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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.25 no.1 Porto Alegre jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Intervisão: estratégia de formação profissional para o trabalho com famílias e comunidades

 

Intervision: professional training strategy to work with families and communities

 

 

Lirene Finkler1, I ; Mateus Freitas Cunda2, II, III ; Cláudia Deitos Giongo3, III ; Helena de La Rosa da Rosa4, III,IV ; Julia Obst5, III, IV

I Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
II Prefeitura Municipal de Porto Alegre/Secretaria
Municipal de Saúde (PMPA/SMS)
III Domus- Centro de Terapia Individual, de Casal e Família
IV Prefeitura Municipal de Porto Alegre/Fundação de Assistência Social e Cidadania (PMPA/FASC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Diferentes políticas públicas sociais tomam a família e o território como núcleos sociais fundamentais para a efetividade das suas ações e serviços. Como formar profissionais sensíveis para esse trabalho? O objetivo deste artigo é relatar a experiência da Intervisão como estratégia de formação profissional para o trabalho com famílias e comunidades. Percebemos nessa estratégia pedagógica uma potência que se ajusta aos espaços de formação latu sensu, mas também aos contextos de educação permanente e em serviço. A Intervisão é um dispositivo que possibilita desenvolver pontos que são percebidos como centrais para o trabalho social: explorar o potencial do olhar, da capacidade reflexiva, do pensar, e do expressar. O artigo apresenta inicialmente a revisão de aspectos teóricos e conceituais, seguindo-se o relato de nossa experiência de formação em curso de especialização, de 2018 a 2020, destacando quatro eixos analisadores: ética do afeto, a potência da escrita, disparadores e construção de conhecimento.

Palavras-chave: Intervisão, Educação permanente, Formação profissional, Famílias, Comunidades.


ABSTRACT

Family and territory are fundamental for the effectiveness of actions and services regarding to social public policies. How to train sensitive professionals for this work? This article reports the experience of Intervision as a professional training strategy to work with families and communities. This pedagogical strategy adjusts to latu sensu training spaces, but also to permanent and in-service education contexts. Intervision is a device that enables to develop central points to social work: exploring the potential of looking, reflective, thinking, and expressing capacities. The article initially reviews theoretical and conceptual aspects, following reporting our training experience in a specialization course, from 2018 to 2020, highlighting four analytical axes: ethics of affection, the power of writing, triggers and construction of knowledge.

Keywords: Intervention, Continuing education, Professional training, Families, Communities.


 

 

Introdução

O trabalho social com famílias vem se constituindo como um campo promissor de trabalho. As diferentes políticas públicas sociais têm como eixo norteador a matricialidade sociofamiliar e a territorialidade, tomando a família e o território como núcleos sociais fundamentais para a efetividade das suas ações e serviços. Esta realidade faz com que profissionais de diversas áreas necessitem conhecer mais profundamente este tema, com a finalidade de ampliar suas perspectivas de compreensão e atuação, tanto em organizações governamentais como não governamentais.

Um desafio que se coloca: como formar para o trabalho social com famílias? O objetivo deste artigo é relatar a experiência da Intervisão como estratégia de formação profissional para o trabalho com famílias e comunidades. Percebemos nessa estratégia pedagógica uma potência que se ajusta aos espaços de formação, como o que desenvolvemos desde 2018 em um Curso de Especialização em Trabalho Social com Famílias e Comunidades. A Intervisão ajusta-se não apenas para a formação latu sensu, mas também para contextos de educação/formação permanente e em serviço.

Nas políticas públicas, nossa matéria de trabalho é principalmente o humano. Funcionamos dentro dos contextos nos quais estamos inseridos, com as forças das nossas parcerias. Assim, entendemos fundamental trazer o/a trabalhador/a para o centro: para olhar as famílias e os territórios, precisamos explorar o potencial do olhar, da capacidade reflexiva, do pensar, e do expressar. A Intervisão é um dispositivo que possibilita justamente desenvolver esses pontos, que são percebidos como centrais para o trabalho social e para a própria construção da política pública como algo vivo.

Neste artigo propomos o relato da experiência da Intervisão como processo pedagógico relevante para o desenvolvimento de profissionais sensíveis para o trabalho social com famílias e comunidades. Será apresentada inicialmente a revisão de aspectos teóricos e conceituais, seguindo-se o relato de nossa experiência de 2018 a 2020, destacando quatro eixos analisadores: ética do afeto, a potência da escrita, disparadores e construção de conhecimento.

A Intervisão: Aspectos Históricos e Conceituais

O modelo de Intervisão que tratamos nesse artigo se inspira naquele utilizado na formação de terapeutas comunitários, como parte dos conceitos da Terapia Comunitária. Há diversas experiências dessas terapias no país, sendo o marcador histórico a experiência cearense na comunidade de Quatro Varas na década de 1980. Segundo Gomes (2003), a Terapia Comunitária Integrativa (TCI) se consolidou como uma estratégia de saúde coletiva que produz soluções nos níveis individual, familiar e comunitário, amparando-se no saber das pessoas, nas suas competências, nas suas histórias. Uma tecnologia de intervenção leve que, além de propiciar um ambiente terapêutico, “pode contribuir para a transformação social ao promover a autonomia das pessoas e o exercício da cidadania” (p. 35).

