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Pensando familias

Print version ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.25 no.2 Porto Alegre Dec. 2021

 

ARTIGOS

 

A família multiespécie: um estudo sobre casais sem filhos e tutores de pets

 

Multi-species family: a study about couples without children and pet owners

 

 

Melanie de Souza de Aguiar1, I ; Cássia Ferrazza Alves2, II

I Centro Universitário da Serra Gaúcha
II
FSG Centro Universitário

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Atualmente, dentre os diversos arranjos familiares, a família multiespécie, composta tanto por humanos, como por animais tem aumentado no contexto social. Nestas famílias, verifica-se que muitos casais optam por não ter filhos ou adiam a maternidade/paternidade, cuidando de seus pets como membros da família. Sendo assim, esta pesquisa tem por objetivo compreender a motivação dos casais que optam por não ter filhos e que possuem animais de estimação. Foi realizado um estudo qualitativo e exploratório, com entrevistas semiestruturadas com oito indivíduos em união estável. As entrevistas foram analisadas a partir da análise temática. Foi encontrado que os casais consideram seus pets como membros da família e alguns casais os tratam como filhos, porém compreendem a diferença entre ter um pet e um filho. Por fim, percebeu-se a escassez de pesquisas referentes a casais sem filhos e com pets no contexto brasileiro, desse modo, são necessárias novas pesquisas nesta área.

Palavras-chave: Casais sem filhos, Famílias multiespécies.


ABSTRACT

Currently, amongst the various family arrangements, the multi-species family, composed of both humans and animals are growing in the social environment. Many couples in these families appear not to want to have children or just postpone it, taking care of their pets as family members. Therefore, this research intents to help in comprehension of the motivation behind these scenarios, where couples choose not to have children and have pets instead. An exploratory and qualitative study was conducted with semi-structured interviews with eight individuals in a common-law marriage. The interviews were analyzed based on the thematic analysis. It was discovered that the couples consider pets as their family members and also some of the couples treat them as their children, but they understand the differences between having a pet and having a child. Lastly, there is a lack of research with couples with pets and without children in the Brazillian environment, so further research in this area is needed.

Keywords: Couples without children, Multi-species families.


 

 

Introdução

Diante das mudanças evidenciadas na composição das famílias, vivência da conjugalidade e da parentalidade, identifica-se que a compreensão de família e conjungalidade tem se modificado (Hintz, 2001). Desse modo, a parentalidade passou a ser uma opção por parte dos casais. Ao abordar a temática nos casais, os motivos para a não parentalidade são bem parecidos, como o desejo pela liberdade de escolhas, vantagens financeiras e flexibilidade na carreira (Rios & Gomes, 2009). Neste sentido, a própria concepção do que é família tem se modificado. Para muitos casais, o fato de estarem unidos e residirem em um mesmo lar já era característico como a constituição de uma família, não precisando de filhos nesta configuração, evidenciando outras prioridades pessoais que não incluem a parentalidade (Sohne & Wendling, 2001).

O relacionamento conjugal do casal foi evidenciado como um fator importante na decisão da não parentalidade, mas o motivo que mais aparece nos estudos sobre essa decisão, é a carreira (Simpson, 2017). Referente ao relacionamento dos casais sem filhos notou-se que a sociedade tem uma ideia pré-existente de que esses casais não seriam felizes ou não teriam um relacionamento saudável. Porém, pesquisas destacam características positivas no relacionamento desses casais, tais como, o casamento como a prioridade central, o apoio mútuo, a liberdade sexual, a oportunidade de dedicar-se inteiramente ao outro e a partilha de valores e interesses (Silva & Frizzo, 2014). Sendo assim, identificam-se casais que optam por não terem filhos, mas que possuem animais de estimação (principalmente cães e gatos) (Meirelles & Fischer, 2016).

