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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.25 no.2 Porto Alegre Dec. 2021

 

ARTIGOS

 

Conjugalidade e deficiência física adquirida: um estudo a partir da perspectiva dos parceiros

 

Conjugality and acquired physical disability: a study from the partner perspective

 

 

Thassia Souza Emidio1, I ; Fabieli Gonzaga da Silva2, II

I Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
II
Departamento de Psicologia Clínica da Univ. Estadual Paulista- UNESP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivou-se neste estudo, refletir sobre as ressonâncias da deficiência física adquirida no vínculo conjugal a partir da perspectiva dos parceiros de pessoas com deficiência. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratório-descritiva, que utilizou da entrevista semidirigida como instrumento de coleta de dados. Participaram deste estudo cinco parceiros de pessoas com deficiência física adquirida que já tinham relacionamento conjugal anterior ao episódio que levou à deficiência física. O material coletado foi transcrito e submetido à análise de conteúdo temático. A análise dos dados foi realizada buscando traçar uma interlocução entre a fala dos entrevistados e as discussões e reflexões teóricas sobre o vínculo, a conjugalidade e a deficiência física adquirida. Os resultados mostraram que ocorre um processo de reconfiguração do vínculo conjugal a partir da experiência da deficiência adquirida, pode-se observar a redefinição dos parâmetros da vida conjugal e as diversas dificuldades encontradas neste processo. Evidenciou-se também a importância da reabilitação na reorganização da vida familiar, do vínculo conjugal e na construção de projetos futuros.

Palavras-chave: Deficiência física, Conjugalidade, Vínculo.


ABSTRACT

The objective of this study was to reflect on the resonances of physical disability acquired in the marital bond from the perspective of partners of people with disabilities. It is a qualitative, exploratory-descriptive research, which used the semi-directed interview as a data collection instrument. Five partners of people with acquired physical disabilities who had already had a marital relationship prior to the episode that led to physical disability participated in this study. The collected material was transcribed and submitted to thematic content analysis. The analysis of the data was carried out trying to trace a dialogue between the interviewees' speech and the theoretical discussions and reflections on the bond, the conjugality and the acquired physical disability. The results showed that there is a process of reconfiguration of the conjugal bond from the experience of acquired disability, one can observe the redefinition of the parameters of conjugal life and the various difficulties that they encounter in this process. The importance of rehabilitation was also highlighted in the reorganization of family life, in the marital relationship and in the construction of future projects.

Keywords: Physical disability, Conjugality, Bond.


 

 

Introdução

O número de pessoas com deficiência física vem crescendo de forma significativa no Brasil e no mundo, demandando que os serviços de saúde e o contexto sociocultural no qual estão inseridos estejam preparados para receber tal demanda. Segundo dados do Censo Demográfico de 2010, mais de 45 milhões de pessoas declararam ter pelo menos um tipo de deficiência, correspondendo a 23,9% da população brasileira (IBGE, 2010). De acordo com Borges et al. (2012), apesar de termos um número expressivo de pessoas com deficiência no Brasil, ainda são escassos os estudos em saúde voltados a esta temática.

Neste trabalho pretendeu-se estudar dentro do campo das deficiências, a deficiência física adquirida, uma condição em que as pessoas a partir de acidente ou adoecimento, adquirem uma deficiência, acarretando mudanças em sua vida, assim como na de suas famílias. Desta forma, buscou-se compreender as repercussões da deficiência física adquirida na conjugalidade e a forma como os companheiros vivenciam tal experiência, observando-se de que forma se dá́ o rearranjo da vida conjugal a partir da vivência deste episódio.

O conceito de deficiência pela Organização Mundial da Saúde organizou-se a partir do manual:  Classificação Internacional de deficiências, incapacidades e desvantagens: um manual de classificação das consequências das doenças (CIDID), publicado em 1989, que apresentou a deficiência como uma perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, a qual pode ser temporária ou permanente. Dentro desse conceito são inclusos a ocorrência de uma anomalia, defeito ou perda de um membro; órgão, tecido ou qualquer outra estrutura do corpo, assim como das funções mentais. Assim, a deficiência é descrita como a exteriorização de um estado patológico, refletindo um distúrbio orgânico, uma perturbação no órgão.

Ao lado deste conceito descrito no manual, existem dois outros associados à deficiência: o de incapacidade e o de desvantagem. A incapacidade é caracterizada pela restrição de habilidade para desempenhar uma atividade considerada normal pelo ser humano em decorrência da deficiência. Delineiam-se, desse modo, a deficiência e os distúrbios da própria pessoa nas atividades e comportamentos essenciais à vida diária. Já a desvantagem se caracteriza por ser o prejuízo diante dos papéis exercidos em sociedade, representando um descompasso entre a capacidade de realização do indivíduo e as expectativas deste ou do seu grupo social.

Amiralian et al. (2000) coloca que a deficiência pensada a partir da desvantagem e da incapacidade pode estar presente na ausência de uma doença, além disso, é importante considerarmos os aspectos sociais envolvidos. A sociedade constrói barreiras e estigmas com relação à pessoa com deficiência e é através das dinâmicas das relações sociais que os estigmatizados viverão as causas e os efeitos do estigma, pois podem sentir-se inseguros com relação aos ditos normais, pela forma como eles serão identificados e recebidos. Desta forma, pode-se pensar a deficiência a partir de um viés social, onde a sociedade constrói uma identidade negativa com relação à pessoa com deficiência, sem se atentar para as possibilidades e potencialidades apresentadas por esta, construindo barreiras para sua inserção na sociedade.