Alguns dos referenciais da Terapia Comunitária Integrativa são relevantes para melhor compreender as bases teóricas da Intervisão. A TCI ampara-se na antropologia cultural para afirmar que as pessoas são resultantes de suas “crenças, costumes, mitos, valores, rituais, religião e língua, e do que fazem a partir de sua história de vida” (Gomes, 2003, p. 39). A estratégia buscou inicialmente no campo da saúde uma nova relação entre saúde-doença, bem como explorar alternativas de suporte terapêutico que não se restringissem apenas à medicalização. O método da TCI tem nas suas entranhas o conceito de dialogicidade de Paulo Freire, no qual o saber não é imposto ou verticalizado, mas construído na relação que se estabelece entre os pares. Na teoria freiriana, diz Oliveira (2017) que “os sujeitos se encontram para conhecer e transformar o mundo em colaboração. O diálogo, que é sempre comunicação, funda a colaboração que se realiza entre sujeitos” (p. 232). Nesse embalo, a Intervisão se moldou como estratégia de formação dos terapeutas comunitários, aprofundando a dimensão de horizontalidade e estabelecendo um modelo de ensino-aprendizado que destoa da clássica relação de professor-aluno. Sobre a Intervisão, diz Adalberto Barreto, um dos fundadores da TCI no Brasil: “um instrumento de aprendizado coletivo pelo exercício da escuta e respeito pelo saber do outro, em que se procura exercitar o diálogo para que todos os envolvidos na formação possam ter a liberdade de organizar suas ideias” (Barreto, 2008 como citado por Holzmann, 2013, p. 51).

Da experiência no campo da saúde, o modelo da TCI foi aplicado em diversos contextos sociais, em práticas ampliadas de organização comunitária e mobilização popular. A Intervisão como método de ensino, igualmente, hoje se encontra pulverizada em muitos referenciais de atuação. Brandão et al. (2020) apresentam uma revisão dos conceitos de supervisão e de intervisão, analisados na perspectiva de sua utilização no contexto da Psicologia das Organizações e Recursos Humanos. Os grupos de intervisão implementados em contexto organizacional, em diferentes países possuem características semelhantes entre si: geralmente composto por profissionais da mesma organização, possuem um formato e uma estrutura simples, com grupos pequenos (entre 3 e 8 participantes), fechados, o que favorece a adesão e o estabelecimento de identidade e intimidade.

Ao apresentar experiências europeias, especialmente portuguesa, no uso da Intervisão, Brandão et al. (2020) associam o conceito de intervisão ao trabalho colaborativo que acontece entre pares, com pressupostos de horizontalidade, definição compartilhada de interesses e objetivos, envolvendo trocas que fomentam a autoaprendizagem, autoconhecimento e o desenvolvimento pessoal e profissional dentro de um grupo. Os autores destacam como elementos importantes “o apoio e a validação dos pares”, assim como os “componentes de socialização e a sensação de pertença a uma comunidade. . . . A designação Intervisão já traduz em si uma visão entre pares, ressaltando a troca entre elementos que se vêem como iguais” (Brandão et al., 2020, p. 383-384).

O artigo de Brandão et al. (2020) destaca como um importante diferencial entre supervisão e intervisão a questão da assimetria e horizontalidade que caracterizam cada modalidade, respectivamente. A etimologia da palavra supervisão é formada pelo prefixo latino super, o que significa sobre, a mais, acima de, e do sufixo videre, o que significa ação de olhar, inspecionar. examinar. Já o prefixo latino inter remete a entre. A interpretação do significado de supervisão pode remeter a uma relação de poder, com ideia de superioridade na relação supervisor e aluno. A utilização da intervisão em um contexto de formação, na qual está presente no imaginário a relação professor/a e aluno/a, coloca o/a mediador/a do encontro em uma posição de autoridade no grupo. Em nossa experiência, constatamos a necessidade de constantemente reposicionar o poder implícito, que muitas vezes se estabelece através de formas de relação e de comunicação entre as partes, pressupondo e colocando o saber na figura do/a mediador/a da intervisão, buscando uma relação igual, simétrica, não hierárquica. Esse aspecto sublinha a necessidade permanente de valorizar e validar os saberes circulantes, pois estão em jogo as relações entre poder e saber.

Outra área na qual a Intervisão tem sido utilizada é o próprio campo educacional, como exemplificado pelo estudo de Moreno e Orvalho (2018). Nesse artigo, é relatada a uma experiência de intervisão entre pares multidisciplinares de professores e formadores dos cursos profissionais. Os autores concluem que a práxis da Intervisão entre pares permitiu uma maior consciência da ação pedagógica e favoreceu a cooperação e colaboração entre os participantes. Também na área educacional, Franzenburg (2009) sintetizou que os processos de Intervisão caracterizam-se por “uma atitude facilitadora (baseada na aceitação), uma preparação empática (baseada no reconhecimento dos recursos), um processo em aberto (baseado num sistema de autorrealização e auto-organização) e uma avaliação (baseada em qualquer tipo de experiência)” (como citado por Brandão et al., 2020, p. 383-384).

