação das entravas e necessidades de apego. Assim, o trabalho com a emoção é essencial para integrar o sistema de apego ao sistema sexual do casal;

• A exploração da sexualidade e do erótico ocorrerá a partir de uma aventura segura – com parceiros emocionalmente abertos para experiência.

A premissa básica da teoria e intervenção é de que “quando se sentem mais conectados de maneira segura, são capazes de transformar os bloqueios que ocorrem em sua dança sexual e abordá-los abertamente” (p. 10).

Amar É Ter Desejo, É Querer: A Sexualidade Vista por Esther Perel

Há um paradoxo entre o amor e o desejo que segundo Esther Perel – renomada autora e terapeuta de casal da atualidade, ocorre, pois os fundamentos responsáveis por alimentar o amor são os mesmos que interferem no desejo erótico. Logo, a autora contrapõe a ideia vigente de que dificuldades sexuais se explicam tão somente por divergências na relação. Ela traz à tona a realidade de muitos casais, visto ao longo de sua carreira, que relatam se amar e ter intimidade, mas após algum tempo de relacionamento percebem o desejo sexual diminuindo ou até desaparecendo. A partir dessa compreensão “ela reverte a abordagem terapêutica usual com a seguinte sugestão: primeiro melhore o sexo, e então o relacionamento melhorará” (Perel, 2012, p. 36).

O sexo é visto com uma estrutura à parte da via afetiva e não como um resultado dessa via. “A história emocional de um casal pode, de fato, revelar muito sobre sua vida erótica, mas não tudo. Há uma relação complexa entre amor e desejo, e não se trata de um arranjo linear de causa e efeito” (Perel, 2018a, p. 38). Portanto, é natural que o sexo e amor variem ao longo da relação, independentes um do outro. A autora observa que “muitos casais hoje em dia quase não transam, mesmo quando declaram se amar” (p. 11). Ela acorda que é da natureza humana a busca pela sensação de segurança advinda dos relacionamentos convencionais, porém ressalta que ao mesmo tempo existe uma necessidade contrária a essa - de exploração. No seu entendimento, esse seria um dos motivos da frustração sexual de muitos casais que se amam. Para uns, amor e desejo são inseparáveis; para muitos outros, a ligação emocional inibe a expressão erótica. Muitas vezes, os sentimentos de afeição e proteção que alimentam o amor bloqueiam aquilo que alimenta o prazer erótico” (p. 12).

Assim como nossas crenças e padrões comportamentais são desenvolvidos a partir das primeiras experiências ao longo do tempo, da mesma forma acontece com as nossas tendências e bloqueios sexuais. “O excesso de familiaridade de um parceiro íntimo é um desastre para o sexo. A pessoa é despida de sua identidade erótica. A relação pode ser muito amorosa, afetuosa e terna, mas é desprovida de desejo” (Perel, 2018b, p. 177). Perel (2018b) salienta que, nesse ponto, as mulheres tendem a se perder mais na relação, já os homens parecem perceber mais as suas parceiras perdidas. Como a autora bem lembra “o casamento e a maternidade exigem um nível de altruísmo conflitante com o egoísmo inerente ao desejo (p. 166).

 

Método

O presente estudo teve como base uma pesquisa qualitativa de nível exploratório através de uma investigação bibliográfica e ilustração de casos clínicos. Através da revisão dos conceitos trazidos por duas grandes teóricas da atualidade em Terapia de Casal, foi analisado os pontos de convergências e divergências entre as diferentes visões. Para tanto, se realizou uma coleta de dados através de um levantamento de artigos e livros sobre a temática entre o ano de 2010 à 2020.

O presente trabalho também buscou averiguar as possibilidades de integração das diferentes teorias na compreensão da sexualidade do casal através da apresentação de vinhetas clínicas. Os casos descritos são atendidos na clínica por coterapeutas através do referencial da terapia sistêmica. Utilizou-se a história familiar e evolução dos atendimentos a partir do levantamento de informações registradas nos prontuários e observações feitas durante as sessões de psicoterapia. Salienta-se que alguns dados foram alterados ou omitidos com o propósito de manter o sigilo e preservação dos membros e que o termo de consentimento livre e esclarecido foi utilizado como autorização dos casais para a realização desse estudo.

