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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.25 no.1 Porto Alegre jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Checkmate ao rei: como reinventar o pai

 

King checkmate: how to reinvent the father

 

 

Maurizio Andolfi1, I, II

I Accademia di Psicoterapia della Famiglia (A.P.F.)
II Revista Terapia Familiare

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo abordar a questão da paternidade na psicoterapia familiar. Uma revisão crítica das teorias sistêmicas e especialmente do pós-modernismo é oferecida, dentro da qual a "revelação da verdade" não parece ter recebido atenção adequada. Ao contrário, este trabalho pretende demonstrar a sua importância, principalmente, no engajamento dos pais na terapia, a fim de passar de um aspecto protetor em relação aos filhos, que nunca têm idade para saber a verdade, ao seu pleno respeito.  Em seguida, aborda o problema da parentificação dos filhos e da imaturidade de alguns pais e descreve como intervir na psicoterapia, de modo a restaurar o equilíbrio emocional e a aceitação de responsabilidades por parte do pai. Para atingir esse objetivo, é útil incluir a história do desenvolvimento da família e da terceira geração como uma ponte entre pais e filhos na terapia.

Palavras-chave:: Paternidade, Revelação da verdade, Parentificação, Processos de imaturidade, Terapia multigeracional.


ABSTRACT

This paper describes how to engage fathers in family therapy. It starts from a critical review of systems theory and postmodernism around the topic of the truth and family secrets. The Author describes how to challenge fathers’ resistances and to motivate them to reveal the truth to their children in therapy.  The fundamental passage from being protective to being respectful of children is outlined too. The process of immaturity transmitted through generations can bring children to perform adult and responsible roles instead of their fathers. Then, the third older generation can be activated and considered as an emotional bridge in connecting fathers and children in order to transform inverted roles and responsibilities.

Keywords: Fatherhood, Truth, Parental child, Process of immaturity, Multigenerational therapy.


 

 

Premissa

Quem sabe se os jogos e suas regras também oferecem um vislumbre da condição humana ou pelo menos alguns estereótipos culturais e de gênero? Sem dúvida, o jogo de xadrez, cuja origem se perde nas brumas do tempo, se revisitado, atualmente, em uma dimensão sistêmica, pode revelar-se uma metáfora muito significativa no que diz respeito à distribuição desigual dos papéis e funções parentais: o pai-rei é, essencialmente, imóvel protegido por todos, ele se move muito pouco no tabuleiro, somente se ameaçado e em uma direção limitada, enquanto a dama-mãe varre por toda parte, movendo-se para frente, para trás, em direção oblíqua. Depois de exausta pelo imenso trabalho, ela sucumbe, e um dos muitos filhos-peões poderia, lentamente, chegar ao fundo do tabuleiro para "reanimá-la".

Lealdade de sangue à Dama, que tanto luta no campo e se esforça muito, junto com os Peões, os fiéis Bispos, as Torres e os Cavalos para proteger o Rei dos perigos que ele pode enfrentar, todos cientes de que o jogo termina quando o Rei, uma vez cercado, acaba sucumbindo à condição de Xeque-mate. Em suma, estamos falando de um Rei que tem o poder absoluto de terminar o jogo com uma derrota do adversário (ou de si mesmo), mas que parece totalmente paralisado e incapaz de tomar qualquer iniciativa pessoal que realmente o enobrece. Representa apenas uma posição real de representação, aliás defendida por todos, mas sem vitalidade própria.

 

O Desvelar da Verdade: Uma Mola Vencedora para Redescobrir os Pais

Por muito tempo, no mundo da psicoterapia familiar, as pessoas têm evitado lidar com o valor profundo e fundamental da verdade e a consequente aceitação de responsabilidades por aqueles que a possuem ou a mistificam. Nesse sentido, o pensamento pós-moderno, com seus dogmatismos sobre a realidade como construção social, sobre o relativismo cultural e sobre a negação da verdade, parece agora estar em crise e é questionado por muitos autores (Minuchin, 1991; Luepnitz, 1992; Held, 1995; Pilgrim, 2000; Linares, 2001; Legg & Stagaki, 2002; Rivett & Street, 2003), que defendem o advento de um sistema de pensamento baseado mais no realismo crítico (Bhaskar, 1998; Pilgrim, 2000; Eagleton, 2004). De um lado mais filosófico, mesmo Umberto Eco (1990) fala de um “novo realismo” como uma reação à filosofia do pós-modernismo e ao slogan de que não existem fatos, mas apenas interpretações.

Esperamos, portanto, um retorno às especificidades, aos valores e à busca de autenticidade no trabalho com as famílias que encontramos na terapia, partindo do pressuposto de Doherty (2001) de que é impossível ser value-free e morally-neutral, mas que é possível lidar com temas éticos na terapia respeitando a autonomia e a diversidade das famílias contemporâneas. Tudo isso requer um terapeuta flexível, ativo e curioso que esteja emocionalmente em sintonia com as experiências de cada membro da família, com suas histórias e seus desejos de autenticidade, e não como um técnico que conserta suas avarias.

As teorias sistêmicas, em seu início, descreveram terapeutas assépticos, precisamente chamados de puristas dos sistemas (Watzlawick, Beavin & Jackson, 1967) que tinham que observar as interações e padrões comunicacionais dentro da família, sem contaminar o campo de observação com suas respostas emocionais. Além disso, a superação do pensamento linear de causa e efeito e a passagem fundamental para a causalidade circular, mesmo não querendo, produziu o risco de privar o indivíduo de sua responsabilidade, como autor de comportamentos violentos ou mistificação da realidade e, assim, direcionar o terapeuta a observar significados relacionais das ações das pessoas, ao invés de definir seus contornos pessoais, como se isso fosse muito afetado pelo “pensamento linear”. Por exemplo, se um homem diante dos silêncios ou do distanciamento emocional de uma esposa, ou um pai diante das repetidas provocações verbais de um filho adolescente, recorresse à violência física repetida contra sua esposa ou filho, ele não poderia ser justificado porque provocado, mas deveria lidar com seu problema de violência, mesmo diante da justiça, bem como na terapia. Na sessão, caberá ao terapeuta fazer com que esse homem entre em contato em primeiro lugar consigo mesmo, no nível de sua violência e sua falta de controle, para depois explorar os motivos profundos dos silêncios ou das provocações verbais para ajudar toda a família a descobrir modalidades relacionais mais saudáveis. Indicativo, na busca do sentido de responsabilidade subjetiva, é o recente volume de Grifoni (2013) sobre homens que perpetram violência intitulado "Não há justificativa" e o que Doherty (2001) afirma em suas inúmeras pesquisas sobre a responsabilidade moral dos pais em relação às crianças.

No âmbito das teorias sistêmicas, atitudes marcantes de distanciamento emocional foram enfatizadas pelo conceito de neutralidade terapêutica (Selvini Palazzoli et al., 1980), para passar aos princípios do construcionismo social (Gergen, 2001) e das terapias colaborativas (Anderson & Goolishian, 1992), segundo as quais o "terapeuta colaborativo" deve evitar influenciar o cliente. Como se a participação afetiva do terapeuta, seu sistema de valores, que poderíamos dizer, a sua ética, e sua busca de autenticidade fossem ameaças potenciais à compreensão do problema, senão formas de prevaricação e imposição de poder. Não reconhecendo o valor da terapia como experiência humana, compartilhada no espaço terapêutico, acabamos privilegiando a “logoterapia”, feita de sofisticadas perguntas circulares, de conversação terapêutica, de hipóteses sistêmicas. Tudo dentro de uma espécie de distância emocional mediada pelo pensamento e pelo fenômeno definido como politicamente correto (que pode ser traduzido em "atitude de extrema atenção e respeito geral") na forma de intervir. Ao fazer isso, o terapeuta se resguarda em fazer perguntas diretas sobre questões "quentes" da história da vida familiar ou tocar em feridas que ainda estão abertas, perguntas essas, que forçariam o terapeuta a deixar seu "uniforme profissional" (muitas vezes adaptado aos modelos que o guiam) para entrar em áreas de profundo sofrimento, utlizando não apenas palavras, mas também o movimento, a linguagem não verbal, o contato físico, o próprio mundo interior como veículos de conhecimento e mudança.