Percebe-se, portanto, que a literatura indica uma diversidade de campos nos quais a Intervisão tem sido utilizada como dispositivo de troca e desenvolvimento profissional. A experiência de Intervisão que apresentamos difere-se, entretanto, ao enfocar o desenvolvimento profissional em um campo específico: formação para o trabalho social com famílias e comunidades. Diferentemente do contexto clínico ou organizacional, a Intervisão no campo social relaciona-se não ao caso individualizado, mas à construção de um olhar analítico para um campo, um conjunto de relações (intersubjetivas, interpessoais, institucionais, interinstitucionais). Outro aspecto a destacar é o fato de que, nesta modalidade formativa, os grupos de Intervisão podem ser compostos inclusive por profissionais de diferentes organizações.

Descrição da Nossa Experiência

No curso de pós-graduação em Trabalho Social com Famílias e Comunidades, a Intervisão se constituiu inicialmente como uma roda de conversa, com 2h duração e periodicidade quinzenal, de cuidado e apoio aos participantes do curso. Aos poucos, a experiência foi se complexificando. De 2018 a 2021 tivemos a oportunidade de acompanhar, até agora, 52 profissionais, prevalentemente trabalhadores/as das políticas públicas de assistência social e saúde, em sua maioria mulheres, divididas em 10 grupos de Intervisão. Os encontros são organizados em grupos de até seis participantes com a presença de um/a dinamizador/a, de modo a ampliar os espaços de fala. Dessa forma, o grande grupo de alunos da especialização é dividido em pequenos grupos para vivenciar os Encontros de Intervisão. A cada edição do curso, são dinamizadas cerca de 44h de Intervisão. A partir de 2020 os encontros, assim como as aulas, têm ocorrido de forma virtual, devido às adaptações necessárias ao controle sanitário relacionado à pandemia de COVID-19.

O mote dos encontros são as experiências advindas da vivência em algum campo do trabalho social, sobre o qual o/a participante deseja aprofundar-se. Uma vez que a grande maioria dos/as alunos/as do curso já se encontrava atuando profissionalmente no campo social, sugeriu-se, inicialmente, tomar como campo de vivências no território algo de novo, de diferente da experiência cotidiana, de forma a provocar um estranhamento. Entretanto, ao longo dos Encontros de Intervisão, percebemos o quanto também é necessário, e mesmo inevitável, que o conteúdo da Intervisão reflita também os olhares sobre o espaço de trabalho cotidiano. Assim, entendeu-se que é relevante promover a partilha das vivências e a reflexão sobre o vivido/experenciado, seja o que emerge de campos novos ou o que emerge de novos olhares para campos conhecidos. Ademais, busca-se o alinhavo com o conjunto de conteúdos estudados ao longo do curso. Os Encontros de Intervisão são, assim, partes do processo de formação e diferenciam-se da supervisão tradicional, por serem uma atividade construída entre os participantes (professora/a que irá dinamizar os encontros e alunos/as do curso), considerados/as todos intervisores/as a partir de necessidades advindas das distintas realidades.

Inicialmente, em 2018, a proposta do curso foi realizar alternância de professores responsáveis por dinamizar a Intervisão. Desta forma, duas profissionais se ocuparam dos grupos no primeiro semestre do curso e duas outras professoras as substituíram no segundo semestre. Ainda que a ideia da alternância tenha acompanhado as discussões, a partir de 2019 a opção foi pela manutenção da mesma profissional acompanhando cada grupo ao longo de todo o ciclo formativo da especialização, como forma de investir nos vínculos e história construída pelos/as participantes.

A metodologia prevê, além da escuta e conversação, a escrita como forma de enlace entre a vivência, as aulas, os textos, a partir da singularidade de cada participante. O diário de campo se estabelece como uma linha que acompanha o percurso de cada um/a, prenhe de questões e de sentidos que vão, aos poucos, sendo entendidos pelo coletivo. A função do dinamizador é manter a metodologia viva, circulando a palavra, buscando as visões que cada um tem sobre o mesmo relato/experiência, criando perspectivas distintas sobre o mesmo ponto.

Uma vez que há diversos grupos acontecendo concomitantemente, há um esforço do grupo de professores que compartilham a tarefa de dinamizar tais encontros em se deslocarem da posição de suposto saber e referência central de conteúdos nos grupos, constituindo-se enquanto intervisores, e potencializando também cada participante a ocupar essa posição. Ao mesmo tempo, por tratar-se de uma etapa pedagógica compartilhada, há um planejamento conjunto quanto à dinâmica de cada encontro, definindo quais serão os disparadores de cada encontro, o que favorece criar um percurso comum aos diferentes grupos. Assim, há uma informalidade e uma construção do espaço de trocas de forma deliberadamente não estruturada (Martin et al., 2008, p. 998 como citados por Brandão et al., 2020), ao mesmo tempo em que há uma referência na pessoa que dinamiza o encontro.