Percebe-se que antigamente, a família era definida a partir da consanguinidade e do grau de parentesco, e, nos tempos atuais, a família pode ser definida pelo grau de afinidade e coabitação, constituindo diversos tipos de configurações familiares (Prá, 2013). Entre essas novas configurações familiares encontram-se as famílias monoparentais, homoafetivas, recasadas, com uniões consensuais, multiespécie, entre outras. A família multiespécie é a configuração familiar foco no presente estudo. Esse tipo de arranjo familiar é composto tanto por humanos quanto por animais de estimação. É importante esclarecer que, para a família ser considerada multiespécie, os humanos desta família devem reconhecer e legitimar seus animais de estimação como membro da família e os incluir em seus ritos, tais como, cozinhar para eles (Gazzana & Schimit, 2015; Ximenes & Teixeira, 2017).

Sabe-se que a relação humano-animal aparece desde o tempo da mitologia grega, onde os deuses tinham parte de sua estrutura corporal composta por animais, representando valores, proteção e esperança (Giumelli & Santos, 2016). Nos tempos primitivos, os animais eram caçados pelos homens servindo-os como alimento e vestimenta e, ao longo da evolução da humanidade, os animais passaram a servir para transporte, trabalho e até a diversão humana (Mól & Venancio, 2014).

No período da Segunda Guerra Mundial, o homem passou a ter outra relação com os animais devido à falta de recursos naturais, aos problemas ambientais e as mudanças climáticas. Sendo assim, os animais entraram nessa relação de cuidado e, a partir disso, passou a desenvolverem-se os diretos dos animais (Melo & Rodrigues, 2019). Desse modo, é possível identificar que a transformação da história da relação do homem com o animal variou entre cada cultura. Para muitas pessoas, os animais são considerados seres capazes de sentir e ter emoções (Mól & Venancio, 2014).

É notável que cada vez mais os animais de estimação estão presentes nas famílias, sendo considerados parte desse arranjo familiar. Geissler, et al. (2017) relatam que a família multiespécie é uma configuração familiar dos tempos atuais, portanto, ainda não tem reconhecimento legal perante a lei. Desse modo, é possível notar um crescente movimento do direito em legitimar essa nova configuração familiar como portadora de direitos.

Embora sejam escassas as produções nacionais sobre famílias multiespécies compostas somente por casais, identifica-se que os estudos brasileiros abordam os temas da guarda compartilhada dos pets (Cardin & Silva, 2016), legitimação dos animais de estimação na lei como seres que sentem (Geissler et al., 2017) e a família multiespécie no geral (Gazzana & Schmidt, 2015). Em relação à guarda compartilhada dos pets, percebe-se que a partir do momento em que isso é discutido, os animais saem desse lugar de objeto, para um lugar de seres sencientes (Junior, 2018). Atualmente, no Brasil, não existe uma Lei implementada que trate da guarda dos pets, porém, muitos casais quando se separam procuram juízes para resolver essa questão e estes aplicam as mesmas leis de guarda utilizadas para humanos (Rezende, Miranda, Dutra, & Santos, 2017). Existe apenas um projeto de lei para tratar da guarda dos pets, pois, partindo do ponto de vista que eles são seres capazes de sentir e ter emoções, com a separação do casal eles acabam sofrendo junto, sendo assim são necessárias leis que tratem desses casos (Junior, 2018).

Na literatura internacional acerca do tema, Simpson (2017) identificou, em um estudo qualitativo sobre famílias multiespécies e a escolha de ter ou não filhos, que nove participantes adiaram a maternidade ou optaram por não ter filhos devido a questões como, carreira, educação, entre outros aspectos. Porém, seis dessas participantes que adiaram a maternidade, mas tiveram filhos, relataram os benefícios dos animais de estimação sobre os bebês humanos. Três participantes não quiseram ter filhos, optando apenas pelos animais de estimação como companheiros pelo fato de não gostar de crianças ou por buscar relacionamentos mais satisfatórios.