Isso explica por que é muito mais fácil e praticável, especialmente em instituições de saúde, simplesmente trabalhar no problema individual para o qual foi feito um pedido de terapia. Por meio de intervenções focais e estratégicas, cada vez mais direcionadas, os sintomas individuais de crianças ou adolescentes devem desaparecer, embora seja evidente que um como o outro, muitas vezes, é o alvo privilegiado de problemas familiares não resolvidos. Nessa lógica "ortopédica" puramente reparadora, os modelos médico-psiquiátrico e cognitivo-comportamental aparecem como a solução para todos os problemas, substituindo tanto o senso comum quanto o conhecimento dos processos de desenvolvimento familiar (Walsh, 1986), como na história seguida por Akma, uma menina de 11 anos, tratada como um caso de transtorno de ansiedade e conduta agressiva, ignorando completamente o significado relacional do que está por trás e que explica seus comportamentos.

Antes de entrar na descrição desta história clínica, gostaria de esclarecer que o tema da construção das mentiras e segredos de família, bem como a possibilidade de sair delas por meio do "desvelamento da verdade" diz respeito a todos, mães como pais, inclusive famílias de origem, muitas vezes envolvidas na linha de frente na construção do segredo. Nas páginas a seguir, nos referimos aos pais em particular, tendo observado que, ao longo do tempo, poucos deles estão pessoalmente envolvidos na busca de ajuda profissional em relação aos problemas de um filho. Geralmente ficam na retaguarda, enquanto as mães são muito mais ativas e determinadas a buscar ajuda.

Os pais, por outro lado, parecem mais receptivos e motivados quando as apostas são muito altas, por exemplo, quando seus filhos têm transtornos graves e dramáticos (tentativas de suicídio, dependência de drogas, anorexia, etc.) ou quando eles próprios perderam o respeito e a autoestima em relação a si mesmos, escondendo de mil maneiras seus desconfortos profundos, guardados dentro de si por muito tempo. Nesse sentido, a busca pela autenticidade pode ser um projeto ambicioso e irrepetível para um homem que construiu sólidas barreiras defensivas feitas de mentiras e culpas. Não é incomum que alguns pais afirmem em sessão que é "a primeira vez em suas vidas que falam tão abertamente sobre seus sentimentos profundos", confirmando o que Garfield (2017) descreve sobre as dificuldades do homem na esfera da intimidade emocional.

 

Pedido de Ajuda de Amy

Amy me escreveu um e-mail de Kuala Lampur por sugestão de um colega chinês que cresceu na Malásia. Amy trabalha para uma ONG e tem uma filha, Akma, de 11 anos. No e-mail, ela me pergunta se estou disponível para consultar sua família e, portanto, ela, seu pai Chris e a menina estariam dispostos a vir a Perth por alguns dias. A determinação de Amy imediatamente me chama a atenção e, na continuação de seu e-mail, tento entender os motivos que a levam a empreender uma cara e longa viagem de avião de seis horas.

Há mais ou menos dois anos, Akma apresenta um comportamento agressivo e opositivo na escola e na família, em particular em relação ao pai, a quem ela, frequentemente, responde com palavrões. A escola sugeriu uma terapia individual, e Akma fez uma ludoterapia com uma psicóloga local, que também ocasionalmente encontrava sua mãe. Mas com o passar do tempo as coisas pioraram, principalmente depois que a mãe foi contratada pela ONG e passou a trabalhar quatro dias por semana. Akma ficou triste e começou a ser violenta até com ela, repreendendo-a por "querer abandoná-la".

No meio de seu longo e-mail, Amy me comunica que foi muito difícil fazer com que Chris viesse a Perth para a consultoria familiar e que "ele só concordou em comparecer com uma condição, ou seja, que durante as sessões, a filha não seja informada que seus pais se separaram quando Akma tinha quatro anos e se divorciaram três anos depois! "Na verdade, Chris, que trabalha no setor financeiro, mora em Cingapura, um país muito próximo da Malásia e reconstruiu uma vida amorosa.

Portanto, Akma deveria ser ajudada a se tornar uma criança sorridente e amorosa sem que a pedra em sua cabeça fosse removida.

Ainda mais desconcertante é o que Amy me conta logo depois em seu e-mail: por todos esses anos Chris, que ama muito sua filha, viaja para visitar Akma em casa todo fim de semana e em todos os feriados (a distância aérea é como aquela entre Milão e Roma) como um pai amoroso, enchendo-a de presentes e atenção, ligando para ela no Skype todos os dias e mantendo uma relação amigável com sua ex-mulher, também por causa do segredo compartilhado para "ainda parecer um casal, pelo amor de Akma". Ainda mais chocante é o fato de que o terapeuta individual de Akma nunca soube do divórcio dos pais e da função de anos de uma família unida em que o pai se sacrifica em uma viagem árdua entre Kuala Lampur e Cingapura para trabalhar. A terapeuta só tem que cuidar para que desapareçam os comportamentos agressivos da menina, que também está em tratamento medicamentoso por causa de seus transtornos de ansiedade e conduta. Infelizmente, ambas as intervenções parecem não ter surtido efeito, aliás, crescendo, mesmo em estatura, Akma se tornou ainda mais agressiva e irritada, principalmente em relação ao pai, recusando-se a falar com ele via Skype, uma conexão que seu pai tenta fazer todos os dias, mesmo ele, por sua vez, zangado com o comportamento "inexplicável" da filha.

Pelo contrário, em ambas as famílias de origem a situação é bem conhecida e todos se perguntam quando será o momento certo para comunicar a verdade à criança sem causar traumas. Observe que os pais de Chris e Amy são professores aposentados, casais que passaram 48 e 50 anos de vida casados ​​juntos, respectivamente.

 

Reflexões do Terapeuta Sobre o "Programa Não Declarado" da Família

Respondo a Amy, destacando a coragem e a motivação de ambos os pais em virem me encontrar em Perth, enfrentando uma longa viagem e uma estadia de alguns dias na Austrália. Garanto a Chris que, certamente, não serei eu a revelar seu segredo abertamente na presença de Akma, já que é meu costume nunca falar em sessão sobre as informações que recebo anteriormente. Peço à mãe que comunique à filha que estou contente por ela também ter concordado em vir me conhecer e que, de fato, tenho mais experiência com crianças do que com adultos e que com a sua ajuda, talvez, poderei ajudar a sua família. Esta última mensagem é para que Akma perceba o meu interesse por ela e que eu a considero como pessoa competente, e não como portadora de um problema pessoal que obriga a todos a uma viagem cansativa.