 

Discussão

A Sexualidade do Casal Casulo: Entre o Desejo de Voar e o Medo de Sair

Lhe peço um dedo de paciência comigo (...)
Acontece que sou pequena, frágil e me escondo num casulo.
Se sente algo te peço que fique,
aguarde até que eu me renove e me transforme numa borboleta.
 Assim enfim, poderemos ser felizes e como dizem os contos de fada,
para sempre!
(Clementine)

 

Amélia e Ednei, nomes fictícios, estão casados há 20 anos e se encontram na faixa-etária dos 45 anos. Eles têm dois filhos, uma menina com 10 anos e um menino com nove anos de idade. Inicialmente buscaram terapia familiar por problemas de comportamento do filho caçula. O casal se conheceu em uma festa e após dez meses de namoro e noivado, oficializaram o casamento. O relacionamento é marcado por desentendimentos intensos, funcionamento reativo e dificuldades na comunicação. A primeira gravidez ocorreu através da fertilização in vitro por apresentarem problemas de fertilidade. Já, a segunda gravidez não foi planejada, ocorrendo de forma inesperada pelo casal. Por ter havido dificuldades na primeira gestação, Ednei ficou inicialmente desconfiado quanto à paternidade. A gestação era de gêmeos, porém um dos fetos não se desenvolveu. O período da segunda gestação também foi marcado pela descoberta de uma relação extraconjugal de Ednei.

Famílias de Origem do Casal Casulo

Amélia veio de uma família com bom poder aquisitivo, é a filha mais nova de cinco irmãs. O ambiente familiar era de muitos conflitos e discussões. Após a descoberta da infidelidade do pai, as brigas ficaram ainda mais intensas em casa. Os pais mantinham um comportamento mais rígido e exigente, utilizando por vezes, de agressão física como disciplina. Há uma valorização familiar relacionada ao status e por conta disso, Amélia se formou em duas faculdades – pois a primeira não se encaixava na profissão almejada pela família. Antes de conhecer Ednei, teve dois noivados.

A família de Ednei, diferente de Amélia, tem origem humilde, sem tantos recursos financeiros. Seus pais se separaram quando tinha cinco anos de idade, antes disso, lembra de ter presenciado o pai agredir a mãe fisicamente. Após a separação, passou a morar com a mãe onde ficou até seus 14 anos de idade quando, então, decidiu morar com o pai por ele apresentar mais chances de crescimento profissional. Aos 17 anos se mudou para capital onde passou a empreender e hoje mantém uma vida financeira confortável.

Panorama Sexual do Casal Casulo,

A narrativa vigente do casal é de um relacionamento com pouca demonstração de afeto e contato físico. Ao passo que, desentendimentos e ressentimentos fazem parte do cotidiano da relação. Nota-se que os conflitos entre eles passaram a ficar ainda mais intensos após as gestações e descoberta da infidelidade. A comunicação entre eles se baseia em queixas e cobranças através de comentários depreciativos um com o outro. Para Ednei, o sexo é uma forma deles se entenderem, porém reclama ser sempre ele quem busca e que, na grande maioria das vezes, é rejeitado. Amélia, pontua que não sente vontade de transar tendo em vista os conflitos constantes. Ela percebe uma diminuição do desejo que atribui à idade e à falta de momentos românticos a dois, pois acabam passando muito tempo junto aos filhos, embora, ambos concordem que nunca foram muito ativos sexualmente e afetivamente.

Como dito anteriormente, eles chegara à terapia com uma queixa familiar, porém as demandas do casal acabaram aparecendo de tempos em tempos. A partir de então, foi sugerido que a terapia focasse no relacionamento deles. Há uma dificuldade do casal em falar sobre seus problemas. A infidelidade foi trazida para terapia com a advertência de que não tocariam mais nesse assunto e portanto, não gostariam de abordar profundamente. Da mesma forma, muitos outros assuntos eram trazidos para sessão, mas o casal apresentava resistência em adentrar ou mesmo dar continuidade as problemáticas elucidadas. O mesmo foi identificado com a demanda sexual. Nos últimos tempos, eles trouxeram não estar transando e raramente tendo momentos a dois. É importante salientar a grande frustração de ambos quanto a relação. Amélia sempre carregou uma expectativa de ter uma família e casamento perfeito, como em um conto de fadas, sua frustração se refere mais ao afeto e cuidado do que a sexualidade. Já, Ednei pontua frequentemente seu desejo de se separar, tendo em vista que gostaria de estar aproveitando mais a juventude que lhe resta - sua frustração se refere aos constantes conflitos e a infrequência erótica entre eles.

Compreensão da Sexualidade do Casal Casulo a Partir de Susan Johnson

Como exposto acima, para EFT o primeiro passo consiste em analisar a demanda sexual a partir da sua inserção nos ciclos de interação negativa entre o casal. “Em muitos relacionamentos angustiados, os parceiros são pegos em ciclos de demandas críticas e retiradas defensivas, tanto em geral quanto em interações sexuais” (Johnson & Zuccarini, p. 9). Nota-se que o casal casulo está envolto em um padrão repetitivo de respostas agressivas a partir de uma postura defensiva diante da proximidade insegura. Os autores relatam um exemplo comum de interação negativa que parece se encaixar muito bem no caso ilustrado.