Ainda referente a esse estudo, muitos americanos consideram seus animais de estimação como membros da família e o conceito “membro da família” não designa necessariamente que o animal de estimação seja tratado desse modo. Porém, a mesma autora destaca que os gastos com os animais de estimação nos Estados Unidos (EUA) aumentaram durante o período de 1994 para 2015, não apenas com as necessidades básicas, mas com outras demandas, o que pode significar uma inclusão como membro familiar.  Além disso, com muita frequência percebe-se que o animal de estimação é visto ocupando o lugar de um filho, e às vezes os humanos modificam sua vida em função dos companheiros de estimação, assim como seria se eles tivessem filhos.

Outro estudo internacional, realizado por Volsche (2018), procurou compreender como se dava a paternidade em relação aos animais de estimação. O autor constatou que os participantes da pesquisa se intitulam “pais de animais de estimação”, porém conseguem reconhecer a diferença entre criar um filho humano e um animal de estimação. Foi identificado que muitos dos entrevistados chamam seus animais de estimação por “bebês”, “as crianças” e “as meninas”. Porém, quando eles estão em um lugar público, não usam esses nomes, devido ao estigma que a sociedade tem sobre considerar os animais de estimação como “bebês de pelos”. Contrariando a pesquisa citada anteriormente, esse estudo relata que muitos pais de animais reconhecem que seus animais de estimação não são crianças ou filhos substitutos. Sendo assim, as palavras parentalidade e pais de animais de estimação, são usadas para mostrar o profundo afeto que essas pessoas têm por seus animais e a importância dessa relação (Volsche, 2018).

Por fim, ressalta-se a importância de entender o porquê dos pesquisadores Americanos buscarem compreender os motivos das pessoas não terem filhos, mas não investigarem a opção por ter um animal de estimação no lugar de um filho (Simpson, 2017). Volsche (2018), também corrobora com essa ideia, destacando a falta de pesquisas sobre o assunto e a importância de entender como se estabelecem essas relações e o apego entre as partes. Com relação à produção cientifica nacional, percebeu-se que a literatura é escassa e são necessárias novas pesquisas sobre o tema na literatura brasileira.  A partir disso, este estudo tem por objetivo geral compreender a motivação dos casais que optam por não terem filhos e que possuem animais de estimação.

 

Material e Método

Delineamento e Participantes

O presente estudo configura-se como uma pesquisa exploratória e qualitativa (Gil, 2008; Turato, 2005). Participaram do estudo quatro casais sem filhos e que tinham pets de estimação. Esses casais deveriam estar há, pelo menos, um ano casados ou em união estável. Os participantes foram selecionados por conveniência, a partir do método “bola de neve”. Para este método de seleção de participantes, inicialmente foi localizado um casal que atendesse aos critérios de inclusão e exclusão e, após a entrevista com o mesmo, foi solicitado que cada casal indicasse outro e assim sucessivamente (Vinuto, 2014).  A localização do primeiro casal que participou da entrevista foi feita através da divulgação de um convite nas redes sociais (Facebook, Instagram e Grupos de WhatsApp).

Procedimentos de Coleta de Dados

Os dados foram coletados a partir de um questionário sociodemográfico e de uma entrevista semiestruturada realizada de forma online, conforme a disponibilidade dos participantes e realizada com os dois cônjuges, em conjunto. No questionário sociodemográfico, foram coletados dados como idade, sexo, orientação sexual, identidade de gênero, nível socioeconômico, escolaridade, profissão, tempo estão casados/união estável.

A entrevista semiestruturada, composta por oito perguntas, foi construída com base na literatura uma vez que não foram localizadas entrevistas que estejam adaptadas ao contexto brasileiro e que estivessem de acordo aos objetivos deste estudo. A fim de avaliar se a entrevista estava de acordo com o objetivo do estudo, foram convidados dois psicólogos da área de família e desenvolvimento humano (um mestre e um doutor), que teceram contribuições para qualificar a entrevista (investigar o tempo que o casal possuía o animal de estimação; questionar se os participantes tinham animal de estimação na infância, além de investigar se os dois cônjuges são apegados ao animal). Desse modo, as perguntas versaram sobre quantos e quais animais de estimação os tutores3 tinham, qual a relação dos tutores com seus pets (rotina, cuidados), bem como sobre o interesse de ter filhos (Cardin & Silva, 2016; Simpson, 2017; Volsche, 2018; Ximenes & Teixeira, 2017).