Nas diferentes edições do curso de especialização, foram realizadas atividades que fomentaram a avaliação do processo de Intervisão. No final do ano de 2020, especificamente, foi realizado um encontro ampliado, no qual solicitou-se que cada um dos subgrupos de Intervisão realizasse uma apresentação compartilhando a experiência do semestre. A análise dessas apresentações e dos registros dos encontros resultaram em quatro categorias avaliativas, que ajudam a explorar as características e efeitos da Intervisão enquanto dispositivo para a formação profissional no campo social, são elas: ética do afeto, escrita, disparadores e produção de conhecimento, que são apresentadas a seguir. São utilizadas ao longo da discussão falas dos/as participantes, dos/as Intervisores/as, e descrições de algumas das atividades e cenas vividas.

Ética do Afeto

Foi especial, todas as segundas-feiras tínhamos o compromisso de nos encontrar, mesmo às vezes cansados, esgotados de um dia cheio de trabalho, quando chegávamos, as nossas baterias eram recarregadas e mergulhávamos na reflexão com muito aprendizado e viajando nos nossos sonhos. (J., assistente social)

Conversas sinceras, com carinho e entrega. Incertezas se fizeram presente, mas juntos fizemos entender o que cada um queria escolher, para fazer da sua prática acontecer. A diversidade tomou conta, e sabe o que é mais louco? Que a cada encontro, fica um pouco um do outro. (F., psicóloga)

A abertura criada no curso através da Intervisão revelou, para além da metodologia prevista, um ambiente de acolhimento e segurança para a reflexão das experiências no campo das políticas sociais. Esta primeira categoria refere-se à segurança dos pequenos grupos, que priorizam a interação - micro e macro, e exercícios que foram utilizados para promover espaços de afeto e abertura à palavra.

Os/as participantes percebem os encontros de Intervisão como ambiente acolhedor, que permite criar intimidade e mais espaços de expressão e circulação da palavra. Essa possibilidade é especialmente relevante para os/as mais tímidos, que participam menos no grande grupo. Os participantes associaram a Intervisão com a imagem de florescer, para o qual é necessário regar, incentivar, fortalecer.

Temos claro que a percepção, todavia, é singular a cada participante. Juliana Merçon (2009) atenta para a experiência de cada corpo-mente num determinado encontro, pois “pode ser experienciado como alegria por alguém e tristeza por outra pessoa”. Completa a autora: “o encontro como experiência, assim como o esforço que participa de sua composição, não poderiam ser jamais repetidos, pois emergem da complexa configuração que é, a cada momento, o corpo-mente de cada uma, suas relações constitutivas e respectivas aptidões para afetar e ser afetada” (Merçon, 2009, p. 80).

O espaço da Intervisão, assim, abre a possibilidade de falar sobre o cotidiano dos trabalhadores sociais e revela-se um espaço potente de olhar para os eventos do dia a dia, que justamente compõem o fazer profissional. Esse cotidiano é articulado com os conteúdos em estudo. Portanto, o espaço da Intervisão é um espaço de elaboração conjunta dos conteúdos teóricos com as vivências práticas.

A construção dos grupos parte de um interesse comum estabelecido a partir de questões respondidas previamente pelos alunos. Em todo caso, fica evidente a diferença de cada experiência, mesmo que fosse dentro de um mesmo serviço, pois o material trabalhado é essencialmente singular. Assim, o grupo se assume como espaço de complementaridade, de estilos complementares, mas entre pessoas que têm objetivos em comum.

Relações de pertencimento foram incentivadas, o que possibilitou que cada participante pudesse experimentar um cuidado singular e com isto ir se sentindo autorizado/a a se expressar, certamente com maior segurança do que faz no grande grupo. Na trajetória vão se fortalecendo relações de cuidado, tanto na possibilidade de olhar para si, quanto na forma de se expressar para o outro, dando ao grupo um funcionamento quase terapêutico, com menos autocrítica e maior acolhimento.

O que é experimentado no grupo é importante, por ser algo que também é importante no próprio trabalho social. Um movimento do micro para o macro o que possibilita olhar as coisas sob diferentes perspectivas. Percebemos que um exercício importante refere-se à forma como cada participante exercita a palavra. Falar ao outro, encontrar o ponto necessário entre o cuidado na forma de se expressar, e a necessidade de dar retornos e críticas que possam ser construtivos. O conhecimento de si, portanto, se refere também a uma dimensão do profissional. Percebemos que experimentar esse cuidado singular, uma ética do cuidado e do afeto, é importante por ser algo que também constitui o próprio trabalho social.

Escrita

Verão de 2021, final de tarde iluminado, ainda num contexto pandêmico, e o movimento do nosso grupo hoje já começou inspirado pelas inquietações da S., inquietações/inspirações que rompem nossa estrutura inicial já na ânsia de quem deseja falar, compartilhar... podemos pensar que essa possibilidade de fala já inicial nos diz da construção de um espaço grupal que acolhe? Que escuta? Cada um tem expressado o reconhecimento da Intervisão como esse espaço/tempo... O relato, o caso de um adolescente acompanhado em situação de Rua Trabalho Infantil, temática tão presente no Trabalho Social, no contexto de Pandemia e trazida em todos nossos encontros pela S., que tem se desafiado a pensar, problematizar essa violação com muito cuidado, permitindo inclusive deslocar-se, descontruído verdade únicas, o perigo de uma história única como tanto falamos no nosso último encontro. Face a isso, nesse processo de escrita, me surge a palavra ética, ética enquanto possibilidade de questionar as verdades construídas, como nos provocaria Foucault. E ao surgir, essa palavra reconecta muitos encontros desse grupo, me parece a ética o que as movimenta, as instiga e por vezes, pode beirar a Cobrança, mas desse limite, me parece que estamos aprendendo a cuidar como grupo. Podemos falar desse cuidado como uma das potências desse processo de aprendizagem Intervisão? (Registro em diário de campo da intervisora H.)