“O parceiro mais exigente, na maioria das vezes a parceira, geralmente fica mais ansiosa, buscando tranquilidade e afeto no quarto e fora dele” (p. 9). Amélia apresenta um perfil exigente, normalmente é ela quem inicia as sessões, acabando por dominar a conversa em muitos momentos. Suas queixas giram em torno da frustração em relação aos comportamentos do parceiro tanto como pai quanto como marido e da falta que sente de momentos românticos. Ela identifica que os momentos onde se sentiu acolhida pelo parceiro foi quando o mesmo lhe deu colo. “Enquanto o parceiro mais retraído, geralmente o homem, pode iniciar o contato sexual, mas evitar a proximidade e permanecer a uma distância emocional” (p. 9). Ednei apresenta maior dificuldade em se expressar emocionalmente. Diante das reclamações salientadas pela parceira, se mantem na defensiva. Ele coloca que parece nunca estar bom o suficiente para Amélia e, por vezes, ameaça abandonar a relação. Na grande maioria das vezes, ele quem inicia a tentativa de sexo, porém acaba se sentindo rejeitado pela negativa de Amélia. Para ele, é nesse momento que ele está expressando seu afeto, buscando proximidade e se abrindo emocionalmente. Porém, para Amélia a expressão de afeto não está na sexualidade e sim no cuidado que sente falta. “Para cada parceiro nesse ciclo de angústia e de apego inseguro, as experiências sexuais tornam-se unidimensionais. O foco de um é sensação e desempenho e, do outro, carinho e tranquilidade. A sexualidade então se torna um local de crescente alienação e ansiedade” (p. 9).

Ao identificar o ciclo de interação do casal fica visível a insegurança vincular entre eles que pode ser explicada inicialmente pelas vivências que tiveram nas suas famílias de origem, mas também pelos ressentimentos adquiridos ao longo da relação. “Bowlby via a raiva em relacionamentos íntimos como sendo uma tentativa de se conectar com um ente querido aparentemente inacessível” (p. 4). Diante do funcionamento reativo – como é o caso do casal casulo, Johnson orienta iniciar por intervenções que aumentem a segurança emocional entre o casal e diminuem os ciclos de interação negativa. “Novos níveis de segurança e conexão emocional promovem experiências sexuais mais positivas e integrada” (p. 9).

Compreensão da Sexualidade do Casal Casulo a Partir de Esther Perel

Para Esther Perel o próprio conceito de casamento – como entendemos hoje – acaba sendo o responsável pelo desgaste sexual de muitos casais, pois a grande maioria apresenta dificuldade em conciliar a intimidade e a individualidade. “O problema é a convivência do dia a dia, porque é impossível não perceber aspectos que nos desagradam no outro. Manter a idealização se torna impossível. O outro é visto de maneira bem diferente daquela que você fantasiou” (Lins, 2017, p. 31). Neste ponto de vista, percebe-se que Amélia construiu uma expectativa fantasiosa de relacionamento e família o qual acaba impactando na sua insatisfação conjugal. “As frustrações vão se acumulando, tornando a relação sufocante...” (p. 31). Ednei, por sua vez, expressa o quanto acabou fazendo escolhas na vida para tentar agradar a Amélia e a família e que hoje, se arrepende.

A autora salienta que o nosso conceito de sexualidade é desenvolvido através das influências que recebemos dos nossos cuidadores e cultura e que, cada um acaba construindo um arsenal de desejos e inibições eróticas particulares. “As dinâmicas dos relacionamentos são sempre complementares – as duas partes contribuem para criar padrões” (Perel, 2018a, p. 42). Assim, podemos refletir que Amélia foi ensinada que é preciso fazer por merecer e que as pessoas que a amam, também são as que a diminuem. Enquanto Ednei não aprendeu a expressar suas emoções, a forma que encontra para demonstrar afeto é através de atos, como trabalhar muito para proporcionar uma vida boa para família ou mesmo através do ato sexual. Dessa forma, quando Amélia o rejeita sexualmente, ele não se sente amado. Por outro lado, Amélia o rejeita porque tem dificuldade de confiar e se entregar. Como ressaltado pela teórica:

