SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.1 issue1Group and body, in the perspective of the Cambridge modelRussian icons illustrating the mother/baby relationship: clinical unfolding author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.1 no.1 São Paulo Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

Grupos de supervisão: espaço continente. A função transformadora do supervisor

 

Groups of supervision: place of continence. The improving function of the supervisor

 

Grupos de supervisión - espacio continente. La función transformadora del supervisor

 

 

Betty Svartman1

Núcleo de Estudo em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares - NESME
Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo - SPAGESP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é enfatizar as funções consideradas essenciais no trabalho de supervisão com grupos de profissionais, alunos de curso de formação em psicanálise das configurações vinculares, cuja experiência se dá, ou na rede pública, ou em instituições que lidam com população de muito baixa renda. A saber: ajudá-los a superar a impotência por meio da formulação de hipóteses; contribuir para que percebam o quanto já vêm sendo capazes de realizar no seu dia-a-dia; ajudá-los a suportar os limites do possível, aceitando que há um ponto a partir do qual não lhes compete interferir. O texto inicia como uma crônica a respeito da urbanização da cidade de São Paulo, que, pela sua complexidade demanda que os percursos sejam compartilhados, para que a “paisagem” possa ser desfrutada em sua riqueza. Isto serve como metáfora da situação enfrentada cotidianamente pelos supervisionandos e a partir de uma reflexão sobre isto, o autor vai-se aproximando do tema principal.

Palavras-chave: Grupo de supervisão, Compreensão, Percurso compartilhado.


ABSTRACT

The main goal of this paper is to emphasize the essential tasks of the supervisor of professionals that work in public health institutions, with very poor people. The author refers as important: improve their comprehension, help them realize and dignify their competence and provide them with means to deal with limitation. An analogy is established between the complexity of the circumstances with witch this professionals deal every day and the complicated urbanization of the city of São Paulo: both situations demanding some kind of translation to become endurable, both experiences are a kind of shared course.

Keywords: Supervision group, Comprehension, Shared course.


RESUMEN

En este trabajo se presentan algunos supuestos acerca de la función del supervisor. Las reflexiones están basadas en la experiencia con un grupo de profesionales de salud que hacen formación en Psicoanálisis de las Configuraciones Vinculares. Estos alumnos clinican en instituciones donde los pacientes son muy carentes. Tres funciones tienen énfasis: construir con el grupo hipótesis para comprensión de las situaciones relatadas; valorar la creatividad e iniciativas del profesional y ayudar definir los límites de una acción terapéutica. Al autor hace una comparación de la complejidad de las situaciones del cotidiano de los supervisionados con la compleja urbanización de la ciudad de São Paulo: en ambos los casos se necesita alguien que haga junto el recorrido, para descifrar lo que esta ahí.

Palabras clave: Grupo de supervisión, Comprensión, Recorrido compartido.


 

 

INTRODUÇÃO – Uma crônica sobre São Paulo

Aconteceu há alguns dias. Estava me dirigindo para um lugar habitual, passando por caminho que sempre passo e eis que me dou conta de que a ladeira que tenho pela frente é muito, muito íngreme. Isso me reaviva a noção de como é peculiar a topografia de São Paulo: é mesmo uma metrópole assentada numa cordilheira! Paulistana que sou, de vida inteira, a constatação sedimenta uma certa emoção, cujo nome não sei exatamente qual é, mas, com certeza, da ordem do amor/orgulho pela terra natal.

Toda essa experiência aqui descrita em tantas palavras, provavelmente não durou mais de um ou dois segundos, mas trouxe de imediato associação com uma vivência de meses atrás. Estava passeando pelas mesmas imediações, justamente para mostrar São Paulo para uma amiga argentina, de Buenos Aires, que aqui estava pela primeira vez. Eu havia estado na terra dela meses antes e tinha ainda presente meu encantamento com aquela cidade. Queria que ela gostasse igualmente da minha. Era pela Avenida Sumaré que transitávamos, quando notei que a expressão no rosto dela era de estranhamento. Sua cara não era a de quem estava gostando, mas de quem não estava entendendo a paisagem. Arriscaria dizer, que a expressão de seu rosto lembrava a de alguém lendo pela primeira vez um texto de Guimarães Rosa, ou Saramago: tem-se certeza de que é algo de grande valor, mas não dá para entender muito na primeira leitura. Produz mistura de anseio de conhecer mais e de sofrimento. Não é de prazer o primeiro impacto.