Anos de experiência clínica me convenceram de que, muitas vezes, por trás de um Não tão marcante está seu exato oposto e que esse pai espera sinceramente que esse segredo, tão prolongado ao longo dos anos com imensos custos emocionais para todos, possa abrir espaço para a verdade. Na realidade, sua expectativa é que isso possa acontecer de uma forma mágica, sem que ele tenha que assumir a responsabilidade direta por revelar a verdade e suas possíveis consequências. E é precisamente o medo das consequências do desvelamento da verdade que aprisiona muitas famílias e casais em inúteis e angustiantes jogos de falsidade para se opor às mudanças que são percebidas como muito ameaçadoras. Frequentemente, a justificativa para guardar segredos coletivos, às vezes diabólicos, é o bem das crianças, vistas como criaturas indefesas a serem protegidas, em vez de sujeitos competentes a serem amados e respeitados. É claro que Amy estaria disposta a revelar a verdade, mas ela não pode fazê-la tanto por sua própria insegurança (quando é o momento certo? É uma das questões preocupantes para muitas mães) quanto pela negação paterna de que, como o Rei do xadrez, dirige o jogo, comprando o silêncio e a cumplicidade de Amy que, de fato, há anos cria a menina como mãe solteira. Mas a presença amorosa e constante de Chris nos fins de semana, junto com viagens em família e presentes caros para Akma, compensam sua culpa e medos; além disso, o justificam diante do mito da unidade de sua família de origem e da imagem social de um pai, que deve trabalhar no exterior, mas que ama e mantém sua família, imagem social muito exaltada no mundo asiático.

Outra observação importante a respeito do "programa não declarado" das famílias (a chamada agenda oculta) é a desproporção entre o pedido explícito de intervenção, neste caso os problemas de agressividade da menina, e o compromisso de toda uma família de fazer uma viagem tão longa e cara por um problema que certamente não é sério.

Um bom terapeuta deve ser capaz de trabalhar em duas frentes: aceitar o pedido tal como está formulado e encontrar uma forma de atender no nível implícito, de forma a interceptar os reais problemas da família. Este é o meu conceito de responsabilidade terapêutica, e as ideias de Stern (2004) sobre "conhecimento relacional implícito" confirmaram-me em minha busca pelo que está por trás do que é, explicitamente, dito ou posto em prática.

 

O Encontro Com a Família e a Recusa - Compreensão Com Akma

Em minha resposta a Amy, proponho encontrá-los em duas sessões subsequentes. A primeira de duas horas, a segunda no dia seguinte, antes do retorno à Malásia. Pontualmente a família chega ao meu consultório. Chris e Amy se apresentam como duas pessoas amigáveis e abertas, bem-dispostas a esta experiência, completamente nova e nunca experimentada em Kuala Lampur, de conhecer-se como uma família. A experiência de encontrar famílias diante de um problema da infância é ausente na Malásia, mas seriamente carente nas políticas e sistemas sanitários ocidentais. Akma, sentada entre os pais, tem um olhar entre o hostil e o entediado, como se estivesse forçada a participar. Ela parece mais adulta do que seus 11 anos, também considerando sua constituição mais próxima de uma adolescente do que de uma criança. O encontro começa justamente com esse sentimento de rejeição da menina, ao qual me associo plenamente, ampliando o tema do seu desconforto de ter que viajar para outro país para encontrar uma pessoa que nem mesmo conhece sua língua e sua cultura. Digo-lhe que sua ajuda será essencial para eu entender sua raiva, mas não pretendo envolvê-la diretamente. A menina está em silêncio, encolhida sobre si mesma entre os pais. Imediatamente, uso o genograma que Amy me enviou junto com seu e-mail, colocando-o em uma mesinha no centro do grupo, para explorar as histórias de família. Chama-me atenção que nenhum nome está escrito, exceto os nomes dos três. Ao invés disso, são descritas com precisão a idade de cada um e o trabalho de todos os membros das respectivas famílias de origem, inclusive dos quatro avós, já aposentados, são descritos com muito cuidado. Todos exercem atividades autônomas ou no contexto de docência escolar.

Akma ganha vida, cada vez mais, e intervém quando se trata dos avós, com quem sempre teve uma relação muito positiva. Vendo-a mais interessada, proponho que ela faça um desenho de sua família, para ver como ela a descreve e ela aceita com prazer, positivamente surpresa por eu não investigar seu comportamento agressivo. Embora possa escolher entre diferentes cores, ela escolhe uma canetinha preta para desenhar os membros de sua família: ela desenha em fila, um após o outro, figuras estilizadas muito infantis, dos avós paternos ao pai, ela no meio com um cachorrinho, seguido da mãe e dos avós maternos. Todo o desenho é muito frio e bastante triste: a página está em branco, não tem fundo, e destacada do grupo em verde dentro de um círculo, tem uma segunda figura representando o pai, com uma seta abaixo que indica Cingapura. Sobre essa dupla identidade paterna, dentro da família e fora em um outro país, Akma se fecha e começa a mostrar visivelmente seus sentimentos de raiva. Pergunto-lhe se pode confiar em mim e se me permite ficar a segunda hora sozinho com os pais, ela concorda com o pedido como se o já esperasse.

 

Encontro Com os Pais: A Passagem da Proteção ao Respeito

Sem qualquer hesitação, Chris e Amy relatam extensivamente sobre a separação e subsequente divórcio, segredo de família, construído para o bem da filha, que ambos dizem "ainda é muito pequena para saber a verdade". É mais claro que o diretor dessa encenação é o pai que empurrou Amy para a separação, enquanto sua esposa há muito acalentava a esperança de reconciliação, depois de o casal ter vivido juntos por muitos anos, desde os tempos da Universidade. É ele que não pode dizer à filha que não é o trabalho que o leva a Cingapura todas as semanas, mas que ele tem uma nova vida lá. Por outro lado, Amy, sozinha e insegura na gestão emocional da própria vida, acabou se protegendo e protegendo a filha, seu único suporte emocional, criando-a com a ilusão de uma família unida. Voltando à metáfora do xadrez, vemos a Dama-mãe que tudo faz, cria sozinha a filha, trabalha e obedece às regras impostas pelo Pai-Rei, que impõe uma falsa unidade familiar, e Akma, único peão do tabuleiro, avança, atenta que, no final, cabe a ela "manter viva" a mãe.

Ainda assim, Chris realmente ama sua filha, mas como muitos pais, ele a ama de forma errada, confundindo suas necessidades de proteção e segurança ("se Akma soubesse, ela poderia me odiar") com as de sua filha, que, como todas as crianças, gostaria de saber a verdade e não se sentir enganada. Além disso, em sua posição "real", ele acredita que a raiva da criança em relação a ele é incompreensível e injustificada, dado o que ele faz para garantir que ela tenha tudo. Outro tema doloroso do paterno é, muitas vezes, a substituição do afeto e do cuidado por presentes de todos os tipos, como se um filho pudesse ser "comprado". Chris está muito ocupado em defender a si mesmo e suas escolhas de vida para ouvir o grito de dor de Akma, que se manifesta através de seu corpo e seus comportamentos, para uma realidade familiar que, ano após ano, é cada vez mais mistificada e onde o amor e o ódio se entrelaçam e se fundem.

A experiência de trabalhar com tantos pais inautênticos e inseguros me fez perceber que a partir dessas "qualidades negativas" é possível desafiá-los para uma mudança, na medida em que posso fazer com que sintam meu total apoio, como homem e como pai, bem como terapeuta. Em várias ocasiões, falando do crescimento interior do terapeuta, (Andolfi, 2015) também descrevi o valor positivo das falhas pessoais, compostas de inseguranças, delegação afetiva, depressão mascarada, escolhas convenientes, autoritarismo, o legado de um código masculino, ainda difícil de desaparecer. As falhas, uma vez reconhecidas e elaboradas, podem se tornar um precioso recurso pessoal e terapêutico, permitindo nutrir sentimentos de benevolência e empatia para com os homens, os quais o terapeuta pode se reconhecer e refletir com algumas de suas fragilidades, evitando ser julgador ou acusatório.