Nesse sentido, é importante compreender que essa se relaciona a uma ocorrência que altera os modos de vida da pessoa e de toda família, resultando em mudanças, e demandando que esses se adequem à nova situação. Diante disso, pensar na deficiência física adquirida é compreender como uma nova situação imposta abruptamente para o sujeito, e que modifica todas as premissas antes conhecidas por ele, alterando diversas instâncias de sua vida.

Santos e Sebastiane (1996) colocam que a nova condição imposta abruptamente requer modificação no estilo de vida, nas relações, nos comportamentos e na maneira de lidar consigo mesmo e com a saúde. A rotina, as ocupações e as tarefas que eram realizadas podem sofrer modificações em função do tipo de deficiência e do tratamento proposto, obrigando o indivíduo a adaptar-se às novas exigências e a lidar com as dificuldades e obstáculos que até então não eram vividos. Os referidos autores colocam também que se adaptar a um novo estilo de vida não é algo fácil para quase todos os indivíduos quando recebem um diagnóstico e, especialmente para alguns, a deficiência torna-se o seu único meio de expressão, não levando em conta qualquer aspecto do futuro e do que possa vir a alcançar. Com isso, começa a se ver e a se comportar de forma exclusiva como um doente, reforçando situações de dependência, regressão ou depressão, posicionando-se passivamente diante da vida e do tratamento, o que vem a interferir, de forma decisiva, na sua recuperação ou adaptação (Kubler-Ross,1998).

Logo, a deficiência física adquirida o leva para uma situação nova, radicalmente diferente, a qual pode limitar o desempenho das suas obrigações sociais, profissionais e familiares. Esta inédita situação é capaz de provocar uma regressão afetiva e a exigência por uma renovação de necessidades relativas à segurança e à proteção, acompanhadas de ansiedades desestruturantes que podem ser projetadas e depositadas na própria rede de suporte social (Oliveira, 1998).

Conforme Parkes (2009), o mundo presumido seria aquele conhecido pelo sujeito, no qual ele vive e integra suas concepções, suposições e tudo o mais que é tido por verdadeiro, construído através das vivências, e que continuamente demanda transformações, ao passo de novas informações e situações. O autor denomina de transição psicossocial o processo de viver transformações nesse mundo presumido, o que ocorre no caso de pessoas que adquirem uma deficiência física, em que uma nova realidade é imposta abruptamente. Aponta também para o fato de que todos os eventos que provocam alterações significativas na vida, afrontam o mundo presumido e provocam uma crise.

Amaral (1995) diz que os mecanismos de defesa subjetivos são estratégias usadas pelas pessoas acometidas pela deficiência abrupta a fim de buscar um equilíbrio emocional. Loureiro et al. (1997) acreditam que a doença súbita ou as lesões graves interferem também na autoimagem e na adaptação da identidade do sujeito. Resende e Neri (2009) apontam que a adaptação psicológica à deficiência adquirida na vida adulta consiste em um processo social longo, complexo e de múltiplas expressões físicas e psicossociais, configurando-se uma tentativa da pessoa de se equilibrar diante das pressões internas e externas.

A deficiência adquirida faz que o sujeito experimente sentimentos ambivalentes, pois se enxerga fisicamente de maneira diversa do que era antes, mas ao mesmo tempo igual, pois preserva suas capacidades cognitivas e sua história de vida. Assim, sentir-se incapacitado não torna esse sujeito um ser passivo. Ao contrário, permanece ativo em seu processo de constituição de si e, por esse motivo, ele sente a necessidade de ressignificar diversos aspectos de sua própria identidade (Santos, 2000). Teixeira e Guimarães (2006) colocam que o fato de o sujeito ter que reconstruir sua identidade em decorrência de uma limitação implica também a necessidade de rever papéis sociais e familiares.

Desta forma, pode-se considerar que a experiência de uma deficiência física adquirida repercute nas relações conjugais e familiares. Essa vivência é capaz de provocar uma mudança complexa nas relações com os mais próximos, perceptível nas singularidades do clima afetivo, que, não obstante, governa os movimentos no interior da família (real ou fantasmática) e, por conseguinte, seus modos de relação com a comunidade na qual se insere.

Deficiência Física e Vínculo Conjugal

O episódio da deficiência será vivenciado pelos membros da família ou pelas pessoas próximas de forma particular e única. Diferentes sentimentos e reações, resultantes desse processo, podem provocar uma crise que afetará a todos. A incidência da crise irá depender de vários fatores: as crenças, o significado da deficiência para a pessoa e suas famílias, além dos recursos emocionais e financeiros que essa família possui para lidar com a deficiência (Sá & Rabinovich, 2006).

De acordo com Maia (2011), é possível identificar o impacto que a deficiência pode ter não somente para o indivíduo, mas para todo o grupo familiar. No caso de deficiências que envolvam mais restrições, a manutenção dos papéis anteriores dos familiares pode ser impraticável e sofrer transformações, pois muitas vezes é um dos familiares que assume o papel de cuidador principal, como geralmente ocorre a um dos cônjuges, o qual fica responsável pelo cuidado com o companheiro. Como resultado, ocorrem ressonâncias também no vínculo estabelecido entre o casal.

A escolha de um parceiro, para um relacionamento afetivo-sexual como o namoro ou o casamento é uma decisão importante ao longo da vida, visto que, o amor e os relacionamentos amorosos possuem uma grande importância na vida humana. Eles viabilizam sentidos e significados diferenciados ao enfrentamento das dificuldades cotidianas. As interações, as alianças, os afetos, os vínculos e os compromissos que originam deles dão sentido à vida.  As razões para a escolha de uma parceria com perspectivas à conjugalidade têm sido objeto de estudo em diferentes perspectivas teóricas. Para este trabalho, a discussão se baseou na Psicanálise das Configurações Vinculares.