Procedimentos de Análise dos Dados

Todas as entrevistas foram gravadas apenas por áudio, sendo transcritas e analisadas a partir da análise temática. A análise temática é um método para reconhecer, investigar e informar padrões dentro dos dados. Além disso, ela alinha e expõe os dados coletados. Desse modo, a análise temática possui seis passos.

No primeiro passo, foi realizada a transcrição das entrevistas, a leitura e releitura dos dados e anotação das ideias iniciais. Logo após a anotação de ideias, o próximo passo concentrou-se em produzir códigos iniciais a partir dos dados que foram interessantes para o pesquisador. Depois de todos os dados estarem codificados e separados em grupos, o terceiro passo foi à identificação dos temas a partir dos códigos. Posteriormente à identificação dos temas, foi realizada a revisão desses temas. No quinto passo, foram definidos e nomeados os temas para a análise final. E, por último, o sexto passo foi à análise final e a escrita do relatório (Braun & Clarke, 2006). Foram construídas as seguintes categorias: pets como membros da família, pets parecidos com um filho, adiamento da parentalidade e a escolha por não ter filhos.

Procedimentos Éticos

O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa da Sociedade Educacional Ltda./FSG, conforme resolução nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2016). Após a aprovação, foi divulgado o convite nas redes sociais (Facebook, Instagram e Grupos de WhatsApp).

O primeiro casal localizado que atendeu aos objetivos do estudo indicou o próximo casal e assim de forma consecutiva (cada casal indica o próximo casal), representando o método “bola de neve”. A entrevista semiestruturada e questionário sociodemográfico foram realizados a partir da concordância individual do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos participantes de forma online (formulário GoogleForms), tendo a duração aproximada de 30 minutos. No TCLE, constaram os objetivos da pesquisa, explicando que não era obrigatória a colaboração, bem como não haveria ganhos financeiros com a mesma e também não acarretaria custos ao participante. Também, a qualquer momento, o participante poderia desistir de participar da entrevista sem qualquer prejuízo.

 

Resultados e Discussões

A tabela 1 evidencia as informações dos participantes da pesquisa.

 

 

1. Pets como Membros da Família

A partir das entrevistas realizadas com os casais, foi possível perceber que todos eles consideram seus pets como membros da família, incluindo os seus animais de estimação em rituais, como, por exemplo, nas refeições. Uma fala de um dos casais que participou do estudo (casal A) referente à alimentação do pet, no qual evidencia essa adaptação das refeições, foi: “Assim, aqui em casa a gente tem uma coisa que é assim a gente vai fazer carne, seja qualquer tipo de carne, seja peixe, seja frango seja carne moída, seja filé, não interessa, tem que fazer um pouquinho pro Fred, separado assim, senão a gente vai ter problema, dai a gente faz separada”.

Como já citado, todos os casais consideram seus pets parte da família, porém a participante do casal B teve mais dificuldade para aceitar o pet no início, sendo somente uma decisão do cônjuge adotar o pet. Contudo, demorou menos de um mês para ela acostumar-se com o pet e apresentar afeição a ele. Hoje, ela afirma que o pet tem a mesma importância que um parente bem próximo. Sendo assim, os pets podem representar diferentes papéis na vida dos seus tutores, sendo um desses papéis o de membro da família. Desse modo, os indivíduos estão estabelecendo relações com os pets cada vez mais parecidas com a dos humanos, tal acontecimento pode ser nomeado como humanização dos pets (Gazzana & Schmidt, 2015). Chaves (2016) também percebe que os pets estão sendo vistos como um membro familiar, relatando que o número de animais de estimação nas famílias brasileiras está crescendo cada vez mais e que, em alguns lugares do mundo, as famílias com pets são maiores do que as com filhos.