Este é o desafio da intimidade sexual, de levar o erotismo para o lar. Esta é a mais assustadora de todas as intimidades porque abrange tudo. Atinge o que está no nosso âmago e envolve revelar aspectos nossos que estão rodeados de vergonha e culpa. É assustador, um tipo de [nudez inteiramente diferente], muito mais reveladora que um corpo nu. Quando expressamos nossos desejos eróticos, corremos o risco de ser humilhados e rejeitados, coisas igualmente devastadoras. A intimidade sexual é a revelação de nossas lembranças, nossos desejos, nossos medos, nossas expectativas e nossas dificuldades dentro de uma relação sexualizada. (Perel 2018a, p. 107)

O casal casulo retrata uma história familiar de agressões e negligências. Por conta disso, o sofrimento é intenso diante de um estado de total vulnerabilidade que é o relacionamento amoroso e o sexo. Tornando um desafio ainda maior conciliar essas duas fronteiras paradoxais.

A Sexualidade do Casal Borboleta: Alçando o Voo da Resiliência

"As borboletas precisam enfrentar o casulo antes de voarem."
(Samalita)
Saímos do casulo;
vamos voar o que faz a borboleta bonita não é a suas cores,
e a forma que ela bate as asas!
(Hekeslay A. Moser).

 

Valentina e Márcio, nomes fictícios, estão juntos há 19 anos e têm duas filhas dessa relação. A filha mais velha tem 10 anos e a mais nova quatro anos de idade. Ambos possuem nível superior completo e estão na faixa dos 35 anos. Eles possuem um nível socioeconômico relativamente bom. A busca pela terapia também ocorreu por demanda familiar quando a filha mais velha, então com oito anos, passou a expressar desejo de morte. O casal se conheceu ainda jovens, pois viviam na mesma vizinhança. O relacionamento sempre foi marcado por uma grande intimidade e companheirismo entre eles. Ambos se consideram melhores amigos e costumam estar sempre junto às filhas.

Famílias de Origem do Casal Borboleta

Valentina perdeu o pai há quatro anos, considerava ele o seu melhor amigo. Embora tenha tido desentendimentos no passado em função do uso de álcool do pai. É a filha mais velha de quatro mulheres e relata que seu pai a tinha como um menino, pois compartilhavam de ensinamentos e hobbies visto como “masculino”. Ela diz que foi com ele que aprendeu a ser prática e resolutiva, não se considerando uma pessoa delicada. Após o falecimento do pai, Valentina acabou assumindo o papel que era dele na família de origem. Sendo solicitada pelas irmãs e mãe na resolução de problemas. Essa nova demanda acabou impactando no relacionamento com o marido e as filhas e, a partir, desse momento, resolveu se afastar da família de origem. Para ela, é muito difícil falar sobre o passado, principalmente sobre a sua relação com a mãe. Refere ter havido agressão e negligência e, por conta disso, sempre precisou estar pronta para tudo e todos.

Márcio é filho de pais separados, seus pais se separaram quando ele tinha oito anos de idade. Seu pai teve um histórico de depressão ao longo da vida, tendo cometido suicídio há cinco anos atrás. Nunca se sentiu próximo ao pai, tendo encontrado a representação da figura paterna no seu sogro. Tem um irmão mais velho com o qual não mantem uma boa relação. A mãe vive em outro estado e durante a juventude viveu com uma tia. Ambos os membros do casal mantem um relacionamento distante com as duas famílias de origem atualmente, não contando com uma rede de suporte para o cuidado das filhas.

Panorama Sexual do Casal Borboleta

A relação conjugal foi construída em cima de muita intimidade e cumplicidade. Contudo, Valentina observa que Márcio ficou mais distante e frio após o falecimento do pai. Ele concorda e diz ter dificuldade em lidar com as emoções, acabando por ser mais prático e resolutivo no dia a dia, dessa maneira, não entrando em contato com o seu sofrimento e nem com o sofrimento dos outros. No entanto, esse assunto só veio à tona após muitas sessões de terapia, pois a família mantinha um padrão de desviar dos assuntos difíceis e utilizar o humor para isso. A filha mais velha foi quem acabou expondo a tristeza presente na família. A partir disso, Valentina conseguiu expressar que não sentia espaço para falar do seu luto com Márcio, pois não se sentia acolhida por ele quando tentava. Da mesma forma, percebeu que também não estava escutando ou acolhendo o marido nos últimos tempos.

A partir desse momento, as sessões ocorreram com o sistema conjugal onde ficou evidente a dificuldade de eles terem momentos a dois. Ambos alegam que a rotina e falta de suporte no cuidado das filhas é o que impede. Mas conforme vamos avançando e trazendo sugestões para esses problemas, nota-se uma resistência em construir as fronteiras conjugais. Assim, como ocorre um receio na expressão das emoções, o mesmo ocorre com a sexualidade que nunca é trazida por eles. Torna-se uma hipótese a falta de sexo entre eles, tendo em vista que os mesmos quase nunca ficam a sós. Embora relatam se amar, a energia erótica não reverbera no casal.