Tradicionalmente, o termo vínculo é empregado como sinônimo de relação, ou também, para relacionamento amoroso. No entanto, estar junto não significa estar vinculado; menos ainda, entender-se não significa estar de acordo. Constituir um vínculo corresponde a estabelecer um contrato inconsciente por meio de acordos e pactos, conforme apontam Puget e Berenstein (1993), ao abordarem a questão da intersubjetividade a respeito dos desencontros e dos obstáculos enfrentados pelos casais na constituição do vínculo conjugal.

Ainda na perspectiva dos autores, o vínculo conjugal tem sua origem nas alianças psíquicas e constitui-se por determinadas características nas quais acordos conscientes e inconscientes são solicitados. “Vínculo como sendo o inconsciente em sua maior densidade: é o que dá pertencimento e estabelece uma descontinuidade e uma continuidade entre os eus. Esta última se constrói na fantasia como defesa ante a percepção de descontínuo” (Puget & Berenstein, 2004, p. 2). A partir disso, a dificuldade de suportar a alteridade do outro é um dos maiores obstáculos para o encontro dos parceiros e para a formação do casal.

Almeida (2014) coloca que o vínculo é estabelecido a partir de estipulações equivalentes a um contrato inconsciente. Mateus (2007) aponta que a formação dos vínculos se dá por pactos, acordos e regras que se configuram também de maneira inconsciente onde configura-se um espaço psíquico compartilhado que dá sustentação à conjugalidade. O vínculo conjugal também é sustentado tanto pelo desejo dos cônjuges como pela sociedade que o identifica como tal. Pois se compreende que “não existe apenas a realidade forjada pelas fantasias inconscientes e a vida passional, mas que há outra, a que se cria a cada encontro entre dois ou mais sujeitos” (Puget, 2000, p. 73).

Eiguer (2008) coloca que um vínculo conjugal tende sempre a surgir com base no modelo de identificação ilusória. Será apenas por meio de um caminho lento e incoercível, de conhecer aquele com quem convive, que se conhecerá de fato quem é a pessoa com quem passou a viver. É possível compreender que será neste ponto que o casal poderá vir a se conhecer, de fato, ou perder o encanto que se tinha, com base nas expectativas narcísicas de cada um. De acordo com Zanetti (2012), para que um vínculo conjugal continue a manter o brilho e o entusiasmo do início, é preciso que cada um da dupla recorra a seus recursos psíquicos para conseguir, neste processo, de fato reconhecer, respeitar, se responsabilizar pelo outro e pelo vínculo e, então, construírem juntos um relacionamento não aos modelos das histórias de princesas, mas em que a reciprocidade os faz crescer e viver de uma forma satisfatória.

A fim de que um vínculo se constitua em bases sólidas e continue saudável, Eiguer (2008) propõe a necessidade de que sua formação esteja constituída no que denomina de “os quatro R” do vínculo: reciprocidade, respeito, reconhecimento e responsabilidade.

A reciprocidade seria o resultado dos modos de interação entre os sujeitos do vínculo e da possibilidade de criação no investimento intersubjetivo. O respeito se liga à capacidade de aceitar a singularidade do outro e para que ele esteja presente, é necessário que exista uma aproximação em que o outro pode ser próximo e ao mesmo tempo, diferente. O respeito ainda provém do amor e do sentimento de ter construído em conjunto um universo compartilhado, considerando-se a capacidade de aceitar a singularidade do outro.

O reconhecimento é um processo mais complexo, pois apresenta uma situação paradoxal, uma vez que o ego possui a necessidade do reconhecimento do outro e ao mesmo tempo precisa concebê-lo separado de si. Em um vínculo amoroso, um tende a fundir-se ao outro com o objetivo de se tornar único e absoluto, em um universo sem conflitos (Zanetti, 2012). Diante da dificuldade de realização de tal tarefa, se um vínculo não é capaz de suportar esse paradoxo, ele não se sustenta. Zanetti (2012) aponta ainda que se trata de um processo interminável, uma vez que só se pode reconhecer o outro à medida que não o conhece verdadeiramente, e nem a si mesmo.

Desta forma, pode-se considerar que o reconhecimento não se liga a conhecer melhor, mas a perceber melhor o outro, aquele que se considera conhecer. O reconhecimento só é possível a partir da aceitação das diferenças, das próprias faltas e do que há́ de positivo no outro. Nesse sentido, pode-se considerar que o que conta na formação de um vínculo não é o que há em comum e se aprecia no outro, mas a forma como se admitem as diferenças e como se vive com ela.

O conceito de responsabilidade, apontado por Eiguer (2008) é baseado nos trabalhos de Lévinas (1974) nos quais este considera que o sentimento de culpa, pensado na psicanálise freudiana como o principal organizador do superego, deveria ser pensado a partir do sentimento de responsabilidade. Zanetti (2012) coloca que sentir-se culpado é diferente de se sentir responsável: a culpa insinua a ocorrência de um erro e a responsabilidade engloba também os bens e as ações construtivas. Nesse sentido, a responsabilidade, para Lévinas (1974), é antes de tudo ética (Eiguer, 2008) e reverbera no vínculo a partir do fato de que a responsabilidade traz sentimentos mais amplos que a culpa, pois esta traz em si a ideia de cuidado, aproximação e ajuda, sendo esta, junto com o respeito, a reciprocidade e o reconhecimento, as bases de sustentação e de manutenção do vínculo conjugal.