Consequentemente, os tutores dos pets os incluem em sua rotina, como o casal A, que citou que toda a rotina da casa foi modificada para adaptar-se à rotina do pet, por exemplo, a sogra do casal (que reside na mesma casa que o casal) sempre acordava e levava o animal de estimação para passear e fazer suas necessidades. Porém, devido ao Covid-19, a rotina do pet teve que ser alterada para a dos humanos, por exemplo, agora os tutores só saem para passear com o pet duas vezes por semana.  Outra questão interessante relatada pelo casal B, que demonstra essa inclusão, também nos momentos de lazer, foi a seguinte fala: “Quando a gente vai passear assim na casa de algum parente mais próximo que a gente pode levar ela, a gente sempre leva também, ela gosta muito”.

Segundo Seguin, Araujo e Neto (2017), a mudança na relação do ser humano com o animal de estimação possibilitou que os tutores atribuíssem ao pet o status de membro da família, portanto o pet passou a viver mais dentro de casa. Com isso, os tutores passaram a ter gastos mensais com eles, além do fato do animal de estimação conquistar seu próprio espaço, sendo cuidado até sua morte.

Um relato que evidencia o fato do pet ser visto como membro da família foi o do casal D, que afirmou deixar de viajar por causa dos pets, ou seja, os tutores abdicam de seus desejos em prol do bem estar dos animais domésticos. Para Seguin et al. (2017), os animais de estimação adaptam-se a rotina dos humanos, assim como, os humanos se adéquam ao seu grupo familiar, ou seja, os pets criam características e comportamentos conforme os membros da família. Os tutores nomeiam os pets, incluindo eles na linguagem e investindo afeto nos animais domésticos, desse modo, os pets fazem parte daquele clã familiar. Segundo Aguilar (2019), a presença do pet nas famílias (cães e gatos) e a concepção de eles serem considerados parte da família já tem um reconhecimento social e cultural e aos poucos está sendo reconhecido no campo da jurisprudência. O autor ainda traz que os tutores reconhecem que os seus pets possuem características únicas e que ele é um ser individual.

Por fim, os tutores manifestaram uma preocupação com os pets e com a saúde deles. O casal B afirmou ter muito cuidado com a alimentação do pet, relatando que antes de dar algo para ele comer, sempre analisam se a comida não vai prejudicar a saúde do animal de estimação. “Até quando o mais velho teve pedra no rim tudo a gente ficou bem preocupado e foi atrás de tudo também, essas coisas meio que ajuda” (casal C). Essa fala do casal C evidencia outro aspecto na análise que se refere aos gastos dos tutores com seus pets, a partir dos gastos com a alimentação dos pets e a saúde física deles. Segundo Mendes, et al. (2018), o mercado dos pets não vê mais os animais como meros objetos, mas sim como parte das famílias, por isso hoje encontramos diversos entretenimentos para os pets, como creches, cuidados de beleza etc.

2. Pets Parecidos com um Filho

Identificou-se que dois dos casais entrevistados (casal A e casal B) relataram que tratam seus pets como se eles fossem seus filhos. As seguintes falas demonstram essa concepção: “Preocupação com ele assim, como se ele fosse, hã, meu filho, é como se ele fosse filho da minha mãe, tá? (Casal A)” e “Tratamento como se ela fosse nossa filha mesmo” (Casal B). O casal A ainda relatou que seu amor pelo pet tem a mesma intensidade que o amor de um pai por um filho.  Porém o casal compreende que são amores e entregas diferentes e ainda afirmam: “Não adianta comparar um filho com um pet. São entregas diferentes de carinho”. Em um estudo realizado por Aguilar (2019), uma das participantes da pesquisa fez um desenho sobre a sua família, incluindo seu pet e seus três filhos (meninos) e afirmou: Eu tenho quatro filhos, os três meninos e a menina", ou seja, o pet era considerado como uma filha.