Compreensão da Sexualidade do Casal Borboleta a Partir de Susan Johnson

A EFT compreende que naturalmente uma relação passará por inúmeras mudanças e sofrerá com maiores e menores intensidade no desejo e excitação sexual de diferentes formas e em diferentes momentos para cada membro do casal. No entanto, a teoria busca identificar e trabalhar com as maneiras que o casal irá lidar com essas oscilações diante da sexualidade. De acordo com a teoria, a satisfação e desejo erótico está diretamente relacionado ao grau de segurança sentido na relação. Na maioria das vezes, a regulação e expressão emocional denotam um papel chave no contato sexual (Johson & Zuccarini, 2010). Podemos observar que a partir do falecimento de ambos os pais, o casal ficou mais distante emocionalmente em resposta ao processo de luto. Há uma evitação em entrar em contato com as emoções desconfortáveis por medo de um descontrole emocional diante do sofrimento intenso frente ao luto. Por não contarem com uma rede de apoio ampla e pelos papéis que exerceram nas famílias de origem, ambos acreditam que não podem “se deixar levar” pelas emoções.

A partir dessa premissa, “o terapeuta também colocará respostas sexuais em uma forma de apego, por exemplo, vinculando falta de desejo e excitação à falta de segurança e uma preocupação com autoproteção” (Johnson & Zuccarini, 2010, p. 10). Assim como a resposta do casal ao luto, foi se fechar emocionalmente podemos inferir que o mesmo ocorre com a sexualidade. Dessa forma entendemos que, por mais que ambos sejam afetivos e companheiros entre si, ambos possuem feridas de apegos que se sobressaem diante dos estressores atuais. Assim, a falta de desejo pode estar associada a mesma crença de não poder “se deixar levar”.

“Uma base segura nos permite brincar - aprender - a explorar os corpos e mentes uns dos outros. Sexo emocionante é sobre estar seguro o suficiente para se render ao momento - deixar ir e ver o que acontece” (Johnson, 2016). Tanto Valentina quanto Márcio relatam uma infância e adolescência complicadas e solitárias. Referem ser o porto seguro um do outro, porém foram impactados diante da morte de seus pais. Márcio precisou se fechar emocionalmente para dar conta das tarefas diárias, Valentina, por sua vez, não se sentia segura em falar sobre a sua dor com o esposo. O casal estava diariamente freando a tristeza e em decorrência disso, se distanciando um do outro, não se rendendo aos momentos – sejam eles de dor ou prazer. “A perda de desejo ou a falta de envolvimento na sexualidade geralmente não se refere à familiaridade que nos leva a dormir, mas ao desengajamento emocional e à falta física de sintonia que a acompanha” (Johnson, 2016).

Compreensão da Sexualidade do Casal Borboleta a Partir de Esther Perel

Há um entendimento comum em associar as dificuldades da esfera sexual em decorrência da falta de intimidade do casal. Porém, Esther Perel traz a visão de que talvez a forma como se constrói a intimidade pode interferir no desejo erótico do casal ao privar a individualidade. “Quando a intimidade se transforma em fusão, não é a falta, mas o excesso de proximidade que impede o desejo” (Perel, 2018a, p. 39). Uma fala comum advinda do casal borboleta é de que não existe segredo entre eles e que sabem tudo um do outro, pois se consideram melhores amigos. “O amor gosta de saber tudo sobre o outro; o desejo precisa de mistério. O amor gosta de encurtar a distância entre nós, enquanto o desejo a toma como estímulo...” (Perel, 2018a, p. 49). Os programas de lazer que fazem comumente envolvem as filhas. Tantos o sistema conjugal quanto o sistema individual são pouco vivenciados por eles. Referem não sentir segurança tanto em deixar as filhas com terceiros ou se envolver em atividades em que o parceiro não esteja junto.

Valentina e Márcio sofreram diversas faltas ao longo do desenvolvimento e prezam por construir um ambiente familiar de constante contato e segurança. “Ao criarem segurança, muitos casais confundem amor com absorção, o que é um mau presságio para o sexo...O erotismo exige distância...” (Perel, 2018a, p. 13). Frente a isso, denotam dificuldades em construir as fronteiras do sistema conjugal, tendo em vista que referem sentir culpa e insegurança perante as filhas. Ficamos então, em uma relação forte em cooperação e comunicação, mas fraca em cumplicidade e diversão. Só que a amizade desapaixonada é um ambiente problemático para o cultivo do erotismo (Perel, 2018a, p. 190). A partir da visão da autora, podemos concluir que o conceito de intimidade desenvolvida pelo casal borboleta onde, não há espaço individual ou conjugal pode estar afetando o desejo erótico entre eles.