A aceitação de responsabilidade de Chris não pode ser ordenada ou imposta de cima, mas pode ser proposta de diferentes maneiras. No centro de tudo está Akma e seu amor paternal: Akma, no momento, é uma fonte extraordinária para a mudança de Chris e seus sintomas representam uma oportunidade única. Sem os problemas dela, nunca teria tido essa consultoria familiar em Perth. Esse discurso poderia ser generalizado para os pais que são capazes de participar de maneira ativa e propositalmente da terapia apenas diante dos graves problemas de seus filhos, como se, para serem ouvidos e reconhecidos em suas necessidades básicas, os filhos tivessem que gritar ou ter um comportamento extremo, ao invés de se expressar naturalmente (Andolfi & Mascellani, 2010).

O encontro acontece assim, propondo uma mudança total, ou seja, a passagem da proteção ao respeito pela filha. Por uma hora falei ao coração desse pai, levando-o comigo a outras histórias de pais amedrontados, incapazes de contar a verdade aos filhos. Esses pais, como Chris, amavam seus filhos, mas de uma maneira errada. Usei a modalidade relacional, chamada de self-disclosure (Whitaker & Simons, 1994; Andolfi, 2015), para compartilhar fragmentos de minha interioridade com ele e, indiretamente, com Amy. Não falei sobre aspectos da minha história pessoal, mas associei experiências profundas de relacionamento com o sofrimento de famílias encontradas em terapia, também presas ao dilema de enfrentar a verdade ou não, dilema que espelha o deles.

Contei-lhe sobre o pai que perdera a esposa de maneira dramática, cujo suicídio não havia sido dito em casa. Descrevi o encontro com ele e os filhos adolescentes e como, partindo de um problema escolar do segundo filho, (o problema oficial) foi possível, num clima de respeito e de profunda confiança, revelar o real problema, silenciado por quatro anos. Esse trágico acontecimento havia sido mascarado pela mentira sobre a "doença da mãe no hospital", construída para proteger as crianças. Os dois rapazes puderam, assim, libertar-se do pesadelo da morte real da mãe e apreciar o pai que, finalmente, teve a coragem de lhes dizer a verdade e pegá-los pela mão no caminho da consciência e da vida.

Contei-lhe sobre outro pai, que estava na prisão por ter cometido um crime e seu terror de dizer ao filho de sete anos que a verdadeira razão de ele voltar para a prisão, todas as noites, não era porque tinha um emprego noturno no sistema prisional, mas porque ele tinha que cumprir, ainda, por vários anos uma sentença na prisão. Por bom comportamento, nos últimos anos, ele conseguiu obter permissão para trabalhar durante o dia fora dos muros da prisão, para passar algumas horas em casa com sua esposa e filho, e depois voltar para a prisão à noite. Na verdade, com a cumplicidade benevolente de um agente penitenciário, ele conseguiu fazer com que acreditassem que ele realmente trabalhava na prisão e, às vezes, quando a criança o visitava ele a via a bordo de um jipe ​​vestido à paisana ao lado do policial que dirigia e se divertia muito com ela entrando no jipe ​​com ele. Nos encontros juntos com o pai, a esposa e a avó materna, a mesma questão foi enfrentada várias vezes nas sessões: “quanto e quando seria certo contar a verdade para o filho”. Por fim, o pai, que gostava muito desta criança, compreendeu que manter esta traição viva lhe causaria danos ao longo do tempo e, segurando o filho abraçado a ele, com voz comovida, mas firme, disse-lhe a verdade e a criança em resposta o encheu de beijos.

Nunca em minha experiência como terapeuta pensei e vivenciei que uma mentira, mesmo a mais criativa, fosse melhor do que a dura verdade. Não há dúvida de que o tempo e o grau de confiança que cada membro da família tem nos outros e no terapeuta são importantes para desvendar a verdade. No meu volume (Andolfi, 2015), descrevi como a confiança é a pedra angular em que se baseia todo o processo terapêutico; joining e empatia são elementos importantes para a construção de uma relação positiva com a família, mas a confiança é outra coisa e é conquistada pelo contato com os níveis mais profundos do sofrimento pessoal de cada pessoa. Vai muito além das palavras e sorrisos complacentes e investe o mundo interior do terapeuta que se encontra implicitamente com o de seus clientes. A força moral adquirida com o sofrimento humano confere ao terapeuta aquela serenidade, tão bem descrita por Roustang (2004), que lhe permite entrar em contato profundo com a dor alheia sem levá-la para dentro de si. Além disso, a revelação de uma verdade na terapia parte de premissas muito diferentes daquelas da revelação de um crime: o amor, a confiança mútua entre pais e filhos, a aceitação de responsabilidades dos adultos, bem como a confiança no terapeuta como apoio afetivo e árbitro imparcial, são os ingredientes essenciais no primeiro caso, enquanto no segundo existem outras prioridades, que têm a ver com o sistema de justiça, a ordem social e a indenização por danos que se transformam em pena a ser expiada.

 

O Rei Conseguiu Descer de Seu Trono

Não posso esconder minhas perplexidades no final do primeiro dia. Eu sabia que gostaria que eles voltassem para a Malásia mais leves, sem a pedra do segredo em suas costas, mas não tinha certeza se isso poderia acontecer na hora da consulta que ainda teríamos. Também contava com a possibilidade de prolongar o encontro se necessário. O fato de ter trabalhado com poucas famílias asiáticas me impedia de decodificar claramente os sinais que vinham de seus olhares, de seus sorrisos que, talvez, só pudessem ser uma fachada. Senti que havia feito o possível para transmitir-lhes meus valores e minha proposta de mudança, mas me faltavam suas confirmações. Só tive que esperar, como se esta fosse "a primeira terapia da minha vida". Na verdade, é justamente esse sentimento de expectativa, de não saber o que vai acontecer a seguir e a capacidade de contar com o processo terapêutico que torna esse trabalho fascinante, surpreendente e nunca repetitivo. Também induz humildade e um senso de limitação, habilidades fundamentais para um verdadeiro terapeuta.

Na verdade, uma confirmação muito forte bate na porta do meu consultório, na chegada deles. O pai, que guiava o trio, aperta minha mão com força e intensidade inesperadas, que interpretei como um sinal de gratidão e compreensão, como se me dissesse: "Eu também posso conseguir, como aqueles pais que você falou ontem”.

Depois de alguns minutos conversando sobre a noite anterior, que a família tinha passado em um bairro de Perth perto do oceano, começo dizendo: "Então, este é o nosso último encontro." Em poucos segundos, o pai deslocou sua cadeira para ficar na frente da filha e, olhando-a nos olhos com voz emocionada, começa a contar a Akma a história da separação conjugal, seguida do divórcio e de sua nova residência em Cingapura, onde mora, há algum tempo com uma nova parceira. Faz questão de confirmar que não teve filhos, porque “Akma é e será a minha única filha, a quem sempre amei desde que nasceu”. Enquanto Chris fala, Akma não tira os olhos dele, como se não quisesse perder uma palavra de sua história. Chris então declara que entendeu, vindo para Perth e depois do encontro de ontem, que estava errado em querer protegê-la e privá-la da verdade e do respeito que é devido a uma filha, mas que todas as suas viagens para passar o fim de semana com ela eram uma prova do quanto ele a amava. Amy parece aliviada e quase surpresa, como se a decisão de Chris tivesse vindo sem ela saber. Afinal, Chris havia construído o segredo e, embora ela tivesse se entregado a ele, cabia-lhe assumir a responsabilidade de revelá-lo primeiro.