Também foi observado outro aspecto nessa relação entre os tutores e os pets, relacionado à forma como os chamam.  O casal B trouxe a seguinte fala: “daí dependendo assim se a gente vai falar nós assim em casa assim, às vezes a gente chama de filha e a gente fala assim ahh o pai a mãe sabe”. Ou seja, os tutores referem-se ao pet como se fosse sua filha, porém na frente das outras pessoas isso não ocorre. Segundo Volsche (2018), muitos tutores chamam seus pets de filhos, porém, na frente dos outros se referem ao pet pelo nome, devido ao preconceito por parte da sociedade.

Nesse sentido, as seguintes frases relatadas pelo casal A demonstram a comparação do pet com uma criança, como se o animal doméstico tivesse para eles o mesmo significado que tem uma criança: “Como se ele fosse uma criança” “Como toda boa criança”. Os autores Aguilar (2019) e Gazzana e Schimdt (2015), também corroboram com a ideia de que o pet pode ser visto como uma criança na família. Outra questão apresentada pelo casal B foi a seguinte fala: “Teste drive pra um filho”, mostrando novamente que o pet é parecido com um filho para o casal. De acordo com Chaves (2016), muitas famílias com animais de estimação se consideram pais de “filhos de quatro patas” e realmente sentem que exercem a parentalidade dos pets. Para Mendes et al. (2018), os tutores criam um afeto tão grande pelos seus pets, que passam a enxergá-los como membros da família e muitas vezes como filhos. Enfim, os tutores podem enxergar o pet como um ensaio para um futuro filho, devido às responsabilidades que os donos dos pets precisam ter com eles (Bernardi, Carneiro, & Gamalhaes, 2018).

3. Adiamento da Parentalidade

O casal A afirmou que quer ter filhos somente daqui a uns cinco anos, enquanto o casal C disse que optaram por adiar a parentalidade devido a questão financeira. Segundo Mendes et al. (2018), muitas mulheres que optam pela maternidade estão adiando-a e um dos fatores que contribui para isso, são os pets substituírem os filhos e não exigirem tanto esforço por parte dos tutores, por exemplo. Além disso, eles não fazem cobranças, críticas aos seus tutores e estão sempre ali para sua companhia. Uma fala relatada pelo homem do casal B reflete este aspecto: “Tenho medo de gostar mais do meu cachorro do que do meu filho”.

Quando se opta pela parentalidade, alguns obstáculos como a diminuição da satisfação conjugal do casal e os gastos financeiros podem vir a se tornar aspectos negativos nessa opção. Essas variáveis influenciam na postergação da parentalidade ou na escolha por não ter filhos. Outras questões que são apontadas para adiar a parentalidade são a ascensão social, estabilidade financeira, nível de escolaridade, entre outras (Bernardi, 2018). Além disso, Bernardi et al. (2018) corroboram com a ideia de que a condição financeira interfere na decisão de adiar a parentalidade/ ter filhos e ainda citam a carreira como outro fator importante nessa decisão.

Por fim, para os casais que afirmaram que querem ter filhos no futuro, foi perguntado se isso influenciaria na relação deles com os pets, todos eles afirmaram que não, pois acreditam que a relação continuaria a mesma. O casal C relatou acreditar que a parentalidade aumentaria a relação afetiva deles com o pet. Nesse sentido, identifica-se na literatura que muitos casais adotam um pet para conviver com seus filhos devido aos inúmeros benefícios que o pet pode trazer para a criança, tais como: responsabilidade, segurança, relacionamento emocional e a curiosidade (Mendes et al., 2018).

4. Escolha Por Não Ter Filhos

Quanto à parentalidade, apenas o casal D afirmou não querer ter filhos. O motivo citado pelo casal D refere-se ao fato de que os filhos tirariam sua liberdade, pois eles gostam muito de morar em diversos lugares e isso não seria possível com filhos. Segundo Caetano, Martins e Motta (2016), a liberdade do casal pode influenciar nessa decisão. Coelho et al. (2020) destaca que o fato de o casal ter projetos futuros onde não há possibilidade de se ter uma criança, pode ser um fator para essa tomada de decisão.