Divergências Entre as Duas Visões

Um dos pontos enfatizados pelos teóricos do apego como sendo um diferencial ante as demais teorias, é de que seu estudo se baseia não somente em problemas de relacionamentos, mas também nos funcionamentos saudáveis. “Ela nos permite entender não só o que “dá errado” num relacionamento, mas também o que “dá certo” (Levine & Heller, 2013, p. 25). Esse parece ser o primeiro ponto de divergência entre as duas autoras. Susan Johnson baseia sua terapêutica em anos de estudos sobre a teoria do apego voltada ao apego inseguro – com dificuldades interpessoais, mas também ao apego seguro – um modelo de como se relacionar. Ao passo que, Esther Perel reflete suas intervenções terapêuticas em anos de atendimento clínico a partir dos casos de atendimento que apresentaram dificuldades no relacionamento. Podemos refletir então, que suas construções teóricas advêm de diferentes populações estudadas.

Outra premissa divergente entre as teóricas, parte do entendimento do constructo vigente em muitas culturas, inclusive dentro da terapia de família e casal. A EFT ressalta que seu fundamento no apego acaba indo na contramão da crença popular atual sobre a dependência ser vista como negativa. “Esta cultura patologizou a dependência e exaltou os conceitos milenares, em geral, negligenciou a dimensão do nutrir em favor de focalizar questões de poder, controle e autonomia” (Johnson & Zuccarini, 2010, p. 4). Susan Johnson refere que as intervenções baseadas nesse entendimento acabam focalizando em técnicas sexuais ou em manter a distância entre o casal com o intuito de voltar a ter mistério e novidade, mas que isso, muitas vezes, não contempla a real necessidade do casal (Kleinplatz, 2001, In Johnson & Zuccarini, 2010, p. 9). Em contraponto, Esther Perel expõe o predomínio da ideia, entre os terapeutas de casais – pelo menos nos EUA, de que o sexo ilustra como está a relação conjugal. “Por essa ótica, o relacionamento sexual é uma metáfora da relação como um todo. A suposição subjacente é de que, se a relação melhorar, o sexo também vai melhorar” (Perel, 2018a, p. 14). Porém, a autora indaga tal afirmativa, visto que seus anos de prática clínica tem lhe mostrado um predomínio de casais muito afetivos, mas sem desejo sexual.

Conforme o exposto acima, observa-se que as autoras partem de premissas diferentes. Frente a isso, adentramos no principal ponto de divergência entre os modelos teóricos. De acordo com a teoria de Bolwby os apegos tem quatro características: manutenção da proximidade, porto seguro, sofrimento de separação e base segura. Esses pontos juntos somente são vistos em relações específicas – nas figuras de cuidado com seus filhos e nos relacionamentos românticos (Johnson & Whiffen, p. 48). Para teoria do apego existem três sistemas comportamentais que compõem o amor adulto: cuidado, apego e sexo (Fraley e Shaver, 2000; Shaver et al., 1988, In Johnson and Whiffen, 2012, p. 26). Esses três elementos interagem entre si, Johnson (2016) aponta que “cuidar e fazer sexo podem operar separadamente do apego, mas na maioria das vezes eles formam um sistema em interação”. Ou seja, o sexo assim como cuidado e o apego fazem parte do constructo do amor.

Diferentemente, Perel assinala que o “sexo não é uma metáfora para relacionamento, mas uma narrativa paralela que fala sua própria língua” (Perel, 2012, p. 39). Dessa maneira, o sexo é visto com uma estrutura a parte da via afetiva e não como um resultado dessa via. A autora compreende a relação complexa existente entre o amor e sexo, porém enfatiza que não necessariamente é através de uma via linear e que os dois sistemas podem coexistir de diferentes maneiras em uma mesma sequência de tempo. Assim, não significa que se um sistema está bem ou mal o outro naturalmente também estará, pois um, muitas vezes, independe do outro. Nesse sentido, Perel (2018a) pondera uma crítica à terapia de casal tradicional: “tradicionalmente, a cultura terapêutica sempre favoreceu a expressão verbal em detrimento da corporal. Porém, sexualidade e intimidade afetiva são duas línguas distintas...” (p. 14).