Como em tantas situações deste tipo, felicito o Chris pela coragem demonstrada em assumir uma difícil responsabilidade, para restabelecer um clima de respeito e de amor autêntico na família. Agradeço a Akma pela confiança que me deu no dia anterior, quando falei a sós com seus pais e peço-lhe que mostre da forma mais adequada à sua cultura malaia sua gratidão ao pai por ter restaurado o respeito que é devido a uma menina de 11 anos. Akma então se levanta e o abraça por um longo tempo. Em seguida, ele se aproxima da mãe de Akma, abraçando-a com ternura. Logo após agradeço a Amy porque, como sempre acontece, são as mulheres que tomam a iniciativa e sem a insistência dela em convencer o Chris a participar, esse importante evento nunca teria acontecido. Antes da nossa despedida, no final da consulta, digo a Akma que, talvez, agora ela não precise mais usar sua raiva para que escutem as suas necessidades. Para solidificar a mudança, sugiro que os pais preparem um prêmio para Akma (na cultura de língua inglesa, é muito comum dar certificados aos alunos por sucessos e desempenhos específicos na escola) para selar a transição da proteção ao respeito, a ser entregue em uma ocasião especial. Como sempre, peço à família que me informe nos próximos meses sobre o andamento da situação, lembrando também que avós e tios teriam enviado seus sinais diante dessa profunda transformação nas relações familiares.

A ideia de construir rituais terapêuticos com a família foi desenvolvida por mim e meus colegas da Academia de Psicoterapia da Família ao longo dos anos e descrita em diversos trabalhos (Andolfi & Angelo, 1987; Andolfi & Mascellani, 2010; Andolfi, 2015). Às vezes, os rituais podem ser úteis durante a terapia, em momentos específicos de transição, ou no final, para manter o processo terapêutico ativo muito além do final das sessões de terapia, a tal ponto que, frequentemente, usamos o slogan que diz que "a terapia começa quando termina".

 

Os Relatórios da Família

Duas semanas após o encontro, Amy me envia um primeiro relatório da situação, anexando uma cópia do cartão postal escrito para sua filha por ambos os pais na forma de um certificado e uma mensagem de Akma para mim com o desenho da família anexado. Aqui estão as palavras de Amy: “Imediatamente após nossa segunda sessão, pude ver que Akma parecia mais leve e menos zangada. Ele conversava com o pai, ficava perto dele no almoço e na janta, abraçava-o constantemente. Antes dos encontros, isso nunca teria acontecido. Ela parecia muito feliz por tê-lo conhecido e fazia questão de falar de você, professor, o tempo todo. Ao longo das duas semanas, ela manteve essa atitude em relação ao pai, tanto nas conversas pelo Skype quanto nas visitas do pai nos fins de semana. Akma também mudou muito comigo, ela está muito mais feliz comigo em casa, ela me fala sobre seus sentimentos e pensamentos, ela até me perguntou como eu reagiria se seu pai tivesse construído uma nova família em Cingapura. Estou feliz por termos feito esta viagem a Perth, tanto por Akma quanto por nosso relacionamento como pais com ela”.

Ela inclui um cartão postal em forma de diploma que os pais fizeram para ela com o título "Para nossa amada filha Akma". Dentro está escrito “Este é um cartão especial que fizemos para Akma para lembrar um dia especial em Perth quando tivemos uma sessão familiar juntos, onde transformamos nosso amor por você em respeito, uma vez que compartilhamos a verdade com você". No cartão também há duas fotos em que cada genitor abraça a criança com força e um coração desenhado em vermelho dentro do qual está escrito: "Um dia especial para lembrar em Perth, 7 de junho de 2016" e em baixo "Com amor para sempre, Mamãe e Papai". A mãe acrescenta no e-mail que a criança, feliz pelo cartão, gostaria de receber muitos outros dos pais no futuro.

Akma anexa uma folha com uma pequena mensagem na qual está escrito: "Olá, Sr. Professor, estou me sentindo feliz. Minha família está ok " Em seguida, anexa uma foto de uma composição de seus bichos de pelúcia preferidos (da coleção Little Pet shop) representando os três, sorridentes e felizes. Na composição há também um racoon (guaxinim) para o professor com a inscrição "Este é você".

Depois de quatro meses, recebo um segundo e-mail de Amy que diz: “Akma ainda se lembra de você com carinho, ela é mais amorosa comigo e quer saber mais sobre o divórcio. Ela parece ser capaz de lembrar-se de episódios do passado quando era menor, dizendo que talvez “ela esteja juntando as peças que faltavam. Acredito que Akma precisa de tempo para aceitar a dor da separação, agora que ela está ciente da verdade. Levei muito tempo para aceitar a separação e não quero que Akma continue a me proteger pelo que sofri ". Ela confirma que a relação entre Chris e Akma definitivamente melhorou, mesmo que, às vezes, pareça que ainda há uma espécie de "guerra fria" entre eles sobre quem deve dar o primeiro passo (estamos falando sobre a posição do Rei do xadrez de novo?), porque os dois estão muito orgulhosos. E ela continua: “Muitas vezes nos lembramos das sessões em Perth, especialmente no que diz respeito ao tema do respeito a Akma. Tendo sabido que este ano você estará de volta a Kuala Lampur para um seminário de trabalho, Chris teria expressado o prazer de encontrá-lo novamente comigo e ficaríamos todos muito felizes em vê-lo novamente ". Curiosamente, não há uma palavra sobre os comportamentos agressivos de Akma, como se eles tivessem desaparecido por feitiço ou pelo menos tão reduzidos que nem sequer são mencionados.

Respondi com um breve e-mail no qual agradeço a Amy pela boa notícia sobre a situação da família em geral e, principalmente, sobre Akma, que parece muito mais afetuosa e madura. Peço-lhe que comunique para o Chris o quanto eu apreciei sua coragem em contar a verdade, que ficarei feliz em receber um e-mail diretamente dele e que estou disponível para encontrá-los na Malásia, a fim de apoiá-lo em "transformar seu orgulho em amor" em relação a Akma.

 

Parentificação e Imaturidade Paterna: Cuidados Invertidos

Descrevemos repetidamente (Andolfi, 1977; Andolfi & Angelo, 1987; Andolfi, 2001; Andolfi et al., 2007; Andolfi & Mascellani, 2010; Andolfi, 2015) a parentificação como uma modalidade relacional distorcida em que um filho assume uma função de cuidar de um ou de ambos os pais, não podendo assumir o papel que lhes pertence, e acaba assumindo responsabilidades de adulto. Esta inversão relacional é amplamente descrita na literatura (Minuchin, 1974; Haley, 1976; Selvini et al., 1988). Neste parágrafo, gostaria de me concentrar, exclusivamente, na relação entre a aceitação da responsabilidade parental da criança e a imaturidade paterna e em como intervir na terapia para restabelecer limites geracionais mais saudáveis,​​ prevenindo distúrbios infantis prolongados, com o risco de manifestações psicopatológicas graves na adolescência. A experimentação clínica e a aquisição de um método multigeracional fizeram-nos compreender que para transformar uma relação disfuncional pai-filho não se pode permanecer na díade, mas é fundamental introduzir, tanto a reflexão teórica como a prática terapêutica, a terceira geração (Andolfi, 2015) e, consequentemente, uma exploração da história familiar, que nos permite observar os problemas do presente com uma lente mais ampla. Bowen foi o primeiro a falar de processos de transmissão multigeracionais, ou seja, a transmissão de diferentes graus de maturidade / imaturidade através das gerações (Bowen, 1978). Esse conceito, correlacionado ao da diferenciação do Self, nos leva a pensar em diferentes maneiras pelas quais as crianças, desde muito pequenas, podem ser "programadas" mais ou menos inconscientemente pela família, em particular pelos pais, e ter reações emocionais e comportamentos que são muito diferentes uns dos outros, especialmente diante de eventos familiares altamente estressantes ou dramáticos. Segundo Bowen, esses aprendizados estão ligados a ensinamentos explícitos ou à aquisição mais implícita de informações transmitidas através das gerações, tanto do ponto de vista relacional quanto genético, e contribuem para a formação do Self individual. Vamos tentar nos explicar melhor com um exemplo clínico.