Para Rios e Gomes (2009), a decisão de não ter filhos pode estar ligada ao modo como foi  a criação do indivíduo em sua família de origem. Os autores também citam que algumas vantagens nessa escolha são: menos preocupações, maior liberdade, menos gasto financeiro, mais tempo para se dedicar a carreira, etc. Em uma pesquisa realizada por Coelho et al. (2020) com casais que optaram não ter filhos, foi identificado que a relação conjugal dos casais era satisfatória e muitos tinham outras metas em suas vidas, por exemplo, uma carreira profissional promissora. Além disso, os autores relatam que a maior parte destes casais possuíam um nível de escolaridade mais elevado. No caso do presente estudo, o casal D, que optou por não ter filhos, era composto por um dos membros com ensino superior completo.

Ressalta-se a falta de pesquisas com casais homossexuais que optam por não terem filhos, pois, na maioria dos artigos encontrados foram entrevistados apenas casais heterossexuais. Porém, sabe-se que um contexto de um casal heterossexual e homossexual é completamente diferente, por isso, seria importante se casais homossexuais também participassem dessas pesquisas.

 

Considerações Finais

Com a realização da pesquisa, foi possível identificar que os tutores dos pets tratam eles como membros da família, incluindo-os em diversos rituais (tais como passeios de família, alimentação). Além de ter afeto e apego pelos seus pets, alguns casais os veem como filhos e os tratam como tal, ou como crianças. Além disso, constataram-se alguns dos motivos para os casais adiarem a parentalidade ou optarem por não ter filhos, como a questão financeira e a busca por liberdade. Percebeu-se que todos os casais têm gastos mensais com seus pets, o que é um dos critérios para que a família seja considerada multiespécie.

Esta pesquisa apresenta limitações que se referem ao tamanho amostral, especialmente por ser composta em sua maioria por casais heterossexuais, não privilegiando outras configurações familiares. Caso a amostra fosse maior, novas entrevistas seriam realizadas ampliando a abrangência dos achados e provavelmente modificando os resultados encontrados. Essa questão também direciona para estudos futuros.

Evidencia-se que o assunto ainda é recente no contexto brasileiro tendo em vista a escassez de estudos nacionais. A maioria dos estudos brasileiros encontrados abordam acerca da guarda dos pets ou de casais com filhos e pets. Notou-se que a maior parte dos estudos que se referem a casais com pets e sem filhos são americanos, o que dificultou a atual pesquisa, pois a realidade americana é diferente da brasileira. Desse modo, são necessários mais estudos brasileiros nessa área.

Outra questão levantada é a falta de estudos com casais homossexuais que optam por não ter filhos, pois nas pesquisas encontradas destacavam-se a adoção por parte de casais homossexuais. Além disso, identificou-se que os estudos que falam sobre o adiamento da parentalidade ou a opção por não ter filhos, entrevistam o casal junto, às vezes trazendo mais a visão da mulher sobre a maternidade. Desse modo, identifica-se a necessidade de estudos futuros sobre casais homossexuais que optam por não ter filhos e por fim, estudos que entrevistem separadamente os casais que adiam a parentalidade ou optam por não ter filhos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Melanie de Souza de Aguiar
E-mail: melanieaguiarsouza@gmail.com

Cássia Ferrazza Alves
E-mail: cassiaferrazza@gmail.com

Enviado em: 22/02/2020
1ª revisão em: 15/07/2021
Aceito em: 19/08/2021

 

 

1 Acadêmica de Psicologia pelo Centro Universitário da Serra Gaúcha.
2 Psicóloga pela Universidade Franciscana, Mestre e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRGS; Docente da FSG Centro Universitário.
3 Tutores de pets: pessoa que desempenha uma tutela, o indivíduo que acolhe, protege e defende o pet.

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