Essa foi minha tradução da expressão que vi no rosto de minha amiga. Mas eu, paulistana de coração, não suportei imaginá-la partir daqui com má impressão. Não era justo eu ser capaz de ver beleza na sua Buenos Aires e ela não perceber a beleza da minha São Paulo.

Minhas idéias se organizaram mui rapidamente. É a complexidade da imagem, pensei, que a está impedindo de ver a beleza. O cenário portenho me veio à lembrança: uma metrópole completamente plana, com exceção de uma pequenina parte. Uma urbanização absolutamente regular com traçados retos. Uma visão levíssima. Era isso! Para quem convive com isto no dia a dia, a visão de São Paulo é pesada demais, complexa demais. Eu havia encontrado a chave para decifrar-lhe o estímulo. Sozinha, ela não poderia fazê-lo.

Comecei a explicar-lhe: São Paulo é uma grande cidade assentada sobre montanhas. Observe que enormes, que altas, veja as ladeiras. Imagine isto há trezentos anos atrás, pura cordilheira. E veja hoje, esses prédios, essas casas, essa gente circulando ....o comércio.

Foi impressionante a transformação na sua expressão: o desprazer do estarrecimento foi sendo substituído pela perplexidade cheia de admiração. Nas ladeiras que faziam imenso volume dos dois lados do vale por onde está traçada a Avenida Sumaré, ela começou a enxergar um tipo de urbanização que nunca vira e que por isto, antes de entender, lhe parecera algo desestruturado, louco, assustador, feio. E eu aproveitei para lhe contar que ali onde naquele momento circulávamos, uma larga e bela avenida com três pistas de cada lado e um enorme canteiro verde no centro, ali, quarenta anos antes, eu ainda me lembrava, era um córrego. Enquanto lhe contava isto, seus olhos, agora brilhantes, viam inúmeras pessoas, algumas sozinhas, outras aos pares, algumas com cães, muitas de bicicleta, utilizando aquele canteiro central como um parque. Vimos também, isto é inevitável, moradores de rua, alguns inclusive se lavando num filete de água natural de uma mina, resquício da original cordilheira. Mas eu, paulistana, já estava satisfeita. Tinha certeza de ter despertado nela o reconhecimento e o respeito por um lugar muito diferente do seu lugar de origem, pelo qual o exagero de diferença havia feito brotar, num primeiro momento, a emoção desagradável do excesso de estranhamento.

No momento que referi, no início deste relato, quando tudo isto me veio à lembrança, eram sete horas da manhã e eu saíra de casa pensando no trabalho que tinha que preparar para um congresso, sobre supervisão. Senti que esta experiência brotada numa fração mínima de tempo, sei lá como, de dentro de mim, continha a essência do que eu precisava dizer sobre supervisão. Mais precisamente, sobre supervisão como lugar continente.

 

PRIMEIRA PARTE – As funções do supervisor

Meu principal objetivo, neste artigo, é enfatizar os aspectos que considero essenciais no trabalho de supervisão que venho desenvolvendo há alguns anos, com grupos de profissionais cuja experiência se dá, ou na rede pública, ou em instituições que lidam com população de muito baixa renda. Têm sido, em geral, alunos de curso de formação em psicanálise das configurações vinculares.

Os profissionais que compõem o grupo em que se inspira este texto, atendem a uma população extremamente diversificada. Há neuróticos, psicóticos, psicopatas. Há crianças, adultos, idosos. Confrontam-se o tempo todo com dificuldades muito grandes. Apresentam-se perante eles, pedindo explicita ou implicitamente ajuda, indivíduos desnorteados, drogados, famílias desestruturadas ou até dilaceradas, e que, portanto, não são continentes para seus integrantes. Nas instituições públicas em que trabalham, são atendidas tanto as vítimas de violência, de assédios sexuais dentro ou fora da família, como aqueles que praticam tais atos. Os grupos com que trabalham têm esta diversidade na sua composição. São também seus clientes, pessoas com doenças físicas, às vezes gravíssimas, deficientes físicos ou mentais, seus familiares angustiados, desorientados e, muitas vezes culpados. E também fazem parte de seus grupos, aqueles cujo enorme sofrimento não tem razões objetivas claras, devendo-se a frustrações com um cotidiano sem grandes dramas mas também sem muito sentido. Não são poucos os que passam fome e há aqueles que para poder pagar a condução para chegar à instituição. precisam de uma contribuição das próprias terapeutas. Trata-se, portanto de uma paisagem de imensa complexidade. Vemos assim, que o trabalho de psicoterapeutas ou psicanalistas de grupo, na nossa sociedade, na nossa época, não corresponde a fazer assentamento em território plano, mas em íngreme cordilheira.