Nesse caminho de compreensão sobre o estabelecimento, a manutenção e a dinâmica da conjugalidade, Puget e Berenstein (1993) a partir de seus estudos identificaram parâmetros definitórios (cotidianidade, projeto vital compartilhado, manutenção de relações sexuais entre si e tendência à monogamia) para a organização do vínculo conjugal e apontaram para o estabelecimento de pactos que dão sustentação a essa experiência.

A cotidianidade constitui uma referência à estabilidade temporal-espacial, identificada pelos intercâmbios diários e pela organização do ritmo de encontros e não-encontros do casal, que representa um marco para a aquisição da identidade. O projeto vital compartilhado origina-se da ação de unir e, no casal, na de reunir representações de realizações e conquistas futuras. O primeiro projeto vital do par conjugal, segundo Puget e Berenstein (1993), é compartilhar um espaço-tempo vincular, e seu modelo paradigmático passaria pela criação de filhos, reais ou simbólicos. O parâmetro das relações sexuais prevê a manutenção do vínculo, mas não limitada à atividade genital propriamente dita. Por último, há o parâmetro da tendência monogâmica, a qual pressupõe o relacionamento com um só́́ cônjuge, com conotação de preferência.  A partir desses parâmetros pode-se compreender como os casais vivenciam suas relações no cotidiano e como passam por momentos de crise que levam à transformação da organização da vida familiar e dos vínculos a ela pertencentes. “Nesse sentido, a conjugalidade oferece um continente, palco de encenações de acordos e pactos inconscientes, mas, concomitantemente, possui mecanismos defensivos para lidar com a vida coletiva” (Pignataro et al., 2019, p. 44).

Considerando as reflexões sobre o vínculo conjugal apresentadas acima, surgem as seguintes questões: como o episódio da deficiência física adquirida é vivenciado pelo parceiro conjugal? Quais as ressonâncias desse acontecimento na vida do casal? Como se dá o processo de reorganização que se instaura a partir da necessidade de adaptação a uma nova situação que se apresenta? Foram estas as questões que pretendeu-se refletir neste estudo.

 

Método

Participantes

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratório-descritiva, que tem a Psicanálise das Configurações Vinculares como referencial teórico. Participaram da pesquisa cinco pessoas, parceiros (as) de pessoas com deficiência física adquirida. Estabeleceu-se como critério de inclusão na amostra: ter um vínculo conjugal com uma pessoa com deficiência que se iniciou antes do episódio da deficiência. Não foi estabelecido um número padrão para entrevistas com homens e mulheres, porém ao buscar o contato com os participantes o sexo feminino foi predominante na disponibilidade de falar sobre o tema. Foram entrevistados quatro mulheres e um homem. O contato com os participantes foi feito por indicação e os entrevistados foram nomeados com nome fictícios, são eles: Amanda, 45 anos, está na relação há 27 anos, e há 19 anos ocorreu o episódio que resultou na deficiência do parceiro. Mara, 63 anos, está na relação há 45 anos, e há 15 anos descobriram a doença que resultou na deficiência do parceiro. Milena, 32 anos, está na relação há 13 anos, e há seis anos ocorreu o episódio que resultou na deficiência do parceiro. Lúcia, 42 anos, está́ na relação há 25 anos, e há 20 anos descobriram a doença que resultou na deficiência do parceiro. Bruno, 42 anos, está na relação há 10 anos, e há quatro anos ocorreu o episódio que resultou na deficiência da parceira.

Instrumentos e Procedimentos

O instrumento de coleta de dados foi a entrevista semiestruturada. Foi elaborado um roteiro prévio com questões sobre como foi o episódio da deficiência e suas repercussões no vínculo conjugal, pensando no episódio da deficiência, na convivência com o parceiro, e como eles permanecem nessa união. A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, protocolo CAAE 94158418.8.0000.5401, sendo apresentado aos participantes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes de cada entrevista. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas de forma integral.

Análise dos Dados

A partir da transcrição das entrevistas, foi realizada uma análise que buscou atrelar os dados colhidos com o material científico disponível e construir reflexões sobre o tema da pesquisa. Dessa maneira, buscou-se apreender os sentidos evidenciados ao longo do discurso dos entrevistados que trouxessem uma compreensão acerca das ressonâncias da deficiência adquirida pelo parceiro na vida conjugal. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo de acordo com a proposta de Bardin (2011) organizada a partir das seguintes etapas: (1) leitura flutuante dos dados; (2) exploração dos dados a partir da configuração de categorias preliminares; e (3) tratamento dos dados pela definição de categorias e elaboração de inferências. As categorias se organizaram por agrupamentos dos relatos dos participantes a partir de equivalências e similaridades. Foram organizadas três categorias: 1) A conjugalidade e a deficiência física adquirida; 2) A reabilitação e a reorganização do vínculo conjugal e; 3) O presente, o futuro e as perspectivas do vínculo conjugal; que serão apresentadas e discutidas a seguir.

 

Resultados e Discussão

A Conjugalidade e a Deficiência Física Adquirida

Nesta categoria buscou-se analisar como foi vivenciado o episódio que levou à deficiência do parceiro e como a deficiência física adquirida trouxe mudanças para a vida conjugal. Buscou-se escutar como os parceiros vivenciaram esses momentos e quais os impactos dessa experiência no vínculo que já tinham estabelecido.