Partimos do pressuposto que a documentação é elemento constitutivo do processo de atuação profissional no campo social, visto que é a partir dela que se constroem processos de compreensão, planejamento, desenvolvimento e avaliação das ações, o que incide diretamente na efetivação dos processos de trabalho. Desta forma, investir no desenvolvimento de habilidades de escrita, qualifica a compreensão da realidade social, da realidade das famílias e comunidades e amplia a possibilidade de execução do trabalho social. Assim, é necessário proporcionar atividades pedagógicas que permitam desenvolver habilidades para a sistematização de experiências, complexificando a forma como cada profissional percebe e analisa as diferentes situações sociais com as quais se depara.

Como estratégia organizadora da Intervisão, a proposta é que alunos e alunas elaborem um diário de campo (Lima et al., 2007) para registro de observações, comentários e reflexões referente às diferentes atividades e situações com as quais se deparam no seu campo de vivências. O texto escrito a partir do diário de campo será socializado durante os encontros de Intervisão, viabilizando interlocução entre os participantes do grupo. Neste sentido, o diário de campo pode ser o ponto de partida para inauguração do que Lewgoy e Arruda (2004, p. 126) consideram “inteligência coletiva” enquanto espaço de troca de saberes, o que pode ampliar e/ou gerar novos conhecimentos. Registrar sistematicamente em um diário de campo auxilia a formação do hábito de observar, de ver aquilo que pode passar desapercebido na rotina, e, a partir desse olhar atento, refletir sobre o que se deu em cada encontro com o cotidiano do trabalho. O segundo as autoras, o diário de campo pode ser organizado em três partes distintas: descrição, interpretação do observado e registro das conclusões preliminares, bem como dúvidas, desafios. A orientação do curso atende a essas proposições, sendo que os alunos e alunas são instigados/as a não confundir interpretação reflexiva com o fato concreto.

A escrita apresenta-se como um desafio em diferentes dimensões, e isso certamente é algo vivenciado também na Intervisão. Ao solicitar que as vivências também sejam lidas, não apenas relatadas verbalmente, o/a aluno/aluna se depara com a questão da expectativa em uma escrita que é também dirigida ao outro: o que esperam de mim? Procura-se trabalhar diferentes perspectivas e possibilidades em torno dessa questão, como: a escrita para o outro, a escrita para si, a autocrítica que bloqueia a criatividade, a autoexposição, a autoaceitação e o respeito ao tempo necessário para o amadurecimento.

A proposta de que a escrita seja lida na Intervisão, de forma sistemática, acaba por constituir um processo de mútua influência, em que o texto de um/a acaba impactando o/a outro/a. Cada participante é desafiado/a a encontrar o seu padrão de escrita. Quando escrevo? O que favorece a minha escrita? Em tempos tão acelerados, esse pode ser um espaço de subjetividade? Cada um/a é convidado a perceber a sua própria subjetividade: para a escrita eu preciso de mais concentração ou mais devaneio? Potência é a palavra que associam ao exercício da escrita.

Ainda assim, é necessário registrar que há, por vezes, resistência a essa proposta metodológica. Há quem leva mais tempo, não deseja e mesmo não consegue superar esse desafio inicial e não se “joga” à experiência de escrever com sistematicidade como um exercício de fato. Para estes, o espaço da Intervisão segue como espaço de fala e de compartilhamento.

Disparadores

Prezad@,
Sabemos que você está tentando entender esse momento. Nós também estamos. Escrever essa carta é um modo de aproximar nossas impressões, trocar uma ideia e, talvez, tatear outros “possíveis”, em meio aos desafios que nos deparamos.... Em tempos de “horizontes curtos”, fazemos aqui uma escrita-aposta, carta-convite, convite a novos encontros, convite a outros interlocutores que te instiguem, te inspirem, ou mesmo te inquietem nas inserções nos territórios. Assim, propomos que você escreva uma carta, como uma forma de trazer à tona suas reflexões. A quem se destinariam tuas questões? Com quem gostarias de aprofundar um diálogo? Ou mesmo sonhar/experimentar outras práticas possíveis? Seria um gestor? Um colega trabalhador? Ou com aquela pessoa/família usuária? Escolha seu interlocutor e escreva sua carta do seu jeito. Traga para que possamos compartilhar no próximo encontro da Intervisão. (Carta d@s intervisor@s, 2020)

Como forma de mobilizar o deslocamento de olhares, experiências estéticas que favoreçam a abertura e a reconfiguração do olhar, temos experimentado nos manter disponíveis para fazer crescer pequenas ideias, lampejos de curiosidade, pontos de interesse que possam movimentar as reflexões. Temos utilizado como disparadores vídeos, textos, poesias, imagens, assim como propostas que levem os/as participantes a trazer elementos que possam ser compartilhados. A ideia é construir percursos analíticos, que possam fluir de acordo com cada grupo, ainda que compartilhando um mesmo disparador inicial.