É importante destacar o achado obtido por uma pesquisa com casais com um grau de satisfação na relação ao comparar com o modelo descrito por Perel. O estudo demonstra que os casais satisfeitos não seguem o padrão descrito pela autora, onde a eliminação das incertezas perante a relação para se sentirem seguros acaba impactando no desejo erótico – advindo de um grau de incerteza e insegurança. A pesquisa mostra que “estes casais satisfeitos aparentam ter conseguido encontrar estratégias que lhes devolvessem algum equilíbrio entre o risco e a gestão do risco” (Ferreira, 2013, p. 219). Esse dado permite refletir sobre o modelo teórico de Perel com parte da população que autora não analisa em seus livros.

Por último, ambas as autoras salientam a questão bioquímica do amor e da paixão, todavia suas compreensões são discrepantes. Perel (2018a) enfatiza que os hormônios da paixão possuem vida curta, sendo assim o amor maduro se instaura com a automática diminuição da paixão erótica. Já, Johnson (2016) salienta que a ocitocina é responsável por evitar que o prazer sexual diminuía com o convívio diário e esse hormônio estará presente durante a troca de afeto ao longo da relação. Ela expõe que muitos casais de longa data relatam ter uma gratificação sexual. Enquanto Perel (2018a) acredita que a intimidade e demasiada convivência podam o desejo sexual, Johnson (2016) aposta no aperfeiçoamento sexual refletido na familiaridade criada com um casal disposto a trabalhar em equipe.

O Sexo Está Aprisionado Ou no Passo Errado da Dança?

Eu sou uma borboleta,
que voa livremente,
vai dormir à noite
e acorda no casulo
 com o seu amor.
(Desconhecido)

 

É possível dividir a segurança de um casulo sem perder a liberdade sentida ao voar sozinho? Os casos ilustrados neste trabalho mostram o peso das inseguranças vividas ao longo do desenvolvimento quando ativadas pelo delicado compasso do relacionamento amoroso atual. O casal casulo, embora voem livres às vezes, não se permitem dividir o mesmo casulo ao retornar para casa. Por outro lado, o casal borboleta se encontra à noite no mesmo casulo, porém não passam um dia sem voarem juntos. Em ambos os casos, a sexualidade se vê afetada. O sexo está aprisionado no casulo construído pela sociedade ou o problema se encontra no movimento do bater de asas do casal?

Perel (2018a) ilustra bem o peso da memória emocional infantil nos relacionamentos adultos e como isso afeta nossa necessidade de segurança proporcionada pelo casulo e de autonomia sentida ao voar. “Chegamos aos relacionamentos adultos com uma caixa de memória emocional pronta para ser ativada. A intensidade com que as relações de nossa infância alimentam ou obstruem os dois tipos de necessidade determinará as vulnerabilidades que levamos para as nossas relações adultas” (p. 40). A autora salienta que acabamos buscando parceiros de forma a conciliar com as nossas vulnerabilidades [o que mais queremos é o que mais tememos] (p. 40).

A teoria do apego emana do aprendizado emocional construído com os cuidadores e da importância dada ao vínculo para o bom desenvolvimento intrapessoal e interpessoal. O mesmo se estende ao sexo que não é visto como fonte de prazer ou com o intuito exclusivo de procriação, mas como um comportamento que resulta no fortalecimento da conexão emocional. “A excitação parece naturalmente estimular o apego, a menos que estejamos entorpecidos e trabalhando para evitar a conexão emocional - mantendo nosso sexo compartimentado e impessoal (Johnson, 2016). Da mesma forma, o apego demonstra estimular a satisfação sexual dos casais.

Perel (2018b) concorda com a visão dos teóricos do apego de que algumas pessoas se beneficiam da segurança sentida com a intimidade de um relacionamento e que justamente essa segurança impulsiona a confiança de explorar as fantasias eróticas. No entanto, ela aponta a crescente parcela de casais que constroem uma relação baseada em afeto, segurança e companheirismo, porém sofrem com a diminuição do desejo erótico. Mais ainda, nesse novo modelo conjugal estabelecido quem acaba por abdicar da sua vitalidade sexual, na sua maioria, são as mulheres. Por uma questão cultural histórica, as mulheres priorizam as necessidades emocionais ante a escolha entre a necessidade erótica. No entanto a autora salienta que “a conciliação do erótico e o doméstico não é um problema a ser resolvido: é um paradoxo a ser administrado” (p. 170).

Steves e Roediger, (2017, como citado por Rocha & Maciel, 2019), apontam que casais que mantem uma base vincular segura, porém não investem na exploração da espontaneidade e diversão acabam abafando a autoconfiança e autocompetência relacionadas à autonomia. Eles enfatizam que para gerar uma satisfação sexual “um bom equilíbrio entre estimulação e intimidade é necessário...” (p. 227).