 

Ajudar Seu Pai É a Sua Missão?

Ali tem 11 anos e tem problemas de ansiedade e recusa a escola. Os pais emigraram de Marrocos para Paris muito antes de seu nascimento. Ali tem uma irmã mais velha de 18 anos com a pele muito morena, que se recusa a pertencer a uma família árabe e nega, totalmente, suas origens. Ela tem muito orgulho de crescer como uma adolescente francesa, enquanto ambos os pais consideram Paris, a cidade em que viveram por tantos anos, como uma "prisão de ouro". Eles não têm amigos nem conhecidos e vivem com dor e saudade por tudo o que deixaram para trás.

Ali é muito ativo na construção do genograma, indicando no mapa Casablanca, a cidade de onde vêm as duas famílias de origem e onde os pais cresceram. Assim que pedi a Ali que me ajudasse a sentir a dor do Marrocos, sua mãe começa a chorar por causa da "distância de seus pais", que ela sente como uma laceração total. Os pais dela moram no Marrocos e ela não conseguiu abraçá-los desde que mora na Europa. O pai também parece muito triste, pois, dois meses antes do nascimento de Ali, ele perdeu o pai, uma pessoa de autoridade, mas sobretudo o único membro que ainda estava vivo em sua família de origem. Perder o pai é como se ele tivesse perdido completamente o senso de pertencimento familiar e cultural. Em poucos minutos, do início da consulta familiar, deixamos os problemas escolares de Ali para entrar em contato com os verdadeiros dilemas da família. Dois pais desesperados por suas perdas e desenraizamento cultural, uma adolescente que não quer assumir a dor dos pais e se sente uma estranha em sua própria família, uma criança que parece destinada a carregar um fardo pesado sobre os ombros. O que se segue é um pequeno segmento do diálogo entre nós durante a sessão, que ilustra bem como os pais que perderam sua base segura: o país, as famílias, a comunidade podem "programar uma criança" para ser super responsável e madura. Em particular, o pai parece "parado" no período da morte de seu pai, que representava a única ponte emocional com sua história, mantida viva por esta criança, nascida no momento certo.

Andolfi: Quem precisa mais: você do papai ou o papai de você?

Ali: (sem hesitação) Papai de mim.

Andolfi: O perigo, para uma criança de 11 anos, é que carregar o peso de uma pessoa de 60 (a idade de seu pai) nas costas pode ser demais.

Ali: Desde o momento em que nasci, é assim que as coisas funcionam.

Andolfi: Então, cuidar do seu pai é a sua missão.

Ali: (com orgulho) Sim, sim.

Andolfi: Você pode me mostrar como você o abraça? Como uma criança ou como um velhinho afetuoso?

Ali: (levantando-se para abraçá-lo): Quando abraço o papai, quase o sufoco.

Felizmente, as crianças são capazes de expressar seu profundo mal-estar por meio do corpo e do comportamento por causa de inversões de papéis a longo prazo. Cabe ao terapeuta, uma vez aceitos seus sintomas, orientar-se no complexo mundo familiar, criando um clima emocional de confiança, em que neste caso o pai em particular pode se sentir seguro e acolhido para refletir sobre os acontecimentos mais significativos de sua vida, superando bloqueios e preconceitos. Percorrendo a "viagem migratório" deste homem, será possível identificar não só as dimensões da fragilidade e da perda, mas também as da coragem e da resiliência, como quando fala de ter vindo para a França, muito jovem, com 100 francos no bolso e tendo que começar sua vida do zero, fazendo todos os tipos de trabalhos e gradualmente construindo as bases para construir uma família em Paris. Talvez sua vida tenha parado quando ele, finalmente, alcançou o novo mundo, como pousar depois de um mar tempestuoso. Recusou-se a fazer parte deste novo mundo, compartilhando com a esposa a mesma ilusão de avançar na vida, incluindo os filhos, permanecendo simbolicamente ainda em Casablanca. Reabrir a história, relembrar sua vida de menino no Marrocos, explorar sua relação com um pai autoritário, solicitar a busca por aqueles recursos que lhe permitiram sair de casa e compartilhá-la com seus filhos sob uma luz diferente, permitirá a este homem retomar sua responsabilidade de pai, aprendendo uma outra forma de abraçar Ali, a de um pai que sabe contê-lo e que o faz sentir-se seguro, restaurando assim um novo equilíbrio emocional, que permite Alì voltar a ser um menino de 11 anos.

 

A Terceira Geração Como uma Ponte Entre os Pais e as Crianças

Por muitos anos trabalhei muito para me propor na terapia como uma ponte entre pais e filhos em conflito um com o outro, conforme descrito no livro “Tempo e Mito na Psicoterapia Familiar” (Andolfi & Angelo, 1987). Ao colocar-me no centro do cenário terapêutico, pretendia libertar o paciente designado, muitas vezes uma criança ou adolescente, da tensão e do estigma a que estava sujeito na família. Certamente representei uma terceira parte neutra e autoritária com respeito a relacionamentos, muitas vezes, violentos ou desesperados entre pais e filhos, especialmente meninos na adolescência. Talvez, porém, no meu papel de terapeuta, mesmo que não quisesse, acabasse protegendo crianças ou jovens em situação de risco, ao invés de ouvi-los com respeito, como aprendi a fazer nos últimos 30 anos. Além disso, eu ainda não tinha descoberto totalmente o valor diagnóstico e curativo de incluir a terceira geração em meu esquema mental e de explorar a história da família em um sentido mais geral. Ao incluir a história, veio espontâneo incluir a geografia familiar, ou seja, a dimensão da cultura e os processos de desenraizamento e emigração de muitas famílias.

Ao longo dos anos, para envolver os pais na terapia, identifiquei dois caminhos principais. A primeira era dar voz aos filhos, muitas vezes, por causa de seus problemas, como vimos no parágrafo anterior. Às vezes, para motivar um pai ausente, bastava que um filho ou adolescente ligasse para o pai durante a sessão: "Ligue para o pai e diga para ele vir na próxima vez, porque precisamos da ajuda dele". Após o telefonema do filho, o pai chegava como se o filho tivesse algum tipo de varinha mágica para solicitar sua presença.

A segunda direção foi motivar os pais a comparecer às sessões e a participar ativamente da terapia, por meio da exploração de sua história de desenvolvimento, às vezes marcada por abandono precoce ou negligência ou, em outros casos, por cortes emocionais ou intimidação dos pais (Andolfi, 2015). Essas memórias, fragmentos da história vivida, permitiram trazer simbolicamente o pai de volta à condição de filho, espelhando como o pai se sente com seus filhos no momento presente. Explorar duas etapas evolutivas em paralelo tem permitido aos filhos se imaginarem no lugar dos pais e estes se colocarem concretamente no lugar dos filhos. Nesse caso, usando saltos evolutivos e uma linguagem “como se”, o terceiro foi representado pela geração mais velha que se aproximou das outras duas. Tudo isso permitiu ao terapeuta colocar-se em uma posição externa de escuta participativa e aprendizagem relacional e à mãe interromper seu papel de mediadora da relação entre pais e filhos em conflito, às vezes útil para suavizar a situação, mas muitas vezes muito protetora, criando mais uma barreira entre os dois do que uma ponte.