Amanda estava casada há apenas três meses quando o marido adquiriu a deficiência, em uma festa onde ele estava fazendo uma bomba caseira e a mesma explodiu, resultando na perda dos pés e de alguns dedos na mão esquerda. Diante isso, a dinâmica da relação modificou-se e ela teve que cuidar do marido e ajudá-lo em todo processo de reabilitação. Mara relata que o marido perdeu parte da mão e da face após a descoberta de um câncer, o marido era músico, após a descoberta do câncer exercer a profissão tornou-se inviável para ele, modificando assim a dinâmica da relação e a mudança dos dois de cidade para viverem perto dos filhos e netos. Já Milena relata que o parceiro adquiriu a deficiência após um acidente de moto, onde ele lesionou a medula resultando em paraplegia, eles estavam casados há um ano e possuíam uma rotina muito agitada, segundo ela, a deficiência fez com que eles desacelerassem a vida e se tornassem mais caseiros. Lúcia conta que o parceiro descobriu há vinte anos o tumor que resultou na retirada de um braço, parte da clavícula e um pulmão. A retirada aconteceu há dez anos, eles vivem juntos, tem algumas dificuldades, mas vivenciaram muitas mudanças na vida familiar, como no sustento do grupo e no cuidado com a casa e as filhas. Bruno conta que a parceira ao pular de uma cachoeira resultou em uma paraplegia e que esse episódio, modificou e muito a vida deles, tendo ela se tornado para ele uma filha de quem ele deve cuidar.

A partir do relato dos entrevistados pode-se verificar que a deficiência adquirida trouxe mudanças significativas tanto relativas à rotina da vida do casal, como na forma de se relacionar com o parceiro. Nos relatos dos entrevistados apareceram questões como a dependência e as dificuldades de lidar com as transformações que envolvem o cotidiano da vida conjugal. O afastamento dos amigos, as dificuldades de acesso aos lugares bem como mudanças na rotina da casa foram apresentadas pelos parceiros como transformações importantes vivenciadas, porém estes se ativeram, em sua maioria a estas mudanças, trazendo que apesar das dificuldades após o episódio havia uma sustentação do vínculo conjugal que os fez suportar as transformações em suas vidas decorrentes desta experiência.

Apresentaram também o desejo de permanecerem juntos de seus parceiros apesar das dificuldades, e a disponibilidade para o enfrentamento da nova situação, bem como para a dedicação e o cuidado com o outro, principalmente nos primeiros momentos de adaptação após o episódio de aquisição da deficiência. Assim, pode-se considerar que o vínculo conjugal destes se reorganizou diante da experiência da deficiência adquirida de forma a dar manutenção a este, exigindo que o casal reorganizasse seus investimentos. Bem como o modo de vivenciar uma relação de reciprocidade, respeito, reconhecimento e responsabilidade, os quatro “R”, apresentados por Eiguer (2008) como os pilares da construção de um vínculo.

Percebeu-se nos relatos dos entrevistados, que houve uma transformação nas relações de reciprocidade, respeito, reconhecimento e responsabilidade e que o sentimento de responsabilidade que pressupõe um cuidado com o outro apresenta-se como um fator primordial na manutenção do vínculo amoroso. Quando questionados sobre como foi se manter com o parceiro nesse processo, todos os entrevistados apontaram a responsabilidade de se permanecer com o outro e o desejo de cuidado e de apoio em uma situação transformadora na vida.

Porém, apesar da responsabilidade e do respeito se apresentarem como questões importantes na manutenção do vínculo desses casais, alguns trouxeram as dificuldades de lidar com o parceiro após o episódio da deficiência. Mara e Lúcia trouxeram uma questão importante que é a dificuldade de lidar com os sentimentos negativos, com a hostilidade, a depressão e a revolta de seus parceiros. No relato das duas aparece a questão de ter de suportar a dor vivida pelo outro e do quanto aquilo as fazia sofrer. Lúcia trouxe sobre a necessidade de abdicar de seus desejos para ser apoio para o outro e das dificuldades vivenciadas nesse processo, colocando que a deficiência traz impasses na reciprocidade do vínculo conjugal, uma vez que o parceiro passa a ser aquele que demanda cuidados e um processo de adaptação acomete o casal e todo o grupo familiar. Bruno também trouxe em seu relato sobre a dificuldade na reciprocidade e coloca que que sua parceira virou sua filha, apresentando que a questão do cuidado e da dependência trazida após o episódio da deficiência acarretaram mudanças em seu vínculo conjugal, uma vez que a filiação, sob seu olhar, traz mais da dedicação cuidadosa para com o outro, de uma dependência do outro, do que de um compartilhamento vivenciado na conjugalidade.

Além disso, notou-se na fala dos entrevistados a presença de um discurso ligado à moral social e ao olhar sobre a pessoa com deficiência, como aquela que será sempre dependente do outro e dos cuidados destes. Colocando-se em uma situação em que o acontecimento os levou a esse lugar de cuidador e que não poderiam sair deste lugar uma vez que não seria socialmente correto, sendo então algo que teriam que enfrentar e lidar com as questões que apareceriam a partir disso. Notou-se também um apego aos discursos religiosos, como uma força divina, uma missão, ou algo do tipo. A religião e a crença em algo da ordem do divino apresentou-se como algo que permeia o vínculo conjugal e sua sustentação a partir desta experiência.

Há uma mudança significativa nos parâmetros definitórios do vínculo conjugal (Puget & Berenstein, 1993), a partir da experiência da deficiência adquirida. A cotidianidade que se refere a uma estabilidade temporal-espacial e aos intercâmbios diários do casal, é afetada pela nova rotina atravessada por uma relação inicial de dependência e transformação, o projeto vital compartilhado é alterado. Como aparece no relato de Amanda “éramos um casal cheio de sonhos”, ou no de Bruno “aí ela se acidentou antes dos filhos chegarem... e virou minha filha”, onde os sonhos e projetos futuros tem de se reconfigurar a partir desta nova experiência. As relações sexuais e a tendência à monogamia também apresentam mudanças, tanto nas dificuldades de manterem relações sexuais, como no caso de Lúcia que disse ter ficado cinco anos sem ter relação sexual com o marido, quanto na necessidade de estabelecimento de uma nova relação com o novo corpo do parceiro, necessidade de reconhecimento daquele corpo, de aceitação da própria pessoa com deficiência e do reconhecimento do parceiro.