A carência exagerada de recursos materiais e a inexistência quase generalizada de uma política voltada para a saúde da população torna tal empreendimento análogo à implantação de uma cidade como São Paulo, nas áreas montanhosas, há duzentos anos atrás, com precária tecnologia. O que quero dizer com isto é que vejo nos profissionais que lidam cotidianamente com esta realidade, a bravura dos bandeirantes.

“Sabemos que todo o corpo de conhecimento da psicanálise das configurações vinculares é de uma riqueza extraordinária no sentido de um entendimento dos fenômenos que subjazem às patologias atuais. Só que também sabemos que a utilização desse corpo teórico de conhecimento requer indivíduos que, além de conhecer teoria, possam ser criativos, possam ousar, ter flexibilidade, sem, no entanto, desprezar elementos básicos de um saber já consagrado” (BONFIM&SVARTMAN,2001, p.29).

Não raras vezes, os alunos que supervisiono chegam aos grupos angustiados, com a sensação de impotência diante da magnitude dos dramas dos seus pacientes e desiludidos, muitas vezes com os limites da própria teoria. Mas é exatamente esta desilusão que, bem encaminhada, pode permitir-lhes pensar, desejar, sonhar e, principalmente, criar. Considero que minha principal função, como supervisora, é favorecer esse encaminhamento.

Quando meus supervisionandos, em grupo, me descrevem seus grupos de pacientes, os mais diversos nas suas composições, e me contam, tanto seus momentos de paralisia em relação ao que fazer, quanto ações criativas, construtivas e sábias em situações dificílimas, eu reconheço que são basicamente três as minhas responsabilidades:

1. ajudá-los a superar a impotência, construindo, com a ajuda de todo o grupo de supervisão, hipóteses de compreensão que ajudem a lidar com os impasses;
2. contribuir para que percebam o quanto já vêm sendo capazes de realizar no seu dia-a-dia;
3. ajudá-los a suportar os limites do possível, aceitando que há um ponto a partir do qual não lhes compete interferir. Nisto, o próprio grupo se ajuda muito, ao trocar experiências similares.

 

SEGUNDA PARTE – Supervisão – um percurso compartilhado

Talvez esteja mais clara, agora, para os leitores, a razão da minha crônica introdutória. O relato é longo propositalmente, pois quis transmitir através de sua forma, o percurso que faço no contato com meus supervisionandos: passeando e conversando; chamando a atenção para o que está presente e para o que precisa ser trazido ao pensamento por alusão à história. Pondo em evidência as transformações que se dão ao longo do tempo.

Meus grupos de supervisão apresentam-se, às vezes diante de mim, com a expressão de decepção que vi na minha amiga. Mas a paisagem que vejo, descrita por eles mesmos, embora repleta de sofrimentos vários, é de extrema riqueza. As inúmeras vivências de seu cotidiano são repletas de empenho por parte de pacientes e profissionais. A luta pela sobrevivência física e psíquica, apesar de incontáveis obstáculos, a busca dos profissionais por aprofundar seu conhecimento, sua coragem, criatividade, tudo isto é permanente. Há, portanto, ali, uma beleza cara. Para esses obreiros do dia-a-dia, porém, freqüentemente o lado valioso da experiência passa desapercebido, soterrados que estão pelos enormes maciços volumes que os cercam por todos os lados.

Como no caso do “patriotismo paulistano” que emergiu em mim na situação exposta inicialmente, a cada encontro com meu grupo de supervisão, do próprio encontro, surge em mim um sentimento equivalente (amor à saúde? amor ao saber? admiração pelo trabalhador?- não sei classificar) que dá origem a uma construção conjunta de uma imagem mais organizada, com alguma fundamentação na transubjetividade, com atenção aos vínculos intersubjetivos, que vai fazendo com que a cena trazida pelo supervisionando ganhe um aspecto diferente, novo. A complexidade exagerada das situações, que freqüentemente produz exasperação, ao ser “tomada ao colo” por todo o grupo, sob minha coordenação, vai sendo examinada sob diferentes ângulos, até poder ser vista como uma paisagem com recursos anteriormente não percebidos. Ocorre, assim, um processo bem semelhante ao vivido naquele passeio que descrevi: co-atuam várias ordens de atividade psíquica, da categoria da razão e da categoria da emoção.