Um disparador inicial tem sido a constituição afetiva de um caderno especial, que pode ser caderneta, evernote, algum aplicativo de nota. Solicita-se que cada um/a selecione onde fará seus registros de diário de campo e compartilhe essa escolha, constituindo um Ritual dos Diários de Campo. Um tema importante para os primeiros encontros, portanto, refere-se ao olhar e ao registro. Essa atividade tem como um dos objetivos valorizar o momento da escrita, e torná-lo mais pessoal e afetivo.

A acolhida e construção do clima de cada encontro são fatores importantes para favorecer as trocas. Portanto, um exercício inicial a cada encontro se faz necessário. Um disparador que vem se mostrado produtivo é iniciar com o exercício Manchetes do Jornal, no qual o/a participante deve trazer notícias pessoais pontuais, cada um faz manchetes de seus últimos dias, sem aprofundar as notícias, apenas para o grupo se sintonizar, numa primeira rodada de escuta. Outros disparadores podem ser usados; importa ativamente tomar essa construção do espaço de acolhimento no início de cada encontro como uma etapa necessária para o processo da Intervisão.

A partir da atividade de aquecimento, acolhida e integração, e sempre de uma forma fluida, propõe-se que seja realizado o compartilhamento dos textos e reflexões escritos por eles/as, elaborados a partir de disparadores que foram deixados como estímulo entre um encontro e outro. Por exemplo, a leitura de um texto de literatura, como Palomar (Calvino, 1994), um vídeo como “Ride It Out” (Amirpour, 2020), uma música como AmarElo (Emicida, 2020), entre outras tantas atividades disparadoras e amplificadoras de reflexões. Uma das atividades foi assistir o vídeo de Chimamanda Adichie (2009), cujo relato apresenta reflexões sobre o perigo da concepção de única história. A proposta foi instigar para a revisão do ponto de vista colonizado, muitas vezes assumido pelo profissional, e ampliar a perspectiva de como olhar para o campo de vivência, que muitas vezes se mostra carregado de conceitos prévios, que podem nublar ou limitar a visão sobre o observado.

Ao mesmo tempo que os disparadores acionam novos ângulos para os olhares, o/a intervisor/a deve manter no campo no campo de reflexão questões mobilizadoras relacionadas à construção do campo de aprofundamento dos/as participantes. O que te inquieta e te mobiliza? Qual temática e campo te inspira a investir mais no Trabalho Social? Já existe uma inserção nessa temática ou campo (pode ser o próprio espaço de trabalho), ou faremos essa inserção ao longo do curso?

Uma estratégia que se mostrou bastante produtiva foi a escrita de cartas, dirigidas para um interlocutor específico/imaginário. Por exemplo, durante a pandemia sugeriu-se escrever uma carta para falar sobre o contexto que vivemos, marcado pela excepcionalidade da COVID e pelo aprofundamento das mazelas que nossa sociedade já cultivava. A carta, nesse sentido, amparando-se no que Rezende e colaboradores (2013, p. 44) discutem sobre cartas terapêuticas, cumpre o objetivo de “ampliar o discurso, iluminar elementos antes periféricos, catalisar novas conexões, movimentar as cenas do cotidiano descritas como ‘sem saída’”. Outro formato pode ser a escrita de carta convite pelos intervisores para mobilizar um encontro em especial, como o que abriu este tema, ou esta, de retomada após as férias:

Querid@s,
Preparemo-nos para o restante da nossa jornada. Até aqui já trilhamos momentos importantes da viagem, descobrimos paisagens, rotas e atalhos. Mais que tudo, vivemos encontros. Nesse momento de pausa, é hora de olhar o horizonte. O que será que nos aguarda? Haveria como saber? Plenos de curiosidade, temos nas mãos apenas uma mala. O que vai dentro dela? O que você considera fundamental para essa viagem? (Carta d@s intervisor@s, 2021)

Em diversas situações foi proposto que o grupo compartilhasse leituras de cenário, especialmente diante de eventos sociais impactantes que estavam sendo vividos no aqui e agora. São exemplos disso a vivência da pandemia de COVID 19, que atingiu a todos no ano de 2020; os impactos da discussão mundial sobre racismo, eliciadas pelas mortes de George Floyd (EUA) e Beto (Porto Alegre no ano de 2020); os debates sobre auxílios financeiros e segurança alimentar para a população em vulnerabilidade social.

Os disparadores tiveram como objetivo ampliar o olhar, trazer sensibilidade ao vivido, colocando palavras e sentidos para um momento em que a crueza da vida e da morte se apresentam cotidianamente. Assim, estimulamos a poesia, as “nuvens de palavras”, as cartografias, os desenhos, as escritas, os recursos digitais, enfim, como ferramentas de comunicação e troca entre os intervisores. Como resultado, surgiram diversas formas de expressão, como exemplificado a seguir, uma receita poética, apresentada com imagens e recitada de forma virtual por um dos grupos: As Alquimistas do Trabalho Social e o Brownie da (Re)invenção.