 

Considerações Finais

Com as mudanças culturais e tecnológicas, a sociedade individualista vista hoje passou a repercutir em um sentimento geral de solidão. “Hoje procuramos em uma pessoa o que antes uma cidade inteira oferecia: base, propósito e continuidade. Além disso, queremos que nossos relacionamentos nos preencham em termos românticos, emocionais e sexuais” (Perel, 2018a, p. 12). Diferente de antigamente em que a intimidade era construir após anos de relação, hoje ela é tida como um critério inicial para um relacionamento. A solidão impactou na necessidade de intimidade do casal (p. 52).  “Casais contemporâneos investem mais do que nunca no amor, mas que numa cruel reviravolta do destino, é esse mesmo modelo de amor e de casamento que está por trás do extraordinário aumento do número de divórcios” (p. 13).

O impacto gerado pelo divórcio na saúde física e mental das pessoas é um dado que evidencia a importância de mais estudos sobre o modelo atual de relacionamento adulto. Cindy Hazan (2012) evidencia as inúmeras pesquisas de autores que perceberam que mesmo um adulto se beneficia ao manter uma relação com alguma figura de apego. Eles avaliaram que após o divórcio as pessoas ficaram susceptíveis a diversos problemas físicos e psicológicos.

Referente à sexualidade dos casais, é importante que haja uma investigação profunda e completa sobre os processos e as formas que são estabelecidas as relações conjugais e não embasar a compreensão da esfera sexual somente em hipóteses. Nesse sentido, a teoria do apego está mais avançada por conter diversos estudos científicos que validam seus constructos. Como reflete Johnson em sua conferência (2016) “se realmente entendermos o amor, também podemos entender como moldar a paixão duradoura”. Para mais, “certamente não precisamos escolher entre vínculo seguro e paixão - uma é uma porta que se abre constantemente para a outra”.

Amor é para sempre
Sexo também
Sexo é do bom
Amor é do bem
(Rita Lee – Amor e Sexo)

 

Referências

Cindy Hazan, M. (2012). A natureza essencial das relações conjugais. In S. M. Johnson, V. E.  Whiffen, (Orgs). Os processos do apego na terapia de casal e família (pp. 40-60). Roca.         [ Links ]

Levine, A.; Heller, R. S. F. (2013). Apegados. Novo Conceito Editora.         [ Links ]

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Johnson, S. (2016, março). Apego e a dança do sexo: Integrando casal e terapia sexual. In Simpósio de rede: Do anexo à criatividade. Texto do Plenário da Dr. Sue Johnson. Washington Dc. Retirado em 25/03/2020 em: https://www.drsuejohnson.com/attachment-sex/attachment-and-the-dance-of-sex-integrating-couple-and-sex-therapy/         [ Links ]

Perel, E. (2018a).  Sexo no cativeiro: Como manter a paixão nos relacionamentos. Tradução Adalgisa Campos da Silva. (1ª ed.). Editora Objetiva.         [ Links ]

Perel, E. (2018b). Casos e casos: Repensando a infidelidade. Tradução Débora Landsberg. (1ª ed.). Editora Objetiva.         [ Links ]

Perel, E. (2012).  A chama dupla: Reconciliando intimidade e sexualidade, revivendo o desejo. In S. Leiblum, (Orgs.). Tratamento dos transtornos do desejo sexual: Casos clínicos (pp. 36-55). Artmed.         [ Links ]

Schachner, D. A., Shaver, P. R., Mikulincer, M. (2012). Teoria do apego adulto, psicodinâmica e relações conjugais: Uma visão geral. S. M. Johnson, V. E. Whiffen, (Orgs). Os processos do apego na terapia de casal e família (pp. 17-39). Roca.         [ Links ]

Rocha, D, V, & Maciel, L. Z. (2019). Entre quatro paredes vale tudo, inclusive não fazer nada? In K. Paim & B. L. A. Cardoso, Teoria do esquema para casais: Base teórica e intervenção (pp. 223-237). Artmed.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Paula Trombetta
E-mail: paula.trombetta@gmail.com

Enviado em: 06/07/2020
1ª revisão em: 07/08/2020
Aceito em: 16/10/2020

 

 

1 Psicóloga - Especialista em Terapia Cognitivo Comportamental (IWP). Especialista em Terapia de Família e Casal (DOMUS)..
2 Psicóloga - Membro fundador, Docente, Supervisora, Coordenadora e Psicoterapeuta de Casal e Família do DOMUS - Centro de Terapia de Casal e Família. Fundadora e Editora da Revista Pensando Famílias desde 1999.

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