 

Da Violência à Redescoberta da Ternura

Dante, um menino de 12 anos, havia chegado em sessão furioso com seu pai, que vivia como um autoritário e punitivo, a ponto de desejar sua morte. Durante anos, sua esposa vinha tentando, sem sucesso, mediar a relação entre marido e filho, defendendo uma hora um, outra hora o outro. Dante havia incorporado a violência que se respirava na casa: os golpes que recebia do pai, às vezes com as mãos, às vezes com o cinto, enchiam-no de raiva e ressentimento em relação ao pai. Há alguns anos, principalmente depois que o pai tinha perdido o emprego devido a um problema neurológico, as expressões de afeto, mesmo físicas entre os dois, foram substituídas por comportamentos hostis que aumentaram o distanciamento emocional. No entanto, este pai amava Dante, um filho que ele sempre quis, mas de forma errada, escondendo sua impotência de ser pai e sua incapacidade de sustentar financeiramente a família por meio de ações violentas que Dante sofreu e retribuiu, por sua vez, como se essas fossem o único meio de comunicação entre os dois. A mãe trabalhava por dois para manter a casa funcionando e estava desesperada, sem saber o que fazer para devolver a paz a uma família, em que existiu harmonia e afeto por muitos anos.

No entanto, parecia que quanto mais forte era a tensão entre os dois, mais desesperado e conivente era o vínculo. Em uma sessão, pedi a ambos que se levantassem e ficassem frente a frente para ver quem era mais alto, usando o tipo de "metáfora concreta" frequentemente usada por Minuchin (1974) para marcar as diferenças entre pais e filhos. Na verdade, uma espécie de escultura da relação entre eles surgiu no meio da sala: eles estavam muito próximos, quase em contato físico, o pai olhando para baixo, como se soubesse que tinha muita culpa e Dante com uma cara zangada quase caricaturada, perdida no espaço. Essa imagem poderosa de distância emocional exasperada também destacou o desejo implícito e, aparentemente, inatingível de um relacionamento afetuoso.

Então perguntei a seu pai quando foi a última vez que Dante se sentou em seu colo de forma afetuosa e o que ele sentia. A pergunta ficou suspensa, seguida por um longo e nostálgico silêncio. O contexto da sessão parecia decididamente alterado, em comparação com a atmosfera inicial de "ringue", como se pode observar a distância emocional em uma representação cênica, perceber o sentimento de culpa e ressentimento já fosse uma forma de exorcizá-los e indicar uma saída.

Então, pedi a Dante que me contasse algo sobre a vida de seu pai quando ele tinha a sua idade e como ele imaginava ter expressado seu desconforto em casa em relação aos pais. O menino ficou surpreso com esta pergunta incomum, pelo menos tanto quanto o pai, que parecia intrigado com as possíveis respostas do filho. Dante disse que sabia muito pouco sobre a vida do pai, até porque ele nunca falava sobre isso. Ele só tinha ouvido de sua mãe quando era mais novo que seu pai teve uma infância terrível e que ele tinha fugido de casa. Perguntei-lhe se estaria interessado em saber mais e, nesse caso, ele poderia perguntar diretamente ao pai.

Sob as solicitações interessadas ​​do filho, o pai de repente parecia ter se tornado uma cheia de rio. Ele contou sua infância difícil com muitos detalhes, desde a morte prematura de sua mãe quando ele era muito pequeno, até a nova companheira de seu pai que era uma "bruxa" e que não o queria por perto. Em seguida, passou a descrever quanta violência havia recebido de seu pai, incapaz de amá-lo e defendê-lo de sua madrasta a ponto de aos 12 (idade de Dante) fugir de casa e nunca mais voltar lá, vivendo de expedientes, dormindo debaixo de pontes e trabalhando como uma mula desde os 14 anos para sobreviver. Trabalho e tenacidade o salvaram de se tornar um bandido de rua. Em sua vida, ele decidiu não se tornar um pai violento como o seu, porque experimentou em primeira mão o que significava crescer com um pai ruim. Chorando, admitiu não ter conseguido, apesar de ter tentado de várias maneiras, acrescentando: "Talvez seja violência genética, mas eu também não quero que você, Dante, sofra com isso, como eu sofri". Este choro liberatório e as sinceras desculpas a Dante que se seguiram às lágrimas pareceram um ponto de virada decisivo para a mudança. Queria uma confirmação do rapaz através de um gesto afetuoso, que selasse este importante momento de intimidade. Perguntei a Dante se ele confiava em sentar-se no colo de seu pai, como acontecia antes da a violência caracterizar o relacionamento. Dante se levantou, aproximou-se do pai e sentou-se em seu colo. Seu pai o abraçou com ternura, o que não acontecia há anos. A partir dessa intimidade recém-descoberta, talvez fosse possível recomeçar a encontrar novos pontos de compreensão e harmonia familiar.

 

Charlie e ​​Avó, Matriarca da Família

Charlie tem 21 anos e está no 4º ano do curso de engenharia da universidade. Ele é um rapaz inteligente e bonito, que tem dificuldade em se abrir e comunicar suas emoções. Ele tem medo de ser rejeitado e compensa todas as suas inseguranças em formar relacionamentos românticos com sua racionalidade. Ele pede para seu terapeuta individual indicar um bom terapeuta que possa encontrá-lo com sua família, porque "todos os meus problemas surgem dali". No e-mail que me foi enviado pelo terapeuta individual, surge um fato, uma espécie de verdade bíblica: que a avó manda na família.

A família se apresenta completa: papai Tony, um homem de meia-idade, bem cuidado e bonito, muito seguro de si e de sua beleza física; mãe Liz, também arrumada, miúda e bastante reservada. Olivia, a irmã mais nova de Charlie, aparece como uma típica adolescente australiana very causal, como se costuma dizer por aqui e completamente descuidada da sua aparência física e atitudes, ao contrário daquela de Charlie, que parece ser muito precisa e comedida tanto no falar, como nas maneiras. É uma família de formação cultural mista, muito comum na Austrália: a mãe de origem anglo-saxã, o pai de origem italiana.

Por várias sessões, o script da família é repetido com a mesma tela. Tony controla todas as interações e impõe seus pontos de vista, enquanto sua esposa prefere ficar em silêncio, até porque, quando ela se expressa, Tony a corrige como se ela fosse um terceiro filho. Olivia, por sua vez, pode fazer e dizer o que quiser na sessão, sem dar peso às reações do pai. Charlie é a pessoa mais visivelmente em dificuldade, ele estuda, mas não tanto e como gostaria seu pai engenheiro, mas daqueles com "culhões", como diz Tony, não como os alunos de hoje que não têm projeto nem de estudos nem da vida, como o filho.

Só quando chegarmos ao cerne das histórias familiares aparecerá outra verdade: se Tony dirige seu núcleo familiar, como se todos fossem soldadinhos, aos 50 anos não conseguiu dar o salto e ser considerado totalmente adulto por sua mãe Carmela, que é realmente a matriarca. Carmela emigrou de uma pequena cidade em Abruzzo, quando era apenas uma criança e depois se casou com um homem mais velho, também italiano, que conheceu na Austrália. Ambos vêm de famílias de camponeses pobres e nem concluíram o ensino fundamental, mas são trabalhadores árduos. Carmela, órfã de mãe, nunca aprendeu inglês (o que é quase inacreditável depois de 70 anos morando na Austrália) e criou cinco filhos, como no quartel, com regras rígidas e com apenas um valor, trabalho, fosse o que fosse. Ela não se importava que seus filhos progredissem do ponto de vista cultural e profissional, bastava que ganhassem bem. Tony é o único dos cinco filhos que estudou, foi para a universidade, tornando-se um engenheiro apreciado e competente. Sua mãe sempre o desaprovava por perder tempo com os estudos, em vez de ser um trabalhador braçal como seus irmãos, que ao longo dos anos se tornaram milionários no setor de construção, um dos empregos mais lucrativos da Austrália. O pai, mais aberto que a mãe e menos impulsivo, tinha pouca voz na família e morreu prematuramente. Uma perda muito difícil para Tony, que o sentia como a única pessoa na família que o apoiava emocionalmente. De resto, Tony sentia-se uma pessoa de outro planeta, mas que nunca conseguiu "se libertar dessa dependência / sujeição" em relação à mãe. Carmela não só impôs as regras na casa, mas também regulamentou os afetos e suas manifestações. Os filhos desde pequenos tinham que beijá-la e abraçá-la sempre que saíam e voltavam para casa e, caso não o fizessem, eram castigados. Até hoje, durante anos, Tony teve que passar o domingo na casa de sua mãe com sua família juntamente com a de seus irmãos (que ele não suporta) com sua mãe que cozinha o almoço para todos. Assim que chegam na casa da Carmela, ainda hoje, ela lembra aos netos, quase adultos, que devem abraçar imediatamente a avó.