O supervisor, como o anfitrião, tem a responsabilidade de acolher. Se tem sentimentos positivos pelo âmbito onde se dá o encontro (São Paulo/psicanálise) e se ama aqueles que ali acolhe (amiga/supervisionandos) fluem ações que visam a uma integração das partes. Estas ações são formuladas a partir de algum tipo de conhecimento. Este conhecimento só terá uma repercussão transformadora sobre o outro (amiga/supervisionando) se a angústia que está funcionando como obstáculo for apreendida e decodificada e se houver, de ambas as partes, uma intenção de aprender com aquele encontro.

É responsabilidade do supervisor promover uma interação dinâmica entre o saber psicanalítico e um fazer articulado a cada demanda específica. A Psicanálise dos Vínculos nos ensina que não podemos excluir de nós mesmos a inquietude, o medo, o desamparo que a realidade concreta nos tem feito vivenciar. Ver perigo e ameaças de diversas naturezas não é um delírio paranóide. Aqueles que trabalham em contato direto com a população dos níveis mais carentes, palpam e sentem na pele um composto de sofrimentos materiais e imateriais que suscita angústias e exige respostas que não estão prescritas na ortodoxia da técnica psicanalítica. Mas a teoria psicanalítica, hoje enriquecida pelas várias contribuições pós-freudianas, até nossos dias, são base sólida para uma compreensão valiosa.

 

TERCEIRA PARTE – O grupo de supervisão

Tenho trabalhado com grupos de três a cinco integrantes. A cada encontro semanal de quase duas horas, um deles traz um material de sua experiência institucional. Na maior parte das vezes, falam de atendimentos, mas eventualmente preferem conversar sobre questões que surgem em suas equipes, que estão atravancando possibilidades de trabalho. Considero qualquer escolha de material a ser supervisionado, válida. Ouço. Procuro identificar porque aquilo, naquele momento. O grupo todo contribui. Os colegas muitas vezes identificam-se com o relator. Têm experiências pessoais que esclarecem. Têm opiniões, quase sempre pertinentes. Mas cuido para que as intervenções dos colegas não tirem a ênfase do supervisionando que tem “a bola da vez”. Em geral não há disputas hostis por atenção. Ao longo do tempo, instalou-se no grupo uma cultura de respeito a esta dinâmica de rodízio. Mas há muita participação. Quando relatam uma sessão de grupo, há vezes em que percebo uma necessidade de descrever cada integrante detalhadamente. É um tempo enorme contando as histórias. É um jeito de evidenciar o grande espaço destinado dentro do terapeuta a cada um daqueles seres-humanos. Um espaço que às vezes é inversamente proporcional à compreensão que está sendo possível. Outras vezes diretamente proporcional ao vínculo afetivo que se estabeleceu. Tudo isto é mostrado. Tudo isto é respeitado. Às vezes surge como tema central uma preocupação muito grande com algum paciente do grupo. Isto é examinado e tentamos decifrar tal preocupação. São tantas as particularidades, que trazer exemplos específicos corresponderia a um outro trabalho.

O que, neste, desejei enfatizar é que na topografia íngreme que compõe o cenário do dia-a-dia do trabalhador de Saúde Mental, no nosso contexto social, numa estrutura em que as redes de apoio (SVARTMAN,2003, p.29) tão necessárias são cheias de furos, o supervisor pode ser fundamental para favorecer uma reciclagem de energia, através de uma escuta respeitosa e continente. E sem energia permanentemente renovada, não subimos as ladeiras. E, como em São Paulo, no trânsito, também no atendimento da população, sem torque para enfrentar o enduro, não chegamos a lugar nenhum.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONFIM,R.C.M.; SVARTMAN, B. Grupos de Reflexão – uma experiência que dá frutos. In: Anais do IV Congresso de Psicanálise das Configurações Vinculares e III Encontro Paulista de Psiquiatria e Saúde Mental, Serra Negra, 2001, p.29-32.        [ Links ]

FERNANDES, WJ; SVARTMAN, B.Contribuição de autores argentinos à psicanálise vincular. In: FERNANDES,WJ; SVARTMAN,B.; FERNANDES,B. S. Grupos e Configurações Vinculares. Porto Alegre: Artmed, 2003, p.65-74.        [ Links ]

SVARTMAN, B. Transubjetividade – sociedade atual: a importância de redes de apoio. REVISTA DA SPAGESP, Ribeirão Preto, n. 04, p. 29-36, 2003.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Betty Svartman
E-mail: svartman@terra.com.br
svartman@terra.com.br

 

 


1 Psicóloga, psicoterapeuta individual e de grupos, membro docente do CEPPV (NESME) e do NUF (SPAGESP).

Creative Commons License