Alquimia é a palavra que indica uma ciência mística que tem como principal objetivo a transmutação de um elemento em outro. Um dos principais objetivos da alquimia era transformar metais não preciosos em ouro. Além de serem ótimos em transformar obstáculos em brechas, os alquimistas do trabalho social também são excelentes fazedores de brownie! Hoje vamos compartilhar com vocês nossa receita de brownie com recheio de 2020. Foram necessárias 7 vidas e vários meses de isolamento para que chegássemos na receita possível.

Para essa arte, você vai precisar de:

- Uma pitada de pêlo de gato

- Uma colher de sopa de lágrimas de Trabalhador Social

- Uma xícara de Intensidade

- Duas xícaras de acolhimento

- 100ml de apatia

- 300g de ar (para respirar)

- Uma colher de chá de limite

- 200ml de cuidado

- 2 pitadas de afeto diluídos no apoio

- 1 xícara de “café”

Modo de Preparo:

Esta receita é feita coletivamente, a partir de várias mãos. Cada um deve trazer os ingredientes que tiver dos citados na lista. A partir disso, os ingredientes devem ser misturados. A quantidade dos ingredientes foi escolhida através das medidas (do possível). Durante a mistura, deve ser incluída uma patada de gato para chamar a atenção e, após, deixar descansar em silêncio por três horas na varanda.

Após o descanso, colocar a mistura em uma forma de 100 megas. Este brownie precisa de tempo para ficar no ponto e talvez o seu forno não seja muito bom e a conexão fique caindo, mas tenha muita paciência. No brownie se atravessa a ausência, a falta e o luto e, ao mesmo tempo, as brechas, os encontros possíveis, a luta e a resistência. Quando o brownie estiver não-respirável, reparar com aceitação.

Este brownie rende muitas porções compartilhadas, ele é gigante e talvez você precise de uma rede para esta caminhada. (A., assistente social; P., psicóloga; I., psicóloga, B.A., assistente social; E., psicóloga; H., psicóloga)

Construção de Conhecimento

No processo de formação a intervisão foi fundamental para a assimilação dos conteúdos propostos, oportunizou um espaço de escuta e de fala, momentos de acolhida e conforto. A intervisão enquanto instrumento acadêmico fez com que pudéssemos compreender de forma inversa a prática vivenciada com o conteúdo estudado, somando ao fato de nos percebermos como parte potencializadora nos espaços dos trabalhadores sociais das instituições observadas. (B., psicóloga)

Este eixo analítico destaca a importante ligação entre conhecimento, coletividade e afeto. Acreditamos que o conhecimento se expressa na horizontalidade, nas trocas, na sinergia que se estabelece no grupo. Nesse espaço, o conhecimento se produz através da valorização da força do cotidiano, constituindo percursos analíticos que possibilitam considerar de forma mais complexa os contextos.

Em relação à estruturação dos encontros de Intervisão, buscou-se constituir percursos. O percurso parte do geral para o particular. Isso significa que nos primeiros encontros são discutidas as demandas e fenômenos que deram origem aos espaços institucionais/equipamentos alvo de atenção de cada aluno e aluna durante suas vivências e aproximações aos territórios. São provocadas questões de discussão no grupo de Intervisão, como: Qual é a demanda/fenômeno central para essa instituição? Como se dá a construção sócio-histórica da demanda? Quais as características da instituição/equipamento onde são realizadas as vivências? Qual o marco legal, diretrizes que orientam o trabalho que é realizado na instituição/equipamento? Como a temática trabalhada interage com o campo? Como esse tema me sensibiliza em relação ao usuário da política social? Que questões ficam para a prática do trabalhador social? Portanto, há um esforço em mobilizar a articulação do momento da Intervisão com cada disciplina do curso, além de mobilizar outros temas emergentes.

A categoria construção de conhecimento relaciona-se a uma dimensão apontada por Schwartz (2010): a questão da Validação dos Saberes Adquiridos pela Experiência. Desde a década de 1990 há numerosos estudos na área de gestão de recursos humanos em torno do que concerne aos saberes implícitos, tácitos, informais. Há um consenso quanto ao reconhecimento da experiência na atividade do trabalho. Entretanto, se colocam questões relevantes quanto às estratégias de formação. Schwarz (2010) aprofunda a reflexão quanto à função formadora da experiência, e nos traz duas questões fundamentais: como fazemos falar a experiência? Como a colocar em palavras? O autor caminha através da filosofia, refletindo o quanto a rotina, refletiria um saber que não se sabe relatar, que estaria na dimensão da intuição. O autor atravessa o olhar de diferentes filósofos e se reinterroga quanto à oposição entre experiência e saberes mais formais. São mesmo coisas separadas? Ele afirma que toda situação de trabalho possui sempre uma dimensão imprevisível, que é a dimensão do encontro: o encontro daquela pessoa, com a situação em si naquele momento histórico específico. Olhar e ser capaz de transformar em palavras esses encontros é uma etapa necessária, portanto. “É preciso, então, distinguir a experiência do trabalho e o trabalho como experiência. Na experiência, pode haver rotinas e, se não dizemos mais, a experiência pode ser um obstáculo à ampliação ou ao enriquecimento” (Schwartz, 2010, p. 44). Ou seja, podemos estar tão acostumados a esse cotidiano, que não o estranhamos mais.