Depois que amputou, é difícil falar, porque o Júlio ficou como um irmão para mim, a gente ficou cinco anos sem ter relação. Eu cuidava dele, e ele ficou seis anos aberto, porque ele não fechava depois que amputou. Uma, que ele era gordo e ele ficava mais na cama, e eu trabalhando e cuidando e as meninas ajudando. Então nesse período nós ficamos como irmãos, não tinha relacionamento de marido e mulher, tinha um relacionamento de irmãos. (Lúcia)

Segundo Puget e Berenstein (1993) o parâmetro das relações sexuais prevê a manutenção do vínculo, mas não limitada à atividade genital propriamente dita. Por último, há o parâmetro da tendência monogâmica, a qual pressupõe o relacionamento com um só cônjuge, com conotação de preferência. No relato dos entrevistados estes apresentaram sempre o desejo de manterem-se juntos e de serem apoio diante da situação vivida, porém aparece no relato destes a importância do apoio da família na manutenção deste vínculo e da fidelidade ao parceiro, sendo a traição algo que estes não pensam, pois interromperia o vínculo conjugal. Bruno atribui a forças divinas o fato de não trair a esposa com deficiência, não apresentando uma sustentação deste parâmetro pelo vínculo conjugal, mas sim ligado a uma moral social e religiosa.  “Mas relação de mulher assim tá difícil, porque ela não quer, eu falo que tomo cuidado, ela diz que não e é Deus que segura as minhas vontades, porque trair ela eu não vou não, viu?” (Bruno).

Assim, nota-se uma necessidade de reconfiguração dos parâmetros que definem o vínculo conjugal, levando os parceiros à uma reconfiguração dos investimentos. Essa reconfiguração se relaciona a uma historicidade do casal, atravessada pelos imperativos e pelas questões sociais que atravessam o olhar para a pessoa e para o parceiro da pessoa com deficiência.

Nesse sentido, pode-se considerar que a deficiência física adquirida traz mudanças significativas na conjugalidade. Estas mudanças são sustentadas pelo vínculo construído pelo casal e são vivenciadas com dificuldade e sofrimento. O parceiro da pessoa com deficiência aparece nos seus discursos como aquele que deve ser forte, base e sustentação para essa experiência de transformação vivenciada, sendo pouco olhado nesse processo, onde seu sofrimento também está presente.

A reabilitação e a reorganização do vínculo conjugal

No relato dos entrevistados, pode-se notar que a busca pela reabilitação permeou o movimento de todos os casais e foi disparadora para a reorganização do vínculo conjugal. Todos buscaram formas conjuntas de se adaptar à situação e estas tiveram ressonâncias tanto na vida cotidiana dos casais quanto no modo de vinculação destes, na construção de projetos para o futuro e na vida afetivo-sexual destes. Como presente na fala de Amanda:

Quando ele se recuperou das cirurgias, voltamos para casa e fomos buscar os serviços de reabilitação, todo esse processo foi muito importante, nos dava força para continuar e acreditávamos que tudo ia melhorar. Rapidamente ele se adaptou e foi adquirindo funcionalidades, hoje é completamente independente o que me dá muito orgulho, da força dele para continuar e do quanto foi importante nos mantermos unidos nesse processo. (Amanda)

Pode-se perceber que a reabilitação configurou-se para os casais como o disparador para o processo de adaptação, mas também como um novo projeto vital compartilhado. Segundo Puget e Berenstein (1993) o projeto vital compartilhado origina-se da ação de unir e, no casal, na de reunir representações de realizações e conquistas futuras. O primeiro projeto vital do par conjugal é compartilhar um espaço-tempo vincular, e seu modelo paradigmático passaria pela criação de filhos, reais ou simbólicos. Assim, percebeu-se também que alguns casais onde os projetos futuros permeavam a questão da relação com os filhos ou o nascimento destes, passam, pelo menos em um momento inicial, a serem substituídos pelo projeto ligado à reabilitação e às possibilidades de organização da vida e do vínculo diante das novas necessidades que se apresentaram.

O projeto progride para o futuro, caracterizando como organização gradual de um trajeto pensado para adiante. Mediante à deficiência, Testor (2010) coloca que a boa resolução da crise conjugal originada consiste no fato de a dupla ser capaz de gerenciar as dificuldades que surgem na relação, tomando as decisões que julgar adequadas para aquele momento ou situação. Diante disso, a superação da crise do desenamoramento pode tornar a dupla conjugal mais amadurecida, fortalecida, possibilitando a vivência do amor, tornando-a apta a construir um novo projeto vital compartilhado. As ideias apresentadas por Testor (2010) se confirmam no relato de Amanda:

Acho que amadureci e me tornei uma pessoa mais forte. Tive que aprender a ser forte e me manter equilibrada para poder ajudá-lo e apoiá-lo. No início não foi fácil, por isso sou grata por toda ajuda dos nossos familiares e amigos. Poder contar com eles foi fundamental para seguirmos adiante na época do acidente. Tem vezes que acho que não me abati por conta da nossa história juntos, sempre fomos muito parceiros e consegui me manter firme por conta disso também, mas sou outra pessoa depois de tudo que aconteceu, a gente passa a valorizar outras coisas, e passa a ser mais cuidadoso com a vida também. (Amanda)