Não me detenho no prejuízo que este desequilíbrio, na família de origem de Tony, criou na relação do casal, também considerando o fato de a família de Liz residir do outro lado do continente. Eu só quero descrever a relação entre Tony e Charlie. Este sabe o quanto seu pai, ao mesmo tempo que nega em palavras, internalizou os ditames de sua mãe Carmela, encobriu sua insegurança com regras rígidas e com as mesmas críticas destrutivas que sofreu durante anos, desde menino, pela boca da mãe. Mesmo em termos de afeto, Tony e sua mãe são como duas gotas d'água: tudo é devido, beijar e abraçar o pai todos os dias quando voltam para casa é um dever dos filhos, ainda hoje, mesmo crescidos. Além disso, Tony, que trabalha em seu escritório do lado de casa, cozinha regularmente para toda a família, e até bem (pelo menos um aprendizado positivo em tamanha destrutividade), sua esposa “não sabe cozinhar” e foge de bom grado do fogão, ela trabalha como gerente de uma empresa com jornada muito longa.

A emancipação de Charlie e a aquisição de sua segurança pessoal progrediram na terapia de mãos dadas com o aumento da consciência do pai de suas inseguranças pessoais e daquela condição crônica de filho que descrevemos em vários trabalhos (Andolfi & Mascellani, 2010; Andolfi, 2015). Por muito tempo, ouvir o pai falar na sessão foi como ouvir a voz da matriarca: mesmas palavras e mesmos conteúdos. Depois, aos poucos, refletindo-se no filho e nas dificuldades em assumir aquela autoridade pessoal, tão bem descrita por Williamson (1982), que o teria permitido se sentir um adulto diante do pai, Tony também conseguiu mudar. Ele pagou um preço emocional considerável para começar a dizer Não a Carmela e se libertar de uma condição de emaranhamento familiar, com a compreensão de que nunca fora amado. A dor que se seguiu, aos poucos ajudou a libertar Tony da sujeição de uma mãe que o havia aprisionado juntamente com sua família em uma traição relacional, onde o afeto era apenas uma moeda de troca para pertencer à história cristalizada de uma família de migrantes. Só então ele viu que Charlie havia realmente crescido e seria um bom engenheiro e apreciou sua coragem de querer ser ele mesmo e não uma cópia do Tony.

 

Conclusões

No final desta viagem à dimensão do paterno e da relação complexa entre as gerações, podemos dizer que o pai existe se nos interessarmos em descobrir as suas diferentes expressões. O pai está ali com todo o legado de um código masculino implacável que o definiu durante séculos como forte, autoritário, desprovido de fragilidade e sentimentos profundos, mas também responsável pela manutenção econômica da família.

O pai existe em uma sociedade em transição, atual, a qual pede que ele seja maternal e não mais autoritário, capaz de vivenciar emoções e manifestá-las, além de estar presente no crescimento dos filhos e de cuidá-los, bem como para seu sustento, agora compartilhado com sua parceira. O pai de hoje tem se voltado tanto para essa nova direção do cuidado com os filhos, que hoje sofre em excesso que, cada vez mais, é privado dela devido aos processos crescentes de desestruturação familiar. Todos, desde o universo familiar ao da sociedade civil, gostariam que ele tivesse autoridade com os filhos, mas não fosse autoritário, capaz de mandar sem ordenar, capaz de mostrar sentimentos e fragilidade com os filhos, mas não como amigo ou como mãe e, ao mesmo tempo, capaz de contê-los e orientá-los na adolescência, cada vez mais, complexa e atormentada.

Não podemos esquecer o caminho que a mulher, a mãe, teve de percorrer para mudar os estereótipos e as limitações que foram colocadas à sua liberdade pessoal e à sua própria expressão da maternidade pelas rígidas regras sociais e familiares então em vigor. Pense nas dores do parto e na “necessidade” de a mãe passar pelos sofrimentos mais inéditos para provar que foi uma mãe verdadeira. Foram necessárias décadas de feminismo e lutas políticas e familiares para libertar as mulheres de prescrições comportamentais monstruosas e preconceitos sociais. A mãe teve que se reinventar e hoje sofre com muitos compromissos que precisa dar conta "fazer tudo e fazer bem", mas se liberta dos fardos do passado, sabendo, podendo falar abertamente sobre suas necessidades e desejos em casa como no contexto social.

Mas como o homem pode se reinventar, renunciando aos roteiros do passado e aceitando o novo que também o coloca diante de tantos desafios impensáveis ​​até poucos anos atrás? Certamente ele não pode sair às ruas e reivindicar adesão a um movimento machista para defender seus novos direitos, bem como absolver seus deveres. Todos ficaríamos assustados com isso depois de séculos de machismo, ainda tão difícil de se extinguir em nossos dias. Basta olhar para os crescentes episódios dramáticos de feminicídio que assolam nosso país. Os únicos homens que saem às ruas e, muitas vezes, se acorrentam perante os nossos Tribunais de Justiça são aqueles pais (e são uma pequena minoria, os outros sofrem em silêncio) que por motivos diversos, muitas vezes, injustos, foram privados da continuidade do relacionamento com seus filhos que gostariam de poder amar e guiar na vida como, pelo menos em teoria, é exigido deles por toda a sociedade. Não é fácil identificar as sete jogadas vencedoras para se reinventar como pai. Este processo de transformação dos papéis dos pais está ocorrendo, entretanto, além de nossa capacidade de saber como. Isso acontece porque famílias, casais de pais se transformam e mudam, as demandas e necessidades dos filhos de hoje mudaram completamente, basta pensar nas crianças que nascem "digitais" em comparação com aquelas um pouco mais velhas.

Gostaria de concluir com uma frase muito curta que o pediatra esclarecido do meu primeiro filho me disse há mais de 35 anos, quando, como novo pai, pedi-lhe conselhos sobre como ser pai. Ele me disse: segue a criança, ela vai te mostrar como. Gravei essa frase em minha mente, foi útil não só para o primeiro, mas também para o segundo filho, nascido e criado na era digital. Ela me serviu por muitos anos de trabalho clínico com famílias, como também testemunhei neste artigo. Acompanhar a criança desde os primeiros passos, ouvi-la através das palavras, descobrir a linguagem lúdica feita de imagens e metáforas, que se transforma em mensagens bizarras e ambivalentes na adolescência, num contexto de amor partilhado (o que hoje tendemos a chamar de co-genitorialidade) e não exclusivo em relação aos filhos e de profundo respeito pela sua integridade são aprendizados fundamentais para se sentir um pai em progresso.

 

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Endereço para correspondência
Maurizio Andolfi
E-mail: maurizioandolfi@accademiapsico.it

Enviado em: 14/12/2020
Aceito em: 28/12/2020

 

 

1 Neuropsiquiatra Infantil, Diretor da Accademia di Psicoterapia della Famiglia (A.P.F.), Diretor da Revista Terapia Familiare.

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