Schwartz (2010) diferencia saberes formais e saberes investidos. Na perspectiva ergológica, certas competências podem ser adquiridas na experiência, na medida em que são investidas em situações históricas, adquiridas nas trajetórias individuais e coletivas singulares. Há toda uma gama de nuances entre saberes investidos, e que podem ser colocados em palavras (aproximando-se dos conceitos tais como são ensinados em contexto acadêmico), e os saberes “escondidos no corpo”, provisória ou definitivamente inconscientes. Esses saberes podem ser articulados em saberes formais, o que Schwartz refere como “uma relação de interfecundação: a perspectiva ergológica chama isto de dispositivo dinâmico a três pólos: considerar, fazer falar esses saberes de experiência investidos e, a partir daí, retrabalhar, recortar os conceitos mais formais” (Schwartz, 2010, p. 45).

Ao destacar que é necessário colocar a experiência vivida em palavras, o autor sublinha o quão desafiador isso pode ser, pois depende não apenas do vocabulário disponível a uma pessoa para nomear o vivido, mas também do contexto de expressão da fala, que pode favorecer ou bloquear essa expressão. Depende, ainda, do fato que podemos não estar conscientes da experiência em si, na medida em que “há coisas que passam pela maneira como nós mesmos treinamos nosso corpo à (re)agir”: há aquilo que não está consciente: “assim como respiramos sem ter consciência, mas podemos governar nossa respiração” (Schwartz, 2010, p. 45).

Trabalhar sobre essas experiências é trabalhar sobre si mesmo. Não é em quaisquer circunstâncias que falamos de nós mesmos de maneira mais profunda. O espaço de Intervisão proposto como formação, pressupõe criar espaço de fala e de escuta que possa dar conta de transformar o potencial da experiência vivida em conhecimento; ser, portanto, espaço formativo. A Intervisão que propomos funciona dentro de uma perspectiva ético-política muito evidente: colocar-se junto, possibilitar que as pessoas possam produzir juntas. A ideia de perceber o que me interessa, o que me impacta, capacidades criativas sendo acionadas. Tudo isso permite alinhavar o que é do campo do teórico com o vivido.

 

Considerações Finais

Diante do desafio colocado para a formação com a pandemia de COVID-19, assumimos a responsabilidade de inventar novos formatos. Poderia a Intervisão ocorrer de forma virtual e manter sua potência? Seria possível fazer diferente, sem a força do contato e interação presencial?

Percebemos que o momento da pandemia trouxe à tona ainda mais sofrimento relacionado ao trabalho com famílias e comunidades nas políticas públicas. Somou-se a complexidade do momento político, com a perspectiva de perda de direitos já adquiridos no campo social. O espaço de fortalecer-se é também espaço de resistência do diferente num momento em que os discursos são tão autoritários, ou com verdades prontas. É o trabalho social resistindo.

Percebemos a Intervisão como espaço especialmente potente para a formação focada no trabalho social com famílias e comunidades. Ao revisar os aspectos históricos e conceituais, percebemos o quanto essa proposta é utilizada em diferentes áreas do conhecimento. Nossa experiência em particular, aqui relatada, destaca a construção de um espaço balizado por uma ética do afeto, no qual a utilização de disparadores criativos se destaca como elemento fundamental. Enfatizamos a importância delegada ao registro, pelo entendimento que a escrita favorece uma certa formalização no processo de construção do conhecimento, pois faz assentar reflexões e olhares mais intuitivos sobre o cotidiano.

Por fim, podemos registrar que o impacto da pandemia também se fez sentir, como se percebe pela avaliação de uma aluna, quando diz: “Esse 2020 chegou diferente, pesado, cansativo, nos obrigou a nos reinventarmos, e mesmo distantes, os dias dos encontros estavam lá: aulas e a intervisão..., os encontros nos reconfortavam...”(E., assistente social). Mesmo diante do desafio de viabilizar encontros de forma virtual, os principais elementos puderam ser mantidos: a proposta de horizontalidade, a construção conjunta de significados, a manutenção do espaço de encontro.

A Intervisão assume um espaço de trocas que, via de regra, está ausente nos espaços de trabalho e mesmo no meio acadêmico. Aborda um extenso campo de práticas cotidianas nos territórios e comunidades, composto por uma rede de atendimento mormente deficitária, marcado pela presença das organizações e estratégias locais. Um vasto e complexo campo, portanto, que traz desafios cotidianos e do qual pouco se fala. A troca estabelecida na intervisão abre, através dos dispositivos apresentados nesse artigo, um espaço de afetos e saberes.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Lirene Finkler
E-mail: lirene.finkler@ufsm.br

Enviado em: 18/04/2021
Revisado em: 21/06/2021
Aceito em: 25/06/2021

 

 

1 Psicóloga, Doutora em Psicologia, Professora na UFSM.
2 Psicólogo, Doutor em Psicologia Social, Psicólogo na PMPA/SMS, Professor no DOMUS.
3 Assistente Social, Mestre em Serviço Social, Professora no DOMUS.
4 Psicóloga, Mestre em Psicologia Social, Psicóloga na PMPA/FASC, Professora no Domus.
5 Assistente Social, Especialista em Terapia de Família, Psicóloga na PMPA/FASC, Professora no Domus.

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