Uma questão importante no relato de Mara que também tem na reabilitação um fator potencializador diante da reconfiguração do vínculo conjugal é a questão da temporalidade na vida do casal, Mara e seu parceiro são idosos e ela se mostra disponível para o cuidado com ele, apesar das dificuldades e das grandes mudanças ocorridas, pois estes mudaram de cidade para ficarem perto dos filhos e netos. No relato de Mara percebe-se uma preocupação frequente para com o futuro, que não ligada à configuração de projetos futuros, mas sim ao medo da morte, da perda, questões ligadas ao envelhecimento e à finitude, que chamaram a atenção em seu relato, pois apesar da deficiência física adquirida implicar em um processo de luto tanto para a pessoa que adquire a deficiência quanto para o parceiro, apenas no relato de Mara as questões da perda, da morte e dos temores ligados a ela apareceram. Os casais mais jovens parecem vivenciar o luto ligado a essa condição, mas colocam em seus discursos uma potência ligada à vida, ao futuro e às novas conquistas.

Nos relatos de Bruno e Lúcia notou-se uma dificuldade na configuração de um projeto compartilhado pelo casal. No caso de Lúcia o projeto ficou vinculado à criação e à formação das filhas, sendo que estes combinaram ficar juntos até as filhas se formarem, não apresentando um resgate do vínculo conjugal mesmo após a vivência de um processo de reabilitação. Em Bruno percebeu-se a dificuldade de resgate do vínculo conjugal e sua manutenção baseada pelos parâmetros religiosos onde vê o cuidado com a esposa como uma missão que ele só consegue exercer por ser amparado por Deus. Bruno traz o desejo de resgatar a relação com a esposa, mas têm dificuldades de lidar com a deficiência.

Assim, é importante destacar que a reabilitação ocupa na vida da pessoa com deficiência física adquirida um espaço importante tanto na reconfiguração do vínculo conjugal quanto na possibilidade de potencializá-la na construção de projetos futuros. Diante disso, apresenta-se como um ponto importante o fortalecimento de políticas públicas de reabilitação multiprofissional, uma vez que nem todos têm acesso a esses percursos possíveis e essa se apresenta como primordial na construção de uma sociedade que recebe e promove o acesso às pessoas com deficiência e não que produz deficiências a partir de um processo de exclusão e de construção de barreiras.

O Presente, o Futuro e as Perspectivas da Vida Conjugal

Quando questionados sobre como é a relação deles hoje em dia e como se configurou essa experiência em suas vidas e o que pensam para o futuro, todos os entrevistados, apesar das diferenças, trouxeram o desejo de permanecerem juntos e de tocarem a vida a dois. Passados os episódios e o processo de adaptação e reabilitação estes colocam que a vida pode se organizar e puderam retomar seus projetos pessoais e que os parceiros foram retomando suas condições de autonomia, se adaptando, o que possibilitou poder pensar no futuro.

Ao falarem sobre a relação hoje, os entrevistados colocaram que a vida seguiu em frente após o período de reorganização, apresentando como colocado por Eiguer (2008) que um vínculo estabelecido a partir do compartilhamento e da reciprocidade tem possibilidades de se organizar a partir dos momentos de crise e vivenciar outras configurações ao longo do tempo.

Percebeu-se nos relatos dos entrevistados esse percurso, todos tinham um vínculo estabelecido, a partir do episódio da deficiência esses vínculos sofreram os impactos presentes nesse processo. Todos relataram dificuldades de lidar com o novo corpo do parceiro, com as limitaçõ̃es, com a dependência e a reconstrução da autonomia, porém relacionam a força para lidarem com as dificuldades enfrentadas ao apoio de familiares e no caso de Bruno à sua fé e à religião. Porém, no relato de todos se apresenta uma reconfiguração do vínculo e da parceria o que os permite manterem-se juntos na construção de novos projetos futuros.

Ao serem questionados sobre como foi essa experiência, todos os entrevistados colocaram como algo transformador, que mudou o olhar que estes possuem para a vida e para as pessoas. Os entrevistados relataram também nunca terem imaginado vivenciar uma experiência desta, mas consideram que estas trouxeram maturidade para lidar com os problemas cotidianos e ainda com os problemas conjugais.

Milena em sua fala trouxe sobre o respeito aos direitos das pessoas com deficiência e o relato dos outros entrevistados levou à reflexão sobre as questões sociais enfrentadas pelas pessoas com deficiência e suas famílias. Quando Milena aponta que passou a se atentar a esta questão após o acidente do marido, mesmo sendo fisioterapeuta e trabalhando com lesão medular, isso trouxe para reflexão o cenário de exclusão muitas vezes vividos por essas pessoas na sociedade. As dificuldades, as barreiras existentes e toda lógica excludente é notado somente quando a deficiência se apresenta como uma realidade. Nesse sentido, apresenta-se a necessidade de que a pessoa com deficiência seja vista socialmente como um sujeito, cidadão, de direitos e deveres e que se atente aos seus direitos não somente quando ela se apresenta como uma realidade, mas também no cotidiano, em busca da transformação da realidade social. A inclusão das pessoas com deficiência na sociedade é também um processo de inclusão de seus parceiros e de seu grupo familiar que também sofrem com as barreiras construídas.

Ao falarem de seus projetos futuros os entrevistados além de colocarem sobre a permanência do vínculo conjugal, eles trouxeram sobre o desejo de vivenciarem bons momentos após a crise com o episódio da deficiência. Amanda trouxe o desejo de viajar e ter mais tempo junto com o marido, Lúcia colocou o projeto futuro do casal ligado à formação das filhas, mas aponta que eles sempre estarão juntos para se ajudar, Milena planeja ter filhos, Bruno pensa na mulher aceitar a condição de pessoa com deficiência e fala dos filhos. Mara coloca desejar apenas viver mais um tempo ao lado de seu marido. A configuração de projetos futuros, segundo Puget e Berenstein (1993) faz parte dos parâmetros que definem o vínculo entre um casal e que dão sustentação a estes. A construção destes projetos futuros apresentados evidenciam que esses casais, apesar da vivência de mudanças em suas vidas a partir da deficiência física adquirida, conseguiram reconfigurar o vínculo conjugal, dando continuidade aos pactos e alianças estabelecidos.

Nesse sentido, pode-se considerar que o episódio da deficiência física adquirida tem ressonâncias significativas no vínculo conjugal, impondo a estes dificuldades e desafios a serem enfrentados, que levam a reconfiguração de parâmetros definitórios desses vínculos e dos modos de se relacionar entre os parceiros. Evidencia que quando o vínculo é baseado na reciprocidade, no respeito, no reconhecimento e na responsabilidade para com o outro, como apontado por Eiguer (2008), este dá sustentação para as experiências de crise vivenciadas ao longo da vida conjugal e permite reconfigurações e reenlaces que viabilizam a construção de projetos futuros, parte também importante da manutenção do vínculo conjugal.

 

Considerações Finais

No decorrer do desenvolvimento deste estudo, verificou-se o processo de reconfiguração do vínculo conjugal a partir da experiência da deficiência adquirida, a redefinição dos parâmetros da vida conjugal e as dificuldades encontradas por estes neste processo. Evidenciou-se no discurso de todos os entrevistados, a importância da reabilitação na reorganização da vida familiar, do vínculo conjugal e na construção de projetos que foram potencializadores desse processo bem como se mostraram de extrema importância na manutenção do vínculo entre o casal e das perspectivas futuras para estes.

Nesse sentido, pode-se considerar que cada sujeito dá o seu significado pessoal a essa experiê̂ncia da deficiência adquirida pelo parceiro, buscando construir possibilidades para o enfretamento desta condição, considerando esta como um divisor de águas em suas vidas, no olhar para o outro, para as pessoas com deficiência e para os acontecimentos cotidianos. Desta forma, compreende-se que as ressonâncias da deficiência física adquirida no vínculo conjugal é polissêmica, porém nos atenta para diversas possibilidades de configuração e de reconfiguração do vínculo conjugal e da importância do compartilhamento com o outro das experiências vividas.

Além disso é relevante destacar a importância do fortalecimento de políticas públicas no trabalho de reabilitação das pessoas com deficiência, pois essa se mostra como uma via de fortalecimento e manutenção da pessoa com deficiência circunscrita em seus vínculos e como forma de empoderamento destas diante dos desafios pessoais, familiares e sociais que se apresentam. É importante ressaltar que estas políticas devem se voltar também a considerar o parceiro da pessoa com deficiência, pois este também sofre os impactos e transformações decorrentes deste episódio, a deficiência física adquirida não é algo que acomete apenas o sujeito com deficiência, mas sim toda a rede vincular na qual está inserido e principalmente seu parceiro conjugal e sua família.

Ademais, esse trabalho trouxe novos questionamentos e reflexões. Bruno era o único homem da amostra de pesquisa. Apesar de terem sido buscados homens parceiros de mulheres com deficiência e de terem sido empenhados esforços para contatá-los, apenas Bruno mostrou-se disponível, os outros homens contatados alegaram que não tinham tempo de participar ou que não participavam diretamente no cuidado e na vida das parceiras. Tal fato chamou a atenção e levou a reflexão sobre o papel social da mulher ligado ao cuidado, uma vez que Bruno, mesmo topando participar da pesquisa e se mostrar um parceiro dedicado ao cuidado de sua esposa, este apresenta dificuldades de cuidar desta, de construir projetos futuros, de enxergá-la como uma mulher e se relacionar com ela a partir disso. Bruno vê esse acontecimento como uma grande tragédia em sua vida, onde amparado por Deus consegue ter forças para continuar. Esse discurso presente no relato de Bruno, se articula ao lugar socialmente construído para a mulher :o de cuidado da casa, dos filhos e do marido.

Apesar das transformações sociais do papel da mulher, essa divisão sexual do trabalho como aponta Hirata (2015) está enraizada no discurso social e se reverbera nas experiências vividas. Lúcia também traz essa questão quando coloca que ela virou o homem da casa pois dá aula e traz o sustento para a casa, e o marido a mulher, pois este se dedica às questões domésticas. Nesse sentido, percebeu-se que o cuidado de um parceiro com deficiência por um homem, como no caso de Bruno, é tido como desafio imposto por Deus e vivenciado com grande dificuldade, tanto por dificuldades dele mesmo na sua relação com a esposa, mas também por conta de uma sociedade que tem enraizado como papel da mulher o cuidado com o outro.

Assim, pode-se constatar também o quanto as questões sociais estão presentes nesse processo de adaptação a partir da vivência de uma deficiência adquirida. A dedicação cuidadosa ao outro traz tanto a necessidade de políticas públicas que oferecem apoio à pessoa com deficiência e suas famílias, quanto de implicação pessoal, como também do questionamento de lugares socialmente constituídos.

 

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Endereço para correspondência
Thassia Souza Emidio
E-mail: thassia.emidio@unesp.br

Enviado em: 11/11/2019
1ª revisão em: 14/12/2020
2ª revisão em: 06/03/2021
Aceito em: 16/03/2021

 

 

1 Psicóloga, graduada pela Univ. Estadual Paulista- UNESP. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (2018).
2 Professora Assistente Doutora do Departamento de Psicologia Clínica da Univ. Estadual Paulista- UNESP. Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Vincularidade – LaPsiVi.

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